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O USO DE CRITÉRIOS SEMÂNTICOS PARA A IDENTIFICAÇÃO DE ADJETIVOS EM KARITIANA

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir critérios de identificação de adjetivos nas línguas naturais utilizando como exemplo a língua karitiana (arikén, tupi). Primeiramente, são apresentados os critérios sintáticos mais tradicionais utilizados na literatura por descritivistas e tipologistas (DIXON, 1991, 2004). Embora esses critérios sejam importantes como uma primeira aproximação do fenômeno da predicação nas línguas naturais, eles apresentam certas limitações para a identificação de adjetivos em línguas em que essa classe de palavras figura em sentenças com a mesma flexão encontrada nos verbos intransitivos, como é o caso do karitiana. Então, são apresentados critérios semânticos à luz da Semântica Formal para a caracterização dos adjetivos baseados na noção de propriedades escalares (KENNEDY, 1999; KENNEDY; MCNALLY, 2005). Esses critérios são utilizados para discutir não apenas a classe dos adjetivos, mas a própria tipologia dos modificadores intensificadores nas línguas naturais (NEELEMAN; VAN DE KOOT; DOETJES, 2004; DOETJES, 2008). Em karitiana, especialmente, a distribuição e comportamento do modificador pita(t) ‘muito’ (descrito em SANCHEZ-MENDES, 2014a) mostrou-se como fundamental no auxílio da identificação de adjetivos na língua.

Tipologia linguística; adjetivos; sintaxe; semântica; línguas indígenas

ABSTRACT

The aim of this paper is to discuss criteria for identifying adjectives in natural languages using the language Karitiana (Arikén, Tupi) as an example. Firstly, the most traditional syntactic criteria used in the literature by descriptivists and typologists are discussed (DIXON, 1991DIXON, R. M. W. A new approach to English grammar, on semantic principles. Oxford: Clarendon Press, 1991. 2004)DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49. Despite the importance of these criteria as a first approximation of the phenomenon of predication in natural languages, they have certain limitations for the identification of adjectives in languages in which this word class appears in sentences with the same inflection found in intransitive verbs, as in Karitiana. Therefore, some semantic criteria are presented for the characterization of adjectives based on the notion of scalar properties (KENNEDY, 1999KENNEDY, C. Projecting the adjective: The syntax and semantics of gradability and comparison. New York: Garland, 1999. KENNEDY; MCNALLY, 2005)KENNEDY, C.; MCNALLY, L. Scale Structure, Degree Modification, and the Semantics of Gradable Predicates. Language, Malibu, v.81, n.2, p. 345-381, 2005. These criteria are used to discuss not only the adjectives class, but also the typology of natural language intensifiers (NEELEMAN; VAN DE KOOT; DOETJES, 2004;DOETJES, 2008DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155.). Especially in Karitiana, the distribution and behavior of the modifier pita(t) ‘very/a lot’ (described in SANCHEZ-MENDES, 2014a) proved to be fundamental in helping to identify adjectives.

Linguistic Typology; adjectives; syntax; semantics; indigenous languages

Adjetivos: uma classe exclusiva

É quase um clichê dos estudos gramaticais afirmar que a classe dos adjetivos apresenta desafios para o estabelecimento de critérios para sua identificação. Dixon (2004)DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49., fazendo um percurso da história dessa classificação nos estudos linguísticos, apontam que, historicamente, nem a gramática do sânscrito de Panini nem as gramáticas clássicas de grego e latim apresentam distinção para as classes de substantivos e adjetivos. Somente no século XIV, com Thomas of Erfurt, essa distinção passou a ser delineada com base no critério de gênero. Adjetivos, diferentemente de substantivos, não têm gênero inerente, mas adquirem essa flexão por concordância. Essa definição, que é baseada nas propriedades das línguas latinas, passou a ser um critério distintivo utilizado até o século XX. Jespersen (1924), por exemplo, considera que o gênero é o único critério que separaria exclusivamente os adjetivos dos substantivos. Segundo sua proposta, uma vez que o finlandês não expressa gênero, essa língua não teria uma classe de adjetivos distinta da classe dos substantivos. Aliás, vem dessa tradição a utilização da nomenclatura nomes ou nominais para abarcar tanto substantivos quanto adjetivos.

Segundo Dixon (2004)DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49., o fato de a linguística moderna ter se concentrado no estudo de línguas europeias por estudiosos falantes de línguas europeias influenciou no fato de que se considere, usualmente, que os adjetivos formam uma classe que se confunde com os substantivos. Hoje, no entanto, são reconhecidas muitas línguas que apresentam adjetivos com características morfológicas de verbos, que podem, inclusive, atuar como verbos intransitivos.

Nos estudos linguísticos atuais, os adjetivos são entendidos como uma espécie de classe mista de propriedades de substantivos e de verbos. No âmbito da Linguística Gerativa, por exemplo, a categoria lexical dos adjetivos é definida pela combinação de dois traços positivos, nominal e verbal (+N, +V). Esse caráter misto é justamente o que explica o fato de que, em muitas línguas, os adjetivos apresentam propriedades gramaticais idênticas às dos substantivos, mas em outras, são indistinguíveis dos predicados verbais.

A despeito dessa semelhança ou às vezes até indiscernibilidade com outras classes, Dixon (2004)DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49. afirma que sempre há algum critério gramatical, ainda que sutil, capaz de distinguir os adjetivos das outras classes. Este artigo assume essa premissa e discute critérios sintáticos e semânticos para a caracterização dos adjetivos em karitiana (arikén, tupi)1 1 Este artigo emprega todos os nomes de línguas com letras minúsculas contrariando a Convenção para Grafia dos Nomes Tribais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), segundo a qual dos nomes das línguas indígenas brasileiras devem ser grafadas com a primeira letra maiúscula. Nesse ponto, o texto está em concordância com o que assume Fiorin e Petter (2014) no que diz respeito ao fato de a convenção tratar mais de nomes de povos do que de línguas e com a afirmação de que faz mais sentido adotar uma grafia homogênea para todas as línguas. , língua falada em Rondônia. É preciso deixar claro, no entanto, que essa proposta não é consensual, tendo sido, por muito tempo, rejeitada pelo próprio Dixon em trabalhos anteriores (DIXON, 1982). Para mais exemplos de trabalhos que defendem que adjetivos não formam uma classe exclusiva, ver, por exemplo, Van Den Berg (1989)VAN DEN BERG, R. A grammar of the Muna language. Dordrecht: Foris Publications, 1989. para a língua muna (austronésia, Indonésia) e McCawley (1992)MCCAWLEY, J. D. Justifying part-of-speech assignment in Mandarin Chinese. Journal of Chinese Linguistics, Hong Kong, v.20, n.2, p. 211–245, 1992. para o chinês mandarim2 2 Para uma discussão mais recente, ver Stoll, Abbott-Smith e Leiven (2009). .

Para apresentar o percurso da identificação de critérios de distinção dos adjetivos em karitiana, o artigo está organizado da seguinte forma: na próxima seção, apresento os critérios tradicionais de identificação da classe dos adjetivos propostos por tipologistas em línguas de diferentes famílias; em seguida, esses critérios são discutidos levando-se em conta os dados do karitiana; a seção seguinte introduz critérios semânticos para a caracterização dos adjetivos baseados na noção de propriedades escalares; a seção posterior articula essa proposta com as propriedades do karitiana; a última seção apresenta, por fim, as considerações finais. Neste artigo, vou me concentrar na discussão dos critérios abordados para os termos não derivados, deixando de lado os casos como dos adjetivos derivados de substantivos.

Critérios Sintáticos de Identificação de Adjetivos

Partindo do pressuposto de que todas as línguas apresentam substantivos, verbos e adjetivos, esta seção apresenta critérios sintáticos de distinção dos adjetivos das classes dos substantivos e verbos que foram discutidos em línguas de diversas famílias. A primeira observação a ser feita é a de que não faz sentido propor critérios puramente semântico-referenciais como base para a classificação de palavras. Um conceito pode ser expresso por classes de palavras diferentes em diferentes línguas. Por exemplo, a noção de ‘precisar comer’ é expressa por um substantivo em inglês (hunger), por um adjetivo em dyirbal (pama-nyungan, Austrália) (ŋamir) e por um verbo em latim (ēsŭrĭo). Ou ainda, os termos mãe e pai, que são normalmente expressos por substantivos nas línguas mais conhecidas no ocidente, são expressos por verbos do tipo ‘ser mãe/pai de’ nas línguas yuman (faladas na Califórnia) (DIXON, 2004DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49.).

Embora essa correspondência biunívoca não se sustente em todos os casos, Dixon (1991DIXON, R. M. W. A new approach to English grammar, on semantic principles. Oxford: Clarendon Press, 1991., 2004DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49.) apresenta uma generalização acerca de tipos semânticos prototipicamente associados a determinadas classes gramaticais específicas. Segundo o autor, substantivos incluem nomes de referência concreta como gato e pedra e verbos incluem nomes para ação, como cortar e falar. Tipicamente, os adjetivos expressam as seguintes noções nas línguas:

(i) dimensão (pequeno, grande);

(ii) idade (velho, novo);

(iii) valor (bom, ruim); e

(iv) cor (preto, branco).

Outras propriedades usualmente expressas por adjetivos são:

(i) propriedade física (pesado, molhado);

(ii) predisposição humana (feliz, esperto); e

(iii) velocidade (rápido, devagar).

Embora essa generalização se sustente em muitas línguas, uma classificação que enfoque apenas critérios desse tipo não é suficiente. Tradicionalmente, portanto, os estudos linguísticos estabeleceram critérios sintáticos para a classificação de palavras. Os substantivos, por exemplo, são as palavras que são núcleos de sintagmas nominais enquanto que verbos são núcleos de sintagmas verbais. Levando em conta essas propriedades, a classe dos adjetivos, no entanto, não é de caracterização tão simples, já que, conforme apontado, ela é uma classe que tem propriedades mistas. Os adjetivos podem ser usados tanto para especificar um referente dentro de um sintagma nominal, como em (1a) quanto para declarar uma propriedade (1b). A maioria das línguas possui adjetivos que podem desempenhar as duas funções.3 3 Para adjetivos que apresentam restrições relacionadas a essas duas funções, ver, por exemplo, Bolinger (1967) e Cinque (2010).

(1) a. O homem alto sorriu.

b. Pedro é alto.

Quando usados em construções como (1a), os adjetivos podem assumir, em algumas línguas, uma flexão típica dos substantivos. Esse é o caso do português. Variar o núcleo do sintagma nominal homem em gênero e número faz variar também o adjetivo: mulher alta, homens altos. Em línguas de caso morfológico, como latim, os adjetivos também seguem o substantivo segundo essa flexão. Nessas línguas, então, os adjetivos tendem a se confundir com os substantivos. Para Dixon (2004)DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49., são línguas que têm adjetivos do tipo-substantivo (do inglês noun-like).

No entanto, como os adjetivos são usados também para declarar propriedades, como em (1b), há outras línguas em que essa classe se confunde com os verbos. O adjetivo, nessas línguas, não aparece com um verbo de cópula, como em português em (1b), mas assume as flexões típicas dos verbos intransitivos (como tempo, modo e aspecto). Essas são as línguas que tem adjetivos do tipo-verbo (do inglês verb-like). Já as línguas que expressam a inclusão de um indivíduo a uma propriedade por meio de um adjetivo funcionando como complemento de cópula, como é caso do português, conforme (1b), são do tipo-não-verbo (non-verb-like). Essa diferença divide o comportamento dos adjetivos em tipo I e II na tipologia de Dixon (2004)DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49.. Em português, os adjetivos na posição predicativa são do segundo tipo-não-verbo já que figuram como complemento de uma cópula. Compare com o exemplo do fijian (austronésia, Fiji) em que o adjetivo balavu ‘alto’ aparece com a forma presa do pronome de terceira pessoa do singular e para formar um verbo intransitivo cujo único argumento é a tama-qu ‘meu pai’.

(2) [e balavu] [a tama-qu]. [FIJIAN]

3SGS alto ART pai-1SG.POSS4 4 As glosas seguem o padrão do Leipzig Glossing Rules, convenção publicada pelo Departamento de Linguística do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology. Outras glosas: ASS = modo assertivo.

‘Meu pai é alto.’ (DIXON, 2004DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49., p.7)

Já a língua tariana (aruák, Brasil) apresenta as duas possibilidades para a expressão de uma propriedade por meio de um adjetivo: ele pode tanto figurar como um predicado intransitivo (3a), quanto como complemento de uma cópula (3b). Em (3a), o adjetivo hanu ‘grande’ é o núcleo de um predicado intransitivo e flexiona para tempo e evidencialidade, tal como os verbos nessa língua. Já em (3b), o adjetivo é complemento da cópula dia ‘tornar-se’ que, neste caso, carrega as flexões verbais.

(3) a. ñamu(-ne) hanu-ite-pidana. [TARIANA]

espírito.do.mal(-FOC) grande-NCL:ANIM-PAS.REM:REP

‘Disseram que o espírito do mal era grande.’

b. ñamu(-ne) hanu-ite di-dia-pidana

espírito.do.mal(-FOC) grande-NCL:ANIM 3SG.NON.FEMCS-tornar-AS.REM:REP

‘Disseram que o espírito do mal se tornaria grande.’ (DIXON, 2004DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49., p.6)

Segundo Dixon (2004)DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49., assim como há línguas que combinam as duas possibilidades – flexão como substantivo e flexão como verbo, como o tariana, há também línguas em que os adjetivos não partilham nenhuma semelhança com essas classes. Partindo dessa descrição geral dos critérios morfossintáticos de identificação dos adjetivos, apresento, na próxima seção, uma discussão desses critérios em karitiana.

Karitiana e os Critérios Sintáticos de Identificação de Adjetivos

O objetivo desta seção é discutir os critérios sintáticos apresentados acima com os dados do karitiana. Os dados da língua karitiana empregados foram coletados por mim em trabalhos de campo realizados com falantes nativos da língua. A metodologia adotada foi a elicitação controlada (MATTHEWSON, 2004MATTHEWSON, L. On the Methodology of Semantic Fieldwork. International Journal of American Linguistics, Chicago, n.70, p. 369-415, 2004.; SANCHEZ-MENDES, 2014b). Nessa metodologia, todos os dados são elucidados, levando-se em conta um contexto apresentado aos consultores, mesmo as primeiras traduções e testes de gramaticalidade. Os dados da língua que não vieram desses corpora têm indicação de sua publicação de origem.

Quando as propriedades do karitiana são relacionadas à descrição dos critérios sintáticos apresentada acima, não é fácil estabelecer os limites entre os adjetivos e as classes dos substantivos e dos verbos. Primeiramente, levando-se em conta a expressão de uma propriedade de um substantivo dentro de um sintagma nominal, a língua karitiana não oferece nenhuma pista nem de identificação nem de distinção entre substantivos e adjetivos. Isso ocorre porque os nomes, nessa língua, são nus, e não apresentam nenhuma flexão (não têm variação de gênero, número, caso, definitude ou qualquer outro tipo) (MÜLLER; STORTO; COUTINHO SILVA, 2006).

Os exemplos abaixo mostram que os sintagmas nominais não modificados apresentam as mesmas propriedades dos modificados. As palavras se’a ‘bom’ e ty ‘grande’ têm a mesma forma em (4b) e (4c).

(4) a. Taso Ø-na-oky-t pikom. [KARITIANA]

homem 3-DECL-matar-NFUT macaco

‘Homem matou macaco.’5 5 As traduções apresentadas são as que mais se aproximam do exemplo elaborado e elicitado em karitiana, mesmo que apresente estranhamento em língua portuguesa.

b. [Taso se’a] Ø-na-oky-t [pikom ty].

homem bom 3-DECL-matar-NFUT macaco grande

‘Homem bom matou macaco grande.’

c. [Õwã se’a] Ø-na-oky-t [boroja ty].

criança bom 3-DECL-matar-NFUT cobra grande

‘Criança boa matou cobra grande.’

Nesse sentido, a modificação dentro do sintagma nominal oferece poucas pistas acerca do estatuto da classe dos adjetivos na língua karitiana. Já nas estruturas em que os adjetivos declaram uma propriedade de um indivíduo, não é trivial estabelecer imediatamente se os adjetivos se comportam como um verbo intransitivo, como em fijian (ex. 2) ou como complemento de cópula (ex. 1b do português). Isso acontece porque, na língua karitiana, a construção de cópula é idêntica à construção com verbos intransitivos. Os exemplos em (5) mostram que tanto adjetivos quanto verbos intransitivos se flexionam da mesma forma em uma cópula com naakat. O adjetivo em (5a) apresenta as mesmas marcas que o verbo em (5b). A comparação com casos em que substantivos são empregados como complemento de cópula (5c) esclarece a natureza do adjetivo que se aproxima da estrutura do verbo (5b) e se afasta da estrutura de cópula de complemento nominal.

(5) a. Ombaky Ø-na-aka-t i-em-Ø. [KARITIANA]

onça 3-DECL-COP-NFUT PART-sujo-ABS

‘Onça é/está suja.’

b. Ombaky Ø-na-aka-t i-pykyna-t.

onça 3-DECL-COP-NFUT PART-correr-ABS

‘Onça correu.’

c. Ombaky Ø-na-aka-t hĩm-Ø.

onça 3-DECL-COP-NFUT animal-ABS

‘Onça é animal.’ (EVERETT, 2006EVERETT, C. Patterns in Karitiana: Articulation, perception, and grammar. 2006. 473f. Thesis (Doctor of Philosophy) - Rice University, Houston, 2006., p.309)6 6 As glosas não foram copiadas do autor porque, embora tenha ilustrado com esses dados, assumo, como se verá, outra análise para essas construções (STORTO, 2010).

Uma vez que os dados em (5) indicam que o comportamento dos adjetivos espelha o dos verbos intransitivos, karitiana é uma língua que apresenta adjetivos do tipo-verbo (verb-like), como fijian. Nesse caso, fica a questão, então, qual seria a distinção entre adjetivos e verbos nessa língua. A despeito dessa semelhança, Everett (2006)EVERETT, C. Patterns in Karitiana: Articulation, perception, and grammar. 2006. 473f. Thesis (Doctor of Philosophy) - Rice University, Houston, 2006. afirma que os principais argumentos para a classificação dos adjetivos em karitiana como uma classe em separado dizem respeito justamente a seu comportamento nas sentenças de cópula. Segundo o autor, o que os difere dos verbos é o fato de poderem aparecer depois do núcleo nominal sem nenhuma flexão ou cópula (diferentemente dos verbos, que são agramaticais nessa construção).

(6) a. Ombaky em [KARITIANA]

onça suja

b. *Ombaky put’y

onça comer (EVERETT, 2006EVERETT, C. Patterns in Karitiana: Articulation, perception, and grammar. 2006. 473f. Thesis (Doctor of Philosophy) - Rice University, Houston, 2006., p.309)

Segundo Everett (2006)EVERETT, C. Patterns in Karitiana: Articulation, perception, and grammar. 2006. 473f. Thesis (Doctor of Philosophy) - Rice University, Houston, 2006., (6a) pode ser usada tanto como um sintagma nominal (‘onça suja’) como uma sentença ‘Onça é/está suja.’ No entanto, o autor não leva em conta duas propriedades importantes da língua quando assume que esses dados seriam definitivos para o estabelecimento de uma classe de adjetivos em karitiana: (i) a expressão em (6a) só pode ser um sintagma nominal, já que a forma sentencial dessa sentença seria, na realidade, como em (7a), em que a cópula naakat é omitida, mas o adjetivo apresenta as flexões da construção de cópula (iem); (ii) a construção em (6b) é agramatical quando considerada isoladamente, mas, em karitiana, ela poderia perfeitamente ser um complemento de outra sentença (fato reconhecido pelo autor em uma nota), já que sentenças dependentes na língua não apresentam flexão verbal (STORTO, 1999STORTO, L. Aspects of Karitiana Grammar. 1999. 218p. Thesis (Doctor of Philosophy) - Department of Linguistics and Philosophy, Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1999.).

(7) a. Ombaky i-em-Ø. [KARITIANA]

onça PART-sujo-ABS

‘Onça é/está suja.’

b. Y-py-so’oot-on [ombaky put’y].

1S-ASS-ver-NFUT onça comer

‘Eu vi a onça comer.’

O equívoco apresentado é resultado de se considerar palavras em isolado como em (6). Crucialmente, o fator ignorado por Everett (2006)EVERETT, C. Patterns in Karitiana: Articulation, perception, and grammar. 2006. 473f. Thesis (Doctor of Philosophy) - Rice University, Houston, 2006. e ilustrado em (7a) é o fato de que a cópula naakat poder ser omitida com adjetivos flexionados (STORTO, 2010STORTO, L. Copular Constructions in Karitiana: a case against case movement. In: SEMANTICS OF UNDER-REPRESENTED LANGUAGES IN THE AMERICAS, 5., 2010. Proceedings [...], Amherst: GLSA: The University of Massachusetts, 2010.). O autor apresenta sua possibilidade com verbos intransitivos e sua impossibilidade com substantivos, mas não menciona o comportamento dos adjetivos, que, nesse caso, espelha o dos verbos intransitivos mais uma vez.

(8) a. *Ombaky hĩm-Ø. [KARITIANA]

onça animal-ABS

b. Ombaky i-pykyna-t.

onça PART-correr-ABS

‘Onça correu.’ (EVERETT, 2006EVERETT, C. Patterns in Karitiana: Articulation, perception, and grammar. 2006. 473f. Thesis (Doctor of Philosophy) - Rice University, Houston, 2006., p.309)

A análise de Storto (2010)STORTO, L. Copular Constructions in Karitiana: a case against case movement. In: SEMANTICS OF UNDER-REPRESENTED LANGUAGES IN THE AMERICAS, 5., 2010. Proceedings [...], Amherst: GLSA: The University of Massachusetts, 2010. para as construções de cópula em karitiana, por sua vez, vai ao encontro das propriedades discutidas e aproxima adjetivos de verbos intransitivos na língua. Segundo a autora, nessas construções, o verbo de cópula aka aparece flexionado na segunda posição da sentença e seleciona como complemento uma mini-oração nominalizada que apresenta um predicado (substantivo, adjetivo ou verbo intransitivo) com apenas um argumento. O sujeito da oração nominalizada se move para a posição que precede a cópula deixando, como marca, o sufixo {-t} que indica essa extração do argumento absolutivo. A estrutura da cópula, segundo essa proposta, é a seguinte:

(9) Sujeitoi naakat [nom [MO ti X ] ]

Em que X pode ser um substantivo, um adjetivo ou um verbo intransitivo.

Se o complemento é um substantivo (como 10a), ele vem acompanhado apenas do sufixo {-t} que indica extração do sujeito absolutivo; enquanto que, quando o complemento é um adjetivo ou um verbo, além do sufixo, eles apresentam também um prefixo {i-} que marca que a expressão foi nominalizada, conforme ilustram (10b) e (10c). Foi justamente a semelhança entre a classe dos adjetivos e verbos que motivou Storto (1999)STORTO, L. Aspects of Karitiana Grammar. 1999. 218p. Thesis (Doctor of Philosophy) - Department of Linguistics and Philosophy, Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1999. a glosar {i-} como particípio.

(10) a. Byyty Ø-na-aka-t kinda’o-t.7 7 Um parecerista anônimo notou o uso de uma relação de hiperonímia nesta sentença. É importante destacar que não é estranho que, nessa posição, que é predicativa, apareça um nome que tenha como propriedade denotar um conjunto. No entanto, também poderia ocorrer um conjunto menor nessa posição, como ‘mamão’ em sentenças como ‘isto é um mamão’. A relação de pertencimento de elemento a um conjunto ou inclusão de um conjunto a outro não são pertinentes para investigação da expressão morfossintática dessas estruturas. [KARITIANA]

mamão 3-DECL-COP-NFUT fruta-ABS

‘Mamão é fruta.’

b. Taso Ø-na-aka-t i-se’a-t.

homem 3-DECL-COP-NFUT PART-bom-ABS

‘Homem é bom.’

c. Taso Ø-na-aka-t i-kat-t.

homem 3-DECL-COP-NFUT PART-dormir-ABS

‘O homem dormiu.’ (STORTO, 2010STORTO, L. Copular Constructions in Karitiana: a case against case movement. In: SEMANTICS OF UNDER-REPRESENTED LANGUAGES IN THE AMERICAS, 5., 2010. Proceedings [...], Amherst: GLSA: The University of Massachusetts, 2010., p. 2)

Sanchez-Mendes (2018)SANCHEZ-MENDES, L. Construções comparativas em Karitiana: descrição preliminar. Revista Brasileira de Línguas Indígenas, Macapá, v.1, p.61-77, 2018. aponta para a semelhança entre as construções de cópula como em (10c) e as orações simples (não subordinadas) em línguas V-2, como o alemão. Levando-se em conta o movimento obrigatório do verbo finito para a segunda posição da sentença para checar traços de tempo e concordância (STORTO, 1999STORTO, L. Aspects of Karitiana Grammar. 1999. 218p. Thesis (Doctor of Philosophy) - Department of Linguistics and Philosophy, Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1999.), sentenças como (10c) poderiam ser sentenças simples com uma perífrase verbal que apresenta movimento do auxiliar para a segunda posição com a forma desenvolvida do verbo ficando na última posição. As estruturas comparativas em karitiana apoiam essa proposta (SANCHEZ-MENDES, 2018SANCHEZ-MENDES, L. Construções comparativas em Karitiana: descrição preliminar. Revista Brasileira de Línguas Indígenas, Macapá, v.1, p.61-77, 2018.). Em (11), a cópula naakat aparece na segunda posição da sentença e o segundo verbo de cópula iakat aparece na mesma flexão dos verbos intransitivos acima e na última posição da sentença. Esse comportamento está de acordo com a classificação de Rocha (2011)ROCHA, I. A estrutura Argumental da Língua Karitiana: Desafios Descritivos e Teóricos. 2011. 220f. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. que mostrou que o verbo aka tem a mesma distribuição dos verbos intransitivos em karitiana.

(11) Luciana ombi Ø-na-aka-t Sarita ombi pyti ohynym i-aka-t.

Luciana cesto 3-DECL-COP-NFUT Sarita cesto pesado maior PART-COP-NFUT

‘O cesto da Luciana está mais pesado do que o cesto da Sarita.’

Para os propósitos deste artigo, que pretende discutir critérios de identificação da classe dos adjetivos, não é crucial decidir qual seria a melhor proposta para as construções de cópula, se são sentenças com duas orações, conforme Storto (2010)STORTO, L. Copular Constructions in Karitiana: a case against case movement. In: SEMANTICS OF UNDER-REPRESENTED LANGUAGES IN THE AMERICAS, 5., 2010. Proceedings [...], Amherst: GLSA: The University of Massachusetts, 2010.; ou se são sentenças simples com auxiliar movido para a segunda posição da sentença, conforme a proposta de Sanchez-Mendes (2018)SANCHEZ-MENDES, L. Construções comparativas em Karitiana: descrição preliminar. Revista Brasileira de Línguas Indígenas, Macapá, v.1, p.61-77, 2018., para as sentenças comparativas. Independentemente da análise adotada, a classificação dos adjetivos seria do tipo-verbo na tipologia de Dixon (2004)DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49., pois mesmo nos casos em que formam um complemento de cópula, os adjetivos se flexionam exatamente da mesma forma que os verbos intransitivos.

Um comportamento semelhante é encontrado em tenetehára (tupi-guarani, tupi) do mesmo tronco linguístico que o karitiana. Camargos e Duarte (2011)CAMARGOS, Q. F.; DUARTE, F. B. Sobre a classe de adjetivos na língua Tenetehára (Tupí-Guaraní). In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS NA AMAZÔNIA, 3., 2011, Belém. Anais [...], Belém: CRV, 2011. v. 3. p. 1039-1057. argumentam que a classe dos adjetivos tem o mesmo comportamento que os verbos. Na proposta dos autores, eles são verbos inacusativos deadjetivais que apresentam um prefixo que indicam o seu único argumento. Os dados abaixo apresentam adjetivos com o prefixo {Ø-} para predicados começados em consoante (12a) e {r-} para predicados começados por vogal (12b).

(12) a. He Ø-kàn. [TENETEHÁRA]

eu ABS-forte

‘Eu sou forte.’

b. He r-uryw.

eu ABS-alegre

‘Eu sou alegre.’

(CAMARGOS; DUARTE, 2011CAMARGOS, Q. F.; DUARTE, F. B. Sobre a classe de adjetivos na língua Tenetehára (Tupí-Guaraní). In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS NA AMAZÔNIA, 3., 2011, Belém. Anais [...], Belém: CRV, 2011. v. 3. p. 1039-1057., p.1040)

No entanto, como vimos, fazer essa aproximação entre adjetivos e estruturas verbais ainda não esclarece qual é o estatuto dos adjetivos nem que tipo de comportamento especial eles têm em relação aos verbos. Um dos caminhos a se explorar seria averiguar outras estruturas sintáticas em que os verbos intransitivos aparecem na língua e verificar sua possibilidade de ocorrência com adjetivos. Este artigo, no entanto, vai seguir uma outra proposta: a da relevância de se utilizar critérios semânticos na identificação de adjetivos nas línguas naturais e, mais especificamente, a pertinência de sua aplicação em karitiana.

Critérios Semânticos de Identificação de Adjetivos

Esta seção discute a tentativa de caracterização dos adjetivos nas línguas naturais por meio de critérios semânticos. A base dessa caracterização está na relação entre adjetivos e a gradação, noção que, tradicionalmente, associa-se a essa classe de palavras. Em português, por exemplo, as palavras que recebem morfologia de grau superlativo fazem parte da classe de adjetivos, como mostram os exemplos em (13). Esse estatuto flexional da gradação é herança latina, língua na qual os adjetivos flexionavam também para expressar comparação. Assim a forma dulcior indicava o que hoje expressamos por mais doce.

(13) a. belo – belíssimo

b. feliz – felicíssimo

A noção da gradação vem recebendo, recentemente, bastante a atenção dos estudos em semântica formal (KLEIN, 1980KLEIN, E. A semantics for positive and comparative adjectives. Linguistics and Philosophy, Dordrecht, v.4, p. 1-45, 1980.; KENNEDY, 1999KENNEDY, C. Projecting the adjective: The syntax and semantics of gradability and comparison. New York: Garland, 1999.; KENNEDY; MCNALLY, 2005KENNEDY, C.; MCNALLY, L. Scale Structure, Degree Modification, and the Semantics of Gradable Predicates. Language, Malibu, v.81, n.2, p. 345-381, 2005.; DOETJES, 2007DOETJES, J. Adverbs and quantification: degree versus frequency. Lingua, Amsterdam, n.117, p. 685-720, 2007., entre muitos outros); e alguns trabalhos recentes que procuram estabelecer critérios semânticos para a caracterização dos adjetivos lidam com a noção de gradação. No entanto, apesar da relação quase intuitiva que os falantes de português têm entre a noção de gradação e os adjetivos, determinar exatamente qual é essa relação não é uma tarefa simples. Os principais entraves para essa caracterização estão no fato de que nem todas as línguas apresentam grau como uma noção flexional como as línguas latinas, mas principalmente porque outras categorias podem expressar noções graduáveis. Isso pode ser visto por meio da modificação de grau ou das sentenças comparativas. As construções abaixo mostram que a noção de grau pode estar associada a adjetivos (14), a verbos (15) e a advérbios (16), por exemplo.

(14) a. Pedro é muito inteligente.

b. Pedro é mais inteligente do que Paulo.

(15) a. Pedro correu muito.

b. Pedro correu mais do que Paulo.

(16) a. Pedro correu muito rápido.

b. Pedro correu mais rápido do que Paulo.

Nesse sentido, a questão da gradação, que já era uma noção discutida em trabalhos clássicos como Sapir (1944)SAPIR, E. Grading: a Study in Semantics. Philosophy of Science, Cambridge, v.11, p. 93-116, 1944. e Kamp (1975)KAMP, H. Two theories about adjectives. In: KEENA, E. L. Formal Semantics of Natural Language. Cambridge: Cambridge University Press, 1975. p. 123-155. e adotada como critério para identificação da classe de adjetivos em inglês (QUIRK et al., 1985)8 8 Agradeço ao parecerista anônimo que me alertou para o fato de que a gradação como critério de identificação de adjetivos já estava presente em uma gramática do inglês de 1985. vem recebendo a atenção de pesquisas recentes que investigam a gradação nas línguas naturais (ver, por exemplo, KENNEDY; MCNALLY, 2005KENNEDY, C.; MCNALLY, L. Scale Structure, Degree Modification, and the Semantics of Gradable Predicates. Language, Malibu, v.81, n.2, p. 345-381, 2005.; DOETJES, 2007DOETJES, J. Adverbs and quantification: degree versus frequency. Lingua, Amsterdam, n.117, p. 685-720, 2007., para a modificação de grau; BECK, 2011BECK, S. Comparative Constructions. In: MAIENBORN, C.; VON HEUSINGER, K.; PORTNER, P. (ed.) Semantics: An international handbook of natural language meaning. Berlin: Mouton de Gruyter, 2011. v.3. p. 1341-1389.; BOCHNACK, 2013BOCHNACK, M. R. Cross-linguistic variation in the semantics of comparatives. 2013. 255f. Thesis (Doctor of Philosophy) - Faculty of the Division of the Humanities, University of Chicago, Chicago, 2013., para as construções comparativas). Este artigo se concentra na modificação de grau e nas pistas que ela pode fornecer para esclarecer de que forma a gradação está relacionada com cada uma das categorias a que o modificador está associado.

Distribuição dos Modificadores de Grau

Esta seção mostra como a distribuição dos modificadores de grau pode ajudar na identificação de tipos de modificação, que, por sua vez, auxilia na identificação da classe dos adjetivos. Neeleman, Van De Koot e Doetjes (2004) e Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. apresentam uma tipologia dos modificadores de grau de acordo com sua distribuição entre as categorias. Neste artigo, por questões de espaço, será apresentada apenas a caracterização de Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155., mas ela é facilmente replicada para a tipologia de Neeleman, Van De Koot e Doetjes (2004).

Analisando dados do francês, do inglês e do holandês, Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. aponta uma regularidade no que diz respeito à distribuição dos modificadores de grau. Segundo a autora, as categorias modificadas formam um continuum e os modificadores selecionam uma parte desse conjunto, aplicando-se a todos os domínios de um recorte. A distribuição dos modificadores está apresentada na tabela abaixo por meio da divisão entre as categorias de I a V. Segundo a regularidade apontada por Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155., não há modificadores que se aplicam exclusivamente a adjetivos e nomes plurais, por exemplo. Se eles se aplicam às categorias I e V, também se aplicam a todas as categorias que estão no intervalo (II, III e IV). Esse é o caso dos modificadores de tipo C, tipo mais abrangente.

Tabela 1 – Distribuição dos modificadores de grau

I Adjetivos graduáveis Tipo Avery (ing) Tipo Berg (hol) Tipo Ctrop (fr) more (ing) minder (hol)
II Verbos graduáveis Tipo Dbeaucoup (fr)
III Verbos eventivos, comparativas Tipo Eveel (hol)
IV Substantivos massivos Tipo Fa mountain (eng)
V Substantivos plurais Tipo Gmany (eng)
Fonte: Doetjes (2008DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155., p.125)12 12 Por conta da dependência do predicado modificado para sua interpretação, a pita não está sendo glosado por nenhuma tradução específica.

Segundo Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155., não é fortuito que adjetivos estejam na ponta do quadro que representa o continuum já que eles são a categoria gradual por excelência. No entanto, conforme discutido anteriormente, não está clara qual é a relação exclusiva que os adjetivos teriam com a gradação que não é encontrada nas outras categorias da tabela acima.

Uma primeira hipótese seria sugerir que a diferença entre adjetivos modificados por um lado e as outras categorias por outro seria uma distinção entre a expressão de qualidade e de quantidade, uma vez que adjetivos tipicamente denotam qualidades e os seus modificadores são intensificadores. Em português, por exemplo, adjetivos modificados por muito indicam uma qualidade (17a), enquanto verbos e nomes modificados por muito têm leitura de quantidade (17b, 17c).

(17) a. Pedro é muito inteligente.

b. Pedro comeu muito.

c. Pedro comprou muitos livros.

No entanto, segundo Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155., levando-se em conta a tabela acima, um modificador que faça a distinção entre qualidade e quantidade seria do tipo B, e não do tipo A, exclusivo dos adjetivos. Por exemplo, o modificador erg ‘muito’ do holandês expressa intensificação nas duas categorias que modifica, adjetivos e verbos graduáveis. Nos dois exemplos abaixo, o modificador expressa uma intensidade. As traduções para o português indicam que se dá o mesmo com o muito.

(18) a. erg aardig [HOLANDÊS]

muito legal

‘muito legal’

b. erg waarderen

muito apreciar

‘apreciar muito’ (DOETJES, 2008DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155., p.130)

Além disso, Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. destaca que, embora a noção de intensidade pareça ser própria de adjetivos modificados, expressões com nomes massivos como muito sucesso e muita paciência indicam mais uma qualidade do que uma quantidade. Ademais, nem todos os adjetivos indicam exatamente uma qualidade. Um lugar muito fotografado, por exemplo, indica uma frequência que é descrita numa escala de quantidade, e não exatamente de qualidade.

Uma vez que a hipótese de que a diferenciação dos adjetivos estaria na distinção entre qualidade e quantidade da expressão modificada não se sustenta, Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. explora outros dois critérios. O primeiro diz respeito à presença de uma variável de grau. Adjetivos seriam diferentes porque possuiriam uma variável de grau em sua denotação.

No entanto, essa não é uma proposta fácil de ser implementada e essa dificuldade tem mais a ver com as outras categorias do que propriamente com os adjetivos. Não é difícil assumir uma denotação para os adjetivos que contenha uma variável de grau já que, conforme discutido anteriormente, os adjetivos parecem formar uma classe gradual por excelência. Em (19), é apresentada a denotação do adjetivo inteligente contendo uma variável de grau. Segundo essa denotação, o adjetivo associa indivíduos x a um grau d segundo uma escala de inteligência.9 9 Esta é a versão básica apresentada pela autora. Há ainda, uma segunda versão, mais detalhada, que foi oferecida para dar conta dos dados com très ‘muito’ do francês. As adições feitas, no entanto, não são relevantes para a discussão deste artigo.

(19) [[ inteligente ]] = λd λx. “inteligência” (x) = d

Não está claro, entretanto, se verbos que têm uma semântica associada à gradação, como apreciar, por exemplo, também teriam uma variável de grau em sua denotação. Ou ainda se nomes como fome, que também apresentam uma noção escalar, poderiam, de alguma forma, estar associados com uma variável d de grau.

Além disso, levando-se em conta os sintagmas modificados, uma proposta que considere que o que diferencia adjetivos de outros predicados seja a presença de uma variável de grau deverá assumir que os modificadores da classe A (exclusivos dos adjetivos) têm uma semântica distinta da dos demais, tornando-os incompatíveis com as outras categorias. Dessa forma, uma proposta nesse caminho, deverá assumir, portanto, que os modificadores mais abrangentes (da classe C) são ambíguos, ou seja, apresentam denotações diferentes de acordo com o predicado modificado. Jackendoff (1977)JACKENDOFF, R. X’-syntax: a study of phrase structure. Cambridge: The MIT Press, 1977., por exemplo, seguindo uma linha de análise nesse sentido, assume a existência de dois comparativos em inglês; um moreDEG (‘mais’) que é uma expressão de grau prototípica e como tal, satura a variável de grau dos adjetivos e um moreQ que tem uma semântica de quantificador e se associa aos outros predicados. No entanto, está claro que, nesse caso, a ambiguidade não é acidental, e, portanto, não parece ser uma boa proposta postular que os modificadores do tipo C – que se aplicam a todos os tipos de predicados – sejam ambíguos (DOETJES, 2008DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155.).

Além disso, conforme discutido anteriormente, o fato de modificadores do tipo B serem sensíveis a predicados que são graduáveis mostra que não é evidente que adjetivos sejam a única classe que possui uma variável de grau. Algumas propostas, aliás, vão no sentido contrário. Cresswell (1976)CRESSWELL, M. J. The semantics of degree. In: PARTEE, B. Montague Grammar. New York: Academic Press, 1976. p. 261–292., por exemplo, considera que todos os predicados podem ter uma variável de grau. Nessas propostas, fica impossível distinguir os adjetivos das outras classes levando-se em conta a presença dessa variável.

Logo, tanto uma proposta que considere que apenas adjetivos têm uma variável de grau em sua denotação, quanto as propostas que consideram que todos os predicados podem ter uma variável de grau a eles associada enfrenta problemas. No primeiro caso, seria preciso postular uma ambiguidade para os modificadores mais abrangentes e, no segundo, há uma dificuldade para se apontar qual seria a característica definidora da classe dos adjetivos.

Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. explora, então, uma terceira alternativa que é compatível com qualquer uma das propostas anteriores para a relação dos predicados com a variável de grau. Sua proposta se baseia na estrutura escalar, na esteira dos estudos de Kennedy e McNally (2005)KENNEDY, C.; MCNALLY, L. Scale Structure, Degree Modification, and the Semantics of Gradable Predicates. Language, Malibu, v.81, n.2, p. 345-381, 2005. que explicaram a distribuição dos modificadores de grau very, much e well com particípios do inglês por meio das propriedades das escalas associadas aos predicados modificados. As escalas, segundo esse modelo, podem ser caracterizadas segundo duas propriedades: abertura e dependência de um padrão de comparação.

As escalas associadas aos predicados graduáveis podem ser totalmente abertas, parcialmente fechadas ou totalmente fechadas. Uma das formas de se identificar os possíveis polos fechados das escalas é modificando-as com completamente. O par de adjetivos aberto-fechado, por exemplo, está numa escala de abertura que tem os dois polos fechados; daí sua compatibilidade com completamente.

(20) A porta está completamente aberta/fechada.

Escalas totalmente abertas, por sua vez, apresentam incompatibilidade de completamente com ambos os antônimos (21), como se observa no par abaixo avaliado em uma escala de altura.

(21) ?? Pedro é completamente alto/baixo.

Há ainda adjetivos que são avaliados em escalas fechadas em apenas um dos polos, como é o caso do adjetivo famoso. Na escala de fama, não há um limite delimitado para a quantidade de fama que um indivíduo pode ter (daí a estranheza de 22), mas é preciso ter algum grau na escala de fama para ser considerado famoso. Adjetivos desse tipo são chamados de adjetivos de padrão mínimo (do inglês minimum standard). Eles têm que ter uma quantidade maior do que zero para serem empregados. Os adjetivos dessa escala que expressam o valor zero representam o polo fechado, como é o caso de desconhecido.

(22) ?? O autor é completamente famoso.

(23) O autor é completamente desconhecido.

A segunda propriedade das escalas diz respeito à dependência de um padrão de comparação. Adjetivos como alto e baixo, por exemplo, apresentam propriedades que necessitam de um valor contextualmente definido como padrão para serem avaliados. Assim, a sentença (24a) só pode ser avaliada em comparação a um grau padrão, como a classe dos meninos da mesma idade que Pedro, por exemplo. As relações de acarretamento com negação e antonímia (24b) ilustram essa propriedade. Se Pedro não é alto é uma sentença verdadeira, isso quer dizer que ele não tem um grau maior de altura em um dado contexto; mas isso não acarreta que ele tenha um grau menor, ou seja, que seja baixo. Adjetivos como esse são chamados de relativos a um padrão de comparação.

(24) a. Pedro é alto.

b. Pedro não é alto. ⊭ Pedro é baixo.

Adjetivos como aberto e fechado, por outro lado, não têm o mesmo comportamento na estrutura com negação, como mostram os acarretamentos abaixo. Esses são os adjetivos chamados de absolutos em relação ao padrão de comparação, já que, diferentemente de adjetivos como alto, não necessitam de uma classe de comparação para serem avaliados.

(25) a. A porta não está aberta. ⊨ A porta está fechada.

b. A porta não está fechada. ⊨ A porta está aberta.

De volta aos modificadores do inglês, na proposta de Kennedy e McNally (2005)KENNEDY, C.; MCNALLY, L. Scale Structure, Degree Modification, and the Semantics of Gradable Predicates. Language, Malibu, v.81, n.2, p. 345-381, 2005., very ‘muito’ modifica predicados relativos e impulsiona o seu padrão de comparação. Assim, a diferença entre expensive (‘caro’) e very expensive (‘muito caro’) é que o padrão de avaliação do segundo é maior do que o do primeiro. Um item é avaliado como expensive ‘caro’, para um contexto, se ele custa mais do que o padrão para itens desse tipo; mas para avaliar very expensive ‘muito caro’, é preciso se levar em conta apenas os itens caros do contexto considerado.

O modificador much ‘muito’, por sua vez, embora tenha um significado similar ao de very, modifica predicados com padrão mínimo. Sua contribuição semântica é de um aumento no grau comparado, mas em relação ao padrão mínimo da escala. No exemplo (26a), o predicado appreciated ‘apreciado’ apresenta um padrão mínimo porque passa no teste apresentado em (26b). Se X não é apreciado é uma sentença que acarreta que X não tem nenhum apreço (appreciation), então o predicado necessita de um mínimo da propriedade para ser aplicado.

(26) a. Fortunately, with much appreciated financial help, the workshop was organized and held successfully. [INGLÊS]

‘Felizmente, com a ajuda financeira muito apreciada, o workshop foi organizado e realizado com sucesso.’

b. X não é A ╞ X não tem nenhuma A-dade (substantivo formado de A)

O modificador well, por sua vez, só modifica particípios de escala totalmente fechada, como acquainted (‘familiarizado’) documented (‘documentado’) e understood (‘entendido’) (KENNEDY; MCNALLY, 2005KENNEDY, C.; MCNALLY, L. Scale Structure, Degree Modification, and the Semantics of Gradable Predicates. Language, Malibu, v.81, n.2, p. 345-381, 2005.).

Dado o panorama da tipologia das escalas e da distribuição dos modificadores de grau no inglês, a proposta de Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. é a de que o que distingue os adjetivos de outros predicados está no fato de que há certos tipos de escala que são tipicamente adjetivais. Segundo essa proposta, os adjetivos podem ter escalas abertas (como alto) ou fechadas (como aberto); mas as escalas abertas são restritas aos adjetivos, enquanto os outros tipos de escala podem ser encontrados em outros domínios além do adjetival. Dessa forma, uma vez que as classes de palavras estão associadas a diferentes tipos de escala, os modificadores de grau distribuídos na tabela tipológica de Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. seriam sensíveis aos tipos de escala.

A autora argumenta que, nos domínios nominal e verbal, é possível encontrar um ponto zero em contextos de negação, indicando que esses domínios podem ser associados a escalas parcialmente fechadas. (27a) e (27b) indicam algo como zero livro e zero leitura (a interpretação é similar à da construção com adjetivo de escala com padrão mínimo do mesmo tipo em 26a). (27c), por outro lado, não indica zero altura, já que essa é uma escala totalmente aberta, não apresentando grau mínimo como padrão como nos outros casos.

(27) a. Pedro não leu nenhum livro.

b. Pedro não leu.

c. Pedro não é alto.

Mesmo verbos graduáveis como apreciar, visto anteriormente, apresentam escala com padrão mínimo. O contraste abaixo mostra que (28a) apresenta uma contradição, uma vez que a negação do verbo representa um grau zero na escala, enquanto, com um adjetivo com escala que não seja de padrão mínimo, como alto, de escala totalmente aberta, não há contradição (28b).

(28) a. # Pedro não apreciou o filme, mas ele apreciou mais do que Paulo.

b. Pedro não é alto, mas ele é mais alto do que Paulo.

Um argumento adicional para o fato de escalas abertas serem exclusivas dos adjetivos está no fato de que, quando há mudança de classe, se um termo passa de substantivo para adjetivo, o predicado passa de escala com padrão mínimo para um predicado de escala aberta. As sentenças abaixo mostram o comportamento diferente de geduld ‘paciência’ e geduldig ‘paciente’ em holandês. Com o termo geduld ‘paciência’, a negação atinge o grau zero de paciência e a sentença (29a) é contraditória; enquanto que o adjetivo geduldig ‘paciente’, que não possui um padrão mínimo, mas apresenta escala totalmente aberta, não expressa contradição em (29b). A tradução para o português apresenta a mesma propriedade.

(29) [HOLANDÊS]

a. # Jan heeft geen geduld, maar hij heft wel iets meer gedult dan Piet.

# Jan não tem paciência, mas ele tem um pouco mais de paciência do que Piet.

b. Jan is niet geduldig, maar hij is wel iets geduldiger dan Piet.

Jan não é paciente, mas é um pouco mais paciente do que Piet.

A proposta de Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. mostra como as propriedades da estrutura escalar são úteis tanto para a análise da distribuição dos modificadores de grau quanto do estatuto dos adjetivos. A autora afirma que averiguar as propriedades dos predicados graduáveis e potencialmente graduáveis é uma empreitada promissora, mas que demanda mais pesquisa. As propriedades escalares de predicados nominais e verbais, por exemplo, são ainda as menos compreendidas. A próxima seção discute as propriedades escalares de substantivos e adjetivos em karitiana explorando suas propriedades escalares.

Karitiana e os Critérios Semânticos de Identificação de Adjetivos

Tradicionalmente, a tarefa de separar substantivos de adjetivos em uma língua interessou, sobretudo, aos trabalhos tipológicos, como por exemplo, os trabalhos de Wetzer (1996)WETZER, H. The typology of Adjectival Predication. Berlin: Mouton de Gruyter, 1996. e Dixon e Aikhenvald (2004)DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004.. Mais recentemente, porém, o tema vem recebendo a atenção da semântica formal, especialmente por conta da perspectiva do estudo da gradabilidade, que vem se tornando cada vez mais proeminente (MCNALLY; KENNEDY, 2008MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008.). Em inglês, por exemplo, o modificador very (‘muito’) serve de diagnóstico para separar certas classes de palavras, já que pode ser aplicado a adjetivos e a advérbios, mas não a verbos e a substantivos. A última seção apresentou justamente critérios semânticos de distinção dos adjetivos baseados nas suas propriedades escalares. O objetivo desta seção, é discutir esses critérios aplicados aos dados do karitiana, especialmente enfocando a diferença entre substantivos e adjetivos em sintagmas com um modificador de grau.

Em karitiana, o modificador de grau pita pode ser aplicado tanto no domínio nominal quanto adjetival.10 10 A denotação é baseada em Kennedy e McNally (2005). Seu emprego, porém, varia em cada um dos casos. Os primeiros estudos com esse modificador encontraram, aliás, uma primeira dificuldade associada à questão da tradução. O modificador aparecia ora como muito, ora como mesmo e até como verdadeiro. Uma investigação das estruturas escalares associadas aos predicados modificados, no entanto, auxiliam a desvendar qual é a semântica desse adjunto em karitiana. Neste ponto vale lembrar a metodologia adotada para a coleta de dados para esta pesquisa. A elicitação controlada e mediada por meio de contextos é justamente o que permite eliminar possíveis problemas associados à tradução (MATTHEWSON, 2004MATTHEWSON, L. On the Methodology of Semantic Fieldwork. International Journal of American Linguistics, Chicago, n.70, p. 369-415, 2004.). Todas as sentenças foram apresentadas aos consultores acompanhadas de um contexto detalhado que permitiu identificar, de forma mais explícita, o significado das estruturas em estudo (que, na proposta adotada por esse artigo, é traduzida por suas condições de verdade).

No domínio adjetival, pita pode ser aplicado a predicados de escalas abertas e fechadas. Quando aplicado a predicados de escala aberta, pita tem uma semântica parecida com a do very do inglês e do muito português: ele impulsiona o padrão de comparação para acima do normal. Nesses casos, sua tradução mais apropriada é de um intensificador como muito. Os exemplos abaixo ilustram esse caso.

(30) a. Õwã ty pita i-otam-Ø. [KARITIANA]

menino grande pita11 11 O modificador pode, ainda, ser aplicado a verbos, quando aparece com o sufixo de adverbializador {-t}. Neste artigo, vou enfocar o uso do modificador no domínio nominal. Para uma análise da modificação do domínio verbal por pitat, ver Sanchez-Mendes (2014a). PART-chegar-ABS

‘O menino muito grande chegou.’

b. Ombi pyti pita i-ywym-Ø.

cesto pesado pita PART-sumiu-ABS

‘O cesto muito pesado sumiu.’

Quando, porém, é aplicado a adjetivos de escalas (total ou parcialmente) fechadas, pita apresenta uma sensibilidade ao tipo de escala. Essa sensibilidade, no entanto, não é como no inglês, que determina a distribuição dos modificadores. Em inglês, much seleciona predicados participais de padrão mínimo enquanto well seleciona predicados associadas a escalas totalmente fechadas. O modificador pita, por sua vez, pode ser aplicado a adjetivos de qualquer tipo de escala, mas as propriedades escalares do adjetivo modificado determinam sua interpretação. Os exemplos em (31) ilustram essa sensibilidade.

Quando aplicado a um adjetivo como molhado que tem uma escala com padrão mínimo, sua interpretação é parecida com os casos em (31a), o padrão de comparação é impulsionado e pita pode ser traduzido por muito. A sua semântica é a mesma oferecida por Kennedy e McNally (2005)KENNEDY, C.; MCNALLY, L. Scale Structure, Degree Modification, and the Semantics of Gradable Predicates. Language, Malibu, v.81, n.2, p. 345-381, 2005. para much modificando particípios de padrão mínimo. No entanto, quando aplicado a um adjetivo que está associado a uma escala fechada na ponta superior como seco, pita significa que o grau máximo da propriedade foi atingida e é interpretado como completamente.

(31) a. Pykyp sembok pita i-ywym-Ø. [KARITIANA]

roupa molhada pita PART-sumiu-ABS

‘A roupa muito molhada sumiu.’

b. Pykyp pok pita i-ywym-Ø.

roupa seco pita PART-sumiu-ABS

‘A roupa completamente seca sumiu.’

O comportamento de pita com adjetivos de escalas totalmente fechadas confirma o comportamento visto em (31b). Nesses casos, como em ambos os predicados há um grau máximo disponível, sua interpretação é de completamente, conforme mostram os dados abaixo.

(32) a. Karamã akyndop pita i-pot-Ø. [KARITIANA]

porta aberto pita PART-quebrar-ABS

‘A porta completamente aberta quebrou.’

b. Ombi osyk pita i-ywym-Ø.

cesto cheio pita PART-sumiu-ABS

‘O cesto completamente cheio sumiu.’

Em suma, em karitiana, a interpretação de adjetivos modificados é dependente do tipo de escala modificada. Quando pita modifica escalas abertas com padrão de comparação relativo dado pelo contexto, sua interpretação é de um intensificador, como very do inglês e muito do português, que impulsionam o grau acima do padrão de comparação. Esse comportamento vai ao encontro da proposta de Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. de que as escalas abertas são escalas típicas dos adjetivos, já que justamente nesses ambientes pita se comporta como um intensificador prototípico. Quando, por outro lado, pita modifica adjetivos associados a escalas com padrão mínimo, aumenta o grau comparado em relação ao padrão mínimo da escala, como em sembok pita (‘muito molhado’). Já com adjetivos associados a escalas que possuem pontas fechadas, pita se liga ao grau máximo e tem uma interpretação de completamente.

Dadas essas características, Sanchez-Mendes (2014a) atribuiu a pita uma entrada lexical única, deixando para a composição com os adjetivos a tarefa de seleção da leitura apropriada.

(33) [[ pita ]] = λG<d,<e,t>> λxe. ∃d [ G (d)(x) & d ≥ ds]

A entrada lexical em (33) atribui a pita uma semântica de um modificador que se aplica a um argumento graduável G de tipo <d,<e,t>> (o adjetivo) e um argumento de indivíduos x e devolve uma sentença. Na sentença, o adjetivo G se aplica a d e a x e afirma que existe um grau d que é maior ou igual ao grau ds, que, segundo essa proposta representa o grau relevante em cada tipo de adjetivo. Se o adjetivo tem escala aberta, escala típica dos adjetivos segundo a proposta de Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155., o grau ds é representado pelo grau normal da escala, e a semântica do advérbio é de que o grau d é maior que o grau normal. Se o adjetivo for de escala com padrão mínimo, o grau ds é representado pelo padrão mínimo da escala, e o significado da modificação é que o grau d é maior do que esse grau ds mínimo. Já quando o item modificado é um adjetivo de escala fechada, ds é o grau máximo da escala e o significado do advérbio é de que o grau d é igual ao grau máximo ds. A proposta é baseada na proposta de Kennedy (2007)KENNEDY, C. Vagueness and Grammar: The Semantics of Relative and Absolute Gradable Adjectives. Linguistics and Philosophy, Dordrecht, v.30, n.1, p. 1-45, 2007. para o uso de adjetivos em sua forma positiva sem modificação.

Além de seu uso com adjetivos, pita pode ser usado também modificando substantivos. No entanto, sua leitura não é de quantidade, como no caso de much e many do inglês, traduzidos por muito/muitos nos contextos massivo e plural, respectivamente. A leitura de pita com substantivos é mais uma leitura de qualidade do que de quantidade.

(34) Taso pita i-otam-Ø. [KARITIANA]

homem pita PART-chegar-ABS

‘O homem verdadeiro chegou.’

Situação: um homem valoroso/caçador

Antes de averiguar em detalhes o significado de pita em sentenças como (34), é preciso considerar algumas propriedades da distribuição desse modificador. Segundo a tabela apresentada anteriormente, se um modificador se aplica a adjetivos (classe I) e a substantivos (classes IV e V), ele se aplica também a todas as categorias que estão entre eles (classe II – verbos graduáveis – e classe III – verbos eventivos). Esse é exatamente o caso de pita; ele se comporta como um modificador abrangente de tipo C, como o more ‘mais’ do inglês. Os exemplos abaixo mostram a ocorrência de pita com verbos graduáveis e eventivos, em que assume a forma pitat com o sufixo {-t} de adverbializador. Para detalhes sobre a interpretação do modificador nesses ambientes, ver Sanchez-Mendes (2014a).

(35) a. João i-pasadn-Ø pita-t Milena-ty. [KARITIANA]

João PART-gostar-ABS pita-ADV Milena-OBL

‘João gostou muito da Milena.’

b. João itat pita-t Porto Velho pip.

João PART-ir-ABS pita-ADV Porto Velho para

‘João foi para Porto Velho.’

Voltando ao uso de pita com substantivos, sua interpretação apresenta uma certa variação de acordo com o nome modificado, mas seu significado sempre fica em torno de uma noção de qualidade. Os exemplos abaixo com substantivos inanimados ilustram essa propriedade. Os consultores optaram por utilizar o termo verdadeiro(a)(s) na tradução, mas a explicação da situação esclarece os contextos de utilização das sentenças.

(36) a. João i-amy-t [him pita]. [KARITIANA]

João PART-comprar-ABS carne pita

‘João comprou uma carne verdadeira.’

Situação: uma carne boa/ de primeira qualidade

b. João i-amy-t [sypomp.pykyp pita].

João PART-comprar-ABS óculos pita

João comprou óculos verdadeiros.’

Situação: óculos originais / em uma loja do shopping (em oposição a óculos comprados no camelô)

Dado esse comportamento com substantivos, Sanchez-Mendes (2014a) analisou pita nesses contextos adotando a análise de Masià (2013)MASIÀ, M. What veracity does to imprecision: the case of Spanish verdadero. In: ESSLLI STUDENT SESSION, 2013, Düsseldorf, Proccedings [...], Düsseldorf, 2013. para os adjetivos de veracidade em espanhol em sentenças como (37).

(37) Paloma es uma verdadera artista. [ESPANHOL]

‘Paloma é uma verdadeira artista.’ (MASIÀ, 2013MASIÀ, M. What veracity does to imprecision: the case of Spanish verdadero. In: ESSLLI STUDENT SESSION, 2013, Düsseldorf, Proccedings [...], Düsseldorf, 2013., p.106)

Segundo essa proposta, verdadero ‘verdadeiro’ tem uma contribuição semântica de que o substantivo deve ser interpretado de modo preciso, eu seu sentido mais estrito. Para derivar essa interpretação, Masià (2013)MASIÀ, M. What veracity does to imprecision: the case of Spanish verdadero. In: ESSLLI STUDENT SESSION, 2013, Düsseldorf, Proccedings [...], Düsseldorf, 2013. adota a proposta de Morzycki (2011)MORZYCKI, M. Metalinguistic comparison in an alternative semantics for imprecision. Natural Language Semantics, Dordrecht, v.19, n.1, p.39-86, 2011. de que os substantivos podem estar associados a uma escala de precisão, recebendo uma variável de grau por meio de uma função que cria substantivos graduáveis a partir de substantivos comuns. Crucialmente, essa escala de precisão é fechada grau máximo. Assim, na análise de pita nesses ambientes, o modificador também se aplica ao grau máximo da escala – como nos casos em que era traduzido por completamente com adjetivos de grau máximo – indicando que o substantivo está sendo utilizado em seu sentido mais estrito. A noção de qualidade atribuída a esses contextos tem origem nessa interpretação de precisão.

O comportamento apresentado de pita com substantivos e adjetivos indica que essas classes de palavras são distintas na língua karitiana. Essa distinção está associada às propriedades escalares dos dois tipos de predicados, mas não exatamente à noção de que adjetivos têm escalas abertas enquanto substantivos têm escalas fechadas, como na proposta de Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155.. Os dados com pita revelam que sua sensibilidade às propriedades escalares não influencia sua distribuição, mas sua interpretação. O tipo de escala modificada é produzido de acordo com a classe de palavra. Se pita modifica um substantivo, uma escala de precisão fechada no grau máximo atribui a noção de qualidade para o sintagma. Já modificando adjetivos, o tipo de escala determina a interpretação do sintagma modificado por pita: se o adjetivo for de escala aberta, o modificador tem uma interpretação de intensificador (como muito); se o adjetivo for de padrão mínimo, o resultado da modificação será impulsionar o padrão de comparação acima do mínimo; e se o predicado modificado tiver um grau máximo, a interpretação do modificador é de completamente.

Dessa forma, a proposta defendida neste artigo é a de que o tipo de escala associado aos predicados modificados auxilia não só na interpretação do sintagma modificado por pita em karitiana, mas ajuda a determinar as propriedades distintivas dos adjetivos nessa língua: os adjetivos não apresentam escala de qualidade associada a precisão, mas apresentam escalas com propriedades lexicais abertas ou fechadas que disponibilizam um grau relevante para a aplicação de pita: o grau do padrão relativo, um grau de padrão mínimo ou o grau máximo da escala.

Uma proposta nesse sentido pode ser encontrada em Alpher (1991)ALPHER, B. Yir-Yoront Lexicon: Sketch and Dictionary of an Australian language. Berlin: Mouton de Gruyter, 1991. (Documentation, Trends in Linguistics, 6). para a língua yir-yoront (pama-nyungan, Austrália), uma língua que não possui um critério morfossintático decisivo que separe substantivos de adjetivos. Segundo o autor, a gradação é um critério que auxilia nessa tarefa. Tanto substantivos quanto adjetivos na língua podem aparecer com o modificador morr, no entanto, quando ocorre com substantivos, morr tem o sentido de ‘real/do presente’ como em (38a) ou como ‘real/não imaginário’ como em (38b). Já quando ocorre com adjetivos, morr é um intensificador como muito, como mostram os exemplos em (39). Esse modificador tem um comportamento muito semelhante ao de pita modificando substantivos e adjetivos.

(38) a. kay morr [YIR-YORONT]

‘o machado atual (do presente)’

b. warrchuwrr morr

‘uma mulher real (não uma do sonho)’

(39) a. karntl morr

‘muito grande’

b. wil morr

‘muito amargo’ (ALPHER, 1991ALPHER, B. Yir-Yoront Lexicon: Sketch and Dictionary of an Australian language. Berlin: Mouton de Gruyter, 1991. (Documentation, Trends in Linguistics, 6)., p.23)

A língua yir-yoront é usada por Dixon (2004)DIXON, R. M. W. Adjective classes in typological perspective. In: DIXON, R. M. W.; AIKHENVALD, A. Adjective Classes: A Crosslinguistic Typology. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 1-49. como exemplo de língua que apresenta características sutis para diferenciar as classes dos substantivos e dos adjetivos. Essas características sutis são justamente as propriedades escalares dos predicados em contextos de modificação, similares ao que foi discutido de forma geral com os critérios semânticos apresentados por Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. e apontado para o karitiana. Dessa forma, fica evidenciado de que forma os critérios semânticos podem ser úteis para a identificação de adjetivos em línguas que não possuem propriedades morfossintáticas próprias para essa classe de palavras.

Considerações Finais

O objetivo deste artigo foi discutir critérios definidores da classe dos adjetivos em karitiana. Tradicionalmente, os critérios utilizados para a determinação das classes de palavras são ou critérios semânticos muito vagos, como ‘palavras que nomeiam seres’ ou ‘palavras que nomeiam qualidades’; ou critérios sintáticos que, embora sejam relativamente seguros em um conjunto de línguas que compartilham um comportamento gramatical semelhante, podem variar muito quando se leva em conta línguas não indo-europeias. Do ponto de vista sintático, por exemplo, em karitiana, os adjetivos se confundem com os verbos intransitivos. Ambos aparecem flexionados em uma estrutura com um verbo de cópula. O artigo mostrou que não é trivial decidir qual seria a propriedade sintática distintiva dos adjetivos considerando esse conjunto de dados.

A segunda parte do texto se dedicou a discutir critérios semânticos com vistas a distinguir os adjetivos das outras classes de palavras. A noção de gradação, que vem sendo explorada em uma abordagem escalar da semântica formal, foi útil não apenas para a explicação da distribuição dos modificadores de grau, mas para a própria definição do que é um adjetivo. Os critérios semânticos de propriedades escalares foram utilizados em karitiana para a discussão do comportamento do modificador de grau pita com substantivos e adjetivos e para a classificação dos adjetivos como os predicados que possuem estruturas escalares abertas ou fechadas que, quando são modificadas por pita tem um comportamento previsto de acordo com o tipo da escala associada ao predicado modificado. Com escalas abertas, o sintagma modificado apresenta leitura de intensidade da propriedade denotada pelo adjetivo, enquanto, com escalas com padrão mínimo, o padrão é expandido, com escalas com grau máximo, o sintagma tem leitura de que esse grau da propriedade foi atingida. Esse estudo mostrou a utilidade da investigação dos sintagmas modificados para uma melhor compreensão dos adjetivos nessa língua.

Historicamente, a modificação tem duas propriedades que foram considerados como entraves para o seu estudo sistemático: (i) a composicionalidade particular; e (ii) a relação com informações semânticas e discursivas (MCNALLY; KENNEDY, 2008MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008.).

Do ponto de vista da composicionalidade, modificadores de grau apresentam um desafio, sobretudo porque podem ser aplicados a vários domínios: nominal, adjetival, verbal e até adverbial. A apresentação da tipologia apresentada em Doetjes (2008)DOETJES, J. Adjectives and degree modification. In: MCNALLY, L.; KENNEDY, C. (ed.). Adjectives and adverbs: syntax, semantics and discourse. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 123-155. discutiu essa propriedade. Em karitiana, a assunção de que substantivos podem obter uma variável de grau por meio de uma função que explicita sua escala de precisão permite que seja possível oferecer uma entrada lexical única para pita de um modificador que se aplica a predicados graduáveis de tipo <d,<e,t>>. Assim, a questão da composicionalidade pode ser superada.

Do ponto de vista da relação com informações semânticas e discursivas, estudos sobre modificadores devem estabelecer como deve ser feita a divisão de trabalho entre informação codificada no léxico e o que é fornecido por outras fontes. Quando pita modifica substantivos, sua tradução para verdadeiro em português não captura integralmente seu significado. No entanto, uma escala de precisão atribuída aos substantivos calcula a noção de qualidade associada a diferentes substantivos, dessa forma um homem, quando interpretado no grau máximo de precisão, terá qualidades diferentes das qualidades de uma carne interpretada da mesma forma. A noção de qualidade varia contextualmente para cada classe de indivíduos e a proposta escalar captura essa diferença.

Dessa forma, a modificação de forma geral, e em específico a modificação de grau, apresenta propriedades que podem ser úteis para o entendimento de propriedades gramaticais das diferentes classes de palavras das línguas naturais. A discussão presente neste artigo pode contribuir para um avanço no entendimento dessas propriedades bem como auxiliar a caracterizar propriedades nominais (de substantivos e adjetivos) que foram menosprezadas nos estudos tipológicos de identificação e classificação de adjetivos. O avanço na discussão de um tema como esse contribui para mostrar que as propriedades lógicas dos predicados podem influenciar características gramaticais das línguas naturais.

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  • 1
    Este artigo emprega todos os nomes de línguas com letras minúsculas contrariando a Convenção para Grafia dos Nomes Tribais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), segundo a qual dos nomes das línguas indígenas brasileiras devem ser grafadas com a primeira letra maiúscula. Nesse ponto, o texto está em concordância com o que assume Fiorin e Petter (2014)FIORIN, J. L.; PETTER, M. África no Brasil: a formação da língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2014. no que diz respeito ao fato de a convenção tratar mais de nomes de povos do que de línguas e com a afirmação de que faz mais sentido adotar uma grafia homogênea para todas as línguas.
  • 2
    Para uma discussão mais recente, ver Stoll, Abbott-Smith e Leiven (2009).
  • 3
    Para adjetivos que apresentam restrições relacionadas a essas duas funções, ver, por exemplo, Bolinger (1967)BOLINGER, D. Adjectives in English: Attribution and predication. Lingua, Amsterdam, n.18, p. 1–34, 1967. e Cinque (2010)CINQUE, G. The Syntax of Adjectives. Cambridge, MA: MIT Press, 2010..
  • 4
    As glosas seguem o padrão do Leipzig Glossing Rules, convenção publicada pelo Departamento de Linguística do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology. Outras glosas: ASS = modo assertivo.
  • 5
    As traduções apresentadas são as que mais se aproximam do exemplo elaborado e elicitado em karitiana, mesmo que apresente estranhamento em língua portuguesa.
  • 6
    As glosas não foram copiadas do autor porque, embora tenha ilustrado com esses dados, assumo, como se verá, outra análise para essas construções (STORTO, 2010STORTO, L. Copular Constructions in Karitiana: a case against case movement. In: SEMANTICS OF UNDER-REPRESENTED LANGUAGES IN THE AMERICAS, 5., 2010. Proceedings [...], Amherst: GLSA: The University of Massachusetts, 2010.).
  • 7
    Um parecerista anônimo notou o uso de uma relação de hiperonímia nesta sentença. É importante destacar que não é estranho que, nessa posição, que é predicativa, apareça um nome que tenha como propriedade denotar um conjunto. No entanto, também poderia ocorrer um conjunto menor nessa posição, como ‘mamão’ em sentenças como ‘isto é um mamão’. A relação de pertencimento de elemento a um conjunto ou inclusão de um conjunto a outro não são pertinentes para investigação da expressão morfossintática dessas estruturas.
  • 8
    Agradeço ao parecerista anônimo que me alertou para o fato de que a gradação como critério de identificação de adjetivos já estava presente em uma gramática do inglês de 1985.
  • 9
    Esta é a versão básica apresentada pela autora. Há ainda, uma segunda versão, mais detalhada, que foi oferecida para dar conta dos dados com très ‘muito’ do francês. As adições feitas, no entanto, não são relevantes para a discussão deste artigo.
  • 10
    A denotação é baseada em Kennedy e McNally (2005)KENNEDY, C.; MCNALLY, L. Scale Structure, Degree Modification, and the Semantics of Gradable Predicates. Language, Malibu, v.81, n.2, p. 345-381, 2005..
  • 11
    O modificador pode, ainda, ser aplicado a verbos, quando aparece com o sufixo de adverbializador {-t}. Neste artigo, vou enfocar o uso do modificador no domínio nominal. Para uma análise da modificação do domínio verbal por pitat, ver Sanchez-Mendes (2014a).
  • 12
    Por conta da dependência do predicado modificado para sua interpretação, a pita não está sendo glosado por nenhuma tradução específica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2019
  • Aceito
    04 Jun 2020
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