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[DAR UMA N-ADA SPREP]: UMA ANÁLISE CONSTRUCIONAL

RESUMO

Com base nos pressupostos dos Modelos Baseados no Uso (MBU), em especial, da Gramática de Construções Cognitiva, examinamos, neste artigo, o padrão construcional [DAR UMA N-ADA SPrep] e discutimos sua relação com a construção bitransitiva. A partir de dados diacrônicos e sincrônicos, coletados na base digital do Corpus do Português (DAVIES; FERREIRA, 2006), buscamos evidências para o processo de construcionalização do padrão denominal e sua expansão no português moderno/contemporâneo. Partimos da hipótese de que a construção denominal [DAR UMA N-ADA SPrep] licencia dois subesquemas distintos de acordo com as características do nome base e de que é sancionada por um esquema mais abstrato [DAR UMA N-ADA (SPrep)] que sanciona também a construção deverbal V-DA. As evidências diacrônicas e a análise das propriedades morfossintáticas, semânticas e discursivas de instâncias coletadas em sites e blogs forneceram argumentos favoráveis à postulação de dois subesquemas ligados a um padrão mais geral [DAR UMA N-ADA SPrep]: um subesquema com nominalizações resultantes de nomes de instrumentos e outro resultante de nomes de partes do corpo. Além disso, constatamos uma relação de herança parcial entre a construção denominal e a construção bitransitiva de transferência de posse, principalmente daquelas formadas por nominalizações que tomam como base nomes de instrumentos.

construção; [DAR UMA N-ADA SPrep]; expansão; mudança

ABSTRACT

Based on the assumptions of the Usage-Based Models, in particular, the Cognitive Construction Grammar, in this paper we examine the constructional pattern [dar uma N-ada PP] and discuss its relationship with the ditransitive construction. From the analysis of diachronic and synchronic data, collected from the database of Corpus do Português (DAVIES; FERREIRA, 2006), we sought evidence for the constructionalization process of the nominal pattern and its expansion into modern/contemporary Portuguese. We assume that the denominal construction [dar uma N-ada PP] licenses two different subschemas according to the characteristics of its nominal base, and that this construction is sanctioned by a more abstract schema, namely [dar uma X-(a)da (PP)], which also sanctions the verbal base construction V-da. The diachronic evidence as well as the analysis of the morphosyntactic, semantic and discursive properties of instances collected on websites and blogs provided arguments in favor of the postulation of two subschemas linked to a more general pattern [dar uma N-ada PP]: one subschema with nominalizations resulting from names of instruments and another subschema resulting from names of body parts. In addition, we found a partial inheritance relationship between the denominal construction and the transfer ditransitive construction, mainly those formed by nominalizations that are based on names of instruments.

construction; [dar uma N-ada PP]; expansion; change

Introdução

O verbo DAR é recrutado para diferentes construções, esquemáticas, semiesquemáticas e substantivas, com vários graus de composicionalidade, como já mostraram diversos estudos (SALOMÃO, 1990SALOMÃO, M. M. M. Polysemy, aspect and modality in brasilian portuguese: the case for a cognitive explanation of grammar. 1990. PhD Thesis (Doctor in Linguistics) – University of California, Berkeley, 1990., 2008SALOMÃO, M. M. M. Construções modais com dar no português do Brasil: metáfora, uso e gramática. Revista Estudos. Linguísticos, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 83-115, 2008.; NEVES, 1999NEVES, M. H. de M. A delimitação das unidades lexicais: o caso das construções com verbos-suporte. Revista Palavra, São Paulo, v.1, n. 5, p. 98-112, 1999., 2006NEVES, M. H. de M. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.; BASÍLIO, 1999, 2001; SCHER, 2004SCHER, A. P. As construções com o verbo leve dar e nominalizações em –ada no português do Brasil. 2004. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.; ESTEVES, 2008ESTEVES, G. A. T. Construções com DAR + Sintagma Nominal: a gramaticalização desse verbo e a alternância entre perífrases verbo-nominais e predicadores simples. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008., 2012ESTEVES, G. A. T. A lexicalização de expressões Dar/ Fazer+SN: fiz sacrifício, dei conta. 2012. 217f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: https://docplayer.com.br/41663841-Universidade-federal-do-rio-de-janeiro.html. Acesso em: 9 mar. 2022.
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; VIEIRA, 2010VIEIRA, M. dos S. M. Perífrases verbo nominais. Estudos Linguísticos, Lisboa, n. 5, p. 409-430, 2010., 2014VIEIRA, M. dos S. M. Idiomaticidade em construções com verbo suporte do português. Revista Soletras, Rio de Janeiro, n. 28, p. 99-125, 2014.; DAVEL, 2014DAVEL, A. P. C. Integração sintático-semântica do SN nas estruturas com o verbo-suporte DAR UMA X-ADA. In: ROCHA, L.H.P da; DIAS, F. (org.). Questões Linguísticas: abordagens funcionalistas. Vitória: Ed. da UFES, 2014. p. 37-53., 2019DAVEL, A. P. C. As construções denominal e deverbal [Dar uma X-(a)da (SPrep) numa perspectiva dos Modelos Baseados no Uso. 2019. 179f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: http://www.ppglinguistica.letras.ufrj.br/images/Linguistica/3-Doutorado/teses/2019/TESE_Alzira.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.
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, entre muitos outros). É particularmente produtivo na combinação com nominalizações resultantes seja de bases denominais seja de bases deverbais, como ilustrado em (1) e (2).

(1) Retirada de lá, por meio de adoção, foi castrada, medicada e cuidada com muito amor e carinho. Pior de tudo, suspeitamos que era usada para ter filhotes e quando descobriram a doença dela tentaram enforcá-la e ainda deram uma martelada em sua cabeça [...] (Séc. XXI, Corpus do Português: Pitbull: vítima ou vilão?1 1 Disponível em: http://luisamell.com.br/pitbull. Acesso em: 9 mar. 2022. ).

(2) Oi Josy! Bem vinda de volta às terras geladas flor! E sim, ficou bem gostoso, só vale a pena dar uma variada no tempo de forno, acho que os fornos elétricos não geram o mesmo tipo de calor de um forno a gás. (Séc. XXI, Corpus do Português: Vida dura, corpo mole e pudim | Uma Caipira na Suécia2 2 Disponível em: http://freitasmh.com/2013/02/04/vida-dura-corpo-mole-e-pudim/. Acesso em: 9 mar. 2022. ).

Neste artigo, focalizamos a construção denominal, correspondente ao esquema [DAR UMA N-ADA SPrep], em que o núcleo do SN é preenchido por uma nominalização formada a partir de nomes que se referem a instrumentos (exemplo 3) ou a partes do corpo (exemplo 4).

(3) Assustado, o bandido tenta ajudar o garoto. Jaime dá uma paulada nas costas de Dedinho, que cai desmaiado. Terça, 23 de outubro Os garotos saem de seus esconderijos e 63 escondem Dedinho atrás do sofá. Depois voltam para as mesmas posições para esperar Lobinho aparecer (Séc. XXI, Corpus do Português: Semana “Carrossel”: Maria Joaquina pensa em dizer que foi seu pai3 3 Disponível em: http://resumo-das-novelas.com/carrossel/novela-carrossel-19-6-dedo-duro-aqui-nao/. Acesso em: 9 mar. 2022. ).

(4) [...] Pânico na Band: 2-Demi Lovato - Heart Attack Alguém duvida que essa gateenha tem um dom pra criar músicas totalmente perfeitas? Sério, olha o toque, a melodia, tanta explosão, que você só falta dar uma cabeçada na parede, enquanto canta... bom isso se você é como a Candy aqui. (Séc. XXI, Corpus do Português - Top 5 clipes com músicas incríveis | TRECHY TEEN // OFFICIAL4 4 Disponível em: http://www.flogao.com.br/ponchoecandy/blog/1544241/. Acesso em: 9 mar. 2022. ).

Nos exemplos (3) e (4), o esquema [DAR UMA N-ADA SPrep] relaciona dois participantes, um SN sujeito com papel temático de agente e um SPrep que codifica o elemento afetado. A notar, ainda, que a construção evoca uma cena de violência, de agressão física. Em (3), a ação/agressão é direcionada para um referente animado. Em (4), o golpe/agressão tem como alvo um recipiente inanimado e a ação é, inclusive, reflexiva, voltando-se para o próprio sujeito.

A depender das características do nome base, a construção denominal se investe, entretanto, de um significado mais abstrato, que pode ser entendido como uma agressão psicológica, como é o caso de DAR UMA CARTEIRADA, em (5).

(5) Sei que a Reese Whiterspoon não é o anjo que aparenta nas telas e que na vida real foi presa por tentar dar uma carteirada num policial (aquela história do “«sabe com que você está falando?”), mas gosto do jeito dela e acho que ela tem cara de gente boa. Também gosto da maneira que a Reese Whiterspoon se veste no dia a dia e fui buscar looks fáceis e muito inspirREadores para você copiar já! (Séc. XXI, Corpus do Português: Copie o look -Reese Whiterspoon – Gosto Disto!5 5 Disponível em: http://www.nomeucamarim.com/2013/09/look-preto-esfumado-com-dourado.html/. Acesso em: 9 mar. 2022. ).

Em (5), a sequência DAR UMA CARTEIRADA, dificilmente pode ser entendida em termos composicionais, pois o significado do todo não resulta da soma do significado das partes. [DAR UMA CARTEIRADA] não remete a uma agressão física, mas a uma agressão psicológica, ou seja, à tentativa de Reese Whiterspoon de impor sua pressuposta autoridade como uma atriz de sucesso, sobre um alvo animado, no caso, o policial.

Tomando por base os pressupostos dos Modelos Baseados no Uso (MBU) e da Gramática de construções Cognitiva (GCC), de acordo com propostas defendidas, dentre muitos outros, por Croft (2001)CROFT, W. Radical construction grammar: syntactic theory in typological perspective. Oxford: Oxford University Press, 2001., Croft e Cruse (2004)CROFT, W.; CRUSE, A. Cognitive linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 2004., Goldberg (1995GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995., 2006GOLDBERG, A. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006.), Langacker (1987LANGACKER, R. W. Foundations of cognitive grammar. Stanford: Stanford University Press, 1987. 2 v., 1991LANGACKER, R. Foundations of cognitive grammar. Stanford: Standford University Press, 1991. v.2: Descriptive Application.), Bybee (2006BYBEE, J. From usage to grammar: The mind’s response to repetition. Language, Washington, v. 82, n. 4, p. 711-733, 2006., 2010BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.), Traugott e Trousdale (2013)TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructionalization and construction changes. Oxford: Oxford University Press, 2013., Rosário e Oliveira (2016)ROSÁRIO, I. da C. do; OLIVEIRA, M. R. de. Functionalism and construction grammar approach. Alfa, São Paulo, v. 60, n.2, p. 233-261, 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1981-5794-1608-1. Acesso em: 9 mar. 2022.
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, o objetivo central deste artigo é descrever as propriedades morfossintáticas, semânticas e discursivas do padrão construcional denominal [DAR UMA N-ADA SPREP] e discutir sua relação de herança com a construção de transferência de posse, um uso mais prototípico do verbo DAR. Dessa forma, buscamos trazer evidências para a hipótese de que a construção denominal licencia dois subesquemas distintos de acordo com as características do nome base e que é sancionada por um esquema mais abstrato [DAR UMA X-(A)DA (SPrep)], que licencia também a construção deverbal V-ADA (dar uma olhada, dar uma pesquisada). Além disso, buscamos identificar pistas do processo de construcionalização do padrão denominal, a partir da consideração de algumas evidências diacrônicas.

Para verificar a hipótese central deste estudo, são analisadas ocorrências da construção [DAR UMA N-ADA SPrep] na modalidade escrita do português, nos séculos XX e XXI, atestadas em blogs e sites do Corpus do Português (DAVIES; FERREIRA, 2006DAVIES M.; FERREIRA, M. J. O corpus do português. 2006. Disponível em: http://www.corpusdoportugues.org/. Acesso em: 9 mar. 2022.
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), suportes associados a registros linguísticos mais informais. Os dados coletados são analisados de acordo com diversas propriedades semânticas e formais, com a finalidade de identificar as características mais recorrentes dos diferentes componentes da construção [DAR UMA N-ADA SPrep]. Quanto à forma verbal DAR, consideramos as propriedades modo-temporais e número-pessoais; quanto ao Sn, focalizamos a realização ou não do determinante, a pluralização/quantificação e a presença de modificadores. Quanto ao SPrep, analisamos a presença ou ausência da preposição e o traço de animacidade do sintagma nominal encaixado. Além disso, analisamos o traço de animacidade e a agentividade do sujeito.

Este artigo está organizado da seguinte forma: na segunda seção, são retomados alguns fundamentos centrais dos Modelos Baseados no Uso e da Gramática de Construções e da Gramática de Construções Cognitiva, em especial o de que os padrões mais gerais da gramática são abstraídos a partir de instâncias do uso e o de que as construções são relacionadas entre si por semelhança formais e/ou semânticas. Na terceira seção, procuramos traçar o percurso da construção [DAR UMA N-ADA SPrep], com base em dados atestados entre os séculos XVI ao XXI, destacando, principalmente, a expansão do slot N. Na quarta seção, discutimos a relação entre o padrão [DAR UMA N-ADA SPrep] e a Construção Bitransitiva. Seguem-se as considerações finais.

Modelos baseados no uso e gramática de construções

Conforme apontado na introdução, este trabalho adota a perspectiva dos Modelos Baseados no Uso (MBU), em especial, da Gramática de Construções Cognitiva (GCC). Dessa forma, assumimos uma concepção de gramática como uma rede estruturada de construções (pareamentos forma-significado) gramaticais e lexicais (LANGACKER, 2000LANGACKER, R. A Dynamic Usage Based Model. In: BARLOW, M.; KEMMER, S. Usage-Based Models of Language. Chicago: University of Chicago Press, 2000. p. 1-63.; GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995., 2006GOLDBERG, A. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006.) organizada a partir das inúmeras experiências comunicativas dos falantes. De acordo com os Modelos Baseados no Uso, a gramática se estrutura por regularidades, irregularidades e gradiência em todos os níveis. Tal entendimento leva à rejeição da tradicional distinção entre léxico e sintaxe, pois, como destacam Kemmer e Barlow (2000)KEMMER, S.; BARLOW, M. Introduction: a usage-based conception of language. In: BARLOW, M.; KEMMER, S. Usage Based Models of Language. Stanford: CSLI Publications, 2000. p. 7-28., uma delimitação das fronteiras entre nível lexical e nível gramatical não permite compreender o dinamismo, inerente às línguas humanas, que conduz à fluidez das categorias linguísticas, à variação e à mudança. Nessa perspectiva, a gramática do falante é flexível, emergente, pois se adapta constantemente às diferentes situações comunicativas (HOPPER, 1987HOPPER, P. Emergent Grammar. In: ANNUAL MEETING OF THE BERKELEY LINGUISTICS SOCIETY, 13., Berkeley. Proceedings [...], Berkeley, 1987. p. 139-157. Disponível em: http://linguistics.berkeley.edu/bls/previous_proceedings/bls13.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.
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; BYBEE, 2010BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.).

No enquadre teórico dos Modelos Baseados no Uso, as características da linguagem e a forma como padrões mais gerais são abstraídos pelos falantes são o resultado de processos cognitivos mais gerais, tais como categorização, chunking, memória enriquecida, analogia e associação transmodal, que interagem entre si (BYBEE, 2010BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.). Esses mecanismos podem explicar tanto os padrões linguísticos regulares como os irregulares, que constituem o conhecimento linguístico do falante. O sistema linguístico é essencialmente dinâmico, pois se constitui a partir da adaptação dessas habilidades cognitivas a situações comunicativas específicas. Nessa perspectiva, tanto a frequência token como a frequência type das construções possuem um papel crucial, não apenas na produção como também no processamento linguístico (DIESSEL; HILPERT, 2016DIESSEL, H.; HILPERT, M. Frequency Effects in Grammar. Linguistics, Oxford, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1093/acrefore/9780199384655.013.120. Acesso em: 9 mar. 2022.
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). A frequência reforça representações linguísticas mais abstratas, resultando em rotinas cognitivas que se tornam mais facilmente acessíveis (BYBEE, 2003BYBEE, J. Mechanisms of change in grammaticization: the role of frequency. In: JOSEPH, B.; JANDA, R. (org.). A handbook of historical linguistics. Malden, MA: Blackweel Publishing, 2003. p.602-623., 2006BYBEE, J. From usage to grammar: The mind’s response to repetition. Language, Washington, v. 82, n. 4, p. 711-733, 2006., 2010BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.).

Dentro da perspectiva brevemente delineada até este ponto, o conceito de construção, entendida como um pareamento forma-significado/função é um construto central, pois permite dar conta de forma mais integrada da gradiência léxico-gramática e dos diferentes usos de uma forma linguística, como é o caso do verbo DAR (GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995., 2006GOLDBERG, A. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006.). Na visão de Traugott e Trousdale (2013)TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructionalization and construction changes. Oxford: Oxford University Press, 2013., as construções são gradientes em diferentes dimensões: tamanho, especificidade fonológica e conceptualização, como detalhado no quadro 1, retomado dos autores e adaptado para o português.

Quadro 1
– Dimensões distintivas das construções

O maior ou menor grau de especificidade, ou seja, esquematicidade de uma construção constitui um ponto central da abordagem construcionista da gramática. Enquanto certas construções são completamente esquemáticas, como é o caso de SVO, muitas delas possuem posições previamente especificadas e posições abertas (slots) que podem ser preenchidas por diferentes formas, como é o caso da construção denominal focalizada neste estudo. Em [DAR UMA N-ADA SPrep] embora o verbo DAR e o artigo UMA constituam posições especificadas, os slots N e SPrep admitem diferentes formas de preenchimento, como veremos na seção seguinte. Da perspectiva do parâmetro tamanho, a construção denominal pode ser considerada complexa, envolvendo diferentes constituintes e, do ponto de vista da conceptualização, intermediária, pois ela se situa entre os pólos do conteúdo lexical e gramatical, já que se investe de valores aspectuais.

Construções se organizam em um inventário estruturado, ou seja, em uma rede hierárquica, de forma que cada construção representa um nó ligado a um nível mais alto de abstração (GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995., 2006GOLDBERG, A. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006.). Numa perspectiva bottom-up Traugott e Trousdale (2013)TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructionalization and construction changes. Oxford: Oxford University Press, 2013. propõem uma organização de três níveis de abstração: as instâncias do uso (construtos) são licenciadas por padrões semi-esquemáticos (microconstruções) que, por sua vez, se ligam a subesquemas sancionados por um esquema de nível mais alto, como mostra a Fig.1, retomada dos autores6 6 É necessário destacar que Traugott (2018, p. 19) retifica essa proposta, admitindo que “there may be several levels of schemas, depending on the degree of abstraction proposed by the linguist”. .

Figura 1
– Relação taxonômica entre construções

De acordo com essa perspectiva, as especificações sintáticas e semânticas de uma construção são, pelo menos parcialmente, herdadas de uma construção de nível mais alto (GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995., 2006GOLDBERG, A. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006.; CROFT, 2001CROFT, W. Radical construction grammar: syntactic theory in typological perspective. Oxford: Oxford University Press, 2001.; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructionalization and construction changes. Oxford: Oxford University Press, 2013.). A noção de herança, associada ao princípio de motivação, proposto por Haiman (1983)HAIMAN, J. Iconic and Economic Motivation. Language, Washington, v. 59, n.4, p. 781-819, 1983. Disponível em: www.jstor.org/stable/413373. Acesso em: 9 mar. 2022.
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, é relevante, na medida em que, segundo Lakoff (1987)LAKOFF, G. Woman, fire and dangerous things. Chicago: University of Chicago Press, 1987., o surgimento de novas construções na língua não é aleatório, mas motivado por arranjos estruturais pré-existentes. É com base nessa motivação que se pode depreender a relação entre diferentes construções e explicar as regularidades na gramática de uma língua (LAKOFF, 1987LAKOFF, G. Woman, fire and dangerous things. Chicago: University of Chicago Press, 1987.; GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995., 2006GOLDBERG, A. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006.; CROFT, 2001CROFT, W. Radical construction grammar: syntactic theory in typological perspective. Oxford: Oxford University Press, 2001.).

Goldberg (1995GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995., 2006GOLDBERG, A. Constructions at work: the nature of generalization in language. Oxford: Oxford University Press, 2006.) defende que os links de herança são simétricos de forma que, se a construção A motiva a construção B, B herda propriedades de A. A autora destaca, no entanto, que o compartilhamento de informações/propriedades requer que elas não sejam conflitantes. Admite, ainda, que a relação entre construções pode ser parcialmente motivada, o que, nos termos de Langacker (1987)LANGACKER, R. W. Foundations of cognitive grammar. Stanford: Stanford University Press, 1987. 2 v., significa que, embora uma construção B herde algumas propriedades da construção A, ela pode desenvolver certas características específicas.

Além da relação taxonômica, as construções linguísticas se relacionam através de diversos outros elos (links): (i) elos polissêmicos, (ii) elos de extensão metafórica, (iii) elos de subparte e (iv) elos de instanciação. Os elos polissêmicos capturam as relações entre um sentido específico de uma construção e as extensões de sentido que dela irradiam por extensão metafórica, ou seja, através da projeção de traços semânticos de domínios mais concretos para domínios mais abstratos. Esse é o caso da relação entre a construção de movimento causado e a construção resultativa (GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995., p. 93) que, segundo a autora, resulta de uma metáfora mais geral em que “mudança de estado” é concebida como “mudança de localização”, como no esquema abaixo.

Essa relação pode explicar diversos usos, mais ou menos afastados do frame de transferência de posse. Prototipicamente, a construção de transferência de posse requer um Agente animado que transfere um objeto a um Recipiente, geralmente, animado, isto é, que seja apropriado para receber esse objeto. No entanto, são inúmeros os casos em que Agente e Recipiente não são prototípicos, dado que o SN sujeito pode codificar referentes não humanos e não intencionais e o recipiente pode não apresentar as condições necessárias para receber a entidade transferida. Dessa forma, as propriedades semânticas dos argumentos ligados ao verbo têm uma relação direta com as extensões metafóricas de uma construção. Para que haja realmente transferência, é necessário um ajuste entre a semântica da construção e os traços semânticos do verbo. Muitas das instâncias da construção denominal com N-ADA podem ser interpretadas como extensões metafóricas da construção de transferência de posse, como é o caso do exemplo (6).

(6) Eu detesto cobra, mas mesmo assim me aproximei um pouco para ver esses malucos que ficam tocando flauta em frente a quatro ou cinco najas.”Não é possível que de vez em quando um bicho desses não acorde do feitiço pra dar uma dentada nesses caras”», pensei, calculando a melhor medida entre chegar um pouco mais perto e conservar uma distância segura. Nisso, senti alguém me cutucar por trás (Séc. XXI, Corpus do Português: Chéri à Paris: Pra lá de Marrakech - Outras Palavras).

Em (6), tem-se um sujeito animado não humano (“um bicho desses”), que se pode pressupor, desprovido de intencionalidade, e um recipiente humano apto a receber objetos concretos ou ações. No entanto, a cena codificada não remete a uma transferência de objetos, mas sim a um evento de agressão. Apesar de a estrutura sintática da construção, aparentemente, se conformar ao padrão estrutural da construção bitransitiva, ela se distancia do “construal” prototípico de transferência de posse, pois não é possível atribuir ao SN com a nominalização dentada o papel de tema que, normalmente, lhe é associado. Trata-se de um caso em que eventos causais podem ser interpretados como transferência, na medida em que movimento é concebido como mudança de estado (LAKOFF; JOHNSON, 1980LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.; GOLDBERG, 1995GOLDBERG, A. Constructions: a construction grammar approach to argument structure. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.).

Pelo link de subparte, uma construção independente está relacionada a uma outra, a construção denominada ‘mãe’ que teria como subparte, a ‘filha’, como em Ana quebrou o copo e O copo quebrou. Enquanto a primeira é transitiva, a segunda é ergativa. O elo de subparte se estabelece em consequência da supressão do SN Agente (Ana) da transitiva na construção Ergativa. Através do link de instanciação, por sua vez, uma construção constitui uma versão mais específica da outra. Diz respeito a casos em que itens lexicais específicos são restritos a certas construções, em contextos específicos7 7 Um exemplo discutido por Goldberg é o do verbo to drive que só ocorre em construções resultativas quando o papel de alvo-resultado se relaciona à “loucura‟ (He drove Pat mad/bonkers/crazy). Um exemplo semelhante seria o da nominalização TOPADA que se consolidou em microconstruções como Maria deu uma topada na cadeira/ na pedra etc, com o sentido de ‘bater com o pé em algo’. .

Na proposta de Diessel (2015)DIESSEL, H. Usage-based construction grammar. In: DABROWSKA, E. DIVJAK, D.(ed.). Handbook of Cognitive Linguistics. Berlin: Mouton de Gruyter, 2015. p.295-321. as relações entre as construções de uma rede não se restringem às relações verticais. O autor destaca a importância dos elos horizontais, ou seja, aqueles que capturam as relações associativas entre construções que estão no mesmo nível de abstração. Os elos horizontais se assemelham às ligações entre expressões lexicais no léxico mental, em que forma e significado de estruturas similares se associam entre si, no tocante às suas propriedades fonéticas e/ou semânticas. O autor destaca, ainda, a necessidade de considerar os elos sintáticos que dão conta das relações entre construções e categorias sintáticas e das relações entre partes de construções. É a recorrência de partes das construções que permite a emergência das relações gramaticais, bem como das classes de palavras. Por fim, as construções estabelecem entre si elos lexicais, ou seja, que envolvem a associação entre construções (esquemáticas) e expressões lexicais.

Na seção seguinte, apresentamos os resultados da análise dos dados de [DAR UMA N-ADA SPrep] em blogs e sites da internet, ressaltando suas propriedades mais relevantes.

Expansão e propriedades da construção [DAR UMA N-ADA SPrep]

Como destacado na introdução, focalizamos a construção [DAR UMA N-ADA SPrep] no português contemporâneo (séculos XX e XXI), a partir de um levantamento de dados no Corpus do Português (DAVIES; FERREIRA, 2006DAVIES M.; FERREIRA, M. J. O corpus do português. 2006. Disponível em: http://www.corpusdoportugues.org/. Acesso em: 9 mar. 2022.
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). Uma pesquisa inicial em toda a base de dados do português do Brasil permitiu identificar alta recorrência da construção em foco em textos veiculados em sites e blogs e sua ocorrência mais rarefeita em outros tipos de texto8 8 De forma semelhante, um levantamento nas bases de dados sociolinguísticos Censo 80, relativas ao português falado no Rio de Janeiro, e PortVix, relativa à variedade capixaba, resultou em poucas ocorrências da construção [DAR UMA N-ADA SPREP). . Dessa forma, nosso levantamento de dados se restringiu aos sites e blogs. Procedemos, então, a uma busca aleatória, ou seja, independente das características específicas de cada texto ou de características dos seus autores. No total foram atestados 309 tokens de [DAR UMA N-ADA SPrep], que correspondem ao mesmo número de textos, visto que cada dado ocorreu em um texto distinto.

Um outro objetivo deste estudo é o de identificar indícios da emergência do esquema denominal [DAR UMA N-ADA SPrep]. Para tanto, buscamos identificar registros dessa construção em períodos compreendidos até o século XIX, através de uma busca em toda a base do Corpus do Português. Esse levantamento resultou em apenas 27 ocorrências de [DAR UMA N-ADA SPrep], exclusivamente em obras literárias e teatrais escritas entre os séculos XVI ao XIX. Apesar da baixa frequência token, essas ocorrências fornecem algumas pistas interessantes acerca dos possíveis contextos de emergência e de expansão da construção denominal.

As primeiras instâncias de [DAR UMA N-ADA SPrep], como no exemplo (7) foram atestadas a partir do século XVI.

(7) Aqui deram uma espingardada a Francisco de Abreu, de que o derrubaram; o irmão, vendo-o cair, voltou pera o recolher, dando com grande fúria nos inimigos, fazendo-os deter com morte de alguns; e querendo alevantar o irmão, lhe deram a ele outra espingardada, de que caiu morto sobre ele, fazendo ambos neste dia cousas dignas de grandes louvores (Séc. XVI, Corpus do Português: Quinta década (livros 8-10), vol. 1, Décadas, de Diogo do Couto).

Além da sua baixa frequência token, o esquema [DAR UMA N-ADA SPrep] é atestado com um número reduzido de nominalizações distintas (um total de 8), relacionadas na tabela 1.

Tabela 1
– Frequência da construção denominal entre os séculos XVI e XIX

Os resultados da tabela 1 fornecem indicações de que, até o século XVIII, é baixa a frequência da construção denominal, que ganha um impulso mais significativo apenas no século XIX, saltando de 3 para 18 tokens e duplica o número de nominalizações distintas (6) no slot N. Outro aspecto digno de nota é que, nas suas ocorrências iniciais, a construção denominal parece se restringir a nominalizações resultantes de nomes de objetos concretos que podem ser usados como instrumentos de ataque (espingarda, cutilo). Embora o dicionário Caldas Aulete online defina espingardada como “um tiro disparado pela espingarda”, de fato, a interpretação que parece se impor em DAR uma espingardada é a de realização de um golpe com uma espingarda.

Como destacado por Davel (2019)DAVEL, A. P. C. As construções denominal e deverbal [Dar uma X-(a)da (SPrep) numa perspectiva dos Modelos Baseados no Uso. 2019. 179f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: http://www.ppglinguistica.letras.ufrj.br/images/Linguistica/3-Doutorado/teses/2019/TESE_Alzira.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.
http://www.ppglinguistica.letras.ufrj.br...
, a combinação de -ADA com o verbo DAR, se investe de um valor eventivo de agressão a Y. No entanto, já no século XVII, é atestado o item bofetada, sinalizando que o esquema denominal já podia recrutar bases com outras propriedades semânticas. Essa possibilidade se torna mais evidente no século XIX, com as nominalizações palmada, cotovelada e cabeçada, cujas bases se referem a partes do corpo.

Embora a escassez dos dados imponha cautela, há indícios de uma expansão da construção denominal para nomes que indicam partes do corpo, o que suscita uma reflexão, já que essas duas possibilidades apresentam particularidades. Se, por um lado, itens que se referem a objetos concretos de ataque, portanto de posse alienável, partilham diversas similaridades semânticas, a relação entre essas com bases que se referem a partes do corpo, de posse inalienável, é menos transparente. Os dois tipos de nominalização se distinguem também na forma como se realiza o evento de agressão. Uma agressão com objetos externos é mais comumente agentiva, ou seja, praticada com a intenção de atingir outra pessoa, como é o caso em (8):

(8) [...] e que o seu Capitão andava diante pelejando como um leão, tendo já um monte de Abexins mortos diante dele, e enrestando a lança, quiz sua boaventura que o tomou pelos peitos, dando com ele no chão muito mal ferido; e passando com aquela fúria do encontro, porque lhe não parou o cavalo bem, se foi meter no meio dos Turcos, onde lhe deram uma cutilada por uma perna, de que depois ficou aleijado. (Séc. XVI, Corpus do Português: Crónica do imperador Clarimundo, de João de Barros).

A construção denominal resultante de parte do corpo, por outro lado, se investe de certa ambiguidade, na medida em que pode ser agentiva, visando um elemento afetado, ou reflexiva (X atinge a si mesmo) em que o resultado é mais frequentemente não intencional, como ilustrado em (9).

(9) Eu dou de cara com a porta da varanda que estava fechada e eu não tinha visto. Dei uma cabeçada tão patética e espetacular que achei que o vidro fosse quebrar. Que, se alguém tivesse filmando, seria um vídeo digno de estar nas videocassetadas. Que eu quis rir, mas o negócio foi tão forte que eu... chorei. Foi incontrolável, as lágrimas escorriam pelo meu rosto sem parar. (Séc. XXI, Corpus do Português: Do dia em que eu me senti o meu filho | Carol e suas baby-bobeiras).

Diferentemente de (8), em que a intenção de ferir integra o próprio contexto no exemplo (9), a ação de bater a cabeça no vidro é acidental, involuntária e afeta o próprio sujeito. Embora as evidências não possam ser tomadas como decisivas, a expansão da construção [DAR UMA N-ADA SPREP) parece contrariar o que mais frequentemente se espera no caso de mudanças semânticas, ou seja, uma evolução no sentido de pessoa > objeto (HEINE; ULRIKE; HÜNNEMEYER, 1991). É possível, portanto, que um processo de analogização, na forma como entendido por Traugott e Trousdale (2013)TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructionalization and construction changes. Oxford: Oxford University Press, 2013. tenha acionado o recrutamento de nomes relativos a partes do corpo para o slot N da construção.

Vale destacar que o fato de já serem atestadas entre os séculos XVI a XIX não permite afirmar com segurança que essas formações já estivessem construcionalizadas, isto é, convencionalizadas, por serem bastante escassas. Numa perspectiva de construcionalização (TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructionalization and construction changes. Oxford: Oxford University Press, 2013.), poderiam constituir uma inovação. As evidências empíricas mais seguras do aumento de esquematicidade do padrão construcional [DAR UMA N-ADA SPrep] são fornecidas pelos dados do português contemporâneo. Observa-se um aumento exponencial da sua frequência token nos blogs e sites do Corpus do Português, num total de 309 ocorrências, como destacado no início desta seção. Esse importante aumento no número de tokens é acompanhado de significativa expansão do esquema denominal, condição sine qua non para a abstração de um esquema mais geral, como proposto por Bybee (2010)BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.. São atestadas 36 nominalizações distintas, muitas delas mais afastadas do frame de agressão, como é o caso de golada (exemplo 10) e ovada (exemplo 11).

(10) Audrey meu muito obrigado, independente do resultado da empreitada. Um comentário: Mila disse... Eita, eu não bebo não, mas, com o calor que está fazendo aqui, deu uma vontade danada de dar uma golada nessa caipirinha... Ah se deu!!! Sem contar que o trocadilho foi deveras “«espirituoso”» (Séc. XXI, Corpus do Português: Spíndola Blog - Brasil / Recife: Fazendo do limão).

(11) Sempre tem pautas femininas e de informação, mas esse vai ser um programa de diversão e de entretenimento. O Danilo Gentili é seu convidado especial e participa da Rede da Fama. Ele te deu uma ovada na sua ida à atração dele. Vai ter revanche? Sim. (Séc. XXI, Corpus do Português: #NOTÍCIA: “Quero passar a minha vida no SBT”, diz - Eliana Mais).

O expressivo aumento da construção denominal no português contemporâneo pode ser tomado como uma indicação de que o padrão [DAR UMA N-ADA] se fixou ao longo do tempo pela frequência de uso, tornando-se um chunking, nos termos de Bybee (2010)BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010..

Apesar da grande diversidade de nominalizações atestadas nos blogs e sites, optamos por concentrar a análise nas formas com mais de duas ocorrências, o que perfaz um total de 309 dados, com 25 nominalizações distintas, como mostra a tabela 2.

Tabela 2
10 10 O menor ´número de dado na tabela 3 se justifica pelo fator de que consideramos apenas os nomes com mais de 2 ocorrências. – Distribuição das nominalizações mais frequentes na construção denominal nos séculos XX e XX

A tabela 2 reitera as indicações fornecidas pelos dados atestados entre os séculos XVI e XIX. A construção denominal é mais frequente com nominalizações baseadas em itens lexicais que remetem a instrumentos do que com itens que se referem a partes do corpo. Essa distribuição pode ser consequência do fato de que nomes que se referem a referentes não alienáveis são, necessariamente, limitados. A distribuição diferenciada dos dois tipos de base nominal fica evidente no gráfico 1.

Gráfico 1
– Distribuição das bases nominais em [DAR UMA N-ADA SPrep] no português contemporâneo

De acordo com o gráfico 1, há uma diferença de 12 pontos percentuais entre os índices de nominalizações resultantes de bases nominais que se referem a instrumentos externos e bases nominais que remetem a partes do corpo.

A tabela 2 deixa clara também a acentuada diferença na frequência das diferentes nominalizações. Destaca-se a predominância de bofetada, com 44 tokens (14.3%), seguida de perto pela forma facada (10.7%). Não são negligenciáveis, porém, os índices para palmada (8.06%) e coronhada (6.05%). Em função da sua elevada frequência, podemos pressupor que a palavra bofetada tenha constituído um exemplar central, a partir do qual outros itens foram atraídos para o slot N.

Independentemente do item lexical base da nominalização, a construção denominal apresenta um conjunto de propriedades semânticas e morfossintáticas específicas, conforme mostra a tabela 3, em que consideramos as características do nome base, do SN1 (sujeito) e do SN2 nucleado pela nominalização assim como do SPrep. São consideradas também as propriedades modo-temporais do verbo DAR.

Tabela 3
– Propriedades da construção denominal [DAR UMA N-ADA SPrep]

O primeiro ponto que se destaca na tabela 3 é a cristalização de muitas das propriedades morfossintáticas do esquema [DAR UMA N-ADA SPrep], sinalizando um alto grau de “chunking” dessa construção: ocorrência categórica do artigo indefinido feminino “UMA‟, restrições à pluralização e, quase categoricamente, a ausência de modificadores do núcleo nominal.12 12 Como mostra Davel (2019), muitas dessas propriedades da construção denominal com DAR são compartilhadas com a construção deverbal.

Vale ressaltar que, potencialmente, não está excluída a possibilidade de quantificação/pluralização da nominalização, seja com a presença de determinantes (Dar duas/várias bolsadas/ pauladas/ bofetadas etc) ou sem determinante (Dar bolsadas/ pauladas/ bofetadas etc). Nesse caso, a construção adquire um valor aspectual distinto, ou seja, o de iteratividade.

No que diz respeito ao SN sujeito, observa-se igualmente pouca variação. O sujeito da construção denominal é categoricamente animado (99%) e quase sempre agentivo/intencional (90.04%). Maior variação pode ser constatada no que tange às propriedades modo-temporais do verbo DAR, destacando-se a flexão de terceira pessoa do singular, com (70.07%) e a maior frequência da forma de infinitivo (40.01%). Também o constituinte SPrep tende a apresentar maior variação, embora se associe mais frequentemente ao papel temático de dativo (66.09%) e a sintagmas nominais nucleados por referentes animados (60.28%).

Como destacado, a construção denominal [DAR UMA N-ADA SPrep] codifica uma cena de agressão, seja no sentido físico ou psicológico. Além disso, possui um valor aspectual, resultativo, na medida em que codifica um estado de coisas pontual, realizado por um agente animado/intencional, que afeta um referente animado. A realização desse estado de coisas requer o uso de um instrumento concreto que pode ser um objeto externo ou uma parte do corpo. Adotando a proposta de Traugott e Trousdale (2013)TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructionalization and construction changes. Oxford: Oxford University Press, 2013., brevemente já apresentada, podemos entender, em princípio, que a construção denominal [DAR UMA N- ADA SPrep] constitui um esquema mais geral que licencia duas microconstruções (N1 = instrumento e NPC = parte do corpo), como ilustra a Fig. 2, que inclui também algumas construções substantivas.

Figura 2
– Rede da construção denominal

As construções Dar uma carteirada/ uma cartada/ uma pontada estão ligadas por linhas pontilhadas ao esquema mais alto, pois, dada sua maior perda de composicionalidade, podem ser consideradas construções substantivas, ou seja, pareamentos de forma-significado que formam “nós” independentes na rede hierárquica de construções. Na medida em que a relação forma-significado nessas construções se torna mais opaca, elas tendem a rotinizar um significado mais abstrato, como ilustram os exemplos (12), de DAR UMA CARTEIRADA e (13), de DAR UMA CARTADA.

(12) Me parece que além de ter a “«procuração”» para defender os motoristas e a indústria automobilística, este dr acaba de dar uma carteirada no seu interlocutor, afirmando que trabalha a “... área jurídica...”, como se isto, por si só, désse o embasamento necessário para respaldar o que defende e por isso devêssemos engolir as suas ideias. Bastante reacionário o indivíduo, mas como estamos em uma democracia ele tem o direito de manifestação, só acredito que não precisa continuar a ser alimentado em sua cruzada contra o ciclista (Séc. XXI, Corpus do Português: site - Impostos, emplacamento e obrigatoriedades para ciclistas).

(13) Não sabia? É que ele levou uma surra no MMA! Para substituir os dois Simon, deu uma cartada arriscada e contratou duas mulheres para integrar a bancada dos jurados. Ao contrário do tradicional, dois homens, duas mulheres, esse ano serão três mulheres e um homem. Será que vai dar certo? Será um desastre? Quem são as duas gatas que aceitaram o trabalho por duas coxinhas e um copo de caldo de cana? (Séc. XXI, Corpus do Português: site - O que esperar do X Factor USA e UK | Cartas para Pi).

Sob certos aspectos, o sentido de golpe/ataque ainda se mantém nos exemplos (12) e (13). Torna-se, porém, mais opaco, na medida em que o significado decorre de projeções metafóricas. Assim, o significado de “dar uma carteirada no seu interlocutor” e de “dar uma cartada” se afasta do sentido de golpe físico (bater/atingir alguém com uma carteira ou uma carta), distinguindo-se claramente de “dar uma dentada nesses caras”. Em (12), o sujeito/agente animado (o dr.) tenta impor sua opinião à do seu interlocutor, um paciente/recipiente, animado e humano, com um significado aproximado do de contestar alguém com um conhecimento que parece não possuir. No enunciado (13), por sua vez, o sujeito animado age em favor de si mesmo, ou seja, toma uma atitude ousada para que algo, que está sob seu controle, dê certo. A ausência do SPrep, nesse caso, contribui para tornar mais opaca a transferência de posse.

Para Hilpert (2014)HILPERT, M. Construction grammar and its application to English. Edimburgh: Edimburgh University Press, 2014., a maior perda de composicionalidade em instâncias como (12) e (13) está associada à coerção, isto é, à imposição do significado construcional em contextos, nos quais, um item lexical é semanticamente incompatível com o sentido da construção como um todo. Nos exemplos considerados, “dar uma carteirada” e “dar uma cartada” se distinguem de (6) “dar uma dentada nesses caras”, pois carteira e carta, embora sejam objetos concretos, não são instrumentos apropriados para agressão física, ou pelo menos, uma agressão violenta. De acordo com a perspectiva de Bybee (2010)BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010., o uso dessas construções, em contextos específicos, as torna rotinizadas, mais facilmente acessíveis, uma vez que a repetição as reforça cognitivamente e permite sua autonomia.

Considerando, como destacado na introdução, a possibilidade de formações em X-ADA a partir de bases verbais intransitivas e transitivas (SALOMÃO, 1990SALOMÃO, M. M. M. Polysemy, aspect and modality in brasilian portuguese: the case for a cognitive explanation of grammar. 1990. PhD Thesis (Doctor in Linguistics) – University of California, Berkeley, 1990., 2008SALOMÃO, M. M. M. Construções modais com dar no português do Brasil: metáfora, uso e gramática. Revista Estudos. Linguísticos, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 83-115, 2008.; NEVES, 1999NEVES, M. H. de M. A delimitação das unidades lexicais: o caso das construções com verbos-suporte. Revista Palavra, São Paulo, v.1, n. 5, p. 98-112, 1999., 2006NEVES, M. H. de M. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.; BASÍLIO, 1999, 2001; SCHER, 2004SCHER, A. P. As construções com o verbo leve dar e nominalizações em –ada no português do Brasil. 2004. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.; ESTEVES, 2008ESTEVES, G. A. T. Construções com DAR + Sintagma Nominal: a gramaticalização desse verbo e a alternância entre perífrases verbo-nominais e predicadores simples. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008., 2012ESTEVES, G. A. T. A lexicalização de expressões Dar/ Fazer+SN: fiz sacrifício, dei conta. 2012. 217f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: https://docplayer.com.br/41663841-Universidade-federal-do-rio-de-janeiro.html. Acesso em: 9 mar. 2022.
https://docplayer.com.br/41663841-Univer...
; VIEIRA, 2010VIEIRA, M. dos S. M. Perífrases verbo nominais. Estudos Linguísticos, Lisboa, n. 5, p. 409-430, 2010., 2014VIEIRA, M. dos S. M. Idiomaticidade em construções com verbo suporte do português. Revista Soletras, Rio de Janeiro, n. 28, p. 99-125, 2014.; DAVEL, 2019DAVEL, A. P. C. As construções denominal e deverbal [Dar uma X-(a)da (SPrep) numa perspectiva dos Modelos Baseados no Uso. 2019. 179f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: http://www.ppglinguistica.letras.ufrj.br/images/Linguistica/3-Doutorado/teses/2019/TESE_Alzira.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.
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, entre outros), há argumentos favoráveis para a hipótese de que, de fato, a construção denominal constitui um subesquema licenciado por uma construção mais abstrata [DAR UMA X-(A)DA (SPrep)], como proposto por Davel (2019)DAVEL, A. P. C. As construções denominal e deverbal [Dar uma X-(a)da (SPrep) numa perspectiva dos Modelos Baseados no Uso. 2019. 179f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: http://www.ppglinguistica.letras.ufrj.br/images/Linguistica/3-Doutorado/teses/2019/TESE_Alzira.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.
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.

Segundo a organização hierárquica proposta na fig. 3, o esquema mais abstrato [DAR UMA X-(A)DA (SPrep)] sanciona tanto o subesquema denominal como o subesquema deverbal com X-ADA.14 14 Evidentemente essa proposta pode ser discutida, se levarmos em conta que, segundo outros estudos (BASÍLIO, 1999, 2001; SCHER, 2004; LISBOA DE LIZ, 2005), as construções denominal e deverbal com DAR são oriundas de combinações com sufixos distintos: -ADA para a denominal e –DA para a deverbal, apesar de serem homófonos. Ao subesquema denominal estão ligados dois padrões construcionais (microconstruções): com nomes de instrumento e com nomes de partes do corpo. Da mesma forma, o subesquema 2 licencia dois padrões (com verbos intransitivos e transitivos), de acordo com as propriedades dos verbos base. Cada um desses subesquemas autoriza, ainda, as construções substantivas como dar uma carteirada, dar uma pontada ou dar uma topada.

Figura 3
– Rede da construção [DAR UMA X- (A)DA (SPrep)]

Na próxima seção, discutimos a relação de herança entre a construção denominal e a construção bitransitiva com o verbo DAR.

Relação de herança entre [DAR UMA N-ADA SPrep] e a Construção Bitransitiva

Assumimos como ponto de partida a hipótese de que o esquema denominal [DAR UMA N-ADA SPrep] é motivado, visto que herda algumas propriedades da construção de transferência de posse, mais prototipicamente realizada pela construção esquemática bitransitiva. Nessa seção, mostramos algumas evidências que podem sustentar tal hipótese, a partir da bitransitiva, exemplificada em (14).

(14) Ana deu um livro de história para/ao seu filho.

O exemplo (14) ilustra o emprego mais prototípico do verbo DAR, qual seja, na codificação do frame de transferência de posse ‘X CAUSA Y RECEBER Z’. Um sujeito (Agente) animado e humano (Ana) é responsável pela transferência de um objeto não animado e concreto (um livro de história), com o papel semântico de Tema, para um beneficiário (seu filho), codificado no SPrep. Nesse caso, o objeto concreto “um livro” é efetivamente transferido de uma pessoa a outra.

Como já apontado, a partir do sentido central da construção de transferência de posse, outros podem ser instanciados através de extensões metafóricas. Foi destacado também que na construção denominal não ocorre a transferência de um objeto concreto, mas sim uma ação de agressão, de certa forma, de violência direcionada a um recipiente/ alvo (exemplificado em 15).

(15) Disse que a floresta foi o homem quem fez; os rios foi o homem quem abriu. E ele começou a falar do homem, do homem, do homem, e de repente, por dentro da floresta sai um urso grande atrás dele, dá-lhe uma patada e ele cai. (Séc. XXI, Corpus do Português: site - Como apagar os dardos do inimigo? – Igreja Evangélica Cristo Vive).

O exemplo (15) se particulariza no que diz respeito ao alinhamento entre os papéis sintáticos e semânticos dos seus constituintes. Segundo a proposta de Bybee (2010)BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010., DAR UMA PATADA constituiria um caso de chunking de menor grau de composicionalidade, principalmente, se considerarmos a maior integração entre V e SN. Enquanto na bitransitiva, a responsabilidade pelas relações temáticas é atribuída ao verbo DAR, na construção denominal, essa responsabilidade é compartilhada pela sequência [DAR UMA N-ADA]. A maior integração entre V e nominalização fica clara na impossibilidade ou restrição da construção denominal a certas operações sintáticas. Enquanto a apassivação é permitida pela bitransitiva, essa operação só é possível com a construção denominal, em contextos bastante específicos e, ainda assim, é duvidosa em alguns casos. (Um livro de histórias foi dado por Ana ao filho; (?) Uma patada foi dada no Kleber pelo Gaúcho/ (?) Uma patada foi dada nele por um urso). De forma semelhante, a topicalização do SN com o papel de tema, bem aceita pela bitransitiva, é restrita ou duvidosa na construção denominal X-ADA (?) Uma bofetada João deu em Pedro).

Essa integração entre V e nominalização favorece a emergência de valores semânticos mais abstratos. Assim, a transferencialidade só pode ser explicada com base na Metáfora do Conduto, segundo a qual, eventos seriam concebidos como objetos concretos (REDDY, 1979REDDY, M. The conduit metaphor: a case of frame conflict in our language about language. In: ORTONY, A. (ed.). Metaphor and thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. p.164-201.; LAKOFF; JOHNSON, 1980LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.). Como a construção denominal com nominalizações derivadas de instrumentos codificam um construal que envolve um sujeito, normalmente, humano e um SPrep com papel temático de dativo, apresentando um mapeamento sintático-semântico mais próximo do da construção bitransitiva, a transferência ainda pode ser concebida como mais concreta do que no caso de nomes referentes a partes do corpo. Desse modo, podemos pressupor um continuum de transferencialidade entre a construção bitransitiva e as microconstruções denominais.

- transferencialidade +/-transferencialidade + transferencialidade

DAR UMA NI SPrep DAR UMA NPC SPrep Bitransitiva

Considerando as evidências fornecidas pela análise, seria possível avançar uma proposta sobre as relações entre a construção bitransitiva e a construção denominal [DAR UMA N-ADA SPrep] e dessa com a construção mais esquemática [DAR UMA X-(A)DA (SPrep)], de acordo com a Fig. 4.

Figura 4
– Relação entre [DAR UMA N-ADA Sprep] e a construção bitransitiva

De acordo com a Fig. 4, entendemos que a construção denominal [DAR UMA N-ADA SPrep] mantém ligação, por elo de instanciação, com o esquema mais abstrato [DAR UMA X-(A)DA (SPrep)] que, por sua vez, se relaciona com a Construção Bitransitiva [SN1 V SN2 SPrep], por herança metafórica. Em outros termos, as microconstruções denominais se relacionam indiretamente com a construção bitransitiva. Se nossa interpretação estiver correta, podemos falar de um caso de sanção parcial, isto é, a construção denominal herda algumas propriedades da construção bitransitiva, mas adquire propriedades sintático-semânticas específicas.

Conclusões

Partindo dos pressupostos teóricos dos Modelos Baseados no Uso, particularmente, dos da Gramática de Construções Baseada no Uso, focalizamos neste estudo, as microconstruções denominais com o verbo DAR [DAR UMA N-ADA SPrep] tanto de um ponto de vista diacrônico como sincrônico. A análise de dados de períodos anteriores do português forneceu indicações acerca da possível expansão desse esquema ao longo de vários séculos e do aumento da sua produtividade no período moderno/contemporâneo do português.

As evidências diacrônicas e a análise das ocorrências atestadas nos séculos XX e XXI autorizaram a postulação de dois subesquemas sancionados por um esquema mais geral [DAR UMA N-ADA SPrep]: um com nominalizações baseadas em nomes de instrumentos e outro com nomes que se referem a partes do corpo. Como se pode esperar, dada a menor disponibilidade de bases que se referem a partes do corpo, o subesquema com nomes que se referem a instrumentos é claramente mais produtivo, autorizando significativa diversidade de itens lexicais no slot N. Semanticamente, as duas microconstruções se aproximam por evocarem um frame de agressão, seja físico ou psicológico, envolvendo, em geral, um sujeito/ agente e um paciente/recipiente afetado e incorporam uma nuance aspectual de resultatividade.

A partir da análise de propriedades formais e semânticas, foi possível identificar, ainda, que algumas instâncias dessas microconstruções apresentam diferentes graus de transparência semântica de tal modo que, algumas delas ganham independência. Elas são chunkings de menor grau de composicionalidade, usados, normalmente, em contextos discursivo-pragmáticos específicos. Em outras palavras, tornam-se construções substantivas com significados resultantes de projeções metafóricas.

A análise forneceu, ainda, evidências favoráveis à nossa hipótese inicial de que as microconstruções denominais são sancionadas por um esquema mais abstrato [DAR UMA X-(A)DA (SPrep)], ao qual estariam ligadas também as microconstruções deverbais. As microconstruções denominais estariam ligadas a esse esquema mais geral por um elo de instanciação.

No que diz respeito às relações de herança da construção denominal, constatamos maior proximidade da microconstrução denominal resultante de nomes de instrumentos com a construção de transferência de posse: são triargumentais, de modo geral, se realizam com Sujeito/Agente animado e humano e possuem um SPrep ou pronome oblíquo com papel temático de dativo. Envolvem, portanto, maior grau de transferencialidade do que a construção com nominalizações baseadas em nomes de partes do corpo. Há, assim, indicações de que se trata de uma sanção parcial, se considerarmos as particularidades da microconstrução denominal no que se refere à construção da cena de transferência e algumas das propriedades mais específicas do esquema denominal.

Agradecimentos

Agradecemos aos pareceristas anônimos cujos comentários vieram contribuir para maior elaboração deste trabalho. Qualquer equívoco ou erro restante é de nossa inteira responsabilidade.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Disponível em: http://luisamell.com.br/pitbull. Acesso em: 9 mar. 2022.
  • 2
    Disponível em: http://freitasmh.com/2013/02/04/vida-dura-corpo-mole-e-pudim/. Acesso em: 9 mar. 2022.
  • 3
  • 4
    Disponível em: http://www.flogao.com.br/ponchoecandy/blog/1544241/. Acesso em: 9 mar. 2022.
  • 5
  • 6
    É necessário destacar que Traugott (2018TRAUGOTT, E. C. Modeling language change with constructional networks. In: PONS BORDERÍA, S.; LOUREDA LAMAS, Ó. (ed.). Beyond grammaticalization and discourse markers: new issues in the study of language change. Leiden: Boston: Brill, 2018. p. 17-50. (Studies in Pragmatics, 18)., p. 19) retifica essa proposta, admitindo que “there may be several levels of schemas, depending on the degree of abstraction proposed by the linguist”.
  • 7
    Um exemplo discutido por Goldberg é o do verbo to drive que só ocorre em construções resultativas quando o papel de alvo-resultado se relaciona à “loucura‟ (He drove Pat mad/bonkers/crazy). Um exemplo semelhante seria o da nominalização TOPADA que se consolidou em microconstruções como Maria deu uma topada na cadeira/ na pedra etc, com o sentido de ‘bater com o pé em algo’.
  • 8
    De forma semelhante, um levantamento nas bases de dados sociolinguísticos Censo 80, relativas ao português falado no Rio de Janeiro, e PortVix, relativa à variedade capixaba, resultou em poucas ocorrências da construção [DAR UMA N-ADA SPREP).
  • 9
    Pancada resulta da base panca, uma alavanca feita de madeira, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, no seguinte endereço: https://dicionario.priberam.org/panca. Acesso em: 9 mar. 2022.
  • 10
    O menor ´número de dado na tabela 3 se justifica pelo fator de que consideramos apenas os nomes com mais de 2 ocorrências.
  • 11
    Como lembrado por um dos pareceristas, o item “bofetada” é herdado da base latina “bofetus”, uma gíria usada para expressar um tapa, de mão fechada, na cara de alguém.
  • 12
    Como mostra Davel (2019)DAVEL, A. P. C. As construções denominal e deverbal [Dar uma X-(a)da (SPrep) numa perspectiva dos Modelos Baseados no Uso. 2019. 179f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: http://www.ppglinguistica.letras.ufrj.br/images/Linguistica/3-Doutorado/teses/2019/TESE_Alzira.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.
    http://www.ppglinguistica.letras.ufrj.br...
    , muitas dessas propriedades da construção denominal com DAR são compartilhadas com a construção deverbal.
  • 13
    Os parênteses no SPrep indicam que esse slot é opcional, a depender da grade argumental do verbo do qual deriva a nominalização com – (A)DA.
  • 14
    Evidentemente essa proposta pode ser discutida, se levarmos em conta que, segundo outros estudos (BASÍLIO, 1999, 2001; SCHER, 2004SCHER, A. P. As construções com o verbo leve dar e nominalizações em –ada no português do Brasil. 2004. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.; LISBOA DE LIZ, 2005LISBOA DE LIZ, L. de. Dar uma X-(a)da: um trabalho de interfaces. 2005. Dissertação (Mestrado em Letras/Linguística) - Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.), as construções denominal e deverbal com DAR são oriundas de combinações com sufixos distintos: -ADA para a denominal e –DA para a deverbal, apesar de serem homófonos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2020
  • Aceito
    4 Nov 2021
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