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O ESTATUTO FONOLÓGICO DA FRICATIVA VELAR NO FA D’AMBÔ

RESUMO

Neste artigo, discutimos o estatuto fonológico de /x/ no fa d’ambô (fa), língua crioula de base portuguesa falada em Ano Bom. Mediante a análise de 270 itens lexicais (SEGORBE, 2007) e de 108 conjuntos de cognatos que contrastam o fa d’ambô com o Protocrioulo do Golfo da Guiné (BANDEIRA, 2017), observamos que /x/ pode ter entrado no fa d’ambô em decorrência de um processo de espirantização, demarcado pela lenição de *kPGG em xFA, e que, atualmente, há indícios de que /x/ e /k/ constituem fonemas distintos nessa língua. Com base na distribuição fonotática de /k/ e /x/, observamos a ocorrência de um processo de neutralização em fa d’ambô, em que /k/ é realizado como [x] ao preceder a vogal baixa [a] em sílabas pretônicas, como em [pisxaˈdo] ~ [piskaˈdo] ‘pescador’, porém permanece como oclusiva em sílabas tônicas, como em [pisˈka] ‘pescar’. A neutralização de /k/ em [x] é, assim, um processo sincrônico do fa d’ambô, sendo caracterizada pela manutenção do traço [dorsal] e pela respectiva associação do traço [contínuo] à oclusiva (CLEMENTS, 1996), traço responsável pela especiação diacrônica de *k em /x/ e por anular a distinção sincrônica entre /k/ e /x/.

Fa d’ambô; Estatuto Fonológico; Língua Crioula de base portuguesa; Espirantização

ABSTRACT

In this study, we discuss the phonological status of /x/ in Fa d’Ambô (FA), a Portuguese-based Creole language spoken in Ano Bom Island. Based on the analysis of 270 lexical items (SEGORBE, 2007SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007.) and 108 sets of cognates that contrast Fa d’Ambô with the Proto-Creole of the Gulf of Guinea (PGG) (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.), we observed that /x/ could be inserted in Fa d’Ambô as a result of a spirantization process characterized by the lenition of *kPGG into xFA. There is evidence indicating /x/ and /k/ as distinctive phonemes in this language. Considering the phonotactic distribution of /k/ and /x/, we noticed the occurrence of a neutralization process in Fa d’Ambô, in which /k/ is produced as [x] when the stop consonant is preceded by the low vowel [a] in prestressed syllables, as in [pisxaˈdo] ~ [piskaˈdo] ‘fisherman.’ Otherwise, [k] remains as a plosive in stressed syllables, as in [pisˈka] ‘to fish.’ The neutralization of /k/ into [x] corresponds to a synchronous process of Fa d’Ambô. It is characterized by the maintenance of the [dorsal] feature and by the association of the [continuant] feature to the stop (CLEMENTS, 1996CLEMENTS, N. The role of sonority in core syllabification. In: KINGSTON, J.;BECKMAN, M. (ed.). Papers in Laboratory Phonology. Cambridge: CUP, 1996. p. 283-333.). This is the feature responsible for the diachronic speciation of *k into /x/ and for the annulment of the synchronous distinction between /k/ and /x/.

Fa d’Ambô; Phonological Status; Portuguese-based Creole; Spirantization

Introdução

Este artigo tem como propósito discutir o estatuto da fricativa velar /x/ em fa d’ambô (FA) com base em evidências sincrônicas e diacrônicas. Assim, analisamos o comportamento fonotático de tal consoante em relação à oclusiva velar /k/, investigando, também, se a alternância sincrônica desses segmentos justificam um processo de neutralização entre a oclusiva e a fricativa velar. Embora a presença da fricativa velar, no fa d’ambô, possa ser decorrente de um fenômeno de espirantização, identificado na especiação dessa língua em relação à sua língua mãe - o Protocrioulo do Golfo da Guiné (PGG) (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.) -, seu estatuto não é consensual, uma vez que há autores que a definem como fonema (BARRENA, 1957BARRENA, N. Gramatica anobonesa. Madrid: Instituto de Estudios Africanos, 1957.; SEGORBE, 2007SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007.; ARAUJO et al., 2013), enquanto outros postulam que sua realização sincrônica não está condicionada a qualquer contexto, estando [k] e [x] em variação livre (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.).

Dito isso, neste estudo, examinamos os contextos fonológicos sincrônicos capazes de determinar a distribuição da oclusiva velar em contraposição à fricativa velar, ponderando, mediante o comportamento fonotático dos segmentos-alvo, se há dois fonemas distintos em fa d’ambô, neutralizados em um determinado ambiente, ou se estamos diante de apenas um fonema em distribuição complementar com um fone.

Apesar de o fa d’ambô corresponder a uma língua crioula com muita vitalidade, raros são os estudos descritivos dedicados a essa língua. Dentre a esparsa literatura, a Gramatica Anoboensa, do reverendo Natalio Barrena (1957)BARRENA, N. Gramatica anobonesa. Madrid: Instituto de Estudios Africanos, 1957., foi elaborada no século passado (BARRENA, 1957BARRENA, N. Gramatica anobonesa. Madrid: Instituto de Estudios Africanos, 1957.), o que ocasiona uma limitação crônica de dados. Ademais, essa gramática apresenta uma análise prescritiva do fa d’ambô e, ainda que se dedique uma seção à descrição fonológica, observa-se que a fonologia é constantemente confundida com a grafia da língua. Sendo assim, esse estudo se justifica por contribuir com a descrição e análise fonológica de uma língua ainda pouco descrita, ampliando a literatura voltada ao tema e, consequentemente, a documentação linguística do fa d’ambô.

Na seção Fa d’ambô deste trabalho, delineamos a relação de parentesco do fa d’ambô com o PGG e com as línguas autóctones de São Tomé e Príncipe e apresentamos alguns aspectos gerais da fonologia do fa d’ambô, focando, sobretudo, na discussão acerca da presença ou não da fricativa velar no quadro fonológico da língua. Em Corpus de Análise, por sua vez, especificamos a natureza do corpus e prosseguimos, em O Estatuto Fonológico da Fricativa Velar em Fa d’Ambô, com a discussão acerca do estatuto da fricativa velar e com a análise dos processos sincrônico e diacrônico de neutralização e de espirantização detectados. Por fim, as Considerações Finais são apresentadas na última seção.

Fa d’ambô

O fa d’ambô (ISO 639-1 fab) constitui uma das línguas da Guiné Equatorial e é empregada, majoritariamente, na ilha de Ano Bom, uma ilhota situada ao sudoeste da ilha de São Tomé e pertencente à República da Guiné Equatorial (RGE). De acordo com Araujo et al. (2013), nos domínios da RGE, o fa d’ambô corresponde a uma língua minoritária, haja vista que além de estar confinada à ilha de Ano Bom, apresenta um número reduzido de falantes. Este, conforme os autores, é estimado em 5.600, sendo 5.000 concentrados na ilha de Ano Bom e os demais 600 distribuídos em diferentes lugares da Guiné continental e da Espanha (ARAUJO et al., 2013). Ao ser comparado ao número aproximado de habitantes da ilha, o qual é de 5.236 pessoas (LEWIS, 2009 apud ARAUJO et al., 2013), observamos que, embora o número de falantes do fa d’ambô seja restrito, essa língua não está ameaçada de extinção, posto que, dentro dos domínios de Ano Bom, o fa d’ambô é amplamente usado, possuindo falantes nativos e sendo transmitido às novas gerações como língua materna, o que revela a relevância social de tal língua para a sociedade anobonesa (ARAUJO et al., 2013).

Em relação ao Protocrioulo do Golfo da Guiné,1 1 O Protocrioulo do Golfo da Guiné (PGG) é uma protolíngua surgida em STP na primeira fase da colonização, período no qual as condições socio-históricas, geográficas e demográficas foram muito favoráveis para uma “crioulização rápida” (BANDEIRA, 2017, p. 118). A consolidação de grupos de falantes distintos do PGG configurou a emergência de quatro línguas filhas distintas: o fa d’ambô, falado na ilha de Ano Bom, e o lung’Ie, língua empregada na ilha do Príncipe. Os escravos foragidos, por sua vez, ao formarem resistências quilombolas, distanciaram-se da capital e construíram uma comunidade própria, a comunidade dos Angolares, contexto no qual emerge a língua angolar. Por fim, o santome ou forro, falado na capital, corresponde à língua-filha do PGG que permaneceu no mesmo locus de emergência da protolíngua (BANDEIRA, 2017). o fa d’ambô corresponde à língua-filha do protocrioulo desenvolvida em Ano Bom (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Partindo de São Tomé, entre os anos de 1493 e 1501, os portugueses chegaram à ilha de Ano Bom e mantiveram a região sob seu domínio até 1778. Nesse período, os escravizados transplantados à ilha já correspondiam a falantes do PGG, e, em decorrência do isolamento geográfico da região, o qual foi intensificado durante o século XVI,2 2 A esse respeito, Bandeira (2017) pontua, retomando os estudos de Caldeira (2007) e Araujo et al. (2013), que durante o século XVI, Ano Bom teve pouca ou quase nenhuma presença portuguesa. Em geral, por longos períodos, o feitor e sua guarda-pessoal correspondiam aos únicos portugueses da ilha. Além disso, na passagem do século XVII para o século XVIII, não somente o último representante português deixou a ilha, como os escravos passaram a impedir a entrada de imigrantes em Ano Bom, sejam estes colonizadores ou não, por anos consecutivos (BANDEIRA, 2017). o protocrioulo sofreu uma série de alterações que culminaram na consolidação do fa d’ambô (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Desse modo, notamos que a ascendência do fa d’ambô remonta, diretamente, à colonização portuguesa em São Tomé e Príncipe (ARAUJO et al., 2013), a qual, ao implementar a transposição da mão-de-obra escravizada do continente africano para as ilhas do Golfo da Guiné, e, depois, da ilha de São Tomé para a ilha de Ano Bom, propiciou, respectivamente, a gênese do PGG e sua ramificação no fa d’ambô.

Considerando, portanto, que o santome, o lung’Ie, o angolar e o fa d’ambô têm, como língua-mãe, o PGG, podemos conjecturar que muitas são as características partilhadas entre tais línguas, o que, de fato, é comprovado por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.. Entretanto, a despeito dos traços compartilhados, são observáveis, outrossim, algumas particularidades linguísticas, as quais dizem respeito ao processo de especiação responsável pela ramificação do PGG em quatro línguas distintas. Somando-se a isso, após o período de especiação, cada língua desenvolveu-se de modo individual, e por estarem inseridas em contextos geográfico, sócio-histórico e linguístico diversos, as línguas do Golfo da Guiné podem apresentar processos sincrônicos particulares, estabelecidos após a ramificação do PGG, que as distingam ainda mais.

Uma das idiossincrasias verificadas por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. é, justamente, o desenvolvimento da protoforma *k do PGG. De acordo com a autora, o fa d’ambô comporta-se de modo distinto em relação às demais línguas crioulas do Golfo da Guiné, pois, ao passo que o santome, o lung’Ie e o angolar apresentam, invariavelmente, /k/ como reflexo do protofonema *k, no fa d’ambô podemos constatar a existência de /k/ e de [x] como reflexo de *k. Apesar da fricativa velar ser definida, por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., como um dos reflexos de *k, o estatuto de tal consoante não é consenso no quadro consonantal do fa d’ambô, questão apresentada, a seguir, em A Oclusiva /k/ no Fa D’ambô.

A Oclusiva /k/ no Fa D’ambô

O quadro consonantal do fa d’ambô é, conforme Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., composto por dezesseis fonemas, como apresentado, com exceção da fricativa velar /x/, no quadro 1.

Quadro 1
– Quadro consonantal do fa d’ambô

No quadro 1, a fricativa velar /x/ está representada entre parênteses em decorrência da discussão existente em torno de seu estatuto fonológico, já que não há uma concordância, na literatura, a respeito de sua classificação como fonema (BARRENA, 1957BARRENA, N. Gramatica anobonesa. Madrid: Instituto de Estudios Africanos, 1957.; SEGORBE, 2007SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007.; ARAUJO et al., 2013; BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Por um lado, Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. assume que a fricativa [x] não pode ser considerada um fonema, já que esse fone está em variação com /k/. Para a autora, embora a realização de [x] não esteja condicionada a um contexto específico, é possível hipotetizar que /k/, no decorrer do tempo, passou a concorrer com a consoante [x] “sem que essa variação culminasse mudança” (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 234). Assim sendo, sincronicamente, a oclusiva velar /k/ é realizada como [k], porém também pode ser produzida como a fricativa [x], sugerindo que esse fone, possivelmente, foi introduzido na fala dos anoboneses em um período posterior à formação e ramificação do PGG (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.).

Por outro lado, Araujo et al. (2013) admitem /x/ como fonema da língua e ressaltam que essa fricativa, dentre as línguas crioulas do Golfo da Guiné, é encontrada apenas no fa d’ambô. Os autores apontam, ainda que, mesmo o segmento /x/ estando presente também no espanhol, língua oficial de Ano Bom, não há indícios que sustentem ser a fricativa o resultado da influência do espanhol sobre o fa d’ambô, na medida em que (i) os étimos que contêm /x/ não são cognatos dos étimos com o mesmo fonema espanhol e (ii) os étimos de origem espanhola, como [x]uan, são nativizados, sendo realizados como [z]uan no fa d’ambô (ARAUJO et al., 2013).

Barrena (1957)BARRENA, N. Gramatica anobonesa. Madrid: Instituto de Estudios Africanos, 1957., em sua gramatica annoboensa, publicada em 1957, mas escrita no final do século XIX, também defende a existência de dois fonemas, na medida em que, conforme o autor, /k/ e /x/ não estão em variação livre ou em distribuição complementar e ocorrem nos mesmos contextos (BARRENA, 1957BARRENA, N. Gramatica anobonesa. Madrid: Instituto de Estudios Africanos, 1957.). Por fim, Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. também incorpora a fricativa velar como parte do inventário fonológico do fa d’ambô, e, em sua gramática, é possível constatamos a ocorrência de /x/ e /k/ nos mesmos contextos, culminando na formação de pares mínimos como /kama/ [kaˈma] ‘queimar’ e /xama/ [xaˈma] ‘escamar’. No entanto, embora possam ser depreendidos alguns pares mínimos no estudo em questão que, aparentemente, justificam o estabelecimento de /k/ e /x/ como fonemas do fa d’ambô, Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. pontua que, em algumas palavras, a consoante oclusiva velar varia com a fricativa velar, como em [kaˈfɛ] ̴ [xaˈfɛ], sendo a última forma rara. Essa possibilidade de variação estaria de acordo com a argumentação de Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., a qual sustenta a existência apenas /k/ no inventário de fonológico do fa d’ambô, posto que “em muitos itens analisados, é possível observar uma variação entre os dois fones” (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 239).

Abarcando esse problema diacronicamente mediante a reconstrução fonológica do PGG, realizada a partir da análise dos conjuntos de cognatos obtidos pela coleta de dados das quatro línguas filhas, Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. propõe que, na protolíngua, havia duas consoantes oclusivas velares, *k e *g, observadas, em onset, no início e meio de palavra. A autora chega a tal conclusão pela contraposição dos reflexos das quatro línguas crioulas do Golfo da Guiné, as quais apresentam correspondências sistemáticas, como demonstrado no quadro 2.

Quadro 2
– Reflexos das oclusivas velares no PGG

Se por um lado, na fonologia do fa d’ambô proposta por Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. e Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., os autores assumem que a espirantização da oclusiva velar configura uma variação linguística que não culminou em mudança (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.), por outro, ao analisar o problema sob um viés diacrônico, Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. afirma que, na reconstrução do protofonema *k, houve alteração fonológica no fa d’ambô, considerando /x/ um dos reflexos de *k (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Essa afirmação abre margem à interpretação de que, na fonologia sincrônica da língua em questão, *k pode ter, em alguns dados, sofrido enfraquecimento e se transformado em /x/, e, em outros itens, sido mantido como /k/. Nesse caso, o processo de espirantização seria decorrência de uma mudança fonológica, conclusão que explica os reflexos de *k no fa d’ambô, porém, não esclarece a variação sincrônica apontada por Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. e Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017..

Tendo como propósito colaborar com essa discussão, analisamos, neste artigo, os possíveis contextos fonológicos sincrônicos que possam determinar a distribuição da oclusiva velar em contraposição à fricativa velar, observando se estamos, de fato, diante de uma variação livre, de alofonia ou de dois fonemas distintos que podem ser neutralizados em um contexto específico.

Corpus de Análise

O corpus deste trabalho é formado por itens lexicais do fa d’ambô retirados de trabalhos prévios dedicados à análise fonológica da língua. Desse forma, as palavras foram coletadas tanto da Gramática Descriptiva del Fa d’ambô de Segorbe (2007), quanto da tese de Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.. Enquanto os dados extraídos da gramática de Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. foram empregados, sobretudo, para a descrição fonotática da oclusiva e da fricativa velar, bem como para a investigação do estatuto fonológico sincrônico da fricativa velar, o conjunto de cognatos, reunido por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., foi utilizado para a análise da espirantização como processo de mudança linguística que pode corroborar a condição da fricativa velar enquanto fonema.

Para análise dos dados sincrônicos, reunimos 270 palavras (SEGORBE, 2007SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007.) transcritas, na gramática, com [k] e/ou [x]. Visamos, nessa primeira etapa, examinar o comportamento fonotático de tais segmentos, observando a possibilidade de estabelecermos pares opositivos que respaldem o estatuto da fricativa velar como fonema. Ademais, a partir desses itens lexicais, investigamos uma eventual sistematização da alternância entre [k] ̴ [x], pretendendo esclarecer o contexto e o domínio de um possível processo sincrônico de neutralização.

Somando-se a isso, de forma a agregarmos evidências diacrônicas que possam legitimar a discussão proposta acerca do estatuto fonológico da fricativa velar, trabalhamos, ainda, com 108 conjunto de cognatos formados por itens pertencentes ao léxico básico das quatro línguas-filhas do PGG (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Todas as palavras que compunham esse conjunto continham a fricativa e/ou a oclusiva velar como reflexo correlacionadas a uma protoforma lexical (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Com essa etapa, pretendemos analisar se a espirantização de *k em [x] constitui um processo de mudança que comprove a entrada da fricativa velar no fa d’ambô, assinalando, portanto, as implicações desse processo diacrônico no sistema fonológico sincrônico do fa d’ambô, especificamente em relação à condição da fricativa velar enquanto fonema.

A caracterização fonológica dos segmentos-alvo e a representação do fenômeno são realizadas tendo por modelo teórico a fonologia autossegmental (GOLDSMITH, 1976GOLDSMITH, J. Autossegmental Phonology. 1976. Thesis (Doctor in Philosophy) - Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1976., 1990GOLDSMITH, J. Syllable Structure. In: GOLDSMITH, J. Autosegmental and metrical phonology. Nova Jersey: Wiley-Blackwell Publishing, 1990. p. 103-140.) e a geometria de traços (CLEMENTS; HUME, 1995; CLEMENTS, 1996CLEMENTS, N. The role of sonority in core syllabification. In: KINGSTON, J.;BECKMAN, M. (ed.). Papers in Laboratory Phonology. Cambridge: CUP, 1996. p. 283-333.). Inseridos nesse quadro teórico não-linear, assumimos que a representação fonológica dos segmentos é dada por diferentes camadas que possibilitam uma organização hierárquica dos traços e autossegmentos. Por conseguinte, discutidos os aspectos fonotáticos de [k] e [x] no fa d’ambô, propomos um quadro que indique quais os traços relevantes para a caracterização segmental de tais sons.

Por fim, é preciso demarcar que uma das fontes de coleta de dados, a Gramática Descriptiva del Fa d’ambô de Segorbe (2007), embora corresponda a uma das primeiras e escassas instrumentalizações da língua, possui um número restrito de dados e contém algumas delimitações imprecisas em relação à nasalidade, à duração vocálica e ao sistema acentual, fator que pode limitar a análise aqui proposta. Dessa forma, este estudo, por estar circunscrito à impossibilidade de um trabalho de campo a Ano Bom, foi conduzido dentro dessas limitações, e, de modo a minimizar possíveis interferências decorrentes a tais empecilhos, nos pautamos, outrossim, em descrições outras fonológicas como a de Araujo et al. (2013), Araujo e Agostinho (2014)ARAUJO, G.; AGOSTINHO, A. L. Fa do Vesu, a language game of Fa d’Ambô. PAPIA, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 265-281, 2014. e de Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017..

O Estatuto da Fricativa Velar em Fa d’Ambô

Nesta seção, examinaremos algumas características linguísticas relacionadas ao emprego da oclusiva e da fricativa velar no fa d’ambô, considerando, para tanto, dados sincrônicos (SEGORBE, 2007SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007.) e diacrônicos (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.) que possam fomentar a discussão acerca do estatuto da fricativa velar no fa d’ambô (SEGORBE, 2007SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007.; ARAUJO et al., 2013; BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Desse modo, na seção A distribuição fonotática e a variação entre /x/ e /k/, abordamos alguns aspectos sincrônicos fonotáticos de [k] e [x], ao passo que, na seção A espirantização de *kPGG >> x FA, nos dedicamos ao exame da espirantização enquanto processo de mudança diacrônico responsável pelo estabelecimento da fricativa velar, identificado na especiação do fa d’ambô em relação à sua língua mãe, o protocrioulo do Golfo da Guiné.

A distribuição fonotática e a variação entre /x/ e /k/

Com base em 270 itens lexicais extraídos a partir da gramática descritiva de Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. e da fonologia proposta por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., verificamos que, sincronicamente, a fricativa velar pode ser contraposta à oclusiva velar por meio da oposição de pares mínimos como indicado em (1), ou de pares análogos como apresentado em (2).

(1) a . / k / [ ka ˈ ma ] queimar b . / x / [ xa ˈ ma ] escamar
(2) a . / k / [ ke ˈ se ] esquecer b . / x / [ xe ˈ le ] crer c . / k / [ ˈ kada ] cada d . / x / [ ˈ xata ] carta

A princípio, os dados em (1) sugerem que a oclusiva e a fricativa sejam definidas como fonemas distintos, uma vez que /x/ pode ser contraposta à /k/. Contudo, ao focarmos no contexto segmental seguinte, notamos que essa distinção, nos itens lexicais abarcados no corpus, apenas é detectada quando o segmento seguinte é [a], ou quando a vogal subsequente é [e], configurando, nesse último caso, um exemplo de par análogo. Esses contextos, portanto, podem ser limitados para sustentar o estatuto de /x/ e /k/ como fonemas distintos no fa d’ambô. Além disso, de acordo com Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. e com Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., há dados nos quais a oscilação entre [k] ̴ [x] é observada, indicando que tais consoantes podem variar quando sucedidas pela vogal baixa [a]. Alguns exemplos levantados por Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. são apresentados em (3).

(3) a . [ ka ˈ ma ] ~ [ xa ˈ ma ] queimar b . [ kabε ˈ la ] ~ [ xabε ˈ la ] quebrar ; terminar c . [ ka ˈ ba ː du ] ~ [ xa ˈ ba ː du ] quebrado ; acabado d . [ ka ˈ ] ~ [ xa ˈ ] café

Como elucidado em (3.a), o par mínimo [kaˈma] ‘queimar’ ̴ [xaˈma] ‘escamar’ apresentado em (1) torna-se homônimo diante da variação entre [k] ̴ [x]. Já os dados em (3.b - d), por sua vez, embora não neutralizem, sonoramente, a oposição entre as consoantes velares oclusiva e fricativa, na medida em que não são apresentados por Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. pares mínimos que justifiquem o estabelecimento de homonímia, indicam que, em algumas palavras, [k] pode ser realizada como [x]. Entretanto, embora a variação entre [k] ̴ [x] seja sincronicamente descrita no fa d’ambô (SEGORBE, 2007SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007.; BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.), não é atestada em todos os itens lexicais, sugerindo que possa haver um determinado contexto que engatilhe a alternância e/ou mesmo um domínio específico para sua ocorrência. Alguns dados em que a variação entre a fricativa e a oclusiva não é verificada podem ser conferidos em (4).

(4) a . [ ˈ xama ] escama de peixe b . [ ˈ xala ] rosto c . [ ˈ ka ː xa ] avarento d . [ bu ː ˈ ka ] naufragar

Contrapondo os itens em (3) com os dados em (4), podemos hipotetizar que tal variação ocorra em sílabas átonas, já que, em palavras como [ˈxama] ‘escama de peixe’ e [buːˈka] ‘naufragar’, Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. não apontou nenhuma outra possibilidade fônica a não ser [x] e [k] respectivamente. A alternância entre tais consoantes velares, assim sendo, poderia ser engatilhada, nos dados investigados, por [a] em sílabas átonas. Para investigarmos a possibilidade da proeminência silábica agir como domínio de aplicação de tal variação, analisamos, então, os dados nos quais [k] e [x] antecediam [a] em diferentes posições acentuais dentro da palavra, apontando, com base no trabalho de Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007., quando a possibilidade de variação era assinalada. Os resultados são demonstrados no quadro 3.

Quadro 3
– Variação entre [k] ̴ [x] apontada por Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. - Tonicidade.

Analisando os itens que continham [k] ou [x], notamos que os dados no quadro 3 indicam que, no corpus analisado, o único contexto favorável à variação de [k] ̴ [x] foram as pretônicas, pois a oclusiva, nos dados de Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007., não varia com a fricativa em outras posições átonas ou mesmo na tônica. Essa conclusão é reforçada ao ampliarmos o número de palavras observadas como exemplificado no quadro 4.

Quadro 4
– Variação entre [k] ̴ [x] apontada por Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. - Pretônicas: início e meio de palavra.

No quadro 4, notamos que a alternância entre a oclusiva e a fricativa velar ocorre tanto em início, quanto em meio de palavra, sugerindo que, quando observada, a variação entre [k] ̴ [x] é engatilhada por [a] e ocorre em sílabas pretônicas. Ademais, não são todos os dados, nesse contexto, que apresentam tal alternância, já que itens como [kalaˈkata] ‘instrumento de percussão’, [kaˈdɛːnu] ‘caderno’, [kalaˈbaː] ‘nigeriano’, [kaˈkau] ‘cacau’, [fukaˈmẽtu] ‘afogamento’, entre outros, não são identificados com [x] por Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007., demarcando a opcionalidade da variação [k] ̴ [x] no corpus examinado.

Ainda de acordo com os dados de Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007., foi verificado, também, que a oscilação entre uma forma ou outra foi estabelecida sempre em relação à [k], pois os dados transcritos como [x], contrariamente às palavras que continham a oclusiva, não apresentavam uma segunda possibilidade de transcrição na qual [x] era substituída por [k]. Alguns itens contendo [xa] são expostos no quadro 5.

Quadro 5
– Realização [x] apontada por Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007. - Tonicidade.

No quadro 5, assim como no quadro 3, observamos que, independentemente da tonicidade da sílaba [xa], não há dados que indiquem a possibilidade de /x/ alternar com [k]. Desse modo, a existência de contextos nos quais a alteração sonora [x] → [k], nessa direcionalidade, não é constatada, demonstra que a oclusiva é neutralizada como fricativa por meio de um processo de espirantização: /k/ → [x].

Mesmo que a espirantização possa ser atestada com base na direcionalidade da variação entre a oclusiva e a fricativa, esse não é um fator suficiente para determinar o estatuto fonêmico de /x/ em fa d’ambô. Em algumas variedades do português brasileiro, por exemplo, /t/ pode ser realizado como [tʃ], sem que [tʃ] seja concebido como fonema da língua portuguesa, ainda que tal fone seja realizado em outros contextos esparsos. Todavia, esse não parece ser o caso de /x/ em fa d’ambô, pois há muitos dados nos quais a espirantização não é atestada e a fricativa velar é integralmente produzida, como pode ser verificado em sílabas tônicas e átonas finais. Este constitui um possível indício de que tais fones, embora variem em algumas palavras, não estejam em distribuição complementar no sistema fonológico do fa d’ambô, correspondendo, portanto, a dois fonemas da língua que podem alternar-se ou não.

Para avaliarmos a plausibilidade dessa hipótese e, ainda, determinarmos os contextos em que a variação é possível, avaliamos o comportamento de [k] e [x] em outros ambientes sonoros. A distribuição dos itens lexicais, conforme a qualidade vocálica e a tonicidade silábica nas quais [k] e [x] estão inseridos, é demonstrada no quadro 6.3 3 (i) Tônica - [ˈkisu] ‘quitar’; [ˈkekeː] ‘ser parecido’; [ˈkɛxaː] ‘queixa’; [ˈkada] ‘cada’; [ˈkɔʎa] ‘trabalho de presos’; [ˈkoma] ‘como’; [ˈkulu] ‘escuro’; [ˈxama] ‘escama de peixe’[ˈxɔxɔ] ‘cormorão’; [ˈxola] ‘cola’; [ˈxuntulu] ‘contra’. (ii) Átona - [kiˈli] ‘colher’; [keˈse] ‘esquecer’; [kɛˈlɛdu] ‘credo’; [kaˈma] ‘queimar’; [kɔˈral] ‘coral’; [koˈkjoko] ‘galho’; [kuˈlu] ‘cru’; [boxiˈa] ‘embrulhar’; [xeˈle] ‘crer’; [xɛ̃jˈta] ‘esquentar’; [xaˈma] ‘escamar’; [xɔxɔˈlɔ] ‘atrever-se’; [xoˈle] ‘correr’; [xuzˈga] ‘julgar’.

Quadro 6
– Distribuição de [k] e [x] de acordo com a vogal precedente e a tonicidade silábica - Dados de Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007..

Tendo em vista as sete vogais orais identificadas em fa d’ambô (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.), notamos que, na gramática de Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007., [k] e [x] podem ocorrer como onset antecedendo qualquer uma das vogais orais. Entretanto, ao considerarmos a tonicidade, é perceptível que as vogais [coronal] não foram identificadas em sílabas tônicas quando a consoante anterior correspondia a [x]. Essa restrição é parcialmente estendida às vogais longas, posto que parte das restrições também ocorrem em relação às vogais [coronal] como explicitado no quadro 7.4 4 (i) Tônica - [ˈkiːzu] ‘queijo’; [xaˈkeː] ‘caqui’; [ˈkɛːtu] ‘quieto’; [ˈkaːxa] ‘caixa’; [mindʒiˈkɔːdʒi] ‘espera’; [bisˈkoːto] ‘biscoito’; [ˈkuːsu] ‘cruz’; [induluˈxɛːsja] ‘indulgência’; [ˈxaːni] ‘carne’; [ˈxɔːnta] ‘conta’; [ˈxoːnde] ‘quando’; (ii) Átona - [kiːˈʎa] ‘criar’; [ˈpɔkeː] ‘porque’; [kɛːˈta] ‘quietar/sossegar’; [kaːˈtoː] ‘bígaro’; [kɔːˈladu] ‘colorado’; [koːˈko] ‘côco’; [xeːˈse] ‘crescer’; [xaːˈsɐ̃] ‘calção’; ‘pescoço’; [xɔːˈda] ‘cortar’; [xoːˈxoso] ‘pescoço’.

Quadro 7
– Distribuição de [k] e [x] de acordo com a vogal longa precedente e a tonicidade - Dados de Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007..

No quadro 7, observamos a distribuição de [k] e [x], em relação às vogais longas. É possível constatar que enquanto [k] é previsto diante de todas as vogais longas, [x] é restrito a [eː], [ɛː], [aː], [ɔː] e [oː]. Assim sendo, nenhuma das vogais altas e longas é antecedida pelas consoantes oclusiva ou fricativa velares, quer em sílaba tônica, quer em pretônica. As vogais médias [coronal], por seu turno, oscilaram em relação à tonicidade e à realização de [x]. Assim, [xeː] pôde ser observado apenas em sílaba átona, ao passo que [xɛː] foi detectada em sílaba tônica. A esse respeito, é preciso ressaltar que raros foram os dados que apresentavam a combinação entre a fricativa velar e a vogal longa média anterior. Para [xe:], por exemplo, a única forma identificada foi [xeːˈse] ‘crescer’, ao passo que itens contendo a sequência [keː] foram um pouco mais numerosos no corpus: [xaˈkeː] ‘caqui’, [keˈkeː] ‘ser parecido’, [ˈpɔkeː] ‘porque’, [ʃkeːˈve] ‘escrever’, entre outros. Comportamento similar demonstra [xɛː], observado, nos dados, apenas em [induluˈxɛːsja] ‘indulgência’ e no sufixo de tempo futuro [saˈxɛː] (SERGOBE, 2007).

Tanto os dados expostos no quadro 6, quanto os itens do quadro 7, não são capazes de suportar uma relação de alofonia entre /k/ e [x] em detrimento do estatuto fonológico de /x/: mesmo quando não há um item lexical para um determinado contexto, não é possível identificarmos um comportamento sistemático que corrobore uma relação de alofonia entre [k] e [x]. A ausência de [ˈxe], [ˈxɛ] e [ˈxi], no quadro 6, poderia sugerir que, ao ser sucedido por uma vogal [coronal] em sílaba tônica, a fricativa velar deve ser produzida como uma oclusiva. No entanto, isso não explicaria a razão de [ke], [kɛ] e [ki] serem realizados em sílabas átonas, já que [x], como alofone de /k/ em uma distribuição complementar, seria o fone esperado nesse contexto, ao passo que [k] apenas seria produzido em sílabas tônicas. Ademais, distintamente da variação entre [ka] ̴ [xa] em pretônicas no início de palavras, não há menção, em trabalhos prévios sobre o fa d’ambô (SEGORBE, 2007SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007.; ARAUJO et al., 2013; BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.), de que [k] e [x] possam variar em uma mesma palavra, ou em relação à posição silábica ocupada pela sequência [kV] e [xV], onde V equivale a uma vogal não baixa.

O mesmo raciocínio pode ser ampliado aos dados expostos no quadro 6, uma vez que os itens não sustentam uma relação de distribuição complementar. Desse modo, [xeː] não pode ser alofone de [keː] já que ambos são identificados em sílabas átonas, e [xɛː] não constitui um alofone de [kɛː] na medida em que as duas formas são possíveis em sílabas tônicas. Se por um lado, esse fato, somado à não ocorrência de [k] e [x] diante das vogais altas [iː] e [uː], não constitui evidência para a defesa de uma relação de alofonia entre a oclusiva e a fricativa velar em fa d’ambô, por outro não refutam a possibilidade de /x/ e /k/ serem fonemas distintos nessa língua e, como tais, apresentarem uma distribuição silábica distinta, justificando as lacunas de algumas combinações.

Conforme Viaro e Guimarães-Filho (2007)VIARO, M. E.; GUIMARÃES-FILHO, Z. O. Análise quantitativa da frequência dos fonemas e estruturas silábicas portuguesa. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 1, p. 27-36, 2007., é comum que algumas estruturas linguísticas sejam mais recorrentes que outras nas línguas. No português brasileiro (PB), por exemplo, os autores constatam que nem todas as vogais são produtivas para formação de uma sílaba CV, já que, enquanto [ʎõ] não foi constatado em um corpus formado por 150.875 palavras, [kõ] equivale a “58% das sílabas CV com [õ]” (VIARO; GUIMARÃES-FILHO, 2007VIARO, M. E.; GUIMARÃES-FILHO, Z. O. Análise quantitativa da frequência dos fonemas e estruturas silábicas portuguesa. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 1, p. 27-36, 2007., p. 33). Logo, embora a lateral palatal, no PB, seja menos produtiva em relação a outras consoantes, não sendo constatadas em algumas combinações silábicas, esse fator não constitui um argumento capaz de descartar /ʎ/ como fonema do português. Sendo assim, é possível que as lacunas identificadas nos quadros 6 e 7 sejam consequências de uma distribuição não equilibrada de [k] e [x] diante de diferentes qualidades vocálicas, comportamento que não anula a hipótese de estarmos diante de dois fonemas distintos no fa d’ambô.

Em suma, em decorrência dos entraves metodológicos impostos pela limitação do corpus, a análise dos dados sincrônicos do fa d’ambô evidencia o paradoxo em delimitar o estatuto fonológico da fricativa velar nessa língua. Escassos são os pares mínimos que sustentam a oposição entre /k/ e /x/, e, mesmo quando encontrados, esses pares estão limitados a um contexto sonoro específico e, por isso, podem gerar homonímia pela neutralização de tais fones, fator que não constitui um argumento substancial para definirmos a fricativa velar como fonema do fa d’ambô. Em contrapartida, com exceção da alternância entre [ka] ̴ [xa], não foi observada qualquer sistematicidade que assegure uma relação de distribuição complementar existente entre a oclusiva e a fricativa, o que descarta uma relação de alofonia. Finalmente, a possibilidade de neutralização entre a oclusiva e a fricativa velar, de forma livre, tampouco é sustentada pelos dados, pois a alternância entre [kV] ̴ [xV], em que V diz respeito a uma vogal não-baixa, não foi atestada nos itens analisados nem em contexto tônico, nem em átono.

O estabelecimento do estatuto fonológico de /x/, portanto, revela-se uma questão complexa que demanda não somente o acesso a um número maior de dados da fala espontânea, como também exprime a pertinência da análise de dados de fala controlada. Assim sendo, para que esse conflito possa ser empiricamente resolvido, é preciso que o corpus seja ampliado e que contextos controlados, bem como fatores sociolinguísticos, possam ser aferidos, de modo a conferir se a variação de [k] em [x] ocorre, somente, em um contexto específico, se a neutralização entre tais segmentos pode ser detectada indiscriminadamente e/ou em função de variáveis independentes e se, de fato, estamos diante de dois fonemas distintos.

Realizadas essas ressalvas, assumimos, neste trabalho, a existência de /x/ enquanto fonema do fa d’ambô. Dessa forma, embora concordemos que seja necessária a expansão do corpus para o desenvolvimento dos argumentos apresentados nesta seção, diante dos dados com os quais trabalhamos, assumimos que a escassez de pares mínimos que possam distinguir /k/ e /x/ não é uma argumento suficiente para o descarte da possibilidade de tais sons constituírem fonemas distintos da língua, pois a oposição, embora mínima, existe. Somando-se a isso, ao mudarmos o foco da oposição sonora e analisarmos /x/ em relação a outras fricativas desvozeadas da língua, identificamos pares mínimos e análogos mais numerosos que corroboram o estatuto fonêmico da fricativa velar, como é elucidado no quadro 8.

Quadro 8
– Pares mínimos e análogos contendo as fricativas /x/, /s/ e /f/ no fa d’ambô.

Assumindo /x/ como fonema, verificamos que a oscilação entre [k] ̴ [x], caracterizada pela espirantização da oclusiva, corresponde a um fenômeno de neutralização no fa d’ambô. A neutralização é um processo pelo qual dois ou mais fonemas, opostos em um determinado contexto, deixam de apresentar contraste fônico em um outro ambiente. Logo, a oscilação entre /k/ e /x/ decorre da perda de contraste entre esses dois fonemas, posto que /k/ pode ser neutralizado em [x] diante de [a] em sílabas pretônicas.

Isso posto, com base na discussão tecida nesta seção, os argumentos que viabilizam o estatuto fonêmico de /x/ são sintetizados entre (i - x).

  1. há pares mínimos e análogos que, embora raros, são capazes de delimitar a oposição entre /k/ e /x/;

  2. há pares opositivos que definem o estatuto fonêmico de /x/ em relação a /s/ e /f/;

  3. x/ e /k/ ocorrem em muitos contextos vocálicos e acentuais idênticos;

  4. /k/ pode ser neutralizado em [x] antes da vogal baixa [a] em sílabas pretônicas;

  5. porém, não há neutralização de /x/ em [k] nesse mesmo contexto;

  6. /k/ permanece como oclusiva em sílabas tônicas, independentemente do contexto segmental seguinte;

  7. e /x/ permanece como fricativa em sílabas tônicas e átonas, independentemente do contexto segmental seguinte;

  8. não pôde ser identificada uma regularidade sonora que explique a ausência de algumas combinações com [x] e [k] como resultado de um processo de distribuição complementar;

  9. a variação [kV] ̴ [xV], em que V equivale a uma vogal não-baixa, não foi atestada nem em contexto tônico, nem em átono;

  10. a combinação CV entre [x] e [k] e as vogais do fa d’ambô é assimétrica, indicando que nem toda sílaba CV é igualmente produtiva nessa língua (VIARO; GUIMARÃES-FILHO, 2007VIARO, M. E.; GUIMARÃES-FILHO, Z. O. Análise quantitativa da frequência dos fonemas e estruturas silábicas portuguesa. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 1, p. 27-36, 2007.). Assim, as lacunas identificadas em relação a [xeː], [xuː], [xiː], entre outras estruturas CV, sugerem que tais sílabas não são tão comuns quanto [keː], [kuː], [kiː]. Ou seja, as lacunas não indicam uma relação de alofonia, mas refletem a produtividade de cada combinação.

Concluímos, portanto, que o fa d’ambô possui três fonemas velares, dois oclusivos /k/ e /g/ (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.), e um fricativo /x/, como indicado no quadro 9.

Quadro 9
– Consoantes Velares no fa d’ambô.

Como elucidado pelo quadro 9, as oclusivas velares não são valoradas para o traço [contínuo] e se distinguem pelo traço [vozeado]. A neutralização de /k/ em [x] pode ser explanada, então, pela associação do traço [+contínuo] em sua configuração como representado na figura 1.

Figura 1
– Geometria que representa a neutralização de /k/ em [x] no fa d’ambô.

Mediante a geometria representada na figura 1, constatamos que a neutralização de /k/ em [x] decorre da associação do traço [contínuo] ao nó de classe da cavidade oral, fazendo, com que /k/ seja espirantizado e, portanto, realizado como [x]. O processo inverso, no entanto, não foi observado. Por conseguinte, [xaˈma] ‘escamar’ foi verificado apenas nessa forma, corroborando a existência do fonema /x/ na língua e delimitando o processo como uma neutralização cujo alvo é /k/ (/k/ → [x]).

De acordo com Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., a fricativa velar é um som que particulariza o fa d’ambô de suas línguas irmãs e, mesmo, de sua língua mãe, o Protocrioulo do Golfo da Guiné. Assim, podemos hipotetizar que a espirantização é também um fenômeno diacrônico e corresponde a um dos processos responsáveis pela especiação do fa d’ambô. É possível, desse modo, que a espirantização, além de caracterizar a neutralização da oclusiva velar nos dados sincrônicos do fa d’ambô, possa corresponder a um processo de mudança na especiação dessa língua, tendo, por consequência, o estabelecimento de /x/ no quadro fonológico do fa d’ambô.

A espirantização de *kPGG >> x FA

Ao reconstruir os protofonemas do protocrioulo do Golfo da Guiné, Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., valendo-se do método histórico-comparativo, atesta a existência de *k em onset nessa protolíngua (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Conforme a autora, a reconstrução de *k é justificada pelas correspondências sistemáticas entre *k e /k/ no santome (ST), no lung’Ie (LI) e no angolar (AN), e entre *k e /k/ ̴ /x/ no fa d’ambô, na medida em que, nessa língua, “ a consoante oclusiva velar *k variou para uma consoante também velar, mas fricativa, /x/” (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 280), como exposto no quadro 10.

Quadro 10
– Reflexos de *k em santome (ST), fa d’ambô (FA), lung’Ie (LI) e angolar (AN) (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.).

No quadro 10, verificamos que *k pode apresentar como reflexo a própria oclusiva velar, correspondência atestada em dados das quatro línguas filhas (k=k=k=k), ou mesmo uma fricativa velar, forma constatada no fa d’ambô (k=x=k=k). Como apenas o fa d’ambô diferiu das demais línguas, é possível pressupor que houve uma mudança sonora caracterizada pela lenição de *k no desenvolvimento desta língua e que, por isso, a fricativa velar não constituía um protofonema do PGG.

Considerando *k um protofonema do PGG e mediante os conjuntos de cognatos expressos no quadro 10, inferimos que a espirantização, além de atestada sincronicamente, é um dos processos diacrônicos responsáveis por promover a alteração de *k PGG em /x/ FA na formação do fa d’ambô. A regularidade de tal fenômeno pode ser conferida em relação a diferentes qualidades vocálicas no quadro 11.

Quadro 11
– Correspondências entre *k PGG » /x/-/k/ FA (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.)

A partir de 108 conjuntos de cognatos coletados e organizados por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., observamos as correspondências sistemáticas entre *k e /x/ que suportam a lenição da oclusiva em fricativa. Contrastando as protoformas do PGG, propostas por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., com os itens lexicais do fa d’ambô, notamos que, com exceção de *kĩNta fɛla » [ˈkĩta ˈfɛla] ‘quinta-feira’, *kuru » [ˈkulu] ‘escuro’ e *klupa » [kuːˈpa] ‘culpar’, *k é espirantizado durante a especiação do fa d’ambô, gerando /x/ no sistema fonológico dessa língua. Desse modo, a espirantização promoveu a mudança sonora de *k em /x/, sem que isso culminasse em uma substituição completa de uma forma pela outra, já que como discutido na seção A distribuição fonotática e a variação entre /x/ e /k/ e demonstrado no quadro 8, tanto /k/, quanto /x/ são atestados no sistema fonológico do fa d’ambô.

Em termos diacrônicos, a espirantização é, possivelmente, um fenômeno posterior ao apagamento das consoantes líquidas *r e *l e o consequente alongamento compensatório em fa d’ambô (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.), uma vez que /x/ pode anteceder tanto vogais simples, quanto vogais longas. O alongamento compensatório é um fenômeno engatilhado pelo apagamento de um segmento que possui sua temporalidade conservada no tier X em decorrência do alongamento temporal de um dos segmentos adjacentes tautossilábicos (WETZELS, 2007WETZELS, L. Primary Word Stress in Brazilian Portuguese and the Weight Parameter. Journal of Portuguese Linguistics, Lisboa, v.5, n.6, p.9-58, 2007.).

Em fa d’ambô, esse processo é analisado por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. e, conforme a autora, o alongamento vocálico funciona como estratégia de reparo no timing das sílabas que têm a líquida elidida, processo que resulta no estabelecimento de vogais longas na especiação do fa d’ambô (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Essa interpretação está de acordo com os dados do quadro 11, pelos quais verificamos que os itens do fa d’ambô contendo vː estão associados a uma protoforma que apresenta *r ou *l como segundo elemento de um onset complexo ou como coda, como exemplificado por *karni » [ˈxaːni] ‘carne’ e *klese » [xeːˈse] ‘crescer’. Isso posto, não é possível conjecturar que a manutenção da oclusiva em itens como *klupa » [kuːˈpa] ‘culpa’ ( quadro 11) está relacionada à presença de *l como segundo segmento de um onset complexo no PGG, já que mesmo em protoformas que apresentam o encontro consonantal *kl, /x/ é identificado como um reflexo em fa d’ambô.

Considerando, portanto, os itens *kinta fEla » [ˈkĩta ˈfɛla] ‘quinta-feira’, *kuru » [ˈkulu] ‘escuro’ e *klupa » [kuːˈpa] ‘culpar’, bem como descartada a possibilidade das estruturas *CCV e *CVC do PGG constituírem um empecilho para a espirantização, uma vez que tais sílabas já haviam sido modificadas antes da aplicação do processo em questão, presumimos que a espirantização pode ter sido desfavorecida em decorrência da qualidade da vogal subsequente, evitando itens cuja vogal contígua era alta. Esse fato estaria em consonância com a discussão tecida na seção A distribuição fonotática e a variação entre /x/ e /k/, explanando partes das lacunas encontradas na distribuição sincrônica das sílabas [xi] e [xu] ( quadro 6), as quais são atestadas apenas em poucos dados, e das sílabas [xiː] e [xuː] (quadro 7), não verificadas no corpus analisado. Ademais, esse fato pode ser ainda reiterado ao analisarmos os poucos dados com [xu] presentes nos conjuntos de cognatos estabelecidos por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. em contraposição com a proposta de reconstrução do PGG no quadro 12.

Quadro 12
– Correspondências entre *k PGG e /x/ FA

Nos conjuntos de cognatos abordados não foram atestadas palavras com as sílabas [xi], [xiː] ou [xuː], porém há dois itens que apresentam [xu]: [xuˈa] ‘buscar’ e [lõxuˈa] ‘roncar’. Ao compararmos essas palavras com suas respectivas protoformas, observamos que a espirantização ocorreu, possivelmente, antes de outras mudanças internas que acometeram [xuˈa] ‘buscar’ e [lõxuˈa] ‘roncar’. O item *buka » [xuˈa] ‘buscar’ sugere, assim, que primeiro houve a espirantização *ka » xa para, posteriormente, haver a aférese de *b e, por fim, a metátese de *x. A sequência [xu], nesse caso, é resultado de uma série de processos e não apenas da espirantização direta de *k que, na protoforma, era seguida por *a. De modo semelhante, em *roNka » [lõxuˈa] ‘roncar’, *k está contíguo a *a no PGG, sendo espirantizado em *x antes da epêntese de [u] que resulta na sequência [xu] em fa d’ambô.

Em síntese, os dados extraídos dos conjuntos de cognatos indicam *u e *i como contextos inibidores da espirantização na especiação do fa d’ambô, sendo essa restrição refletida na produtividade sincrônica das sequências formadas pela fricativa velar e tais vogais. Todavia, essa restrição segmental não aparenta estar ativa nos dados sincrônicos, sendo comum observarmos palavras com étimo espanhol, portanto incorporadas após o desenvolvimento do fa d’ambô em relação ao PGG, constituídas por [xu], como [xuˈez] ‘juiz’, sem sofrer qualquer adaptação sonora que vise desfazer tal sequência.

Outras palavras de étimo espanhol, conforme os dados de Segorbe (2007)SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007., são incorporadas via empréstimo com a manutenção da fricativa velar, como [ɛmbaˈxada] ‘embaixada’ e [ɛmbaxaˈdo] ‘embaixador’, sugerindo, com isso, que /x/ compõe o quadro fonológico do fa d’ambô, na medida em que a fricativa não é reinterpretada pelos falantes como outra fricativa da língua. Conforme Paradis (1996 apudBANDEIRA, 2013BANDEIRA, M. Adaptação de empréstimos recentes no papiamentu moderno. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2013. 245 f. Dissertação (Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.), a adaptação dos empréstimos é regida por padrões fonológicos da língua na qual a palavra é incorporada. Logo, caso /x/ não fizesse parte do quadro fonológico do fa d’ambô, o esperado seria que tal som fosse, de alguma forma, adaptado, o que não ocorre. Dessa forma, embora o surgimento de /x/ não possa ser atribuído à influência do espanhol no fa d’ambô (ARAUJO et al., 2013), as palavras de étimo espanhol, integradas via empréstimo após a especiação do fa d’ambô, conservam /x/.

Os dados discutidos nos quadros 11 e 12 sugerem que a espirantização, ainda que tenha configurado uma mudança relativamente regular no desenvolvimento do fa d’ambô, não foi aplicada em todas as palavras das línguas cujo contexto era propício. No quadro 13, elencamos, dentre o conjunto de cognatos analisados, todos os casos em que a oclusiva foi preservada no corpus.

Quadro 13
– Correspondências entre *k PGG e /k/ FA

No quadro 13, os dados apontam que, mesmo em menor quantidade numérica, *k do PGG manteve-se como tal em algumas palavras do fa d’ambô, independentemente do contexto segmental ser propício à realização da espirantização como em *kae » [kaˈe] ‘cair’ e em *kolo » [ˈkɔl] ‘cor’, cujas vogais seguintes são *a e *o. Encontros consonantais compostos por fricativa alveolar + oclusiva velar (sk), por seu turno, parecem favorecer a manutenção da oclusiva velar, caso a fricativa alveolar não esteja associada à coda.

A esse respeito, Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. retomando o fa do vesu, jogo de linguagem do fa d’ambô, sugere que o /s/, em encontros do tipo /sk/, está em outra sílaba ou, pelo menos, não é considerado como parte do onset, pois itens como “[ˈskwɛla] ‘escola’” são modificados para “su.pu.kwɛ.la”, havendo a inserção de [u] entre /sk/ (ARAUJO; AGOSTINHO, 2014ARAUJO, G.; AGOSTINHO, A. L. Fa do Vesu, a language game of Fa d’Ambô. PAPIA, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 265-281, 2014., p. 274). Isso posto e com base nos dados do quadro 10, levantamos a hipótese de que a sequência *sk pode ter constituído um ambiente sonoro desfavorável para a espirantização. Seguindo esse raciocínio, itens como *skɛdu » [ˈskɛdʒi] ‘esquerdo’ e *sikleve » [ʃkeːˈve] ‘escrever’, em que a apócope de *i é, possivelmente, anterior ao processo de espirantização, mantêm a oclusiva velar.

A manutenção de *sk no fa d’ambô é espelhada em dados sincrônicos da língua, sendo comum observarmos itens como [ˈskaːɲi] ‘escárnio’ e [sklaˈma] ‘exclamar’ (SEGORBE, 2007SEGORBE, A. Gramática descriptiva del fa d’ambô. Barcelona: CEIBA Ediciones, 2007.). Ao focarmos em dados em que o encontro entre tais segmentos ocorre quando a fricativa está em coda e a oclusiva equivale ao primeiro elemento de um onset simples, a fricativa velar [x] é possível ainda que pouco atestada, sendo mais comum a manutenção da oclusiva: [dɛskuˈdaː] ‘descuidar’, [pasˈkeːve] ‘caneta’; [kiskaˈbɛlu] ‘pequeno banco’; [dʒiskatuˈja] ‘problema’, entre outros. Assim, notamos que a sequência fricativa alveolar + oclusiva velar, de modo autônomo ao licenciamento silábico de tais segmentos, se em coda ou onset, aparenta ser um contexto favorável à manutenção da oclusiva velar, podendo não corresponder a um ambiente de mudança na especiação do fa d’ambô.

Essa conclusão é reforçada ao constatarmos que ‘pescador’ possui, atualmente, duas possibilidades de pronúncia: [pisxaˈdo] ̴ [piskaˈdo] ‘pescador’. Logo, [x], nesse exemplo, pode ser resultado do processo de espirantização sincrônica no fa d’ambô, caracterizado, como demonstrado na seção A distribuição fonotática e a variação entre /x/ e /k/, pela realização de /k/ como [x], em sílabas pretônicas, quando o segmento seguinte é [a]. Palavras relacionadas à [pisxaˈdo] ̴ [piskaˈdo], em que /ka/ está em sílaba tônica, não apresentam tal oscilação, como exemplificado por [pisˈka] ‘pescar’ e [pisˈkadu] ‘pescado’, ratificando a manutenção da oclusiva velar quando esta é antecedida por uma fricativa alveolar.

Através da análise do conjunto de cognatos organizados por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., pressupomos que a espirantização, além de ser um fenômeno sincrônico no fa d’ambô, configurou um processo de mudança na especiação dessa língua. Esse processo diacrônico resultou no estabelecimento de /x/ no quadro fonológico do fa d’ambô, sendo a presença de tal fonema um dos traços estruturais que distingue a língua falada em Ano Bom das demais línguas crioulas do Golfo da Guiné. No entanto, apesar da espirantização ter possibilitado a emergência de um novo fonema do fa d’ambô, o processo não foi aplicado em todos os itens do PGG ao longo do desenvolvimento do fa d’ambô, uma vez que alguns contextos mostraram-se desfavoráveis à lenição de *k. Por conseguinte, o fa d’ambô também manteve /k/ em seu sistema, o qual, sincronicamente, aparenta ser mais produtivo em ambientes nos quais /x/ não é constatado.

Considerações Finais

Neste estudo, investigamos o estatuto fonológico da fricativa velar no fa d’ambô, mediante o comportamento fonotático de [k] e [x]. Com base na reconstrução fonológica do protocrioulo do Golfo da Guiné (PGG) realizada por Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., constatamos que o processo de espirantização da oclusiva *k é o fenômeno responsável por alterar tal protoforma em alguns itens lexicais do fa d’ambô, a qual passa a ser produzida como /x/, segmento incorporado no quadro fonológico da língua. Nessa alteração, a qual é produtiva, também, sincronicamente, é possível observar uma modificação do modo de articulação de [x] em relação à *k ou [k], que de oclusiva passa a ser realizada como fricativa, logo, assinalando a alteração entre um segmento menos sonoro em direção a um mais sonoro, modificação comumente tratada como enfraquecimento consonantal.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (Processos: 2015/25332-1 e 2017/26595-1) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processo:150051/2018-2) pelo financiamento que permitiu a condução dessa pesquisa e elaboração deste artigo.

REFERÊNCIAS

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  • BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
  • BANDEIRA, M. Adaptação de empréstimos recentes no papiamentu moderno. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2013. 245 f. Dissertação (Mestrado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
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  • WETZELS, L. Primary Word Stress in Brazilian Portuguese and the Weight Parameter. Journal of Portuguese Linguistics, Lisboa, v.5, n.6, p.9-58, 2007.
  • 1
    O Protocrioulo do Golfo da Guiné (PGG) é uma protolíngua surgida em STP na primeira fase da colonização, período no qual as condições socio-históricas, geográficas e demográficas foram muito favoráveis para uma “crioulização rápida” (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 118). A consolidação de grupos de falantes distintos do PGG configurou a emergência de quatro línguas filhas distintas: o fa d’ambô, falado na ilha de Ano Bom, e o lung’Ie, língua empregada na ilha do Príncipe. Os escravos foragidos, por sua vez, ao formarem resistências quilombolas, distanciaram-se da capital e construíram uma comunidade própria, a comunidade dos Angolares, contexto no qual emerge a língua angolar. Por fim, o santome ou forro, falado na capital, corresponde à língua-filha do PGG que permaneceu no mesmo locus de emergência da protolíngua (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.).
  • 2
    A esse respeito, Bandeira (2017)BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. pontua, retomando os estudos de Caldeira (2007)CALDEIRA, A. Crenças religiosas e ritos mágicos na ilha de Ano Bom: uma aproximação histórica. Povos e Culturas, Braga, v. 11, p. 87-111, 2007. e Araujo et al. (2013), que durante o século XVI, Ano Bom teve pouca ou quase nenhuma presença portuguesa. Em geral, por longos períodos, o feitor e sua guarda-pessoal correspondiam aos únicos portugueses da ilha. Além disso, na passagem do século XVII para o século XVIII, não somente o último representante português deixou a ilha, como os escravos passaram a impedir a entrada de imigrantes em Ano Bom, sejam estes colonizadores ou não, por anos consecutivos (BANDEIRA, 2017BANDEIRA, M. Reconstrução fonológica e lexical do protocrioulo do Golfo da Guiné. Orientador: Gabriel Antunes de Araujo. 2016. 439 f. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.).
  • 3
    (i) Tônica - [ˈkisu] ‘quitar’; [ˈkekeː] ‘ser parecido’; [ˈkɛxaː] ‘queixa’; [ˈkada] ‘cada’; [ˈkɔʎa] ‘trabalho de presos’; [ˈkoma] ‘como’; [ˈkulu] ‘escuro’; [ˈxama] ‘escama de peixe’[ˈxɔxɔ] ‘cormorão’; [ˈxola] ‘cola’; [ˈxuntulu] ‘contra’. (ii) Átona - [kiˈli] ‘colher’; [keˈse] ‘esquecer’; [kɛˈlɛdu] ‘credo’; [kaˈma] ‘queimar’; [kɔˈral] ‘coral’; [koˈkjoko] ‘galho’; [kuˈlu] ‘cru’; [boxiˈa] ‘embrulhar’; [xeˈle] ‘crer’; [xɛ̃jˈta] ‘esquentar’; [xaˈma] ‘escamar’; [xɔxɔˈlɔ] ‘atrever-se’; [xoˈle] ‘correr’; [xuzˈga] ‘julgar’.
  • 4
    (i) Tônica - [ˈkiːzu] ‘queijo’; [xaˈkeː] ‘caqui’; [ˈkɛːtu] ‘quieto’; [ˈkaːxa] ‘caixa’; [mindʒiˈkɔːdʒi] ‘espera’; [bisˈkoːto] ‘biscoito’; [ˈkuːsu] ‘cruz’; [induluˈxɛːsja] ‘indulgência’; [ˈxaːni] ‘carne’; [ˈxɔːnta] ‘conta’; [ˈxoːnde] ‘quando’; (ii) Átona - [kiːˈʎa] ‘criar’; [ˈpɔkeː] ‘porque’; [kɛːˈta] ‘quietar/sossegar’; [kaːˈtoː] ‘bígaro’; [kɔːˈladu] ‘colorado’; [koːˈko] ‘côco’; [xeːˈse] ‘crescer’; [xaːˈsɐ̃] ‘calção’; ‘pescoço’; [xɔːˈda] ‘cortar’; [xoːˈxoso] ‘pescoço’.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2019
  • Aceito
    04 Jul 2020
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