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INTERDISCURSO E MEMÓRIA: A METÁFORA E A METONÍMIA EM PÊCHEUX/HERBERT

RESUMO

Partindo da constatação de que, às vezes, os conceitos de interdiscurso e de memória são emaranhados tornando-se quase equivalentes e entendendo que recobrem funcionamentos discursivos distintos, pretendo refletir sobre a problemática, recorrendo aos conceitos de metáfora , de metonímia e de discurso transverso , como teorizados, sobretudo, por Michel Pêcheux (2011 [1984]), em Metáfora e Interdiscurso , e Thomas Herbert (PÊCHEUX, 1995a), em Observações para uma Teoria Geral das Ideologias. Tentarei sustentar a hipótese de que o interdiscurso se refere à metáfora , como deslocamento do pré-construído de uma região discursiva para outra, ao passo que a metonímia , como imposição de outro efeito a partir de uma “parte” do objeto discursivo, organiza, por meio do discurso transverso, outra rede de sentido e, por isso, outro eixo de memória. Para a construção do percurso, amparo-me nos casos de ‘toupeira’ e de ‘incêndio’ (retirados de Michel Pêcheux) e discuto o caso de ‘Deus’.

Metáfora; interdiscurso; metonímia; memória; discurso transverso

ABSTRACT

Since the concepts of interdiscourse and memory are sometimes overlapped and become almost equivalent and cover different discursive functions, I intend to examine the issue by using the concepts of metaphor, metonymy, and transversal discourse, as theorized mainly by Michel Pêcheux (2011 [1984]) in Metaphor and interdiscourse and Thomas Herbert in Remarks for a General Theory of Ideologies (PÊCHEUX, 1995a). The hypothesis is that interdiscourse refers to metaphor as displacement of the pre-constructed from one discursive region to another. Meanwhile, as metonymy is the imposition of another effect from a “part” of the discursive object, metonymy organizes another meaning-relation network through transversal discourse and, therefore, another axis of memory., I will take the cases of ‘mole’ and ‘fire’ (from Michel Pêcheux) as a basis for argumentation and discuss the case of ‘God’.

Metaphor; interdiscourse; metonymy; memory; transverse-discourse

Introdução

Tangido por problematização de pós-graduandos em Letras, na disciplina de Teoria do Discurso, fui levado a buscar aprofundamento em relação aos conceitos de interdiscurso e de memória e, ao fazê-lo, acabei me deparando, às vezes, com a dificuldade que eles relatavam de não conseguir discernir algum traço mais objetivo que permitisse perceber a divisão entre as noções, dado o enovelamento que é feito entre eles, tornando-os não raramente, indiscerníveis.

Buscando compreender os fios que entrelaçam os dois conceitos, cheguei aos estudos “Metáfora e Interdiscurso”, de Michel Pêcheux (2011)PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , “Observações para uma Teoria Geral das Ideologias”, de Thomas Herbert ( Michel Pêcheux, 1995aPÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. ), “A Língua Inatingível”, de Françoise Gadet e Michel Pêcheux (2004), e “Papel da Memória”, de Michel Pêcheux (1999)PÊCHEUX, M. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-58. . Levando em consideração estes trabalhos, pareceu-me possível aventar uma hipótese de saída para a problemática levantada.

O enlaçamento destes estudos levou ao aprofundamento do conceito de metáfora , concebido por Pêcheux como um primeiro curto-circuito simbólico, devido à importação de um pré-construído de uma região discursiva por outra por meio do interdiscurso. Por outro lado, dada a fragmentação que opera sobre o objeto discursivo como segundo curto-circuito simbólico, a metonímia imporia a justificação e a explicação para a importação e para a clivagem, gerando outra série de sequências discursivas, em “contradição” com aquela sobre a qual se constitui, série que é orientada pelo discurso transverso em direção à produção de um outro eixo de memória. É disto que este ensaio trata.

A Metáfora da Toupeira e do Incêndio

Em “Metáfora e Interdiscurso”, publicado em 1984, Pêcheux (2011)PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. aproxima estes dois conceitos, fazendo-os circunscrever um movimento de dependência recíproca. Pautando-se no “realce dado aos processos discursivos” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.151), ele postula que o seu projeto consiste em “levar a sério a noção de materialidade discursiva enquanto nível de existência sócio-histórica [...] que remete às condições verbais de existência dos objetos [...] em uma conjuntura dada” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.151-152, grifo do autor), pleiteando que o sentido se faz via discurso e não por meio de determinações que transcendem a historicidade.

O projeto que Pêcheux (2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.152) propunha evitava a suposição “da existência evidente dos objetos de saber, ‘passando através’ dos processos discursivos, nos quais eles se constroem, sem prestar a estes últimos uma atenção particular”. A teorização deveria impedir “uma ‘sociologia do saber’ (pautada na evidência), uma posição ‘poetológica’ que localizaria [...] no espaço poético os processos [...] ou uma teoria dos gêneros ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.152). Seria por meio de processos discursivos que um objeto é significado e que um efeito, em face da precedência temporal e da repetição acentuada, fixa o que é sem que o seja necessariamente.

Para Pêcheux (2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.153, grifo do autor), “é preciso retroceder até a questão da produção discursiva do sentido de um enunciado (expressão, frase ou sequência textual)”, que condiciona o sentido pelo discurso e o discurso pelo sentido, concluindo que este não se faz sem aquele e que aquele submete a este. Desse modo, o sentido depende do que se diz sobre. Contra uma literalidade transparente ou uma naturalidade especular, a espessura dos “objetos” discursivos provém do que os submete a um efeito, clivado por um processo discursivo.

Um termo não teria um sentido, pois é “conjunturalmente determinado enquanto objeto ideológico”; termos como “o balão livre, a estrada de ferro e a toupeira”, que se referem ao deslocamento espacial, são “metáforas nas quais ele se representa” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.157); ‘toupeira’ não teria uma “‘naturalidade zoológica’”, já que a produção discursiva dos objetos “circularia entre diferentes regiões discursivas, das quais nenhuma pode ser considerada originária” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.158), porque são o que se diz sobre eles; embora o termo seja mantido, o sentido muda conforme a região discursiva. Não haveria “uma estrutura sêmica do objeto, e em seguida aplicações variadas desta estrutura nesta ou naquela situação, mas a referência discursiva do objeto já é construída em formações discursivas (técnicas, morais, políticas...)” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.158).

Para ir ao ponto: ‘toupeira’ seria uma metáfora não por referência a um sentido natural, mas porque, embora a forma linguística permaneça, o sentido é clivado por regiões discursivas e adquire um efeito em cada uma: “nem universais históricos, nem puros efeitos ideológicos de classe, esses objetos teriam a possibilidade de ser ao mesmo tempo idênticos a eles mesmos e diferentes deles mesmos, isto é, de existir como uma unidade dividida, suscetível de se inscrever em um ou outro efeito conjuntural” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.157); “é porque os elementos da sequência textual, funcionando em uma formação discursiva dada, podem ser importados (metaforizados) de uma sequência pertencente a uma outra formação discursiva que as referências podem se construir e se deslocar historicamente” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.158). Eis a metáfora como importação, clivagem, construção e deslocamento da referência discursiva por meio da relação entre regiões discursivas que falam das mesmas “coisas”, mas não dizem as mesmas coisas sobre elas.

No texto Observações para uma Teoria Geral das Ideologias , escrito como Thomas Herbert, Pêcheux (1995a)PÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. também se reporta à metáfora, pela aproximação ao que ele designa como Ideologia Empírica , “a propósito da qual se exerce uma resistência local (uma ideologia tenta se passar por uma ciência, produzir os efeitos dela e recolher seus benefícios)” ( PÊCHEUX, 1995aPÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. , p.65), já que “coloca em jogo uma função semântica [que postula] a coincidência do significante com o significado” ( PÊCHEUX, 1995aPÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. , p.71), obliterando o deslocamento do sentido por meio da importação metafórica e pressupondo uma relação de adequação e co-naturalidade biunívoca entre eles.

Mas o pleito da co-naturalidade entre o significante e o significado, apaga, por exemplo, o deslocamento metafórico e cria uma resistência que oblitera a “especificidade simbólica do animal humano, [com a] pseudo-gênese da ordem do simbólico” ( PÊCHEUX, 1995aPÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. , p.72-73). Para o autor, pautado em Freud,

[...] não há gênese do significante (o que anula a ideia da produção-distribuição de significantes própria da ideologia empirista): a relação significante-significado resulta de uma propriedade da cadeia de significantes que permite colocar corretamente o problema da realidade exterior e da prova dessa realidade ( PÊCHEUX, 1995aPÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. , p.73, grifo do autor).

Não é a realidade que permite, “a partir de uma ligação originária e não metafórica com o ‘objeto real’, edificar a posteriori as metáforas” ( PÊCHEUX, 1995aPÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. , p.73, grifo do autor). Eis por que Gadet e Pêcheux (2004GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível. Trad. Bethânia Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas, SP: Pontes, 2004. , p. 27) defendem n’A Língua Inatingível, ) que a “metáfora também merece que se lute por ela”.

Para ilustrar como concebe a metáfora (e a metonímia), Pêcheux (2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.158, grifo do autor) recorre ao caso da interpretação “clássica entre as representações anarquistas e marxistas da destruição do Estado [por meio da] figura do incêndio ”. Ele afirma que, com base na “noção de interdiscurso e de sequência pré-construída importada” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.158), tem o objetivo de mostrar como no caso dos anarquistas a interpretação é metafórica e, no caso dos marxistas, é metonímica, ao contrário do que se defendia.

Para ele, dada uma sequência S1: “‘As lojas X/o banco Y/o prédio administrativo Z... foram destruídos pelo incêndio’” do “discurso cotidiano do século XIX” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.159), dada a aproximação com uma sequência S2: “‘É preciso destruir o Estado burguês pela Revolução’, do discurso político revolucionário clássico” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.159), e por elas terem a destruição em comum, incêndio e revolução podem ser emparelhados em sequências como “‘o incêndio da revolução destruirá o Estado burguês’” ou “‘Viva o incêndio do Estado burguês” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.159). Para Pêcheux (2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.159), a importação põe em relação incêndio e revolução por um curto-circuito simbólico “sem que nenhum discurso justificativo o subentenda: as explicações e as justificações virão após”. Ter-se-ia, no caso, a importação, via interdiscurso, do pré-construído, a destruição pelo incêndio ou o incêndio destrói , que produz um deslocamento metafórico e um corte simbólico.

Pode-se replicar a reflexão nos casos relativos ao deslocamento espacial; seja toupeira . Como este animal se locomove sob a terra, cava túneis, vive em cavernas e é cego, é possível se referir aos trabalhadores das escavações para túneis de metrô (ou ao metrô) com o termo: “os trabalhadores do metrô vivem como toupeiras” (uma metáfora zoológica) ou atribuir o termo à poucas perspicácia sobre uma conjuntura: “ideologicamente, teu amigo é uma toupeira” (uma metáfora política): curtos-circuitos ocorrem, então, movendo o termo entre regiões discursivas distintas, com diferentes efeitos: eis o interdiscurso como divisão, clivagem e dispersão.

Para fechar a seção na forma de síntese: na perspectiva de Pêcheux (2011)PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , uma materialidade linguística não tem um sentido natural e, desse modo, contrariamente à ideologia empírica e ao imaginário do sentido literal e unívoco, a metáfora, via importação e deslocamento, por meio de relações interdiscursivas, cliva os significantes e os coloca em eixos de equivocidade e de polissemia, gerando múltiplos efeitos, como em incêndio e toupeira . Um diagrama pode criar um efeito de maior objetividade ao postulado acima. Dado que o caso de incêndio será mais bem apresentado nas reflexões, no diagrama, fico apenas com o caso da toupeira (caso desenvolvido por mim).

Quadro 1
Toupeira 1

Metáfora e Interdiscurso

Nesta seção, considerando o texto Metáfora e Interdiscurso, busco uma concepção de interdiscurso , à luz de excertos do artigo de Pêcheux (2011)PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. e considerando a definição de metáfora e o caso do incêndio . Entendo que o interdiscurso está intrinsecamente ligado à metáfora, pois, dada a importação e o deslocamento que ela provoca, tem nele o “princípio de funcionamento” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.158). Em face da clivagem de sentido, outros discursos se fazem e, contra a integração, ele remete à dispersão e à diferença, já que, de acordo com Pêcheux (2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p. 157), “os efeitos de interdiscurso não se resolvem em um ponto de integração, mas se desenvolvem em contradições”.

Pêcheux (2011)PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. afirma que os elementos que se referem ao deslocamento espacial (toupeira, estrada-de-ferro, balão livre) são metafóricos, uma vez que não provêm de uma região original que se expande via conotação. Eles são objetos clivados, idênticos a si e diferentes de si: são a diversidade que se sustenta na unidade aparente causada pelo uso de um significante. Mas, em face da possibilidade de se inscreverem “em um ou outro efeito conjuntural” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.157), o sentido depende da região que os mobiliza. Interdiscurso, por meio da importação, do deslocamento e da “contradição”; metáfora, porque o resultado do investimento faz o sentido ser outro.

Contra a suposta colagem de um significante a um significado, com o sentido vindo de fora de processos discursivos, os significantes transitam em regiões discursivas e recebem de cada uma um efeito, dado o deslocamento causado pelo interdiscurso e o seu funcionamento de, ao colocar discursos em relação, permitir que outros se façam. Não há, portanto, o sentido, mas um efeito produzido numa conjuntura. Assim, tudo se decide no encontro da conjuntura que açambarca o significante e define os seus contornos.

Para Pêcheux (2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.158), “a referência discursiva do objeto é construída em formações discursivas [...] que combinam seus efeitos em efeitos de interdiscurso”, o que significa que não há sentido único ou literal. A importação de um objeto, via interdiscurso, por força das relações disjuntivas que a metáfora produz, faz com que o efeito seja o que ela estabelece. Para ele, por consequência, “a produção discursiva [dos] objetos ‘circularia’ entre regiões discursivas, das quais nenhuma por ser considerada originária” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.158). Não há, antes, a toupeira do mundo animal, para, depois, haver a toupeira relativa ao deslocamento sob a terra, para, por fim, haver a toupeira referente à alienação política. O termo ‘toupeira’ pertenceria às três, com efeitos de dispersão e de clivagem; eles, por meio de uma relação de contradição discursiva, fazem-no pertencente a conjunturas que o constroem como objeto discursivo à sua maneira.

O interdiscurso remete, portanto, à relação entre discursos com fronteiras relativamente delimitáveis (formações discursivas técnicas, políticas, religiosas, sanitárias, morais, médicas, pedagógicas...), cuja importação de pré-construídos permite que uma metáfora coloque o objeto discursivo sob outras luzes e propicie outra rede de sentidos. Se o incêndio do cotidiano é um motivo para haver corpo de bombeiros, sobre o incêndio da revolução, é oportuno argumentar que não é preciso que o combate se faça pelo fogo e pelas chamas, embora isso possa ocorrer.

À luz destas reflexões, é possível afirmar que a metáfora e o interdiscurso mantêm uma relação constitutiva e inextricável, sendo o segundo a via pela qual um pré-construído de uma região discursiva é levado a produzir outro efeito a partir da primeira. Se o interdiscurso é o mecanismo de deslocamento e a metáfora é a imposição de outro efeito, ele se refere à relação entre discursos que pode gerar confronto ou aliança, em geral, com a denegação do débito. Um discurso sendo devedor de outro, tem-se a circulação de objetos discursivos em diferentes regiões não preferenciais e, às vezes, um embate contundente e polêmico.

É sob esta mirada restritiva que parece se aplicar o pleito de Pêcheux (1995bPÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Puccinelli Orlandi et al. 2.ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1995b. , p.162) de que o “o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso”, uma vez que ela não nasce de si, dando-se uma origem em relação com outra de que se distancia, mesmo que sob efeito de aliança. Um discurso carece de outro que o anteceda e forneça o húmus para a metaforização de pré-construídos que produzirão outros efeitos sobre os significantes. Porém, a dependência dissimulada pela aparência de evidência não passa de um efeito do imaginário.

É sob esta constrição que parece dever ser considerada a fórmula retomada de Pêcheux (1995bPÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Puccinelli Orlandi et al. 2.ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1995b. , p.162) como definição: “a objetividade material contraditória do interdiscurso remete [ao] fato de que ‘algo fala’ ( ça parle) sempre antes, em outro lugar e independentemente”. Nela, cada termo empregado parece determinar um percurso de leitura. No caso da toupeira , é preciso que o termo, como um dado de interdiscurso, pertença a outro lugar (zoologia, mundo técnico, postura política) independente e que se sustente sem a existência necessária do seu outro. A reflexão pode ser reaplicada a incêndio: ele denuncia uma relação interdiscursiva, porque, do discurso cotidiano, anterior (não a origem), de outro lugar e independente, ele foi deslocado para o discurso revolucionário por meio de uma metaforização, produzindo outro efeito.

Parece, pois, que o interdiscurso coloca discursos em relação e permite que metáforas sejam construídas e se tornem o pêndulo para a tessitura de redes de sentido que tratam dos “mesmos” objetos discursivos, mas não digam o mesmo sobre eles, constituindo outros efeitos, outros matizes de significação e outros eixos de memória por meio de outras cadeias sintáticas que retomam, metonimicamente, outra parte do todo.

O diagrama anterior tem o inconveniente de seccionar as regiões discursivas em áreas rigorosamente circunscritas, com limites nítidos, como se não houvesse deriva e dependência mútua entre elas. A separação com linhas contínuas pode produzir o efeito de separação radical, de isolamento e de débito algum de uma para com a outra. Em outros termos, o isolamento desenhado pode apagar o interdiscurso e a dispersão constitutiva da interdiscursividade, eixo em que se pode, hipoteticamente, arrebanhar os discursos que se relacionam em torno de objetos discursivos preferenciais. Eis o porquê de o diagrama inicial aparecer refeito a seguir; nele, não há regiões isoladas e sem circulação multidirecional que permitam a dispersão entre A, B e C, com um número sempre impreciso de dispersões que podem vir a ocorrer horizontalmente.

Quadro 2
Toupeira 2

A Metonímia do Incêndio e da Toupeira

A metonímia é considerada como a retomada de um termo por outro, que o representa enquanto parte do todo. A substituição não se funda na semelhança como na metáfora, mas no aproveitamento de uma parte do todo que o retoma, dada a contiguidade entre eles. Pêcheux (2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.160) se vale do caso da ‘vela’ que retoma ‘barco’, com o qual “se articula através da descrição técnica das partes constituintes do barco (e a vela é justamente uma de suas partes constituintes: a principal, essencial ou constitutiva)”. O autor replica a reflexão sobre ‘incêndio’ como uma “metonímia clássica”, restrição que produz uma clivagem entre a definição corrente e a que o conceito terá nas suas formulações. Nele, a metonímia, às vezes, coincide com o cânone, mas, às vezes, a “parte” é resultado de um deslocamento metafórico concebido por cadeias sintáticas que a restringem e não da retomada de uma parte que constitui o todo.

Considerando o recalque da ordem do simbólico pela ideologia empírica, que denega o fato de o significante de um significado não nascer da relação com o objeto real, mas da cadeia discursiva que gera a ancoragem, cabe retomar, sobre a metonímia, um segundo recalque gerado pelo apagamento da “conexão de significantes entre si” produzido pela ideologia “ especulativa ” ( PÊCHEUX, 1995aPÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. , p.71, grifo do autor), que se simula como ciência por colocar os objetos em discurso, pautada na tese da comunicação e do controle do homem sobre si pela linguagem.

Se o primeiro recalque supõe que o significante adere ao significado por uma relação de co-naturalidade, o segundo postula o estável por conceber “‘o homem’ (como) animal social ” ( PÊCHEUX, 1995aPÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. , p.72, grifo do autor), cujas relações com os demais seriam naturais, pois a “natureza seria precisamente a natureza linguística do animal humano como animal social apto para intercambiar significações codificadas” ( PÊCHEUX, 1995aPÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert. , p.72, grifo do autor). Denegando que o significante adere ao significado socialmente, sendo produzido por cadeias sintáticas que fixam os seus contornos, aqui, a linguagem é um conjunto de signos que possuem sentido unívoco e permitem a comunicação por meio de mensagens, o que justifica a designação desta ideologia como especulativo-fraseológica, já que, pautada na especulação do sentido, ela cria um efeito de evidência, embora se ancore na identificação e no reconhecimento.

No caso do ‘incêndio’, para Pêcheux (2011)PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , ocorre um primeiro curto-circuito metafórico por causa da similaridade entre o do cotidiano e o do anarquismo, que o considera um substituto possível ou determinante de ‘revolução’. Este freio ao sentido homogêneo postulado por uma ideologia empírica traz um desafio, caso se mantenha o recalque da ordem do simbólico, que passa pela imersão em cadeias sintático-metonímicas, como em ‘incêndio’, num segundo curto-circuito, desta feita, pelo atravessamento de “uma sequência textual transversal” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.159).

Para Pêcheux (2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.159), sobre S1: “Incêndio - destruir - prédios/bancos/lojas” e sobre S2: “Revolução - destruir - Estado burguês”, em que a metáfora via interdiscurso produz um deslocamento, incide uma sequência S3 que conecta “lojas/bancos/administração” e “Estado burguês”, gerando “O Estado burguês protege as lojas, os bancos, as administrações” ou “Ele está organicamente ligado a estas instituições” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.160). O segundo curto-circuito não seria “uma perturbação que pode tomar a forma do lapso, do ato falho, do efeito poético, do Witz ou do enigma [ou da negação]”, como na metáfora, mas “uma tentativa de ‘tratar’ esta perturbação, de reconstruir suas condições de aparecimento, um pouco como um biólogo reconstrói [...] o processo de uma doença para intervir sobre ela” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.160, grifo do autor). Dada a perturbação provocada sobre ‘incêndio’ e o questionamento sobre a aproximação com ‘revolução’, há que se justificar e explicar o curto-circuito metafórico com um curto-circuito metonímico encadeado por uma rede de significantes orientada por um discurso transverso que determina a relação entre ‘a’ e ‘b’ por contiguidade.

Neste sentido, é possível afirmar que uma metáfora acontece por meio de uma relação interdiscursiva e produz uma fratura no sentido. Se o deslocamento não visasse à clivagem, não seria necessário. Contudo, a metáfora, já que fragmenta a referência, carece de explicações e justificativas para a dispersão, cabendo à metonímia parcializar o objeto discursivo, explicando o que ele é doravante num discurso. No caso do ‘incêndio’, tudo gira em torno da justificativa do primeiro curto-circuito por meio de um segundo que, metonimicamente, traduz e situa a fissura produzida por meio de sequências discursivas. O mesmo raciocínio se aplica a ‘toupeira’ (e aos demais casos), pois, em face do estranhamento da importação (o que um trabalhador do metrô ou um alienado político tem a ver com o animal?), uma justificação se impõe, devendo ser construída por meio de cadeias sintáticas que entrelaçam a parte com o todo.

Cabe à metonímia, portanto, desnudar o recalque da ordem do simbólico produzido por uma ideologia empírica, contornando o significado de um significante com cadeias sintáticas pautadas numa ideologia fraseológico-especulativa. Se a metáfora, via interdiscurso, perturba o sentido, a metonímia, via discurso transverso por meio de sequências discursivas, constrange a leitura, no limite, correndo o risco de “evoluir para uma construção-preservação do existente”, fixando-o “em uma eternidade administrativa”, por meio da “preocupação de curar a ferida em questão, ou de anular os seus efeitos”, tendo dificuldade de suportar a categoria de contradição” ( PÊCHEUX, 2011PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984. , p.161). A hipótese de trabalho, aqui, é que assim se chega à memória .

Ampliando o diagrama acima por causa do impacto metonímico sobre a alteração das referências discursivas e sobre a fissura gerada no sentido, trata-se de justificar e de explicar por que ‘toupeira’ e ‘incêndio’ puderam ser metaforizadas para as regiões B e C por meio da fragmentação do objeto discursivo, forçando-o, dada a semelhança parcial, a deslocar uma parte para outro lugar, com a produção de um conjunto de sequências discursivas que justificam e esclarecem as aproximações “incongruentes”.

Quadro 3
Toupeira 3

Devendo justificar e explicar o uso de ‘toupeira’ por três regiões diferentes, o que, do ponto de vista lógico, pode parecer irracional, enunciados como os abaixo podem ser produzidos, afetados pela interveniência do discurso transverso que coloca os discursos A, B e C em relação de dispersão de partes constituintes dos objetos discursivos.

  1. A toupeira é um pequeno mamífero insetívoro, que tem um corpo alongado e cilíndrico ajustado para cavar túneis, um focinho longo e tubular para buscar alimentos, olhos diminutos, é praticamente cega por viver quase integralmente na escuridão e tem as patas anteriores adaptadas para cavar ou nadar.

  2. Os trabalhadores do metrô recebem a designação de toupeiras, em virtude de trabalharem em túneis sob a terra, manterem pouco contato com quem vive à luz do sol e agirem como cegos, não fosse a luz artificial que os socorre. Assim como o bichinho, nestes túneis eles buscam a sua sobrevivência.

  3. Como o animal que vive sob o solo cavando túneis em busca de alimentos e é praticamente cego, o alienado político, incapaz de analisar criticamente a conjuntura política que o captura, pode ser referido como toupeira, pois age como se vivesse sob a ausência de luz e não percebesse os nós que o cercam.

Metonímia e Memória

Retorno ao incêndio para precisar como percebo o enlace da memória com o quadro de conceitos sobre a metáfora; o autor não faz esta relação, que fica ao meu encargo. Relembro as conclusões alcançadas até este ponto: trabalhando sobre um pré-construído de outro lugar e independente, por meio do interdiscurso, um curto-circuito metafórico se processa. Se o empreendimento tiver alguma relevância, uma explicação ou justificação pode ser necessária para a clivagem que secciona o sentido, cobrando uma reflexão sobre o efeito de sentido que agora é outro e que se ancora sobre uma parte do todo.

Enquanto, no discurso do cotidiano, incêndio se refere ao processo de combustão, que produz chamas e transforma em cinzas se não for combatido, no discurso revolucionário, ele se refere à corrosão de instituições que sustentam um modelo de estado. Em ambos os casos, trata-se de destruição, mas não pautada nos mesmos meios. Enquanto o primeiro tem a ver com essa fatalidade indesejada e não seleciona a vítima, o segundo tem um foco de aplicação, em face de uma posição político-ideológica econômica. Um bombeiro que deva abordar a prevenção contra incêndios falará indistintamente para proprietários de meios de produção ou trabalhadores; um marxista o fará de modo distinto, alertando os desfavorecidos e defendendo a administração coletiva. São discursos que tratam de incêndio, mas, se o combatem ali, pregam o alastramento aqui (guardado o efeito); se um visa à salvaguarda, o outro se pauta no desaparecimento.

É por meio do segundo curto-circuito, como discurso justificativo e explicativo da metáfora, que se gera a chave interpretativa do pré-construído e que a memória toma forma, determinando o fio de leitura do discurso nascente. Na injunção de precisar o efeito da clivagem, ele ganha forma e pode vir a ser uma teorização como a do discurso marxista. A clivagem provocada pela metáfora via interdiscurso, por força do discurso transverso que atravessa o processo metonímico, constitui, assim, um conjunto de materialidades que pode cristalizar uma compreensão e, no limite, criar um efeito de estabilidade. A metonímia, na secção que gera por meio do encadeamento orientado pelo discurso transversal que a constitui, no afã de justificar a metáfora, elabora a memória, que é discursiva e parafrástica e pode, por algum tempo, tornar-se imune à contradição.

Para curar a perturbação produzida pela metáfora, a metonímia, via discurso transverso, é tangida a traduzir o efeito de sentido e a trazer de volta o recalque da ordem do simbólico para denegar a ferida, devendo, por meio de sequências discursivas, explicitar o reconhecimento e a identificação pautados em ditames axiológicos. O deslocamento metafórico, ao produzir uma dispersão, deve se tornar compreensível e passar pelo discurso que o revela e que, ao revelá-lo, constitui uma rede que fixa contornos e permite a retomada, a ampliação e a especulação, por meio de paráfrases desdobradas em implicações, inferências e deslizamentos.

Dada a constituição por meio de cadeias sintáticas que produzem os laços metonímicos orientados pelo discurso transverso, a memória não “deve ser entendida [...] no sentido diretamente psicologista da “memória individual” ( PÊCHEUX, 1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-58. , p.50) e impõe que “afastemos interpretações psicológicas em termos de ‘realmente-já-ouvido’” ( ACHARD, 1999ACHARD, P. et al. Memória e produção discursiva do sentido. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 11-22. , p.50). Quando o significante é clivado por uma região discursiva que o desloca, é com uma outra fraseologia que o “novo” sentido é gerido, o que significa que a memória é discursiva, pois “a estruturação do discursivo vai constituir a materialidade de uma certa memória social” ( ACHARD, 1999ACHARD, P. et al. Memória e produção discursiva do sentido. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 11-22. , p.11). A memória, neste sentido, é tecida pela necessidade de justificação e de explicação da dispersão do pré-construído que, idêntico a si mesmo, migrando, ou sendo forçado a migar, habita outras materialidades discursivas com outro efeito.

Na medida que o discurso transverso, calcado na parte do objeto discursivo que realça, orienta a ocorrência de sequências discursivas, ele adquire uma força produtiva de paráfrases, “como derivações de possíveis em relação ao dado, (cuja) regularização estrutura a ocorrência e seus segmentos, situando-os dentro de séries” ( ACHARD, 1999ACHARD, P. et al. Memória e produção discursiva do sentido. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 11-22. , p.16). A dispersão do pré-construído e a migração para outra região o levam a ser uma referência discursiva trabalhada em materialidades que estabilizam a significação e retêm um efeito preferencial, estabelecendo o que pode e deve ser dito e constituindo uma memória e os implícitos que a constrangem.

Há que se ressaltar que ‘implícito’ aqui é concebido como um elemento que precisa ser recuperado da formação discursiva que o instaura, por meio da relação com a memória instituída por um discurso transverso que atua sobre a sequência discursiva. É este sentido que parece dever ser dado ao fragmento de Pêcheux (1999PÊCHEUX, M. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-58. , p.52): “a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que é dado a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que uma leitura necessita”, que, embora, não retomem só o mesmo, consideram-no como fio de referência. A metáfora, ao clivar o pré-construído, instaura um conjunto de explicações e justificativas que, como memória, impõe que sejam retomadas, ainda que por referência ao discurso outro de que se separou. Como uma região discursiva possui o próprio eixo de referência, ela retoma, sobretudo, os ‘implícitos’ construídos nela para que as materialidades submetam a um padrão de inteligibilidade.

Relembro que, às vezes, interdiscurso e memória surgem emaranhados ou sob a tentativa de fazer um caber dentro do outro. Entendo que, à luz das discussões, ambos se referem a fenômenos distintos, embora entrelaçados, um remetendo a um rito genético que se refere ao deslocamento metafórico, e outro, à constituição de uma região discursiva em torno do pré-construído de outro lugar independente. Também não parece relevante fazer de um o continente e do outro, já que eles são constitutivamente dependentes, como não são quase-sinônimos, dada a discrepância e o poder heurístico de cada um. Ressalto que não concebo a memória como uma cápsula que congela o sentido por força da sua constituição e que considero o pleito de Pêcheux de que “há sempre um jogo de força na memória, sob o choque do acontecimento [que pode provocar] uma ‘desregulação’ que vem perturbar a rede de ‘implícitos’” (PÊCHEUX, 1999, p.53), com a geração de outro efeito via deslocamento metafórico e tratamento metonímico.

Quadro 4
Toupeira 4

Sendo afetadas pelo interdiscurso que leva a deslocamentos metafóricos dos pré-construídos que as constituem, as regiões discursivas, orientadas pelo discurso transverso que as atravessa, necessitando justificar e explicar os efeitos de sentido derivados da parte de um todo oriundo de um outro lugar independente, geram núcleos ideológicos (como os do diagrama) que determinam e definem o parâmetro para a produção das sequências discursivas que as tomam como fonte de filiação ideológica. Ao contrário de um eixo horizontal, como o do interdiscurso que dispersa o sentido, a memória se articula sobre a verticalidade que, sob a injunção de uma produtividade não-subjetiva, previne o futuro, até que o interdiscurso venha a assombrá-la com outra metaforização.

O caso de “Deus”: um dado, dado a mais

Busco sistematizar os resultados alcançados pela aplicação à uma sequência discursiva, com o intuito de dar concretude às reflexões abstratas e apresentar a compreensão do quadro de conceitos mobilizados. A ilustração tem sempre algum poder explanatório e, de algum modo, mostra a racionalidade da teorização. Sem pretender que a análise a seguir seja a melhor solução, ela parece pertinente, já que não se aplica canonicamente aos casos usados por Pêcheux e contempla um modo de metaforização não citada pelo autor: a negação, na qual a metáfora ocorre por deslocamento não pautado na semelhança/identidade, mas por contradição.

O romance O Crime do Padre Amaro (2000) foi escrito por Eça de Queirós e teve como ambientação a abadia de Leiria, onde o Cônego Dias, amante da senhora da pensão, Dona Joaneira, trama para que Amaro, seu protegido, seja o substituto do falecido vigário da Sé. Amélia, a filha bonita e sedutora de Joaneira, com a chegada de Amaro, compõem o quarteto de relações proibidas, vivendo conjugalmente com o novo pároco. Grávida e desassistida, ao final, ela morre junto com o filho.

Não resistindo à atração por Amaro e se entregando a ele, ela sofre dramas contundentes de consciência e chega a ter alucinações de estar sendo alfinetada por Nossa Senhora, passando os seus dias entre a entrega ao desejo e a recriminação posterior, que faz sua vida transcorrer de modo torturante, inquieto e depressivo. Contudo, Ferrão, um novo abade, chega à paróquia e se torna seu confessor, levando-a a conhecer outra perspectiva religiosa e trazendo alguma calmaria para a sua existência problemática. Este excerto a obra já foi utilizado em outro estudo de 2017 ( CATTELAN, 2017CATTELAN, J. C. O interdiscurso entre discursos. Trama, Marechal Cândido Rondon, v.13, n.30, p.168-190, 2017. ), mas recorro a ele novmente, porque permite dar uma visão de conjunto do que desenvolvi neste ensaio. Trata-se de uma passagem em discurso indireto livre do fluxo de consciência do abade Ferrão, que se tornou confessor, também, de Dona Josefa, uma beata da Sé.

Quis então levar àquele noturno cérebro de devota, povoado de fantasmagorias, uma luz mais alta e mais larga. Disse-lhe que todas as suas inquietações vinham da imaginação torturada pelo terror de ofender a Deus... Que o Senhor não era um amo feroz e furioso, mas um pai indulgente e amigo... Que é por amor que é necessário servi-lo, não por medo... Que todos esses escrúpulos, Nossa Senhora a enterrar alfinetes, o nome de Deus a cair no estômago, eram perturbações da razão doente. Aconselhou-lhe confiança em Deus, bom regime para ganhar forças. Que não se cansasse em orações exageradas ( QUEIRÓS, 2000QUEIRÓS, E. de. O crime do padre amaro. São Paulo: Ática, 2000. , p.295).

A uma pergunta categórica que pretendesse colocar ‘Deus’ sob um sentido unívoco, não haveria uma resposta a ser dada, pois o efeito que Lhe é atribuído transita entre duas regiões discursivas, que retomam a seu modo o que surge como objeto discursivo de disputa. Contra a suposta designação que discretiza o mundo, nomeando-o e sedimentando a melhor significação adequada para cada ingrediente, Deus é uno enquanto “etiqueta”, mas clivado como concepção. Isto quer dizer que Deus é uma metáfora que se desloca entre discursos caracterizados pela dispersão e que imprimem sobre o mundo sentidos divididos e dispersos. No excerto, há, por assim dizer, dois deuses: um “pai indulgente e amigo” e um “amo feroz e furioso” e não se pode definir (sobretudo, neste caso) qual é o melhor sentido, mas apenas suportar a interpelação mais eficaz. A metáfora, assim, aparece (em Pêcheux é preciso ter em conta) como o dado de base, e não a literalidade, que se refere ao deslocamento entre regiões discursivas que se definem pela diferença e não pela identidade: eis o interdiscurso como rito genético.

O termo ‘deus’, metafórico que é, não dá conta de precisar o efeito de sentido, e não o sentido, que deve ter, pois precisa ser imerso em cadeias de significantes que o retomam, que o transformam em objeto discursivo e circunscrevem uma apreensão que o diferenciam do de outra região discursiva. ‘Deus’ precisa ser posto em sequências discursivas para que o efeito seja estabelecido, não por integração, mas por clivagem e divisão. Na sequência, há Deus e Ele não é o mesmo: lá, Ele é “feroz e furioso”, deve ser servido “por medo”, é um ser terrificante, é uma fonte de fantasmagoria, é um produtor de “cérebros noturnos”, de “imaginação torturada” e de “perturbações da razão doente” e exige “orações demasiadas”; aqui, é “pai indulgente e amigo”, deve ser servido “por amor”, não pede orações intermináveis, não tortura, não gera perturbações, não aterroriza, não produz alucinações e deseja pessoas esclarecidas e confiantes; lá, dadas a fúria e a ferocidade, ele é punitivo e vingativo; aqui, dadas a indulgência e a amizade, ele é bondoso e compreensivo. A metáfora Deus se desloca, interdiscursivamente, entre um discurso A e um discurso B, recebendo, metonimicamente, o efeito de sentido que deve ser reproduzido a partir da injunção de um eixo de memória nas sequências discursivas.

Este apanhado retoma a reflexão desenvolvida neste ensaio e adianta as considerações seguintes. Enquanto a metáfora e o interdiscurso remetem para o eixo horizontal da clivagem e da dispersão, como efeitos de sentido que transitam por regiões discursivas, a metonímia e a memória apontam para o eixo vertical da repetibilidade de um efeito sedimentado por cadeias discursivas que reiteram e estabilizam (relativamente) uma matriz de gerenciamento.

Como dito, na sequência, há, de um lado, um discurso A que representa Deus como “um amo feroz e furioso”. Se imaginarmos uma S1 como “Os homens desejam a vida eterna” e uma S2 como “A igreja deseja a salvação da humanidade”, esta instituição estaria apta a realizar a vontade de perenidade das pessoas, pois seria a representante no mundo de um Ser onipotente, onisciente e onipresente que, por isso, tem, sobretudo, o poder de satisfazer o desejo humano de eternidade, sendo, portanto, em virtude do conhecimento e da presença ubíqua, Alguém que pode punir os homens, caso não satisfaçam a Sua vontade, assim como concebida por uma igreja do tipo A. Colocando-se a serviço da salvação dos homens, esta instituição se vê colocada, dessa maneira, por decorrência, na obrigação de construir um discurso em torno da obtenção da vida eterna, tecendo concepções sobre a natureza de Deus, Seus desígnios, Suas exigências, Sua forma de atuação e, sobretudo, do que os homens devem fazer para atendê-Lo.

Na tentativa de colar um significado a um significante e pela obrigação de colocar, neste caso em especial, Deus em cadeias sintáticas especulativas e/ou fraseológicas que traduzem a colagem, discursos são produzidos e tecem uma rede de sentidos sobre Ele, o que é a igreja e o que se espera dos homens, já que, se querem a eternidade e Ele pode concedê-la, caberia a ela definir como obtê-la, por referência à constituição de uma grade de sentidos que estabelece uma memória sobre o conjunto. Como em A, para B, o núcleo ideológico é um senhor controlador, enraivecido e punitivo, um conjunto de decorrências se atrela a este princípio, estabelecendo uma luz rasteira e estreita de compreensão, uma imaginação torturada, o terror de ofender a Deus, a deferência por medo, jejuns exagerados e orações intermináveis. Esta “lógica” se pauta num modelo de igreja que, detentora de um “saber”, define um estilo de vida determinado pela preocupação de pecar e pela tese de que se peca sempre; dado este círculo vicioso, as precauções listadas seriam recomendáveis. A rigor, nada se sabe sobre Deus, uma entidade imaginada que, posta em cadeias de significantes, por meio do deslocamento de outras paragens (Deus é um construto de longa duração) e pela constrição do isolamento de uma parte do todo (não se sabe qual é nem mesmo se há uma parte - estamos lidando com a fé), recebe uma memória que define o que Ele é, assim como a igreja, o homem, o pecado e a salvação.

Pode-se concluir que, em face do deslocamento metafórico de um pré-construído, via interdiscurso com o paganismo-politeísta (hipoteticamente), outro efeito foi imposto sobre Deus, que, sobretudo, porque, em face do imaginário ligado à fé, produziu, por meio da transversalidade relativa a Deus, à igreja, ao homem e à salvação, um discurso em torno da punição e levou ao desdobramento de sequências discursivas, como “Se os homens desejam a salvação, podem procurá-la na igreja que, instância de mediação entre eles e Deus, pode orientá-los, pois ela O conhece e sabe, portanto, como obtê-la”; neste caso, por exemplo, com jejuns, orações, inquietação, medo e temor.

Contraposto, há um discurso B que concebe a Deus como “um pai indulgente e amigo”, por meio da negação como ingrediente que protagoniza uma relação polêmica, na qual os termos de A são transformados nos contrários. Mantendo a hipótese das S1 e S2, acima, a igreja ainda é apresentada como podendo atender ao desejo de eternidade das pessoas, mas, pautada em outra concepção ideológica, teria outro conjunto de orientações: ainda servir a Deus, ter sobriedade na alimentação e recitar orações, mas sob outro prisma. Negando o núcleo ideológico de A e toda a rede de construções derivadas, B se coloca como uma igreja que também lida com o homem pecaminoso, que propicia a salvação, que permite o alcance da vida eterna e que é a instituição secular que permite o alcance da perenidade, mas se sustentando num diapasão mais humano e compassivo.

Sem que, neste caso, haja uma palavra como incêndio que é movida para outro discurso com outro efeito, há um termo idêntico (Deus) que, dada a polêmica, é, em face da negação via interdiscurso, deslocado metaforicamente de A para B, abandonando os traços de ferocidade e fúria e albergando a indulgência e a amizade, núcleo ideológico orientador do desdobramento em outro conjunto de predições, já que, metonimicamente, a parte retirada do todo imaginário é a redenção e não a punição. Em B, diferentemente de A, por meio da injunção de outra relação entre os homens, Deus, igreja salvação, outra rede de discursos é tecida, levando à constituição de uma memória que produz uma maneira diferente de conceber a relação entre a salvação e o desejo de eternidade, constituindo outro imaginário da interação religiosa.

Assim como em A, a igreja seria a instituição indicada para orientar os homens no trato com o divino em face do desejo de vida eterna, pois ela deteria o “saber” sobre Ele e sobre os Seus desígnios, desta feita, desejosos de servidão amorosa, de alimentação sóbria e de orações moderadas. Em B, o cérebro deixaria de ser obtuso e possuído por fantasmagorias, não haveria uma imaginação torturada, nem terror, nem medo e o discernimento seria mais adequado e mais abrangente. Na medida em que B também necessita explicar, especulativamente, o efeito de colagem que busca produzir entre o significante ‘Deus’ e o seu efeito, é a partir de uma outra S3 que, transversalmente, ele amarra o quadro constituído com vistas à salvação. Se, em A, ela é obtida de um modo, com a constituição de uma filiação discursiva e um conjunto de sentidos decorrentes (uma memória), em B, ela é alcançada de outra maneira, já que B sustenta em outro núcleo ideológico e outra rede de parâmetros (outra memória).

Tanto A quanto B tratam de Deus, mas o metaforizam de maneira distinta, produzindo efeitos a partir do confronto interdiscursivo que os entrelaça. Frente a uma ideologia dominante como A, Ferrão é a resistência que, por meio da negação e como porta-voz de outra mirada, busca alicerçar outro comportamento religioso. Sustentado por uma outra transversalidade que reorienta a relação entre os homens, Deus, igreja e salvação, o corte metonímico estabelecido seleciona um traço dessemelhante a ser levado à prática, transformando-o em conjunto de sequências discursivas e dando forma a outro processo discursivo e a outra memória.

É neste sentido que Deus não é indivisível. Na materialidade do discurso e na contenda pelo sentido, há dois deuses: um amo feroz e furioso e um pai indulgente e amigo . Há, pois, duas regiões discursivas religiosas cujos parâmetros de atuação são distintos. Se A se pauta no rigor, na censura e na punição, em B, valem o perdão, a complacência e a compreensão. Isto é: Deus é o que o discurso concebe, havendo tantos quantos forem as formações discursivas, à revelia do que seja ou não. Deve-se a isso a ênfase de Pêcheux numa posição materialista do discurso, já que é nas diferentes regiões discursivas que os objetos recebem sentido.

Considerações finais: tentativa de síntese

Este parece o momento para retomar a hipótese desenvolvida neste estudo. Uma região discursiva, determinada pela injunção de atribuir sentido aos objetos discursivos que a constituem, produz um conjunto de sequências discursivas sobre eles. Contudo, contra toda sorte de precaução, em virtude do embate que pode vir a ter com outra região, que concebe o mundo de outra forma, as referências discursivas que a constituem podem se transformar em outras, já que estão sujeitas a migrar para outras paragens.

A polêmica entre regiões, por força do interdiscurso, pode levar, desse modo, um pré-construído que, em A, significa X, a significar Y, em B, produzindo outro efeito a partir do deslocamento metafórico, o que significa que outra cercania se forma, já que o objeto discursivo precisa de um outro lugar para receber existência. Dessa maneira, o interdiscurso, via polêmica, e a metáfora, via deslocamento, produzem uma fissura no campo do sentido que precisa ser tratada em face da dispersão horizontal provocada.

Para o deslocamento ser aceitável, deve haver um terreno comum entre A e B, isto é, o pré-construído de A deve ter algum ingrediente que permita a importação para B, cuja parte do sentido era apenas mais uma. A região discursiva produtora da metonímia que cliva o sentido estará posta frente à necessidade de explicar e justificar a dispersão (como o marxismo fez com relação ao incêndio ), fazendo ver a relação de B com A por meio do discurso transverso para explicitar a conexão e a desconexão entre elas e para produzir uma série de sequências que estabelecem o efeito do objeto discursivo.

Defendo que é por meio deste movimento de produção de sequências discursivas que constituem um processo discursivo e que constrangem o sentido numa perspectiva que uma verticalidade preventiva se regulariza, estabelecendo uma série para o futuro, mesmo que se expanda até o limite de não fazer implodir o núcleo ideológico que a alicerça. A memória, desse modo, define o que é enunciável e o que deve ser mantido à distância, dado o risco de as fronteiras ruírem sob o peso do confronto discursivo. Busquei sustentar estas e outras reflexões com os casos do incêndio e da toupeira e de Deus ; porém, fico tentado a assumir que o postulado é repetível, se não sempre, quase sempre, em face dos dados que sustentam a hipótese.

REFERÊNCIAS

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  • CATTELAN, J. C. O interdiscurso entre discursos. Trama, Marechal Cândido Rondon, v.13, n.30, p.168-190, 2017.
  • GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível. Trad. Bethânia Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas, SP: Pontes, 2004.
  • PÊCHEUX, M. Metáfora e interdiscurso. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. In: ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2011. p.151-161. Original de 1984.
  • PÊCHEUX, M. Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-58.
  • PÊCHEUX, M. Observações para uma teoria geral das ideologias. Rua, Campinas, v.1, n. 1, p.63-89, 1995a. Escrito como Thomas Herbert.
  • PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Puccinelli Orlandi et al. 2.ed. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1995b.
  • QUEIRÓS, E. de. O crime do padre amaro. São Paulo: Ática, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2020
  • Aceito
    23 Jun 2021
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