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OS DISCURSOS SOBRE O VEGANISMO EM REVISTAS DE DIVULGAÇÃO DA FILOSOFIA NO BRASIL E NA FRANÇA

RESUMO

Neste artigo estudamos comparativamente os discursos de duas revistas de divulgação da filosofia, uma brasileira e outra francesa. Buscamos, assim, responder às duas questões formuladas no nosso projeto de pós-doutorado sobre os discursos das revistas de divulgação da filosofia no Brasil e na França, a saber: “Como a filosofia é apresentada nas revistas brasileiras e francesas?” e “O que se pretende com a divulgação da filosofia no Brasil e na França?”. Para tanto, selecionamos dois artigos sobre o tema do veganismo na revista brasileira Filosofia Ciência & Vida e na revista francesa Philosophie Magazine, ambos publicados em 2018. A metodologia empregada nas análises é a análise de discursos comparativa, conforme ela vem sendo trabalhada no Brasil numa perspectiva bakhtiniana. Dessa forma, analisamos como as entonações valorativas, mediante as escolhas lexicais feitas pelos autores dos enunciados brasileiro e francês, contribuem para uma argumentação favorável ou não ao veganismo. A análise das relações dialógicas e dos modos de transmissão do discurso alheio, por sua vez, permitem-nos observar como se dá o diálogo entre diferentes esferas da atividade humana em ambas as revistas, contribuindo para a elucidação do papel da divulgação da filosofia nas revistas brasileira e francesa.

análise de discursos comparativa; veganismo; revistas de filosofia; divulgação científica

ABSTRACT

In this article we compare the discourses of two philosophy popularisation magazines, one Brazilian and the other French. By doing so, we seek to answer two questions formulated in our postdoctoral project on the discourses of philosophy popularisation magazines in Brazil and France, namely: “How is philosophy presented in Brazilian and French magazines?” and “What is intended with philosophy popularisation in Brazil and France?”. To this end, we selected two articles on the topic of veganism in the Brazilian magazine Filosofia Ciência & Vida and in the French magazine Philosophie Magazine, both published in 2018. The methodology used in the analyses is the comparative discourse analysis, as it has been worked on in Brazil from a Bakhtinian perspective. Thus, we analyse how the evaluative intonations, through the lexical choices made by the authors of the Brazilian and French utterances, contribute to a favourable or not argumentation to veganism. The analysis of dialogic relationships and the forms of transmitting the alien discourse allow us to observe how the dialogue between different spheres of human activity takes place in both magazines, contributing to the elucidation of the role of philosophy popularisation in Brazilian and French magazines.

comparative discourse analysis; veganism; philosophy magazines; scientific popularisation

Introdução

As duas revistas analisadas no presente artigo – Filosofia Ciência & Vida (doravante FC&V) e Philosophie Magazine (doravante PM) – surgiram no mesmo ano: em 2006. Todavia, os motivos que levaram o Brasil e a França a publicarem as suas revistas não são exatamente os mesmos. No primeiro editorial de um número especial de FC&V (ano I, nº 1), o jornalista Faoze Chibli1 1 Faoze Chibli é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero, atuou como colaborador freelancer na revista Filosofia Ciência & Vida em 2006. Informações obtidas pelo LinkedIn: https://br.linkedin.com/in/faoze-chibli-5b03b467. justifica o aparecimento da revista brasileira: “Uma parcela da sociedade tem clamado por maior valorização das ciências humanas. Deixadas em segundo plano com o furor desenvolvimentista militar, esse campo do saber viu seus privilégios minguarem em prol dos conhecimentos exatos.” (CHIBLI, 2006, pCHIBLI, F. Editorial. In: Filosofia Ciência & Vida: especial Grécia, São Paulo, Ano I, n.1, p.1, 2006., p.1). Logo em seguida, complementa: “Mas um consenso entre academia, meios de comunicação e setores governamentais começa a frutificar. A Filosofia e a Sociologia são agora disciplinas obrigatórias no ensino médio. Se não é a solução definitiva para os humanistas, trata-se de um alento e um indício” (CHIBLI, 2006, pCHIBLI, F. Editorial. In: Filosofia Ciência & Vida: especial Grécia, São Paulo, Ano I, n.1, p.1, 2006., p.1). Vê-se que o primeiro editorial da revista brasileira evoca uma relação entre a esfera filosófica (sobretudo na sua vertente acadêmica) e a esfera escolar.

A divulgação científica como um diálogo de esferas pode ser observada de maneira ainda mais explícita no contexto francês. A revista francesa PM marca desde o seu primeiro editorial o diálogo entre a esfera da filosofia com a do jornalismo. O título do editorial do ano 1, nº 1 é justamente Philosophie et journalisme. O redator-chefe, Alexandre Lacroix2 2 Alexandre Lacroix é escritor, ensaísta e jornalista: https://fr.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Lacroix , afirma que

[n]as obras de filosofia lançadas hoje, somos frequentemente surpreendidos ao encontrar, ao lado das referências canônicas a Platão, Epicuro ou Nietzsche, análises de eventos políticos, de blockbusters, de notícias do cotidiano [...] É nesse contexto particular que intervém o lançamento de Philosophie Magazine, cuja ambição é, precisamente, conciliar filosofia e jornalismo. (LACROIX, 2006LACROIX, A. Éditorial. Philosophie et Journalisme. Philosophie Magazine, Paris, n.1, p.3, 2006., p. 3, tradução nossa).3 3 No original: “Dans les ouvrages de philosophie qui paraissent aujourd’hui, on est souvent surpris de trouver, aux côtés des références canoniques à Platon, Épicure ou Nietzsche, des analyses d’événements politiques, de blockbusters, de faits divers [...] C’est dans ce contexte particulier qu’intervient le lancement de Philosophie Magazine, dont l’ambition est, précisément, de concilier philosophie et journalisme.” (LACROIX, 2006, p, p. 3). Salvo indicação contrária, as traduções, neste artigo, são de nossa autoria e responsabilidade.

Tendo isso em vista, partiremos neste artigo da tese, defendida por Grillo (2013)GRILLO, S. V. de C. Divulgação científica: linguagens, esferas e gêneros. 2013. 333 f. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., que considera a divulgação científica como um diálogo de esferas:

[...] defendemos que a divulgação científica não se identifica com uma esfera da atividade humana específica nem com um gênero discursivo particular, mas que os enunciados de divulgação científica constituem-se no diálogo entre a esfera científica e outras esferas da atividade humana, aqui incluídos os níveis superiores da ideologia do cotidiano. (GRILLO, 2013GRILLO, S. V. de C. Divulgação científica: linguagens, esferas e gêneros. 2013. 333 f. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., p. 15).

É desse ponto de vista que exploraremos os discursos da revista brasileira – que surgiu em razão de uma demanda por leitura na área das humanidades e, também, por sua presença na educação básica4 4 Aliás, durante os anos de 2013 e 2014, a revista podia ser lida durante as aulas de filosofia das escolas brasileiras, pois foi selecionada no edital do “PNBE - periódicos”. O PNBE é o “Programa Nacional Biblioteca da Escola” e o “O PNBE Periódicos é direcionado à aquisição e distribuição de revistas pedagógicas para auxiliar o trabalho dos professores da rede pública e do gestor escolar”: https://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/legislacao/item/9698-dados- estatisticos. Acesso em: 07 abr. 2020. – e da revista francesa – que surge da percepção de que a própria filosofia contemporânea vinha evocando assuntos midiáticos em seus escritos, o que justificaria o aparecimento de uma revista que também partisse desses acontecimentos midiáticos para explicar a filosofia ao grande público.

Numa dissertação sobre as obras de filosofia destinadas ao grande público, Maubon (2010MAUBON, L. Les ouvrages philosophiques à destination du grand public: pour quelle philosophie? Orientador: Gérard Wormser. 2010. 76 f. Mémoire d’étude (Master 2 Livre et Savoirs) – École Nationale Supérieure des Sciences de l’Information et des Bibliothèques, Lyon, 2010., p. 3, tradução nossa) mostra que, na França, “[a] democratização da filosofia é um projeto antigo”5 5 No original: “La démocratisation de la philosophie est un projet ancien.” (MAUBON, 2010, p, p. 3). , e menciona que os anos que precedem 2010 foram marcados por uma “verdadeira paixão por um certo tipo de filosofia [...], como testemunham o sucesso de certos tipos de obras nas livrarias, a forte presença midiática da disciplina, e a existência de verdadeiros filósofos-vedetes”6 6 No original: “véritable engouement pour un certain type de philosophie [...] ainsi qu’en témoignent les succès de librairie de certains ouvrages, la forte présence médiatique de la discipline, et l’existence de véritables philosophes-vedettes.” (MAUBON, 2010, p, p. 7). (MAUBON, 2010MAUBON, L. Les ouvrages philosophiques à destination du grand public: pour quelle philosophie? Orientador: Gérard Wormser. 2010. 76 f. Mémoire d’étude (Master 2 Livre et Savoirs) – École Nationale Supérieure des Sciences de l’Information et des Bibliothèques, Lyon, 2010., p. 7, tradução nossa). Oliveira e Aquino (2014OLIVEIRA, G. M. V. de S.; AQUINO, J. G. O filósofo expert? a popularização da filosofia e o governo da conduta. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, Brasília, n.23, p.55-80, 2014., p. 54, tradução nossa) descrevem o mesmo período no Brasil como marcado por um “pronunciado processo de popularização [da filosofia]”. As revistas aqui analisadas compõem esse cenário. Analisar os discursos das revistas de divulgação da filosofia implica também em compreender até que ponto a divulgação da filosofia é possível. A relação da mídia com a filosofia levanta um problema fundamental: a “compatibilidade das pressões midiáticas com a exigência filosófica”7 7 No original: “compatibilité des contraintes médiatiques avec l’exigence philosophique.” (MAUBON, 2010, p, p. 7). (MAUBON, 2010MAUBON, L. Les ouvrages philosophiques à destination du grand public: pour quelle philosophie? Orientador: Gérard Wormser. 2010. 76 f. Mémoire d’étude (Master 2 Livre et Savoirs) – École Nationale Supérieure des Sciences de l’Information et des Bibliothèques, Lyon, 2010., p. 7, tradução nossa).

É interessante notar, ainda, que José Reis, um dos pioneiros da divulgação científica (doravante DC) no Brasil, pensava essa divulgação de modo bastante semelhante ao que é proposto pelos editores de PM para a divulgação da filosofia – relacionando-a ao jornalismo. Com efeito, a própria definição da DC apresentada por Reis na década de 1960 já apontava para a necessidade de se aproveitar os fatos jornalisticamente relevantes a fim de instigar no público o desejo de divulgação de um determinado fenômeno científico (cf. MASSARANI; ALVES, 2019MASSARANI, L. M.; ALVES, J. P. A visão de divulgação científica de José Reis. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 71, n.11, p. 56-59, 2019.).

No que respeita ao contexto brasileiro, Oliveira (2015)OLIVEIRA, G. M. V. de S. Da popularização da filosofia à expertise filosófica: uma problematização do papel do intelectual na mídia (revista Cult 1997-2013). Orientador: Julio Groppa Aquino. 2015. 189 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. apresenta uma pista interpretativa interessante na sua dissertação de mestrado sobre a popularização da filosofia:

Em entrevista publicada na primeira edição da revista Filosofia Ciência & Vida, em 2006, o professor [Oswaldo Giacoia Jr., da UNICAMP] antecipava as querelas entre popularização e vulgarização da filosofia [...]. Entre uma e outra prática, para Giacoia, a popularização deveria manter as características básicas da filosofia, como a relação analítica rigorosa com os problemas cotidianos, necessitando, contudo, distanciamento [destes]; algo distinto do uso temático-pragmático e indiscriminado de afirmações filosóficas como referências culturais ou temas para obras literárias e teatrais, que muitas vezes tenderiam para a vulgarização. (OLIVEIRA, 2015, pOLIVEIRA, G. M. V. de S. Da popularização da filosofia à expertise filosófica: uma problematização do papel do intelectual na mídia (revista Cult 1997-2013). Orientador: Julio Groppa Aquino. 2015. 189 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., p. 13, grifo nosso).

Para investigar como ambas as línguas-culturas analisadas (a brasileira e a francesa) divulgam a filosofia, decidimos comparar como ambas as revistas tratavam um mesmo tema. Era necessário, portanto, buscar um tema que tivesse um alcance jornalístico e que fosse de atualidade em ambos os países. Foi então que chegamos aos artigos sobre o veganismo8 8 O veganismo é definido pela The Vegan Society como “uma forma de viver que busca excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e de crueldade contra os animais, seja para alimentação, para o vestuário ou para qualquer outro fim” [Veganism is a way of living which seeks to exclude, as far as is possible and practicable, all forms of exploitation of, and cruelty to, animals for food, clothing or any other purpose.] https://www.vegansociety.com/go-vegan/definition-veganism. Acesso em: 15 fev. 2020. publicados em 2018, tanto no Brasil quanto na França. Uma leitura rápida de ambos os artigos já mostrava que, no Brasil, o tema era tratado da perspectiva da ética animal (sendo a ética um dos ramos da filosofia), ao passo que na França o mesmo tema era abordado de maneira mais global, evocando a ética animal, mas também as questões de ordem ambiental e alimentares. Por essa razão, decidimos investigar a(s) possibilidade(s) de divulgação da filosofia em revistas das línguas-culturas brasileira e francesa apoiando-nos em dois artigos sobre o veganismo.

Dito isso, os discursos sobre o veganismo nas revistas de filosofia brasileira e francesa serão analisados na perspectiva da análise de discursos comparativa tal como ela vem sendo feita no Brasil atualmente (nos moldes bakhtinianos). Na análise de discursos comparativa, compara-se textos de um mesmo gênero de discurso em duas (ou mais) línguas-culturas diferentes. O gênero funciona, portanto, como tertium comparationis, ou seja, a invariante que garante a comparação entre línguas-culturas distintas. Por isso, nas análises efetuadas neste estudo, partiremos de um mesmo gênero: artigo de revista. Dessa forma, analisaremos como as entonações valorativas, mediante as escolhas lexicais feitas pelos autores dos enunciados brasileiro e francês, contribuem para uma argumentação favorável ou não ao veganismo. Ademais, tendo em vista que os editores de ambas as revistas estudadas evocam nos respectivos enunciados destas a existência de um diálogo entre diferentes esferas da atividade humana, analisaremos por meio de categorias conceituais, tais como os modos de transmissão do discurso alheio e as relações dialógicas, de que forma se dá esse diálogo. Tal análise contribuirá para a elucidação do papel da divulgação da filosofia nas revistas brasileira e francesa.

Assim, o presente artigo se divide em três partes além da introdução e da conclusão: a primeira sobre a seleção do corpus; a segunda sobre a análise comparativa de discursos de divulgação científica; e a terceira, que apresenta as análises de discurso propriamente ditas. Ao final do artigo são apresentadas as conclusões e as referências.

Seleção do corpus

O corpus da comparação feita aqui são dois textos do gênero “artigo de revista”, cujo tema é o veganismo. Mais especificamente, trata-se dos artigos intitulados “O sofrimento negligenciado dos animais” (FC&V) e “Quando o carnívoro se vê no espelho” [Quand le carnivore se regarde en face] (PM). Ambos foram publicados em números lançados em 2018. A tabela a seguir resume os dados dessas publicações.

Tabela 1 – Material analisado

FILOSOFIA CIÊNCIA & VIDA (nº 139 - junho de 2018) PHILOSOPHIE MAGAZINE (nº 117 - março de 2018)
Tema de capa: “Vidas que importam. Como a Filosofia pode dar significado à existência, revelando quem somos e nosso lugar no mundo” Tema de capa: “A ética está no bife. Ser ou não ser carnívoro?” [L’éthique est dans le steak. Être ou ne pas être carnivore]
Título do artigo sobre o veganismo: “O sofrimento negligenciado dos animais” Título do artigo sobre o veganismo: “Quando o carnívoro se vê no espelho” [Quand le carnivore se regarde en face]
Fonte: Elaboração própria

Vemos, desde aqui, que o título da capa assinala para um diálogo com esferas distintas em cada uma das línguas-culturas analisadas: na brasileira, o veganismo é abordado de um ponto de vista mais acadêmico-científico, enquanto que na francesa o tom parece mais jornalístico, midiático. Quanto aos artigos analisados, o artigo da revista brasileira figura na aba “Ética”. Já o da revista francesa faz parte do dossiê de capa da revista. Não vimos problema no fato de não serem dois artigos de capa, pois a revista francesa compõe-se de um “dossiê de capa”, que, por sua vez, é composto por textos de gêneros variados: artigo sobre o tema abordado no dossiê, entrevistas, depoimentos etc. Todavia, é interessante nos perguntarmos por que a revista brasileira não coloca o tema do veganismo na capa, enquanto a francesa o faz. Acreditamos que isso se deve justamente a uma influência mais marcada da esfera jornalística na revista francesa. Em ambas as culturas o veganismo é um tema em voga atualmente e é certamente por isso que ambas as revistas resolvem abordá-lo. Todavia, na França, uma série de acontecimentos midiáticos teve grande impacto no ano de 2018: ataques de ativistas veganos a açougues e abatedouros do país foram retratados como violentos (BOUCHER..., 2018BOUCHER assassin! Le Quotidien, [s. l.], 28 set. 2018. Disponível em: https://lequotidien.lu/a-la-une/boucher-assassin-la-guerre-de-la-viande-derape/. Acesso em: 10 fev. 2022.
https://lequotidien.lu/a-la-une/boucher-...
). Isso também ajuda a explicar a escolha em tratar o tema num amplo dossiê na revista francesa (cuja capa tem um título provocante como “a ética está no bife”). Numa primeira análise, achamos estranho o dossiê dar voz a um açougueiro, numa seção com testemunhos de trabalhadores da indústria da carne, mas a escolha fica mais evidente ao analisarmos o contexto da publicação francesa. Já no Brasil, não identificamos nenhum acontecimento específico que possa ter motivado uma publicação sobre o veganismo, para além do fato de que o tema por si só é cada vez mais recorrente em várias partes do mundo. Vejamos, na seção seguinte, a metodologia segundo a qual o corpus será analisado.

Desafio metodológico: a análise de discursos comparativa de textos de divulgação da filosofia

A análise de discursos comparativa é uma área bastante recente no Brasil: surgida há vinte anos na França, ela vem passando por modificações no nosso país, onde vem sendo abordada numa perspectiva bakhtiniana. Foi no ano 2000 que o grupo de pesquisa “Comparação, língua e cultura em perspectivas discursivas” se formou na França com essa finalidade, no CEDISCOR (Centro de pesquisa sobre discursos cotidianos e especializados), da Universidade de Paris 3. Hoje, outras universidades como a Université Paris Descartes e a Université Paris 8 também acolhem pesquisadores que trabalham nessa linha de pesquisa.

Numa análise comparativa, assim como na análise de discursos em geral, procede-se a uma “descrição da materialidade linguística dos discursos – sem descrição, não nos situaríamos em uma perspectiva linguística – e a uma interpretação dos dados coletados – sem interpretação, o procedimento não seria do domínio da AD [análise do discurso]”.9 9 No original: “description de la matérialité linguistique des discours – sans description, on ne se situerait pas dans une perspective linguistique – et à une interprétation des données rassemblées – sans interprétation, la démarche ne relèverait pas de l’AD.” (CLAUDEL et al., 2013, p. 22). (CLAUDEL et al., 2013CLAUDEL, C. et al. Langue, discours et culture : vingt ans de recherche et comparaison. In: CLAUDEL, C. et al. Cultures, discours, langues: nouveaux abordages. Lyon: Lambert-Lucas, 2013. p. 15-45., p. 22, tradução nossa). Atualmente, no Brasil, o grupo Diálogo (CNPq/USP) vem abordando a análise de discursos comparativa numa perspectiva bakhtiniana. É nessa perspectiva que as análises serão efetuadas neste artigo.

Outro questionamento teórico-metodológico feito por este artigo diz respeito à análise de discursos de DC. Abordagens discursivas sobre a DC também datam de vinte anos aproximadamente. No Brasil, podemos citar os trabalhos de Grillo (2013)GRILLO, S. V. de C. Divulgação científica: linguagens, esferas e gêneros. 2013. 333 f. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. e Costa (2016COSTA, L. R. Ideologia e divulgação científica: uma análise bakhtiniana do discurso da revista Ciência Hoje. Bakhtiniana, São Paulo, v.11, n.2, p. 33-5, 2016.; 2017COSTA, L. R. A questão da ideologia no Círculo de Bakhtin e os embates no discurso de divulgação científica da revista Ciência Hoje. São Paulo: Ateliê editorial, 2017.). Estudos comparativos da DC são bem mais recentes (citemos os de Grillo e Glushkova (2016)GRILLO, S. V. de C.; GLUSHKOVA, M. A divulgação científica no Brasil e na Rússia: um ensaio de análise comparativa de discursos. Bakhtiniana, São Paulo, v. 11, n.2, p. 69-92, 2016. e Cavalcante Filho (2018)CAVALCANTE FILHO, U. A construção composicional em enunciados de divulgação científica: uma análise dialógico-comparativa de Ciência Hoje e La Recherche. Linha D’Água, São Paulo, v.31, n.3, p.99-120, 2018.). O desafio que se nos impõe, entretanto, diz respeito ao fato de que não há estudos em análise de discursos sobre a divulgação da filosofia. Embora o editor de FC&V tenha inserido a filosofia no domínio das ciências humanas (cf. introdução), ela não se insere propriamente nesse domínio, conforme esclarecem Savian Filho, Carvalho e Figueiredo ([20-])SAVIAN FILHO, J.; CARVALHO, M.; FIGUEIREDO, V. B. de. A BNCC e o futuro da filosofia no Ensino Médio – Hipóteses. ANPOF, [s. l., 20-]. Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/es-ES/artigos-em-destaque/1584-a-bncc-e-o-futuro-da-filosofia-no-ensino-medio-hipoteses. Acesso em: 19 fev. 2020.
http://anpof.org/portal/index.php/es-ES/...
: “[a] filosofia não faz parte das ‘ciências humanas’. Por questões de facilidade, talvez não seja um problema incluí-la nessa rubrica, mas convém lembrar que ela a transcende; do contrário, não haveria filosofia da matemática, das ciências exatas, da biologia etc.” Assim, o papel da nossa análise será de averiguar, entre outras coisas, se faz sentido falar de uma divulgação da filosofia enquanto DC.

Analisar os discursos de divulgação da filosofia implica, ainda, em escolher a perspectiva em que eles serão abordados. Grillo, Giering e Motta-Roth (2016GRILLO, S. V. de C.; GIERING, M. E.; MOTTA-ROTH, D. Perspectivas discursivas da divulgação/popularização da ciência. Bakhtiniana, São Paulo, v. 11, n.2, p. 3-13, 2016., p.4), num editorial intitulado “Perspectivas discursivas da divulgação/popularização da ciência”, afirmam que

[o] fenômeno discursivo da divulgação/popularização da ciência tem sido conceituado de modo variado por diferentes perspectivas teóricas [...]: tradução ou reformulação do discurso científico – abordagem predominante nos estudos da linguagem; gênero discursivo; atividade de recontextualização; construção dependente dos processos da encenação midiática; e modalidade particular de relação dialógica.

Acreditamos que a perspectiva mais adequada para tratar da nossa problemática é a que encara a DC como uma “modalidade particular de relação dialógica”. Pois a perspectiva que encara a DC como reformulação do discurso científico dá maior ênfase às “marcas linguísticas que caracterizam esse tipo de produção”10 10 No original: “marques linguistiques caractérisant ce type de production.” (REBOUL-TOURÉ, 2004, p, p. 208). (cf. REBOUL-TOURÉ, 2004REBOUL-TOURÉ, S. Écrire la vulgarisation scientifique aujourd’hui. In: COLLOQUE SCIENCES, MÉDIAS ET SOCIÉTÉ, 2004, Lyon. Actes [...]. Lyon: ENS-LSH, 2004. P.195-212. Disponível em: http://sciences-medias.ens-lyon.fr/article.php3?id_article=65. Acesso em: 20 fev. 2020.
http://sciences-medias.ens-lyon.fr/artic...
, p. 208, tradução nossa), o que nos parece mais adequado ao tratamento de discursos das ciências biológicas e/ou exatas. Não que essa perspectiva não possa dar conta da divulgação do discurso filosófico, mas acreditamos que o quadro dialógico, por ser mais amplo, compreende alguns aspectos que explicam melhor as possibilidades de divulgação da filosofia, conforme veremos a seguir. Além disso, como apontamos na introdução deste artigo, os próprios editores assinalam para a existência de um diálogo entre diferentes esferas da atividade humana em cada uma das revistas analisadas: analisar esse diálogo é possível justamente numa perspectiva que encara a DC como um diálogo de esferas (cf. GRILLO, 2013GRILLO, S. V. de C. Divulgação científica: linguagens, esferas e gêneros. 2013. 333 f. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.).

Os discursos sobre o veganismo em FC&V e PM

O veganismo, enquanto tema filosófico, é abordado em ética, mais precisamente em ética animal. Na revista brasileira, o artigo analisado é intitulado “O sofrimento negligenciado dos animais”, e encontra-se justamente na aba “ética” da revista. Já na revista francesa o artigo analisado intitula-se “Quand le carnivore se regarde en face” [Quando o carnívoro se vê no espelho] e integra o dossiê “L’éthique est dans le steak” [A ética está no bife]. Ao realizarmos uma primeira leitura comparativa dos artigos sobre o veganismo em FC&V e PM, dois enunciados nos pareceram, a princípio, bastante semelhantes.

Na revista brasileira, o enunciado que será foco da nossa análise ocupa cerca de duas páginas, e aparece logo após uma breve introdução do autor– o acadêmico Daniel Borgoni, então doutorando em filosofia na UNIFESP – ao artigo analisado. Trata-se da subseção intitulada “Os fatos”:

Em geral, os animais que comemos e os produtos deles derivados vêm da criação intensiva. Embora existam instituições que regulam esse tipo de agronegócio, estresse, mutilações, enfim, sofrimentos de toda ordem estão presentes na produção de produtos de origem animal. Vejamos algumas situações que atestam isso.

Os frangos de corte são confinados de tal modo que o espaço individual para cada ave é tão restrito que eles ficam permanentemente em contato uns com os outros durante toda a sua vida. Para que eles não percam tempo escolhendo o seu alimento e engordem rapidamente, maximizando os investimentos, é comum cortar-lhes o bico. Como a superpopulação de frangos gera agressividade, tenta-se contornar isso diminuindo a luminosidade do ambiente, pois [1] “quando há luz normal, o estresse provocado pela superlotação e a ausência de escapes naturais para a energia das aves levam à deflagração de brigas, nas quais os frangos bicam as penas uns dos outros e, às vezes, matam-se e comem uns aos outros” (2010, p. 146)11 11 Empregamos o negrito para enfatizar os aspectos que serão analisados nos exemplos expostos. Os grifos em itálico figuram no texto original. Numeramos entre colchetes as passagens em discurso direto que serão analisadas mais adiante. . Contudo, além de não eliminar a agressividade, as aves [2] “não habituadas à luz intensa, a ruídos fortes ou a outras fontes de perturbação podem entrar em pânico em função de alguma alteração súbita” (2010, p. 152).

Muita dor está também presente na criação de suínos e de bovinos. Os porcos sofrem de obesidade e artrite por terem os seus movimentos limitados, costumam apresentar comportamentos estereotipados, tais como roer as celas que os prendem e [3] “nos ambientes superlotados em que vivem, esses animais, normalmente dóceis, às vezes recorrem ao canibalismo” (Regan, 2005, p. 112). Os bois têm seus chifres retirados para ocuparem menos espaço e não se machucarem, e são castrados para que os novilhos engordem mais rápido, denuncia Singer (2010, p. 214).

Na produção da carne de vitela o jovem animal é submetido a uma vida miserável, haja vista que [4] “a essência dessa produção é a alimentação de bezerros confinados e anêmicos com uma ração altamente proteica” (Singer, 2010, p. 190). Os seus joelhos ficam inchados e doloridos devido à posição estática em que os bezerros são obrigados a ficar. E, como não poderia deixar de denunciar, o foie gras (fígado de ganso), iguaria culinária cultuada por certos chefes de cozinha, envolve um processo de alimentação forçada no qual um funil é introduzido na garganta do animal.

Na produção de leite e de ovos os animais não humanos também sofrem muito. Na pecuária leiteira as vacas se tornam máquinas de produzir leite, tendo em vista que [5] “produzem até 44 litros de leite por dia, dez vezes sua capacidade normal. Esse excesso de peso tensiona o úbere e agrava os danos aos joelhos e ancas” (Regan, 2005, p. 117). Acrescente-se que muitas vacas sofrem de mastite, uma inflamação nas glândulas mamárias. E as galinhas poedeiras são presas de tal maneira que mal podem abrir as suas asas, ficando impossibilitadas de construir ninhos e neles botar ovos. Isso é uma fonte de sofrimento tão grande que o respeitado etólogo Konrad Lorenz afirmou que é a pior tortura que uma galinha pode sofrer (cf. Singer, 2010, p. 168).

Não bastasse vivermos numa sociedade na qual parte majoritária da população não está ciente do exposto, as agências publicitárias mostram o contrário. É comum vermos comerciais de achocolatados com vacas sorrindo, frangos felizes e saltitantes nos comerciais de indústrias de processados, animais sorrindo nas embalagens de alimentos de origem animal, enfim, não faltam propagandas que criam um simulacro da realidade do que acontece nos aviários, currais, granjas etc.

Por tudo o que foi dito não podemos nos abster da reflexão sobre os danos e os maus-tratos causados por humanos a outros seres sencientes na produção de carne, leite e ovos. É isso que começaremos a fazer agora. (FC&V, nº 139, jun. 2018, p. 22-24).

Já o enunciado francês faz parte da primeira seção do artigo analisado, escrito por Alexandre Lacroix, diretor-chefe da revista. Essa seção tem por título “Prejudicar os animais?” [Nuire aux animaux ?]12 12 O artigo é dividido em três seções: “Prejudicar os animais?” [Nuire aux animaux ?]; “Prejudicar o meio-ambiente?” [Nuire à la nature ?] e “Prejudicar-se ?” [Se nuire ?]. . Vejamos o enunciado:

Consommer de la viande revient à cautionner et même à financer la souffrance des animaux dans les élevages intensifs et leur mise à mort dans les abattoirs. Ces dernières années ont été marquées par des scandales en cascade sur les conditions de production de la viande industrielle. Les poulets élevés en batterie subissent une opération de débecquage. L’appareil qui tranche le bec des poussins endommage les voies nasales, crée des plaies purulentes souvent infectées. Ils grandissent dans des hangars violemment éclairés. Les porcs ont la queue tranchée ; on leur meule les dents pour éviter les morsures ; les mâles sont castrés. Ils sont soustraits à leur mère après trois ou quatre semaines, au lieu de trois ou quatre mois naturellement. Les bâtiments sont surpeuplés. 20% des cochons ne résistent pas à ces conditions de vie et meurent avant l’abattage, pourtant prévu cent quatre-vingts jours après la naissance seulement. Des doses massives d’antibiotiques sont administrées aux porcs, ovins et bovins durant l’élevage. Ce qui présente un double danger : ces espèces développent des infections antibio-résistantes ; les consommateurs avalent à leur insu des doses d’antibiotiques, au risque de rendre leurs propres traitements moins efficaces. En pisciculture, le tableau est encore moins rose : les poissons sont élevés dans des bassins bondés, souillés par leurs déjections. Comme ils se blessent mutuellement à coups de nageoires, des antibiotiques sont saupoudrés sur l’eau afin que les plaies ne dégénèrent pas. Curieusement, avant même que les journalistes d’investigation ou qu’une association militante, L214, fassent sortir ce type d’informations de la filière carnée, un philosophe, Peter Singer, professeur d’éthique appliquée à Princeton, avait largement décrit ces pratiques dans La Libération animale (1975), qui a lancé le concept de spécisme.[1] « Les racistes, y écrit Peter Singer, violent le principe d’égalité en donnant plus de poids aux intérêts des membres de leur propre race lorsqu’il y a conflit entre ces intérêts et ceux d’une autre race. Les sexistes violent le princ[ip]e d’égalité en favorisant les intérêts de leur propre sexe. De même, les spécistes font primer les intérêts de leur propre espèce sur les intérêts plus grands des membres des autres espèces. »En clair, il n’est pas spéciste de tuer un ours blanc pour sauver sa vie ; mais il est spéciste de tuer un bœuf pour le manger, car l’animal éprouve plus d’intérêt à rester vivant que nous n’avons de nécessité de déguster son entrecôte. (PM, nº 117, mar. 2018, p. 50-51).13 13 “Consumir carne implica em abonar, e mesmo financiar, o sofrimento dos animais nas criações intensivas, bem como sua morte nos abatedouros. Esses últimos anos foram marcados por escândalos em cascata sobre as condições de produção da carne industrial. Os frangos criados em série sofrem uma operação de corte de bico. O aparelho que corta o bico dos pintinhos danifica as vias nasais, cria feridas purulentas frequentemente infectadas. Eles crescem em gaiolas violentamente iluminadas. Os porcos têm o rabo cortado; os seus dentes são serrados para evitar as mordidas; os machos são castrados. Eles são retirados de suas mães depois de três ou quatro semanas, em vez dos três ou quatro meses naturais. As granjas de suínos são superpovoadas. 20% dos porcos não resistem a essas condições de vida e morrem antes do abate, previsto para cento e oitenta dias somente após o nascimento. Doses maciças de antibióticos são aplicadas nos porcos, nos ovinos e nos bovinos durante o abate. O que apresenta um duplo perigo: essas espécies desenvolvem infecções resistentes a antibióticos; os consumidores tomam à sua revelia doses de antibióticos, com o risco de tornar seus próprios tratamentos menos eficazes. Em piscicultura, o quadro é ainda menos cor-de-rosa: os peixes são criados em piscinas cheias, sujos com seus próprios dejetos. Como eles se machucam mutuamente a golpes de nadadeira, os antibióticos são polvilhados sobre a água para que as feridas não degenerem. Curiosamente, antes mesmo que os jornalistas de investigação ou que uma associação militante, a L214, fizessem circular esse tipo de informações sobre a filial carnista, um filósofo, Peter Singer, professor de ética aplicada em Princeton, tinha descrito longamente essas práticas em Libertação animal (1975), que lançou o conceito de especismo. “Os racistas, escreve Peter Singer, violam o princípio de igualdade, dando mais peso aos interesses dos membros da sua própria raça quando há conflito entre esses interesses e aqueles de uma outra raça. Os sexistas violam o princípio da igualdade, favorecendo os interesses do seu próprio sexo. Da mesma forma, os especistas fazem prevalecer os interesses da sua própria espécie sobre os interesses maiores dos membros de outras espécies.” Que fique claro: não é especista matar um urso branco para salvar a sua própria vida; mas é especista matar um boi para comê-lo, pois o animal tem mais interesse em ficar vivo, do que nós, a necessidade de degustar o seu filé de costela.” (tradução nossa).

Vejamos como uma análise baseada nas categorias bakhtinianas de entonação valorativa, relações dialógicas e modos de transmissão do discurso alheio nos permite compreender os discursos sobre o veganismo na revista brasileira e na revista francesa.

Uma argumentação favorável ou não ao veganismo

O autor do artigo de FC&V parte do princípio de que os leitores desconhecem o sofrimento dos animais na indústria da carne, sofrimento este que, segundo o título do artigo, é “negligenciado” (vivemos “numa sociedade na qual parte majoritária da população não está ciente do exposto”, segundo o autor). Na revista francesa, PM, o autor parte do princípio de que os leitores já tomaram conhecimento dos fatos relatados pela mídia francesa, ainda mais que “[e]sses últimos anos foram marcados por escândalos em cascata sobre as condições de produção da carne industrial”, conforme o enunciado apresentado acima. O que seria novidade para o leitor presumido francês é que um filósofo já tenha abordado esses fatos muito antes, como mostra o trecho final do exemplo. Embora possam ter panos de fundo diferentes, ambos os enunciados incidem sobre uma descrição eloquente dos sofrimentos dos animais, provocando o mesmo efeito sobre o leitor: aversão aos maus tratos aos quais esses animais são submetidos.

Como anunciamos na introdução, nossas análises são baseadas na análise de discursos comparativa de inspiração bakhtiniana. Pistori vem mostrando, numa série de artigos publicados nos últimos anos (2018, 2014 etc.), que é possível articular os conceitos bakhtinianos com conceitos provenientes da retórica:

A aliança dos conceitos bakhtinianos [com] conceitos da retórica, antiga e/ou nova, poderia parecer estranha a alguns, considerando as várias apreciações negativas a esta última na obra de Bakhtin e do Círculo. No entanto, vários trabalhos têm constatado que tais ligações tanto são possíveis quanto produtivas e auxiliam o entendimento do modo como se constrói a persuasão, sobretudo por meio dos conceitos de entonação apreciativa, dialogia, bivocalidade e palavra autoritária [...] (PISTORI, 2014PISTORI, M. H. C.. Dialogia na persuasão “publicitária”. Bakhtiniana, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 148-167, 2014., p. 155).

Num outro artigo de 2018, a autora mostra que, para Aristóteles, o pathos é caracterizado “pelas disposições que cria no auditório” (PISTORI, 2018PISTORI, M. H. C. Ethos e pathos no discurso do Ministro-Relator do Supremo Tribunal Federal. Bakhtiniana, São Paulo, v.13, n.1, p. 71-93, 2018., p. 74) e que em Bakhtin também está presente a “considera[ção] [d]o destinatário e a antecipação de sua atitude responsiva (BAKHTIN, 2006a, p. 302)” (PISTORI, 2018PISTORI, M. H. C. Ethos e pathos no discurso do Ministro-Relator do Supremo Tribunal Federal. Bakhtiniana, São Paulo, v.13, n.1, p. 71-93, 2018., p. 75). Nos exemplos analisados, vemos que os seus autores apresentam argumentos racionais para que o leitor reflita sobre o consumo da carne (o autor de FC&V intitula a seção analisada “Os fatos”); mas podemos perceber que os seus autores dão um tom emotivo a esses fatos apresentados, com vistas a suscitar paixões no “auditório”. No excerto de Pistori (2014)PISTORI, M. H. C.. Dialogia na persuasão “publicitária”. Bakhtiniana, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 148-167, 2014. supracitado encontramos o termo “entonação apreciativa”; já num artigo de 2016, a mesma autora emprega o termo “entonação valorativa” ao afirmar que, no corpus por ela analisado, “a entonação valorativa [assim como as relações dialógicas] constituem a argumentação” (PISTORI, 2016, pPISTORI, M. H. C. Relações dialógicas e persuasão. Linha D’Água, São Paulo, v. 29, n. 2, p.173-193, dez. 2016., p. 187). Por isso, antes de partirmos para as análises, precisamos elucidar o que são as entonações para o Círculo de Bakhtin.

Na obra O método formal nos estudos literários, Medviédev (2016)MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2016. esclarece a relação entre dois conceitos: o de avaliação social e o de entonação expressiva. De início ele apresenta uma definição de avaliação social, que seria “[...] aquele elemento que reúne a presença material da palavra com o seu sentido” (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2016., p. 183). Essa definição é apresentada após toda a discussão realizada anteriormente pelo autor no campo da literatura sobre o método dos formalistas, que, segundo ele, teriam “medo do sentido na arte” (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2016., p. 182). Medviédev (2016)MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2016. defende que a avaliação social deve integrar o estudo da literatura no método sociológico, ressaltando que “a avaliação social não é atributo exclusivo da poesia. Ela está presente em cada palavra viva, já que a palavra faz parte de um enunciado concreto e singular. O linguista abstrai-se da avaliação social, da mesma forma que se abstrai das formas concretas do enunciado.” (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2016., p. 183).

Num artigo recente, discutimos a importância das categorias enunciativas e discursivas presentes nos trabalhos do Círculo de Bakhtin para a análise de discursos comparativa tal como ela vem sendo abordada no Brasil de um ponto de vista bakhtiniano (cf. SARDÁ, 2021SARDÁ, D. N. A análise de discursos comparativa no Brasil: uma reflexão a partir da noção de categoria. Bakhtiniana, São Paulo, v. 16, n. 2, p.153-177, abr.-jun. 2021.). O que temos no trabalho do Círculo, com a discussão sobre a avaliação social e a entonação expressiva, é a criação de categorias discursivas que transcenderiam o domínio da língua sem, no entanto, desconsiderá-la. É somente em textos mais tardios, como O problema do texto na Linguistica (2011 [1959-1961]BAKHTIN, M. M. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 307-335.) e Problemas da poética de Dostoiévski (2018 [1963]), que Bakhtin mencionará a criação da metalinguística, programa que está na origem da Análise Dialógica de Discurso (cf. BRAIT, 2018BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2018. p. 9-31.). Mas o trecho a seguir, do texto de Medviédev de 1928 (2016), já mostra como o estudo da “escolha e [d]a avaliação dos elementos linguísticos” articula os níveis linguístico e extralinguístico:

Tal abstração [a abstração operada pela linguística] é totalmente justificada, necessária e ditada pelos objetivos cognitivos e práticos da própria linguística. Sem ela, não é possível construir o conceito de língua como um sistema. Por isso, é possível e necessário estudar as funções da língua e dos seus elementos na construção poética, bem como as suas funções em vários tipos de enunciados cotidianos, discursos públicos, construções científicas etc. Esse estudo, é verdade, tem que se apoiar na linguística, mas ele não será linguístico. Os princípios orientadores para a escolha e a avaliação dos elementos linguísticos podem providenciar apenas formas e objetivos das formações ideológicas correspondentes. (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2016., p. 142, grifo nosso).

Em outras palavras, é no nível enunciativo-discursivo que a avaliação social poderá ser compreendida14 14 Na visão de Volóchinov (2018, p, p. 197), “[a] ênfase valorativa é deixada à margem da linguística juntamente com o enunciado unitário (parole)”. O estudo da entonação é importante porque é ela que relaciona a palavra com a situação extraverbal (cf. VOLÓCHINOV, 2019, p, p. 118). . A avaliação social determina as escolhas do locutor por uma determinada palavra, expressão etc.:

Pois é essa avaliação social que atualiza o enunciado tanto no sentido da sua presença fatual quanto no do seu significado semântico. Ela determina a escolha do objeto, da palavra, da forma e a sua combinação individual nos limites do enunciado. Ela determina, ainda, a escolha do conteúdo e da forma, bem como a ligação entre eles. (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2016., p. 184).

Além disso, Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2016., p.185) acrescenta que “é impossível compreender um enunciado concreto sem conhecer sua atmosfera axiológica e sua orientação avaliativa no meio ideológico.” Por isso, compreender a dinâmica das esferas da atividade humana (ou esferas ideológicas), o seu diálogo com os discursos da divulgação da filosofia nas revistas do Brasil e da França, é essencial para a compreensão dos discursos sobre o veganismo aí presentes. A avaliação social é, portanto, um conceito amplo. Nenhum discurso é neutro: são os autores dos artigos que escolhem as palavras e expressões adequadas para abordarem o tema do veganismo; todavia, eles o fazem em conformidade com o “meio ideológico”. Assim, um discurso influenciado pela esfera acadêmica não adotará o mesmo “tom” de um discurso cuja influência é a esfera jornalística. É por meio das entonações que a avaliação social ganhará forma.

Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2016., p.185, grifo nosso) esclarece que “[a] avaliação social determina todos os aspectos do enunciado, penetrando-o por inteiro, porém, ela encontra a expressão mais pura e típica na entonação expressiva.” A leitura de Marxismo e Filosofia da Linguagem (doravante MFL), de Volóchinov (2018)VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018., é essencial para o aprofundamento dessa questão15 15 A tradução da editora 34, realizada diretamente do russo por Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, inclui um glossário dos termos empregados na obra. O que até aqui foi tratado como “avaliação social” aparece em MFL como “avaliação ideológica” (na página 93), “ênfase valorativa” (nas páginas 110, 197 e 233), “valor social” (na página 111), “ênfase ideológica” (na página 111) e “ênfase social” (na página 111). Ver a entrada “ênfase valorativa” do Glossário (p. 357). Higashi (2019) nota, também, que “o termo entonação valorativa se apresenta de forma diversificada nas obras do Círculo de Bakhtin” (p. 108). Segundo a autora, “encontramos como correlatos as noções tom emotivo-volitivo, índice social de valor, entonação expressiva, posicionamento valorativo, apreciação avaliativa, acento de valor ou apreciativo e tom” (idem, ibdem, p. 108). . Volóchinov (2018)VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018. estabelece um vínculo entre avaliação (social) e ênfase valorativa:

Qualquer palavra realmente dita não possui apenas um tema e uma significação no sentido objetivo, conteudístico dessas palavras, mas também uma avaliação, pois todos os conteúdos objetivos existem na fala viva, são ditos ou escritos em relação a certa ênfase valorativa. Sem uma ênfase valorativa não há palavra. (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018., p. 233)

Para explicar o que é a ênfase valorativa, Volóchinov (2018)VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018. analisa detalhadamente o conceito de entonação expressiva. Esta ajudaria na transmissão da avaliação social: “A camada mais evidente, mas ao mesmo tempo a mais superficial, da avaliação social contida na palavra é transmitida com a ajuda da entonação expressiva.” (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018., p. 233). Tal entonação parece ter um caráter prosódico, pois diferentes modos como uma mesma palavra pode ser enfatizada num discurso verbal são citados (nas páginas 233-235). Para compreender o significado das diferentes entonações dadas à mesma palavra por cada um dos participantes de uma conversação, é preciso estar a par do “contexto da vida mais próximo” desses participantes (cf. VOLÓCHINOV, 2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.109-146., p. 121). No entanto, conforme Volóchinov esclarece: “nem todas as avaliações sociais são assim. A avaliação social tem uma enorme importância, mesmo em um enunciado com um sentido mais amplo e apoiado em um vasto auditório social” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 236). Isso ficará mais claro com a análise dos discursos sobre o veganismo nas revistas aqui estudadas. Em semelhantes casos, de discursos de divulgação escritos para um grande público,

[a]pesar de essa avaliação não ser expressa adequadamente por meio de uma entonação, ela determinará a escolha e a ordem de todos os principais elementos significantes do enunciado. Não existe um enunciado sem avaliação. Todo enunciado é antes de tudo uma orientação avaliativa. Por isso, em um enunciado vivo, cada elemento não só significa mas também avalia. Apenas um elemento abstrato, percebido no sistema da língua e não na estrutura do enunciado, aparece privado de avaliação. (VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018., p. 236).

Num ensaio publicado em 1926 – “A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica” –, Volóchinov (2019)VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.109-146. já havia abordado a questão da avaliação social, sendo bastante claro na sua explicação sobre a entonação (que mantém uma relação estreita com a avaliação social):

A avaliação social saudável permanece na vida e a partir de lá organiza a própria forma do enunciado e a sua entonação, mas de modo algum tende a encontrar uma expressão adequada no conteúdo da palavra. Assim que a avaliação passar dos aspectos formais para o conteúdo, é possível afirmar com segurança que uma reavaliação está sendo preparada. Desse modo, a avaliação essencial não está em absoluto no conteúdo da palavra e não pode ser deduzida dela; mas, em compensação, ela determina a própria escolha da palavra e a forma do todo verbal, encontrando a mais pura expressão na entonação. A entonação estabelece uma relação estreita da palavra com o contexto extraverbal: é como se a entonação viva levasse a palavra para fora dos seus limites verbais. (VOLÓCHINOV, 2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.109-146., p. 122-123, grifo do autor).

O autor, nessa mesma obra, afirma que “[...] aquele horizonte único sobre o qual se fundamenta o enunciado pode ampliar-se tanto no espaço quanto no tempo: existe o ‘subentendido’ de uma família, de uma linhagem, de uma nação, de uma classe, ou dos dias, dos anos e de épocas inteiras.” (VOLÓCHINOV, 2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.109-146., p. 121, grifo do autor). Quando empregarmos nas nossas análises o termo “entonação valorativa”, observaremos, por exemplo, como as escolhas lexicais realizadas pelos autores, nas revistas de divulgação da filosofia publicadas no Brasil e na França, relacionam-se com uma avaliação social sobre o veganismo. Como vimos anteriormente, há toda uma concepção de ideologia compartilhada pelos autores do Círculo – sobretudo por Volóchinov e Medviédev – que perpassa o conceito de avaliação social. Voltemos, agora, para a análise do corpus.

No enunciado da revista brasileira, o autor inicia a argumentação posicionando-se contra a exploração de animais na indústria da carne. Essa argumentação começa com o emprego de uma conjunção concessiva (“embora”) e é seguida por uma escolha lexical que visa a provocar horror e compaixão nos seus leitores, com o emprego de substantivos que caracterizam esses maus tratos, tais como “estresse”, “mutilação” e “sofrimento”: “Embora existam instituições que regulam esse tipo de agronegócio, estresse, mutilações, enfim, sofrimentos de toda ordem estão presentes na produção de produtos de origem animal”. Ainda no campo das escolhas lexicais, outros elementos marcam o modo como o autor do enunciado avalia a situação dos animais na indústria da carne. Podemos citar outros substantivos, como “agressividade”, “superlotação” e “dor”, além de descrições do sofrimento psíquico e físico ao qual os animais estão submetidos ao “entra[rem] em pânico”, terem um “espaço individual restrito” e ouvirem “ruídos fortes”. Os animais são “humanizados” no enunciado brasileiro, e sempre descritos como seres que recebem os maus-tratos. O autor diz explicitamente que essa violência é exercida pelos seres humanos: “maus-tratos causados por humanos a outros seres sencientes”, ou seja, seres que, como nós, humanos, também sentem dor. Para cada animal temos a associação de um sofrimento específico, com ênfase num vocabulário de patologias: os porcos sofrem de “obesidade” e “artrite”; os bezerros têm os “joelhos [...] inchados e doloridos”; as vacas sofrem de “mastite”, doença caracterizada por “uma inflamação nas glândulas mamárias”. Haja vista que adotamos neste artigo uma perspectiva que considera os trabalhos de Bakhtin e do Círculo, o enunciado, aqui, é encarado como um enunciado concreto. Nas palavras de Higashi (2019HIGASHI, A. M. F. O destinatário inscrito nas exposições de divulgação científica do Catavento Cultural e Educacional. Orientadora: Sheila Vieira de Camargo Grillo. 2019. 339 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019., p.108),

[...] o enunciado [...] entendido como descrito na teoria dialógica do Círculo [é] uma unidade real da comunicação discursiva, um ato social, um todo de sentido, um conjunto material peculiar – sonoro, pronunciado (escrito), visual – e uma parte da realidade social, uma vez que, como bem teorizou Medviédev (2012 [1928]), a presença do enunciado é histórica e socialmente significativa. Assim, se o enunciado é sócio-histórico, ele necessariamente é envolto por uma atmosfera axiológica e por uma orientação avaliativa que também determinam todos os seus aspectos. Na visão de Medviédev, a entonação valorativa é a manifestação mais viva da avaliação social, visto que ao escolher as palavras, o falante/escrevente seleciona, confronta e combina os acentos expressivos nelas incluídas.

Dessa maneira, entendemos que o autor do enunciado da revista brasileira seleciona palavras que remetem ao sofrimento, a fim de dar ênfase ao que ocorre na criação intensiva de animais nas indústrias. O vocabulário selecionado só remete ao campo do agradável quando menciona as agências de publicidade. Aí temos “vacas sorrindo” e “frangos felizes e saltitantes”. É feita uma crítica direta a essas agências publicitárias, pois, dado o que foi exposto anteriormente, tais animais não poderiam estar felizes. O autor evoca a esfera publicitária por acreditar que a maioria da população não está ciente dos maus tratos aos animais pela indústria da carne. Ainda conforme Higashi (2019HIGASHI, A. M. F. O destinatário inscrito nas exposições de divulgação científica do Catavento Cultural e Educacional. Orientadora: Sheila Vieira de Camargo Grillo. 2019. 339 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019., p.108),

a entonação do falante/escrevente também é orientada pelas avaliações sociais presumidas e pela atitude do locutor em relação ao interlocutor, aspecto que adquire grande importância na construção do enunciado na medida em que ela também regula a seleção do material e da forma do todo verbal.

Notamos, ainda, que o autor do enunciado brasileiro emprega o vocabulário corrente dos discursos em defesa dos animais e que demonstra empatia por eles, a exemplo de “jovem animal”, “animais não humanos” e “animais sencientes”. Em suma, toda a argumentação é construída de modo a convencer o leitor de que há um grande sofrimento infligido aos animais pela indústria.

O enunciado da revista francesa também se inicia mencionando a criação intensiva dos animais em abatedouros, afirmando que os consumir significa “abonar” e “financiar” esse sofrimento. A escolha vocabular é feita de modo a provocar o sentimento de horror e de compaixão pelos animais, como em “souffrance” [sofrimento] e “mort” [morte]. Além disso, o autor descreverá igualmente, como no exemplo brasileiro, os detalhes desse sofrimento para cada espécie de animal envolvida, por vezes focando nas doenças geradas: “poulets élevés en batterie” [frangos criados em série], “hangars violemment éclairés” [gaiolas violentamente iluminadas], “les voies nasales [endommagées]” [vias nasais danificadas], “plaies purulentes souvent infectées” [feridas purulentas frequentemente infectadas], “infections antibio-résistantes” [infecções resistentes a antibióticos], “[d]es poissons [...] élevés dans des bassins bondés, souillés par leurs déjections” [peixes [...] criados em piscinas cheias, sujos com os seus próprios dejetos] etc. Essa listagem dos sofrimentos dos animais vem após a menção à esfera do jornalismo e os “escândalos em cascata” aos quais o leitor francês já estaria habituado pela mídia (diferentemente do que ocorre no enunciado brasileiro, cujo autor sustenta que tais eventos são pouco conhecidos).

Já que o tema do artigo analisado é o veganismo, é interessante notar, também, os elementos que estão ausentes na listagem da revista francesa. No enunciado brasileiro, são descritos os sofrimentos dos animais no processo que culmina no consumo da sua carne, assim como na produção de leites e ovos. Mesmo a produção do foie gras é descrita no contexto brasileiro (e não é feita no contexto francês, donde origina-se esse alimento, considerado uma iguaria). No enunciado francês, a listagem é interrompida após a exposição do sofrimento dos peixes; ou seja, não é abordada a questão da produção de leites e ovos – o que seria esperado num texto cujo tema é o veganismo. Tal aspecto corrobora o fato de que tudo isso já seria do conhecimento do leitor (o autor do artigo está apenas recapitulando fatos conhecidos e, por conseguinte, não precisa sequer listá-los até o final). Do ponto de vista argumentativo, concluímos que o autor do enunciado brasileiro pretende persuadir o leitor a repensar o consumo de carne, enquanto que o mesmo não parece ocorrer no enunciado francês (ainda que os dois enunciados apresentem elementos que apelam para as emoções do leitor). É importante observar, também, que em outra passagem dos artigos em questão – os enunciados analisados aqui são recortes de um artigo maior – o autor brasileiro afirma, em primeira pessoa, que uma diminuição no consumo de carne já seria bem-vinda: “Embora o ideal seja se abster de produtos de origem animal, dado o brutal sofrimento que é infligido a eles, creio que o minimamente razoável seria uma diminuição drástica do consumo de carne, ovos, leite e seus derivados” (FC&V, nº 139, jun. 2018, p. 27, grifo nosso). No contexto francês, o autor afirma o seguinte:

Há, pois, três motivos morais sérios para se optar pelo vegetarianismo ou pelo veganismo. No entanto, a maioria dos leitores deste artigo, mesmo que aprovem de coração cada um desses argumentos, não darão um passo adiante. Não mais que o autor dessas linhas. Por quê? Antes de tudo, por causa de um fenômeno que se chama, em filosofia ética, acrasia16 16 No original: “ll y a donc trois raisons morales sérieuses d’opter pour le végétarisme ou le véganisme. Pourtant, la plupart des lecteurs de cet article, même s’ils approuvent de tout cœur chacun de ces arguments, ne feront pas le saut. Pas plus que l’auteur de ces lignes. Pourquoi ? D’abord, à cause d’un phénomène qu’on appelle, en philosophie éthique, l’acrasie.” (PM, No. 117, Mar. 2018, p. 51). (PM, nº 117, mar. 2018, p. 51, grifo do autor).

O autor evoca, no último parágrafo do artigo analisado, o conceito de acrasia (do grego akrasía, “intemperança”), que diz respeito à falta de vontade e de determinação. Tal fato mostra que toda a argumentação apresentada não tinha, portanto, o intuito de convencer o leitor a considerar o veganismo como uma opção alimentar, o que é curioso, pois a revista francesa já evidenciava, pela escolha lexical, que consideraria a questão alimentar na sua abordagem do tema, conforme anunciamos no início das análises. Se observarmos o próprio título do dossiê, fica ainda mais evidente que o objetivo da revista francesa não era convencer o leitor a considerar a possibilidade de adotar o veganismo, visto que temos como subtítulo o enunciado “Être ou ne pas être carnivore” [Ser ou não ser carnívoro]. Ora, sabemos que praticamente nenhum ser humano mantém uma dieta exclusivamente carnívora; o termo mais apropriado seria “onívoro”.

Um diálogo entre diferentes esferas da atividade humana

Numa breve leitura dos dois enunciados que compõem a nossa análise, percebe-se, de início, que o artigo de FC&V apresenta traços marcantes de um didatismo mais “escolar” do que o presente no enunciado de PM. São traços desse didatismo a utilização do “nós inclusivo”; o autor do texto conduz o leitor em passagens como “Vejamos algumas situações que atestam isso”, no final do primeiro parágrafo, e em “É isso que começaremos a fazer agora”, no final do último parágrafo reproduzido. Tal fato reforça que a divulgação da filosofia, no Brasil, se dá por meio de um diálogo com a esfera escolar. Dito de outro modo: não somente os editores manifestam a vontade de estabelecer esse diálogo, como o próprio discurso das revistas brasileiras apresenta claramente essas marcas. A maneira como os autores tratam os leitores presumidos nas duas línguas-culturas pode oferecer pistas sobre as características da divulgação da filosofia em ambos as línguas-culturas analisadas, pois, conforme explica Grillo (2006, pGRILLO, S. V. de C. Esfera e campo. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p.133-160., p.146), “a relação do enunciado com seus coenunciadores – a antecipação de sua atitude responsiva, o conhecimento de sua posição social, seus gostos, suas preferências, etc. – também é condicionada pelas especificidades de um campo.” Assim, a esfera da divulgação da filosofia, no Brasil, parece estar mais próxima da esfera didática (escrita semelhante à de livros didáticos).

Dito isso, ao observarmos as formas de transmissão do discurso alheio, parece-nos que a revista francesa pressupõe um leitor mais informado (que está a par dos discursos recentes da mídia sobre o veganismo, os quais vieram à tona em virtude de ações de militantes veganos), enquanto que a revista brasileira parece mais próxima da filosofia pura, priorizando um diálogo mais estreito com as esferas acadêmica e filosófica. Assim, o autor do enunciado brasileiro ancora todo o seu discurso no discurso filosófico. Há uma separação em parágrafos, cada qual tendo por tema o sofrimento ligado a um animal ou grupo de animais específico (frango; suínos e bovinos; carne de vitela; produção de leite e ovos) e uma citação de um filósofo que já abordou o tema (o principal deles sendo Peter Singer). Volóchinov (2018VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018., p. 244) afirma o seguinte sobre o parágrafo:

Se penetrássemos mais profundamente na essência linguística dos parágrafos, nos convenceríamos de que em alguns traços essenciais eles são análogos às réplicas de um diálogo. É como se fosse um diálogo enfraquecido que passou a integrar um enunciado monológico. A percepção do ouvinte e do leitor, bem como das suas reações possíveis, fundamenta a divisão do discurso em partes que, na linguagem escrita, são designadas como parágrafos.

Para Volóchinov (2018VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018., p. 252), “a transmissão é voltada para um terceiro, isto é, àquele a quem são transmitidas as palavras alheias.” Dessa forma, tendo em vista a dimensão argumentativa do discurso em questão, percebemos que o objetivo do autor é o de validar esse discurso, mostrando ao leitor que se trata de uma pesquisa embasada em estudos que demonstram a prática da violência contra os animais (e que não se trata, pois, somente da sua opinião enquanto autor). Essa tendência é tão forte que, para cada parágrafo, temos um trecho entre aspas com discursos diretos preparados (cf. VOLÓCHINOV, 2018VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018.). São exemplos dessa tendência as passagens de [1] a [5] destacadas em negrito no exemplo de FC&V acima. Entretanto, destacamos o seguinte excerto a fim de ilustrar melhor essa tendência:

[...] Os frangos de corte são confinados de tal modo que o espaço individual para cada ave é tão restrito que eles ficam permanentemente em contato uns com os outros durante toda a sua vida. Para que eles não percam tempo escolhendo o seu alimento e engordem rapidamente, maximizando os investimentos, é comum cortar-lhes o bico. Como a superpopulação de frangos gera agressividade, tenta-se contornar isso diminuindo a luminosidade do ambiente, pois [1] “quando há luz normal, o estresse provocado pela superlotação e a ausência de escapes naturais para a energia das aves levam à deflagração de brigas, nas quais os frangos bicam as penas uns dos outros e, às vezes, matam-se e comem uns aos outros” (2010, p. 146). Contudo, além de não eliminar a agressividade, as aves [2] “não habituadas à luz intensa, a ruídos fortes ou a outras fontes de perturbação podem entrar em pânico em função de alguma alteração súbita” (2010, p. 152). [...]

Vemos, no excerto acima, que as duas passagens em discurso direto (em negrito) são antecedidas por discursos indiretos. Ou seja: toda a argumentação do autor é inspirada em Singer (2010). Vemos, portanto, que a influência da esfera acadêmica no enunciado da revista brasileira é notável. Além disso, todas as citações literais e as paráfrases apresentam a referência completa, com ano e página – exatamente o contrário do que acontece no enunciado francês. Este é redigido num único parágrafo, e todos os exemplos sobre a exploração animal formam uma espécie de lista, conforme já anunciamos anteriormente17 17 Sobre as listas, ver Sardá (2017). . Para Volóchinov (2018VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018. [1929], p. 244), “[n]a medida em que enfraquece a percepção do ouvinte e a consideração das suas possíveis reações, nossa fala será mais indivisível, no sentido da paragrafação”. Em outras palavras, o autor francês não leva em conta as considerações do leitor sobre o que está sendo dito/escrito, pois este já teve acesso àquelas informações pela mídia. Por um lado, a revista brasileira dá uma maior relevância aos discursos filosóficos, pois estes dão o tom na escrita do artigo, fundamentando cada uma das passagens; por outro lado, a revista francesa parte de informações já conhecidas para chegar ao discurso filosófico, com a citação de Peter Singer fechando o parágrafo. Nessa citação, aliás, é apresentado um conceito filosófico desenvolvido por esse autor: o conceito de especismo:

[...] Curieusement, avant même que les journalistes d’investigation ou qu’une association militante, L214, fassent sortir ce type d’informations de la filière carnée, un philosophe, Peter Singer, professeur d’éthique appliquée à Princeton, avait largement décrit ces pratiques dans La Libération animale (1975), qui a lancé le concept de spécisme. « Les racistes, y écrit Peter Singer, violent le principe d’égalité en donnant plus de poids aux intérêts des membres de leur propre race lorsqu’il y a conflit entre ces intérêts et ceux d’une autre race. Les sexistes violent le princ[ip]e d’égalité en favorisant les intérêts de leur propre sexe. De même, les spécistes font primer les intérêts de leur propre espèce sur les intérêts plus grands des membres des autres espèces. »

Vemos que o autor do enunciado francês evoca tanto a esfera do jornalismo quanto a do militantismo vegano, antes de fechar o enunciado com a citação de Peter Singer. É feita uma alusão à associação L214, como se o leitor francês já estivesse a par do ocorrido. Isso porque o veganismo é um tema em voga em ambas as culturas analisadas, mas, na França, um acontecimento bastante específico parece ter dado lugar à publicação desse tema na revista PM. Mais precisamente, no ano de 2018, “militantes veganos” – conforme foram chamados pela mídia francesa – praticaram uma série de ações consideradas violentas contra açougues e abatedouros na França, como atirar pedras em vitrines e invadir propriedades, com o intuito de denunciar a violência à qual os animais são submetidos. Esse ponto tem incidência no enunciado da revista francesa, como atesta a relação dialógica com um outro enunciado: um enunciado da mídia sobre as manifestações de militantes veganos. Na mídia brasileira foi noticiado que a associação L214 se posicionou contra os ataques de outras associações veganas aos açougues e abatedouros franceses, ocorridos em 2018 (ATIVISTAS..., 2018ATIVISTAS veganos defendem ação violenta contra açougues na França. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 out. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/10/ativistas-veganos-defendem-acao-violenta-contra-acougues-na-franca.shtml. Acesso em: 10 fev. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018...
). De acordo com Bakhtin (2018BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5.ed. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018., p. 209), “as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam.” Portanto, para compreendermos e analisarmos um enunciado de uma revista francesa, é importante conhecer o contexto cultural no qual ele está inserto (e não somente conhecer a língua do ponto de vista do código). Vemos, no entanto, que embora a revista francesa dialogue com o discurso jornalístico, é o discurso alheio do filósofo Peter Singer, em discurso direto, que encerra a argumentação apresentada no enunciado francês: é a voz da filosofia que ressoa como argumento final sobre o assunto.

Conclusão

Os discursos sobre o veganismo têm propósitos diferentes nas revistas brasileira e francesa. No Brasil, o autor do enunciado analisado posiciona-se como defensor do veganismo, enquanto que na França o seu autor é ambíguo a esse respeito. Talvez possamos dizer que o discurso da revista brasileira FC&V está mais próximo de uma popularização da filosofia, no sentido apontado por Giacoia Jr. (citado na introdução deste artigo) de analisar os problemas do cotidiano, mas mantendo distância deles, dado que o seu autor pretende levar o leitor a refletir sobre o problema colocado. Em outras palavras, na revista brasileira o autor busca convencer o leitor do sofrimento dos animais a fim de fazê-lo refletir sobre as implicações do consumo de carne e derivados. Já a revista francesa PM estaria mais preocupada em apresentar o tema sem pretensões desse tipo: o papel da DC da filosofia seria, aqui, apresentar os conceitos e as suas origens, ancorados em temas da atualidade, mas sem necessariamente propor uma reflexão filosófica sobre tais conceitos.

Mais do que chegar a uma conclusão sobre esse tema tão discutido atualmente, as análises realizadas neste artigo contribuíram para que respondêssemos às duas questões colocadas no nosso projeto de pós-doutorado: “Como a filosofia é apresentada nas revistas brasileiras e francesas?” e “O que se pretende com a divulgação da filosofia no Brasil e na França?”. Assim, vimos que a revista brasileira FC&V aspira a uma divulgação da filosofia ancorada no rigor acadêmico e num didatismo escolar, enquanto que a revista francesa PM tende a uma divulgação científica, no sentido de explicar conceitos filosóficos com base em acontecimentos midiáticos, mas sem necessariamente convidar o leitor a refletir sobre esses conceitos de forma a mudar comportamentos ou repensar modos de vida.

A especificidade da revista brasileira explica-se pela demanda por leituras na área de ciências humanas por parte do público brasileiro. Era preciso, portanto, valorizar a filosofia (mantendo um rigor acadêmico), a qual foi deixada de lado durante o período da ditadura militar no Brasil, como lembra o editorial de FC&V. Além disso, a revista brasileira é distribuída nas escolas públicas do país, o que contribui para o diálogo com a esfera escolar e acadêmica. A revista francesa, por sua vez, surge da necessidade de conjugar a filosofia e o jornalismo. Espera-se, por conseguinte, uma influência da esfera jornalística nesses discursos, o que não acontece no contexto brasileiro, mesmo quando se parte de um tema como o veganismo, cada vez mais presente na mídia atualmente.

Esses resultados complementam outros que apresentamos em estudos anteriores (cf. SARDÁ, 2020SARDÁ, D. N. A divulgação da filosofia nas revistas Philosophie Magazine e Filosofia Ciência & Vida. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 62, p.1-15, e020020, 2020.), nos quais vimos que havia, na França, um mercado mais especializado na divulgação da filosofia, com jornalistas divulgando diretamente essa disciplina sem passar pelos discursos das esferas acadêmica e escolar, como era o caso no contexto brasileiro. De resto, acreditamos que os resultados aqui encontrados poderão servir de fio condutor para pesquisas futuras sobre outros gêneros presentes nas revistas analisadas.

Agradecimentos

Esta pesquisa foi possível graças ao financimento da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Proc. nº 2017/12306-8).

REFERÊNCIAS

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  • VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018.
  • 1
    Faoze Chibli é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero, atuou como colaborador freelancer na revista Filosofia Ciência & Vida em 2006. Informações obtidas pelo LinkedIn: https://br.linkedin.com/in/faoze-chibli-5b03b467.
  • 2
    Alexandre Lacroix é escritor, ensaísta e jornalista: https://fr.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Lacroix
  • 3
    No original: “Dans les ouvrages de philosophie qui paraissent aujourd’hui, on est souvent surpris de trouver, aux côtés des références canoniques à Platon, Épicure ou Nietzsche, des analyses d’événements politiques, de blockbusters, de faits divers [...] C’est dans ce contexte particulier qu’intervient le lancement de Philosophie Magazine, dont l’ambition est, précisément, de concilier philosophie et journalisme.” (LACROIX, 2006, pLACROIX, A. Éditorial. Philosophie et Journalisme. Philosophie Magazine, Paris, n.1, p.3, 2006., p. 3). Salvo indicação contrária, as traduções, neste artigo, são de nossa autoria e responsabilidade.
  • 4
    Aliás, durante os anos de 2013 e 2014, a revista podia ser lida durante as aulas de filosofia das escolas brasileiras, pois foi selecionada no edital do “PNBE - periódicos”. O PNBE é o “Programa Nacional Biblioteca da Escola” e o “O PNBE Periódicos é direcionado à aquisição e distribuição de revistas pedagógicas para auxiliar o trabalho dos professores da rede pública e do gestor escolar”: https://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/legislacao/item/9698-dados- estatisticos. Acesso em: 07 abr. 2020.
  • 5
    No original: “La démocratisation de la philosophie est un projet ancien.” (MAUBON, 2010, pMAUBON, L. Les ouvrages philosophiques à destination du grand public: pour quelle philosophie? Orientador: Gérard Wormser. 2010. 76 f. Mémoire d’étude (Master 2 Livre et Savoirs) – École Nationale Supérieure des Sciences de l’Information et des Bibliothèques, Lyon, 2010., p. 3).
  • 6
    No original: “véritable engouement pour un certain type de philosophie [...] ainsi qu’en témoignent les succès de librairie de certains ouvrages, la forte présence médiatique de la discipline, et l’existence de véritables philosophes-vedettes.” (MAUBON, 2010, pMAUBON, L. Les ouvrages philosophiques à destination du grand public: pour quelle philosophie? Orientador: Gérard Wormser. 2010. 76 f. Mémoire d’étude (Master 2 Livre et Savoirs) – École Nationale Supérieure des Sciences de l’Information et des Bibliothèques, Lyon, 2010., p. 7).
  • 7
    No original: “compatibilité des contraintes médiatiques avec l’exigence philosophique.” (MAUBON, 2010, pMAUBON, L. Les ouvrages philosophiques à destination du grand public: pour quelle philosophie? Orientador: Gérard Wormser. 2010. 76 f. Mémoire d’étude (Master 2 Livre et Savoirs) – École Nationale Supérieure des Sciences de l’Information et des Bibliothèques, Lyon, 2010., p. 7).
  • 8
    O veganismo é definido pela The Vegan Society como “uma forma de viver que busca excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e de crueldade contra os animais, seja para alimentação, para o vestuário ou para qualquer outro fim” [Veganism is a way of living which seeks to exclude, as far as is possible and practicable, all forms of exploitation of, and cruelty to, animals for food, clothing or any other purpose.] https://www.vegansociety.com/go-vegan/definition-veganism. Acesso em: 15 fev. 2020.
  • 9
    No original: “description de la matérialité linguistique des discours – sans description, on ne se situerait pas dans une perspective linguistique – et à une interprétation des données rassemblées – sans interprétation, la démarche ne relèverait pas de l’AD.” (CLAUDEL et al., 2013CLAUDEL, C. et al. Langue, discours et culture : vingt ans de recherche et comparaison. In: CLAUDEL, C. et al. Cultures, discours, langues: nouveaux abordages. Lyon: Lambert-Lucas, 2013. p. 15-45., p. 22).
  • 10
    No original: “marques linguistiques caractérisant ce type de production.” (REBOUL-TOURÉ, 2004, pREBOUL-TOURÉ, S. Écrire la vulgarisation scientifique aujourd’hui. In: COLLOQUE SCIENCES, MÉDIAS ET SOCIÉTÉ, 2004, Lyon. Actes [...]. Lyon: ENS-LSH, 2004. P.195-212. Disponível em: http://sciences-medias.ens-lyon.fr/article.php3?id_article=65. Acesso em: 20 fev. 2020.
    http://sciences-medias.ens-lyon.fr/artic...
    , p. 208).
  • 11
    Empregamos o negrito para enfatizar os aspectos que serão analisados nos exemplos expostos. Os grifos em itálico figuram no texto original. Numeramos entre colchetes as passagens em discurso direto que serão analisadas mais adiante.
  • 12
    O artigo é dividido em três seções: “Prejudicar os animais?” [Nuire aux animaux ?]; “Prejudicar o meio-ambiente?” [Nuire à la nature ?] e “Prejudicar-se ?” [Se nuire ?].
  • 13
    Consumir carne implica em abonar, e mesmo financiar, o sofrimento dos animais nas criações intensivas, bem como sua morte nos abatedouros. Esses últimos anos foram marcados por escândalos em cascata sobre as condições de produção da carne industrial. Os frangos criados em série sofrem uma operação de corte de bico. O aparelho que corta o bico dos pintinhos danifica as vias nasais, cria feridas purulentas frequentemente infectadas. Eles crescem em gaiolas violentamente iluminadas. Os porcos têm o rabo cortado; os seus dentes são serrados para evitar as mordidas; os machos são castrados. Eles são retirados de suas mães depois de três ou quatro semanas, em vez dos três ou quatro meses naturais. As granjas de suínos são superpovoadas. 20% dos porcos não resistem a essas condições de vida e morrem antes do abate, previsto para cento e oitenta dias somente após o nascimento. Doses maciças de antibióticos são aplicadas nos porcos, nos ovinos e nos bovinos durante o abate. O que apresenta um duplo perigo: essas espécies desenvolvem infecções resistentes a antibióticos; os consumidores tomam à sua revelia doses de antibióticos, com o risco de tornar seus próprios tratamentos menos eficazes. Em piscicultura, o quadro é ainda menos cor-de-rosa: os peixes são criados em piscinas cheias, sujos com seus próprios dejetos. Como eles se machucam mutuamente a golpes de nadadeira, os antibióticos são polvilhados sobre a água para que as feridas não degenerem. Curiosamente, antes mesmo que os jornalistas de investigação ou que uma associação militante, a L214, fizessem circular esse tipo de informações sobre a filial carnista, um filósofo, Peter Singer, professor de ética aplicada em Princeton, tinha descrito longamente essas práticas em Libertação animal (1975), que lançou o conceito de especismo. “Os racistas, escreve Peter Singer, violam o princípio de igualdade, dando mais peso aos interesses dos membros da sua própria raça quando há conflito entre esses interesses e aqueles de uma outra raça. Os sexistas violam o princípio da igualdade, favorecendo os interesses do seu próprio sexo. Da mesma forma, os especistas fazem prevalecer os interesses da sua própria espécie sobre os interesses maiores dos membros de outras espécies.” Que fique claro: não é especista matar um urso branco para salvar a sua própria vida; mas é especista matar um boi para comê-lo, pois o animal tem mais interesse em ficar vivo, do que nós, a necessidade de degustar o seu filé de costela.” (tradução nossa).
  • 14
    Na visão de Volóchinov (2018, pVOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2018., p. 197), “[a] ênfase valorativa é deixada à margem da linguística juntamente com o enunciado unitário (parole)”. O estudo da entonação é importante porque é ela que relaciona a palavra com a situação extraverbal (cf. VOLÓCHINOV, 2019, pVOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.109-146., p. 118).
  • 15
    A tradução da editora 34, realizada diretamente do russo por Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, inclui um glossário dos termos empregados na obra. O que até aqui foi tratado como “avaliação social” aparece em MFL como “avaliação ideológica” (na página 93), “ênfase valorativa” (nas páginas 110, 197 e 233), “valor social” (na página 111), “ênfase ideológica” (na página 111) e “ênfase social” (na página 111). Ver a entrada “ênfase valorativa” do Glossário (p. 357). Higashi (2019)HIGASHI, A. M. F. O destinatário inscrito nas exposições de divulgação científica do Catavento Cultural e Educacional. Orientadora: Sheila Vieira de Camargo Grillo. 2019. 339 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. nota, também, que “o termo entonação valorativa se apresenta de forma diversificada nas obras do Círculo de Bakhtin” (p. 108). Segundo a autora, “encontramos como correlatos as noções tom emotivo-volitivo, índice social de valor, entonação expressiva, posicionamento valorativo, apreciação avaliativa, acento de valor ou apreciativo e tom” (idem, ibdem, p. 108).
  • 16
    No original: “ll y a donc trois raisons morales sérieuses d’opter pour le végétarisme ou le véganisme. Pourtant, la plupart des lecteurs de cet article, même s’ils approuvent de tout cœur chacun de ces arguments, ne feront pas le saut. Pas plus que l’auteur de ces lignes. Pourquoi ? D’abord, à cause d’un phénomène qu’on appelle, en philosophie éthique, l’acrasie.” (PM, No. 117, Mar. 2018, p. 51).
  • 17
    Sobre as listas, ver Sardá (2017)SARDÁ, D. N. As listas e o efeito de apagamento enunciativo nos livros didáticos de filosofia. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v.6, n.2, p. 194-213, 2017..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    7 Ago 2020
  • Aceito
    19 Set 2020
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