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ANÁLISE QUANTITATIVA DE SUBSTANTIVOS, VERBOS E ADJETIVOS DO DISCURSO POLÍTICO DA NOVA DIREITA BRASILEIRA A PARTIR DE TEXTOS COLETADOS NO TWITTER

RESUMO

no presente trabalho, temos por intuito realizar uma análise quantitativa dos substantivos, verbos e adjetivos mais utilizados em 4 mil 523 tweets postados pelo presidente Jair Bolsonaro em seu perfil na rede social Twitter entre 31 de março de 2010, momento em que inicia o seu perfil, e 07 de março de 2019. Como foco, avaliamos a frequência de uso desses itens lexicais e fizemos uma análise linguístico-discursiva da cadeia lexical dessa formação discursiva, nos termos de Pêcheux (2009). Para tanto, organizamos o texto do seguinte modo: na primeira seção, definimos o conceito de nova direita ou extrema-direita brasileira na atualidade; na segunda, através de pesquisas estatísticas, expusemos as principais características da sociedade brasileira que podem estar associadas a esse campo político; e, por fim, na terceira, apresentamos os nossos pressupostos teórico-metodológicos de coleta de dados e realizamos as análises.

análise quantitativa; nova direita brasileira; t; Twitter

ABSTRACT

This study aims to develop a quantitative analysis of the most used nouns, verbs and adjectives in 4,523 tweets posted by President Jair Bolsonaro on his profile on the social network Twitter between March 31, 2010—when the profile was created—and March 7, 2019. We focused on assessing the most frequent lexical items in order to perform a linguisticdiscursive analysis of the lexical chain in these discursive formations, according to Pêcheux (2009)PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2009.. To do so, we organized the text as follows: in the first section, we defined the concept of new Brazilian right wing or present-day Brazilian far right; in the second one, through statistical research, we defined the main characteristics of the Brazilian society that may be associated with this political field; finally, in the third section, we presented our theoretical and methodological assumptions in data collection and carried out the analyses

quantitative analysis; new Brazilian right wing; texts; Twitter

Considerações iniciais

No presente trabalho, temos por intuito realizar uma análise quantitativa dos substantivos, verbos e adjetivos mais utilizados em 4 mil 523 tweets postados pelo presidente Jair Bolsonaro em seu perfil na rede social Twitter entre 31 de março de 2010, momento em que inicia o seu perfil, até 07 de março de 2019. A partir desses dados, faremos uma análise linguístico-discursiva, privilegiando, basicamente, o campo semântico lexical hegemônico nesse discurso. Neste texto, cumpre-nos destacar, priorizamos os dados quantitativos do nosso corpus sobre a extrema-direita ou nova direita brasileira, de modo que, salvo pela primeira seção – na qual discorremos sobre a construção histórica e sociológica desse ideário no país nas últimas décadas –, a segunda e terceira seções apresentam características quantitativas marcantes, seja pelos dados estatísticos sociológicos trazidos, seja pelos dados da análise computacional dos tweets coletados.

Quem fala? A nova direita brasileira como subjetividade política (1983-2019)1 1 O texto está estruturado de modo a tentar entrelaçar os conceitos de ethos, pathos e logos. Por isso, organizamos as seções tentando entender “quem fala”, “quem escuta” e “como se fala”. Por questões de espaço, não desenvolveremos reflexões aprofundadas sobre esses três conceitos argumentativos, resguardando-nos a defini-los rapidamente da seguinte forma: “um argumento são proposições destinadas a fazer admitir uma dada tese. Argumentar é, pois, construir um discurso que tem a finalidade de persuadir. Como qualquer discurso, o argumento é um enunciado, resultante, pois, de um processo de enunciação, que põe em jogo três elementos: o enunciador, o enunciatário e o discurso, ou, como foram chamados pelos retores, o orador, o auditório e a argumentação propriamente dita, o discurso. Esses três fatores concorrem para o ato persuasório” (FIORIN, 2017, p. 69).

Consoante Casimiro (2018)CASIMIRO, F. H. C. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 41-46., não é possível entender o “refluxo reacionário” vivido no Brasil atualmente se focarmos nossas análises apenas nos últimos anos. Nesse intuito, o historiador produz um minucioso mapeamento dos grupos políticos e empresariais associados a esse movimento, bem como do entrelaçamento orgânico entre ambos na formação ideológica do Estado brasileiro contemporâneo e das elites nacionais. Suas conclusões demonstram como o recente extremismo político brasileiro – de conotação primordialmente neoliberal – se constituiu na concretude das relações institucionais, tornando-se, como veremos, fundamentais à nossa compreensão desse fenômeno.

De acordo com a sua perspectiva, a atual dinâmica sócio-política brasileira decorre da reorganização das classes dominantes nacionais ainda na década de 1980, momento no qual, na esteira da abertura política do Regime Militar brasileiro (1964 a 1985), teria emergido uma nova forma de ação político-ideológica desses grupos, atrelada, principalmente, “à representação política não partidária dos segmentos da direita liberal conservadora, atualizada, militante e, muitas vezes, truculenta” (CASIMIRO, 2018CASIMIRO, F. H. C. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 41-46., p. 41). Desde então, acrescenta, suas ações têm se difundido, intensificado e radicalizado.

Para sustentar sua tese, Casimiro (2018)CASIMIRO, F. H. C. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 41-46. avalia o percurso de abertura e organização dos grupos civis de defesa, debate e difusão – think tanks – de ideários políticos liberais e neoliberais no país, responsáveis por harmonizar o pensamento político das elites nacionais com o das internacionais. O primeiro deles, o Instituto Liberal (IL), foi inaugurado em 1983, no Rio de Janeiro, vinculado institucionalmente à Fundação Getúlio Vargas (RJ) e à Escola Monetarista de Chicago. Em 1984, funda-se em Porto Alegre o Instituto de Estudos Empresariais (IEE), com forte teor conservador e principal responsável pela elaboração do Fórum da Liberdade, um dos principais eventos de discussão da agenda política da direita nacional, em colaboração com think tanks internacionais como a Sociedade Mont Pelerin e o Atlas Network.

Na década de 1990, fortalece-se aquilo que se poderia chamar de tendência empresarial do Estado brasileiro, o qual passaria, cada vez mais, a ajustar suas funções com base no modelo de mercado. Nesse momento, constituem-se o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, em São Paulo, responsáveis por “articular e definir as diretrizes das chamadas organizações não governamentais (ONGs) e das fundações e associações sem fins lucrativos (Fasfil)” (CASIMIRO, 2018CASIMIRO, F. H. C. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 41-46., p. 42). Com isso, expandiram seus domínios e passaram a sistematizar e controlar melhor seus métodos de atuação coletiva, os quais, em paralelo ao Estado, permitiram difundir e operacionalizar com mais eficiência suas perspectivas político-ideológicas. Ainda de acordo com Casimiro (2018)CASIMIRO, F. H. C. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 41-46., com a inauguração do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), em São Paulo, em 1989, e do Instituto Atlântico (IA), em 1993, com sede tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, esses grupos econômicos passaram a delinear um projeto político de longo prazo dentro da burocracia do Estado brasileiro. Para o historiador: “Se por um lado seus discursos estão amparados em valores de economia de mercado, por outro seus projetos de nação (dominação de classe) estão essencialmente entranhados na estrutura institucional do Estado” (CASIMIRO, 2018CASIMIRO, F. H. C. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 41-46., p. 42).

Com o tempo, a expansão colaborativa entre tais grupos consolidou uma cadeia interligada de think tanks. O Instituto Atlântico está associado, por exemplo, ao Grupo de Líderes Empresariais (Lide), formado em 2003, e ao Instituto Millenium (IMIL), criado em 2006 durante o XIX Fórum da Liberdade, em Porto Alegre. Para ingressar como membro do Lide, deve-se representar uma empresa nacional ou multinacional com faturamento de, no mínimo, 200 milhões de reais anuais, além de pretender atuar em campanhas político-eleitorais. Em 2004, o Movimento Brasil Competitivo (MBC), fundado em 2001, tornou-se a primeira Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) brasileira, angariando, de um lado, cadeiras permanentes indicadas pela Casa Civil em quatro ministérios e, de outro, pleiteando a diminuição da estrutura estatal. Logo, tanto se insere na máquina do Estado para difundir o seu modelo privado de gestão, intitulado de “modernizador”, como trabalha para o alinhamento ideológico dos grupos econômicos dominantes nacionais (CASIMIRO, 2018CASIMIRO, F. H. C. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 41-46.).

Em 2005, nota-se com mais clareza uma guinada radical dos grupos empresariais e o espraiamento do seu discurso na sociedade civil, apontando para um significativo avanço da direita política no país, associado ao desenvolvimento dos novos meios de comunicação, como as redes sociais. Houve, assim, o fortalecimento do ideário liberal-conservador, das narrativas revisionistas e do uso sistemático das fake news no país, as quais contribuíram para normalizar os discursos de ódio na cena pública brasileira (CASIMIRO, 2018CASIMIRO, F. H. C. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 41-46.).

Mais recentemente, no Fórum da Liberdade de 2010, em coligação com o IL e com o IMIL, organiza-se o Instituto Mises Brasil (IMB), associado à tradição neoliberal austríaca; em especial, ao que ficara conhecido como libertarianismo. Dentre suas pautas políticas, a aversão a qualquer forma de serviço público estatal, a hipertrofia da economia de mercado na gestão da vida social e o foco nas concepções moralistas dos costumes. Por último, no que se refere aos grupos mais expressivos, há o Estudantes pela Liberdade (EPL), concebido no Fórum da Liberdade de 2012 no intuito de representar o público mais jovem e, tendencialmente, universitário. Associado ao Atlas Network, tornou-se uma espécie de versão nacional do grupo norte-americano Students for Liberty: “O EPL organiza, financia e estabelece diretrizes de ação, principalmente, a partir de seu braço de atuação política e ideológica, o Movimento Brasil Livre (MBL)” (CASIMIRO, 2018CASIMIRO, F. H. C. As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo. In: GALLEGO, E. S. O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 41-46., p. 45).

Para Miguel (2018)MIGUEL, L. F. A reemergência da direita brasileira. In: GALLEGO, E. S. (org.). O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p.17-26., a extrema-direita brasileira organiza-se em torno de três eixos políticos, os quais se atravessam formando novas composições, quais sejam: (1) a ideologia libertariana: associada à ultraliberal “escola econômica austríaca”, defende que o Estado deve ser mínimo e, em contrapartida, que o mercado e seus mecanismos são constitutivamente justos. Desse modo, entende a plenitude das relações sociais por uma visão contratual alicerçada no direito de propriedade, dissolvendo os laços de solidariedade social em prol da competição individual. Para esses grupos, a liberdade – representada pelo mercado – tem como principal inimiga a igualdade – representada pelo Estado –; (2) o fundamentalismo religioso: organizado como força política a partir do início dos anos 1990, tem seu crescimento associado à expansão de certos setores das igrejas neopentencostais, os quais fundam-se na “percepção de que há uma verdade revelada que anula qualquer possibilidade de debate” (MIGUEL, 2018MIGUEL, L. F. A reemergência da direita brasileira. In: GALLEGO, E. S. (org.). O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p.17-26., p. 21), opondo-se, principalmente, à legalização do aborto e às políticas de gênero e fomentando o crescimento do poder dos líderes religiosos na estrutura estatal e empresarial. Sua “agenda moral” e capilaridade nas periferias das grandes cidades conquistou parte significativa do eleitorado da esquerda política. Por último, (3) o anticomunismo: presente no período da Guerra Fria, quando Cuba figurava como principal representante comunista das Américas, ganhou novos ares com o bolivarianismo venezuelano. Recentemente, o ideário político passou a ser associado ao petismo, expressão vinculada ao Partido dos Trabalhadores (PT), que governou o país de 2003 a 2016.

Consoante Gallego (2019)GALLEGO, E. S. Eu voto no Bolsonaro porque ele vai mudar o Brasil: escutando os eleitores de Bolsonaro. In: AVRITZER, L. et al. Pensando a democracia, a república e o estado de direito no Brasil. Belo Horizonte: Projeto República, 2019. p.119-130., apesar das diferenças entre os grupos, o eleitorado da extrema-direita brasileira apresentaria as seguintes características: (I) rejeição da política, tendo a corrupção como aspecto argumentativo central; (II) antipetismo e antiesquerdismo, como representantes do comunismo, da negação do trabalho, do aparelhamento do Estado, da agenda LGBT e da defesa dos criminosos; (III) anti-intelectualismo, no sentido de leitores e propagadores de fake news via ferramentas digitais como o WhatsApp; (IV) a política como dogma/verdade absoluta, confundindo, comumente, opinião e informação por meio de uma lógica fundamentalista e hiperpersonalista do conhecimento; (V) militarização da vida pública, entendem que os militares seriam os ordenadores sociais frente ao caos atual por representarem valores como hierarquia, disciplina, autoridade, força, masculinidade e carisma; (VI) emoção do ódio, transformam seus adversários em inimigos (GALLEGO, 2019GALLEGO, E. S. Eu voto no Bolsonaro porque ele vai mudar o Brasil: escutando os eleitores de Bolsonaro. In: AVRITZER, L. et al. Pensando a democracia, a república e o estado de direito no Brasil. Belo Horizonte: Projeto República, 2019. p.119-130.).

Ademais, a socióloga assevera que “As novas direitas se fortalecem no mundo online, nele adquirem sua estética e se apresentam com uma forma jovial, lúdica, ‘bacana’, divertida, explorando inclusive o ridículo político, fazendo uso de uma linguagem pop, sedutora, leve, no formato da palhaçada” (GALLEGO, 2019GALLEGO, E. S. Eu voto no Bolsonaro porque ele vai mudar o Brasil: escutando os eleitores de Bolsonaro. In: AVRITZER, L. et al. Pensando a democracia, a república e o estado de direito no Brasil. Belo Horizonte: Projeto República, 2019. p.119-130., p. 130, itálicos da autora). Tomando por base esse referencial teórico, passamos agora à análise da sociedade brasileira como auditório para o imaginário – saber – político da nova direita brasileira.

Quem escuta? A sociedade brasileira como auditório político (1989-2019)

De acordo com Cerioni (2019)CERIONI, C. Bolsonaro desbanca Trump e é o líder mundial mais ativo no Facebook. Exame, São Paulo, 13 abr. 2019. Brasil, p. 3. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-desbanca-trump-e-e-o-lider-mundial-mais-ativo-no-facebook/. Acesso em: 14 abr. 2019.
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, citando um estudo da empresa Burson Cohn & Wolfe intitulada World Leaders on Facebook, o presidente Jair Bolsonaro ultrapassou Donald Trump como o líder mundial mais ativo no Facebook, chegando à expressiva marca de 145 milhões de interações no período de abril de 2018 a abril de 2019, quase o dobro do presidente norte-americano, o qual obteve a marca de 84 milhões de interações, apesar de possuir 2,5 vezes o número de seguidores virtuais do líder político brasileiro. Bolsonaro conseguiu uma média de 100 mil interações2 2 É importante destacar, contudo, que há uma intensa atuação de robôs no perfil do presidente brasileiro. Para fins de comparação, seria interessante avaliar a proporção do mesmo fenômeno no perfil do líder político norte-americano. De acordo com Lago, Massaro e Cruz (2018), vinculados ao InternetLab e utilizando-se da ferramenta desenvolvida pela Universidade de Indiana (EUA) chamada Botometer, estipula-se que 400 mil seguidores da página do então presidenciável Jair Bolsonaro no Twitter eram robôs, o equivalente a 33,8% do total. a cada publicação na rede social Facebook, enquanto que Trump atingiu uma média de 53 mil interações por publicação.

O político brasileiro demonstra ainda mais a sua eficácia no uso dessas ferramentas digitais quando avaliamos a lista com as 100 publicações globais com maior número de interações. Nelas, Bolsonaro aparece com 61 postagens, seguido por dez do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e nove de Donald Trump. Para realizar a análise, foram avaliadas 962 páginas de chefes de Estado, de governo e de ministros do exterior de todo o mundo no Facebook, concluindo-se, ainda, que, como característica marcante de suas postagens, Bolsonaro, em contraste com os demais, não privilegia temas políticos, aproveitando-se do desengajamento histórico de parte significativa da população nesse assunto (CERIONI, 2019CERIONI, C. Bolsonaro desbanca Trump e é o líder mundial mais ativo no Facebook. Exame, São Paulo, 13 abr. 2019. Brasil, p. 3. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-desbanca-trump-e-e-o-lider-mundial-mais-ativo-no-facebook/. Acesso em: 14 abr. 2019.
https://exame.abril.com.br/brasil/bolson...
).

Além do desinteresse pela política, o público eleitor da extrema direita brasileira se mostrou bastante susceptível a acreditar em fake news, as quais parecem ter sido decisivas para o resultado eleitoral das últimas eleições. Segundo um estudo da organização Avaaz (PASQUINI, 2018PASQUINI, P. Estudo diz que 90% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram em fake news. Valor econômico, São Paulo, 02 nov 2018. Folhapress, p. 3. Disponível em: https://www.valor.com.br/politica/5965577/estudo-diz-que-90-dos-eleitores-de-bolsonaro-acreditaram-em-fake-news. Acesso em: 27 jan. 2019.
https://www.valor.com.br/politica/596557...
), realizada pela IDEA Big Data de 26 a 29 de outubro de 2019 nas redes sociais Facebook e Twitter, 98,21% dos eleitores de Bolsonaro tiveram contato com uma ou mais notícias falsas durante a eleição, sendo que 89,77% deles demonstraram ter acreditado que os fatos veiculados por essas notícias eram verdadeiros. Os casos mais famosos dessas fake news foram os das supostas fraudes nas urnas eletrônicas – em que 93,1% dos eleitores entrevistados tiveram acesso e 74% afirmaram ter acreditado no seu conteúdo – e o da suposta tentativa de implementação do Kit Gay por Fernando Haddad (seu concorrente nas eleições, do Partido dos Trabalhadores) nas escolas públicas do país – em que 85,2% dos eleitores de Bolsonaro entrevistados disseram ter sido expostos à notícia e 83,7% confirmaram ter acreditado nela. Em contraste, entre os eleitores de Haddad, 61% afirmaram ter visto a informação, embora apenas 10,5% tenham afirmado tê-la considerado verdadeira.

Tal situação pode estar relacionada aos baixos índices de leitura no país. Coscarelli (2017)COSCARELLI, C. Letramento digital no Inaf. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.20, n.1, p. 153-174, jan./jun. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/article/view/15221. Acesso em: 28 abr. 2019.
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avalia os dados do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf) de 2011, considerando, para tanto, os seguintes níveis de letramento: (i) analfabeto, quando se trata de um indivíduo que não consegue realizar tarefas simples, como a leitura de palavras e frases, embora possa ser capaz de ler números familiares, tais como de telefone, preços etc.; (ii) rudimentar, quando um indivíduo é capaz de localizar informações em textos curtos e familiares (p. ex. anúncios e cartas), ler e escrever números usuais e realizar operações simples (p. ex. manusear dinheiro para efetuar pagamentos de baixo valor ou mensurar medidas através de fita métrica); (iii) básico, a partir deste nível, o indivíduo já pode ser considerado alfabetizado funcionalmente, na medida em que consegue ler e compreender textos de tamanho médio, localizar informações e realizar pequenas inferências textuais, ler números na casa dos milhões, resolver problemas com sequências simples e ter noção de proporcionalidade; por fim, (iv) pleno, quando as habilidades do indivíduo não impõem mais quaisquer restrições à leitura e interpretação de textos, habilitando-o, por consequência, a ler textos longos, analisar e relacionar as suas partes, comparar e avaliar informações, distinguir fato de opinião e realizar inferências e sínteses. “Quanto à matemática, resolvem problemas que exigem maior planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo de área, além de interpretar tabelas de dupla entrada, mapas e gráficos” (COSCARELLI, 2017COSCARELLI, C. Letramento digital no Inaf. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.20, n.1, p. 153-174, jan./jun. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/article/view/15221. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/ind...
, p. 155-156). Seguindo esse enquadre conceitual, a situação educacional brasileira é alarmante, visto que Coscarelli (2017)COSCARELLI, C. Letramento digital no Inaf. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.20, n.1, p. 153-174, jan./jun. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/article/view/15221. Acesso em: 28 abr. 2019.
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destaca que 73% da população não dispõem de um nível pleno de letramento.

A relação entre analfabetismo funcional, uso das redes sociais e dispersão de fake news no Brasil atual é o mote da matéria assinada por Fajardo (2018)FAJARDO, V. Como o analfabetismo funcional influencia a relação com as redes sociais no Brasil. BBC News Brasil. São Paulo, 12 nov. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46177957. Acesso em: 17 nov. 2018.
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na BBC Brasil, considerando os dados mais recentes do Inaf. Segundo a jornalista, tal indicador distribuiu os níveis de alfabetismo em cinco grupos distintos: analfabeto (8%) e rudimentar (22%), compondo o grupo dos analfabetos funcionais – logo, estamos falando de 30% da população de 15 a 64 anos; elementar (34%), intermediário (25%) e proficiente (12%), classificados como alfabetizados.

Apesar do baixo letramento, os analfabetos funcionais também são frequentadores assíduos das redes sociais, considerando-se que, além de textos, há uma grande circulação de imagens, vídeos e áudios. Para se ter uma ideia mais precisa, 86% desse grupo utilizam WhatsApp, 72%, o Facebook e 31% possuem perfis no Instagram. Além disso, 12% afirmaram enviar mensagens escritas e terem o hábito de postar comentários em publicações no Facebook, 14% afirmaram ler mensagens escritas e 13% disseram curtir publicações. Se os índices de acesso ao Facebook por grupos alfabetizados são bastante próximos dos grupos anteriores, visto que 89% têm o costume de acessar o Facebook, a qualidade no uso dessas ferramentas se altera significativamente, de modo que, entre aqueles que apresentam um nível de alfabetização proficiente, 44% afirmaram que enviam mensagens escritas, 43%, comentam nas publicações e 47% leem mensagens escritas e curtem publicações (FAJARDO, 2018FAJARDO, V. Como o analfabetismo funcional influencia a relação com as redes sociais no Brasil. BBC News Brasil. São Paulo, 12 nov. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46177957. Acesso em: 17 nov. 2018.
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).

No tocante ao aplicativo WhatsApp, não foi demonstrada diferença significativa no seu uso entre grupos considerados alfabetizados e não-alfabetizados, pois 92% dos analfabetos funcionais manifestaram que utilizam tal ferramenta para enviar mensagens escritas e 84% para compartilhar textos recebidos de outras pessoas, frente a 99% dos alfabetizados, no caso de envio de mensagens escritas, e 82%, no caso de compartilhamento de mensagens, sendo curioso que este último grupo apresente uma taxa menor de compartilhamento do que o primeiro. Ainda de acordo com a matéria, em decorrência da dificuldade de interpretação de textos de parte expressiva dos usuários deste aplicativo, as fake news mais propagadas foram em formato de áudio (FAJARDO, 2018FAJARDO, V. Como o analfabetismo funcional influencia a relação com as redes sociais no Brasil. BBC News Brasil. São Paulo, 12 nov. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46177957. Acesso em: 17 nov. 2018.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46...
).

O letramento deficitário da sociedade brasileira foi confirmado recentemente através de uma pesquisa sobre os seus hábitos de leitura, a qual apontou que 74% da população não comprou nenhum livro nos últimos três meses em relação ao momento da pesquisa e 30% nunca compraram um livro. Dentre os que leem, a temática religiosa é a principal, aparecendo a Bíblia como o livro mais lido em qualquer nível de escolaridade. A prática de leitura de livros apareceu em 10° lugar quando perguntado o que os participantes gostam de fazer no tempo livre, perdendo para assistir à televisão (73%), ouvir música (60%), usar a internet (47%), reunir-se com amigos ou família ou sair com amigos (45%), assistir a vídeos ou filmes em casa (44%), usar WhatsApp (43%), escrever (40%), usar Facebook, Twitter ou Instagram (35%) e praticar esporte (24%). Ler jornais, revistas ou notícias e ler livros em papel ou livros digitais também atingiram a marca de 24% (IBOPE, 2016IBOPE. 44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro, aponta pesquisa Retratos da Leitura. Instituto Pró-Livro, Maio de 2016. Disponível em: https://www.prolivro.org.br/2018/07/12/44-da-populacao-brasileira-nao-le-e-30-nunca-comprou-um-livro-aponta-pesquisa-retratos-da-leitura-o-diario-de-sao-jorge-do-ivai-07-06-2018/. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://www.prolivro.org.br/2018/07/12/4...
).

Os grupos oriundos da Classe C não utilizam a internet com os mesmos objetivos que as camadas mais abastadas. É essa a conclusão a que chegou Spyer (2017SPYER, J. Classe C não usa Facebook para mobilização política, mas a rede motiva o jovem pobre a ler e escrever: depoimento. Entrevista concedida a Flávia Marreiro. El País. Madri, 27 nov. 2017. Redes Sociais, p. 10. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/20/politica/1511197107_444639.html. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11...
, p. 2), para quem: “A rede pode ser e é usada no jogo local de poderes, como ferramenta para mostrar conquistas ou atacar rivais, mas não para discutir visões sobre a política como fazem os setores mais escolarizados. A classe C não usa o Facebook para mobilização política”. Ainda segundo o antropólogo: “Os moradores não discutem política por entenderem que os políticos os veem como cidadãos de segunda categoria” (SPYER, 2017SPYER, J. Classe C não usa Facebook para mobilização política, mas a rede motiva o jovem pobre a ler e escrever: depoimento. Entrevista concedida a Flávia Marreiro. El País. Madri, 27 nov. 2017. Redes Sociais, p. 10. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/20/politica/1511197107_444639.html. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11...
, p. 3). Também interessante para o nosso estudo são suas afirmações de que

[...] O que circulou muito em 2014, principalmente via WhatsApp, foi conteúdo ridicularizando políticos e concordando com essa ideia pessimista sobre o político ser essencialmente um interesseiro [...] Essa raiva contra a classe política lembra o clima aqui do Reino Unido, que levou à vitória do Brexit, e nos Estados Unidos, que elegeu Trump, e que se manifesta hoje, nas camadas populares brasileiras, pelo apoio a Bolsonaro (SPYER, 2017SPYER, J. Classe C não usa Facebook para mobilização política, mas a rede motiva o jovem pobre a ler e escrever: depoimento. Entrevista concedida a Flávia Marreiro. El País. Madri, 27 nov. 2017. Redes Sociais, p. 10. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/20/politica/1511197107_444639.html. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11...
, p. 4).

Para os moradores de comunidades mais pobres, o mais importante é ver como a internet ou as redes sociais podem ajudar em questões mais práticas, tais como a empregabilidade, as disputas políticas locais, as reivindicações por serviços públicos etc., potencializando, inclusive, seu letramento nas práticas de leitura e escrita. Assim, tais grupos parecem significar a política nacional como desinteressante, homogeneizando a classe política como um grupo que não estaria interessado neles, pois apareceria apenas em períodos eleitorais. Isso ensejaria uma certa sensação de indiferença em relação à dinâmica política, bem como o uso do voto como arma de protesto, como foi o caso da eleição do deputado federal Tiririca, o mais votado para o cargo nas eleições de 2010, com o slogan “Pior que tá, não fica” (SPYER, 2017SPYER, J. Classe C não usa Facebook para mobilização política, mas a rede motiva o jovem pobre a ler e escrever: depoimento. Entrevista concedida a Flávia Marreiro. El País. Madri, 27 nov. 2017. Redes Sociais, p. 10. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/20/politica/1511197107_444639.html. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11...
).

O cruzamento entre os dados relacionados aos usos da internet e a prática da violência na sociedade brasileira pode nos ajudar a compreender a ampla dispersão de discursos de ódio nos ambientes virtuais. Em 2010, uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos de Violência (NEV) da Universidade de São Paulo em 11 capitais brasileiras comparou os dados obtidos com os dados de uma pesquisa realizada em 1999 a respeito de temas como tortura e violência policial. De acordo com os pesquisadores, 47,5% dos brasileiros disseram ser favoráveis à tortura para obter provas, sendo que a aceitação do seu uso é maior quando se trata de casos de estupro (43,2%), tráfico de drogas (38,8%), sequestro (36,2%), uso de drogas (32,3%) e roubos (32,1%). No sentido contrário, 52,5% dos entrevistados disseram ser plenamente contrários à tortura. Isso demonstra um aumento significativo da sua aceitação em relação aos dados obtidos em 1999, quando 71,2% dos entrevistados afirmaram discordar completamente do uso da tortura. Ademais, o número dos que concordaram total ou parcialmente ou que discordaram apenas parcialmente com a prática da tortura aumentou de 28,8% (1999) para 47,5% (2010). A idade do entrevistado se mostrou importante para o posicionamento sobre o tema, de modo que o público mais jovem demonstrou maior tendência a aceitar práticas de tortura (STOCHERO, 2012STOCHERO, T. 47,5% dos brasileiros toleram tortura para obter provas, diz pesquisa. G1, São Paulo, p. 6, 05 jun. 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/ 2012/06/475-dos-brasileiros-tolera-tortura-para-obter-provas-diz-pesquisa.html. Acesso em: 18 nov. 2018.
http://g1.globo.com/brasil/noticia/ 2012...
). Isso pode ter relação com o fato de essa ser a faixa etária mais assolada pela violência.

Todavia, tanto em 1999 quanto em 2010, a maioria dos entrevistados afirmou ser contrária ao uso da força física ou da violência para a solução de conflitos, de modo que aqueles que concordam que uma pessoa tenha direito a matar para defender seus bens caiu de 19,38% (1999) para 12,75% (2010). Essa queda foi apontada também no quesito “direito de matar para autodefesa”, o qual diminuiu de 38,95% para 30,17% (STOCHERO, 2012STOCHERO, T. 47,5% dos brasileiros toleram tortura para obter provas, diz pesquisa. G1, São Paulo, p. 6, 05 jun. 2012. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/ 2012/06/475-dos-brasileiros-tolera-tortura-para-obter-provas-diz-pesquisa.html. Acesso em: 18 nov. 2018.
http://g1.globo.com/brasil/noticia/ 2012...
). Esses números oscilaram um pouco nos últimos anos, embora, aparentemente, a descrença na política enseje, como contraparte, a transferência da necessidade da ideia de força e de ordem para outras instituições, como o judiciário, o exército, as polícias e as igrejas, ou mesmo pelo desejo de uma figura do executivo que represente a centralização, o personalismo e a autoridade.

Conforme o Datafolha, em 2018 (XAVIER, 2018XAVIER, R. M. Datafolha aponta que 23% apoiam censura à imprensa e 16%, tortura. Metrópoles, Distrito Federal, 19 out. 2018. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/datafolha-aponta-que-23-apoiam-censura-a-imprensa-e-16-tortura. Acesso em:29 dez. 2018.
https://www.metropoles.com/brasil/datafo...
), 32% concordaram – totalmente ou em parte – que a Ditadura Militar no país (1964-1985) deixou mais realizações positivas do que negativas; 24% que o governo deve ter o direito de proibir greves; 41% que o governo deve ter o direito de intervir em sindicatos; 33% que o governo deve ter o direito de proibir a existência de algum partido (símbolo do interesse particular na política e da fragmentação em vez da unificação. “Meu partido é o Brasil” foi um dos slogans mais comuns nas manifestações alinhadas à direita política nos últimos anos)3 3 A esse respeito, consultar Morais (2018). ; 23% que o governo deve ter o direito de censurar jornais, TV e rádio; 21% que o governo deve ter o direito de fechar o Congresso Nacional (a instituição que congrega os partidos); 32% que o governo deve ter o direito de prender suspeitos sem a autorização da Justiça; 16% que o governo deve ter o direito de torturar suspeitos para tentar obter confissões ou informações; e 43% que o governo deve ter o direito de controlar o conteúdo das redes sociais.

O Atlas da Violência no Brasil de 2018 (CERQUEIRA, 2018CERQUEIRA, D. (coord.). Atlas da violência: 2018. Rio de Janeiro: IPEA: FBSP, jun. 2018. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf. Acesso em: 25 abr. 2019.
http://www.ipea.gov.br/portal/images/sto...
) atesta a crise da segurança pública pela qual passa o Brasil, contabilizando 62.517 homicídios em 2016, sendo que 71,1% desse montante foram realizados por armas de fogo. Essa situação cria um cenário de guerra no sentido físico e simbólico, de modo que tende a adensar a polarização entre grupos considerados perigosos e grupos considerados vítimas, facilitando a “personalização do mal”. Nessas situações, potencializados pelos discursos extremistas, o medo e o ódio, as emoções básicas do autoritarismo (CASTORIADIS, 2004CASTORIADIS, C. As raízes psíquicas e sociais do ódio. In: CASTORIADIS, C. Figuras do pensável: as encruzilhadas do labirinto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. IV. p.249-268.), tendem a se aprofundar na dinâmica social. A vivência pessoal da violência, a circulação de informações a seu respeito via experiências coletivas, mídia e discursos políticos ajudam a romper com a empatia social em relação aos grupos minoritários, costumeira e injustamente associados à propensão ao crime ou à desordem.

Consoante o Atlas (CERQUEIRA, 2018CERQUEIRA, D. (coord.). Atlas da violência: 2018. Rio de Janeiro: IPEA: FBSP, jun. 2018. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf. Acesso em: 25 abr. 2019.
http://www.ipea.gov.br/portal/images/sto...
), do total de mortos, 33.590 eram jovens, um aumento de 7,4% em relação a 2015, chegando à taxa de 65,5 jovens mortos para cada grupo de 100 mil habitantes. A taxa de homicídios de negros é de 40,2 para cada grupo de 100 mil habitantes, frente à taxa de 16,0 de não negros. Isso significa um aumento da mortalidade da população negra de 23,1% no período de 2006 a 2016, enquanto houve um decréscimo de 6,8% no público não negro nesse mesmo período. Isto é, o número de negros mortos é 2,5 vezes maior do que o número de não negros. No caso do público feminino, a média é de 4,5 mulheres por grupo de 100 mil habitantes, mas, se cruzarmos com as características étnico-raciais, essa taxa aumenta para 5,3 das mulheres negras e diminui para 3,1 das mulheres não negras. Isso representa um aumento de 15,4% para o primeiro grupo no período de 2006 a 2016 e uma queda de 8% no segundo grupo.

Entretanto, se considerarmos a violência contra o público LGBT, a questão étnico-racial, curiosamente, não parece pender para a maior violência contra o público negro ou pardo. O estudo Violência LGBTFóbicas no Brasil: dados da violência (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Cidadania. Violência LGBTFóbicas no Brasil: dados da violência. Elaboração de Marcos Vinícius Moura Silva. Brasília: Ministério dos Direitos Humanos, 2018. Disponível em: https://prceu.usp.br/wp-content/uploads/2021/04/MDH_violencia_2018.pdf. Acesso em: 25 abr. 2021.
https://prceu.usp.br/wp-content/uploads/...
) destaca que o grupo dos brancos aparece como o principal alvo da violência em todos os gêneros estudados (25,7% dos gays; 17,5% dos transexuais; 1,8% das lésbicas; 0,9% dos bissexuais; 1,2% dos héteros). Como a pesquisa não aponta dados mais específicos referentes à renda desses grupos, inferimos que as profissões dos agredidos podem ser encaixadas no espectro da classe média brasileira, tais como professores e estudantes (14% e 16%, respectivamente). Portanto, o grupo LGBT parece ser vítima de uma violência mais transversal na sociedade brasileira, afetando também grupos que, supostamente, seriam dotados de certo status e outros tipos de proteção social. Convém ressaltar que pessoas brancas e/ou com maior índice de escolaridade tendem a possuir maiores facilidades para reportar às autoridades a violência homofóbica, bem como a sofrer tipos de violência não fatais.

A experiência massificada da violência pode nos ajudar a explicar o crescimento do apoio ao viés autoritário em grupos mais pauperizados na sociedade brasileira. Vejamos, por exemplo, os resultados de uma pesquisa online – logo, restrita ao público com acesso à internet, isto é, 116 milhões ou 64,7% dos brasileiros com idade acima de dez anos (FRANCO, 2018FRANCO, L. Mais da metade dos brasileiros acham que direitos humanos beneficiam quem não merece, diz pesquisa. BBC News Brasil. São Paulo, 11 ago. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45138048. Acesso em: 25 abr. 2019.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45...
) – solicitada pela Human Rights in 2018 – Global Advisor ao Ipsos, a qual contou com dados de 28 países. Tal levantamento chegou à conclusão de que 69% dos brasileiros afirmaram “saber algo ou muito” sobre o tema dos Direitos Humanos e 30% consideraram “saber pouco ou nada sobre o assunto”. Dentre eles, 74% concordam que algumas pessoas tiram vantagem injusta dos direitos humanos. Ademais, o Brasil ficou atrás apenas de países como Arábia Saudita e Índia na concordância com a seguinte frase: “os direitos humanos não significam nada no meu cotidiano”, chegando à cifra de 28%; embora 69% tenham afirmado considerar importante a existência de leis para protegê-los e 34% estejam de acordo com a expressão “todos no Brasil desfrutam dos mesmos direitos humanos básicos” (FRANCO, 2018FRANCO, L. Mais da metade dos brasileiros acham que direitos humanos beneficiam quem não merece, diz pesquisa. BBC News Brasil. São Paulo, 11 ago. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45138048. Acesso em: 25 abr. 2019.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45...
, p. 2).

Dentre os grupos que merecem maior proteção dos direitos humanos, os entrevistados brasileiros afirmaram: crianças (56%), idosos (55%), pessoas com deficiência (46%), mulheres (39%) e pessoas de baixa renda (38%), o que demonstra que as políticas públicas associadas a estes dois últimos grupos não gozam do mesmo prestígio daquelas associadas aos três primeiros. No caso dos direitos que merecem maior salvaguarda, responderam: direito à segurança (38%), direito à vida (36%), direito das crianças à educação gratuita (32%), direito à liberdade da escravidão ou do trabalho forçado (29%) e direito de não ser discriminado (28%) (FRANCO, 2018FRANCO, L. Mais da metade dos brasileiros acham que direitos humanos beneficiam quem não merece, diz pesquisa. BBC News Brasil. São Paulo, 11 ago. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45138048. Acesso em: 25 abr. 2019.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45...
). Novamente, os grupos minoritários parecem despertar menor empatia.

Mais recentemente, em 03 e 04 de outubro de 2018, o Datafolha (ELEIÇÕES..., 2018, p. 4) chega a dados mais animadores do que os descritos acima, nos quais se apontou que 69% dos entrevistados concordam com a frase “a democracia é sempre melhor do que qualquer forma de governo”, 13% que “tanto faz se é uma democracia ou uma ditadura” e 12% que “em certas circunstâncias é melhor uma ditadura do que um regime democrático”. Apesar disso, no grupo dos eleitores de Jair Bolsonaro, a taxa dos que avaliaram que, em certas circunstâncias, é melhor uma ditadura chegou a 22%, índice maior do que os dos eleitores dos demais presidenciáveis. Ainda, os menos escolarizados (55%) demonstraram uma maior resistência à afirmação de que a “democracia é uma forma de governo sempre superior a outras”, contrastando com o apoio de 84% dos mais escolarizados. No recorte econômico, 63% dos grupos mais pobres concordaram que “a democracia é o melhor sistema de governo”, sendo que tal índice chega a 84% entre grupos mais ricos (ELEIÇÕES..., 2018, p. 4).

O apoio à democracia tem oscilado bastante desde 1989, época das primeiras eleições presidenciais brasileiras após a Ditadura Militar. Em perspectiva, (i) a afirmação a “democracia é sempre melhor do que qualquer forma de governo” possuía 43% de adeptos em setembro de 1989 e chegou a 66% em dezembro de 2014 (após as manifestações de junho de 2013 e próximo à reeleição presidencial de Dilma Rousseff); (ii) a aceitação da expressão “tanto faz se é uma democracia ou uma ditadura” iniciou com 22% de apoio em setembro de 1989 e chegou ao seu pico em junho de 2000, com 29% de aceitação (em 1999, o Brasil havia passado por uma grave crise econômica); (iii) a aceitação da frase “em certas circunstâncias é melhor uma ditadura do que um regime democrático” começou com 18% em setembro de 1989 e chegou ao seu pico em setembro de 1992 (época do impeachment do presidente Fernando Collor (Partido da Reconstrução Nacional/PRN)), com 23% (ELEIÇÕES..., 2018, p. 2).

Paradoxalmente, nenhum dos governos eleitos nos momentos anteriores de crise da democracia no país apresentava riscos à democracia, como é o caso de 2018. Ou seja, quando se chegou ao auge da aceitação do modelo democrático, venceu a campanha eleitoral que defendeu a Ditadura Militar brasileira (1964 a 1985), a tortura, a perseguição às minorias e se opôs aos direitos humanos; obtendo 57,7 milhões de votos, o que significa 55,15% dos votos válidos e equivale a 39,3% do eleitorado total (PRAZERES, 2018PRAZERES, L. Bolsonaro é eleito com a maior diferença percentual de votos desde 2010. UOL, São Paulo, 28 set. 2018. Notícias, p. 2. Disponível em: noticias.uol.com.br/ politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/28/bolsonaro-eleito-maior-diferenca-oito-anos.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 29 abr. 2019.
noticias.uol.com.br/ politica/eleicoes/2...
).

Em abril de 2019, por exemplo, uma pesquisa do Datafolha mostrou que 57% dos entrevistados concordam que a data do Golpe – 31 de março de 1964 – não deve ser comemorada, enquanto 36% afirmaram o contrário, taxa semelhante à da eleição do atual presidente brasileiro. Na faixa etária de 16 a 24 anos, 64% demonstraram ser contrários à comemoração; 67% entre os que possuem o ensino superior; e 72% entre os que ganham mais de dez salários mínimos por mês. Dentre os favoráveis à comemoração, 42% possuíam mais de 60 anos, 43% possuíam Ensino Fundamental e 39% ganhavam até dois salários mínimos por mês (MARQUES, 2019MARQUES, J. Para maioria da população, golpe de 1964 deveria ser desprezado, diz Datafolha. Folha de São Paulo, São Paulo, 06 abr. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/para-maioria-da-populacao-golpe-de-1964-deveria-ser-desprezado-diz-datafolha.shtml. Acesso em: 06 abr. 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019...
). Importante notar que estes dois últimos grupos representam parte significativa da população mais periférica.

Ademais, a relação entre religião e política é positiva em um país em que 28% consideram a fé religiosa como principal fator para a melhoria de vida; estudar ficou com 21%, o acesso à saúde, 19%, crescer no trabalho, 11%, ganhar mais dinheiro, 8%, ter acesso à aposentadoria, 6%, apoio financeiro da família, 5%, e cultura e lazer, 2% (FERREIRA, 2019FERREIRA, A. Pessoas valorizam fé, em vez de estudo e trabalho, para melhorar de vida. UOL. São Paulo, 08 abr. 2019. Economia, p. 2. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/04/08/fe-religiao-estudo-trabalho-pesquisa-oxfam.htm. Acesso em: 08 abr. 2019.
https://economia.uol.com.br/noticias/red...
).

Não se pode, contudo, associar automaticamente os menos escolarizados e mais pauperizados aos discursos de ódio, haja vista que os dados mostram que o discurso político do presidente Jair Bolsonaro ganhou mais votos nas cidades mais ricas e brancas do país. Llaneras (2018)LLANERAS, K. Bolsonaro arrasa nas cidades mais brancas e ricas; Haddad nas mais negras e pobres. El País, Madri, 26 out. 2018. Eleições no Brasil, p. 11. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/24/actualidad/1540379382_123933.html. Acesso em: 28 abr. 2019.
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ressalta a clareza da polarização política no que diz respeito às dez cidades mais ricas e menos ricas e às 10 cidades mais brancas e menos brancas, evidenciando uma correlação entre grupos mais brancos e ricos e a nova direita brasileira, pendendo, inclusive, mais para o aspecto étnico do que o de classe: “se pegarmos dois municípios com renda semelhante, os resultados de Bolsonaro tendem a ser melhores naqueles em que há mais eleitores brancos” (LLANERAS, 2018LLANERAS, K. Bolsonaro arrasa nas cidades mais brancas e ricas; Haddad nas mais negras e pobres. El País, Madri, 26 out. 2018. Eleições no Brasil, p. 11. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/24/actualidad/1540379382_123933.html. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10...
, p. 7). Considerando a preferência dos grupos não brancos: “Segundo o Datafolha, Bolsonaro receberá duas vezes mais votos (68%) do que Haddad (32%) entre os brancos, enquanto Haddad é o preferido pela população de cor” (LLANERAS, 2018LLANERAS, K. Bolsonaro arrasa nas cidades mais brancas e ricas; Haddad nas mais negras e pobres. El País, Madri, 26 out. 2018. Eleições no Brasil, p. 11. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/24/actualidad/1540379382_123933.html. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10...
, p. 7).

No quesito regional, esses aspectos tendem a ser mais transversais, de modo que “dentro de cada região os apoios a Bolsonaro crescem conforme a renda dos municípios” (LLANERAS, 2018LLANERAS, K. Bolsonaro arrasa nas cidades mais brancas e ricas; Haddad nas mais negras e pobres. El País, Madri, 26 out. 2018. Eleições no Brasil, p. 11. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/24/actualidad/1540379382_123933.html. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10...
, p. 8). Por fim, “quando comparamos os municípios de uma região entre si, descobrimos que Bolsonaro recebe mais apoio onde a população branca é maior. Isso não ocorre na região Nordeste, mas nas regiões Norte ou Sudeste” (LLANERAS, 2018LLANERAS, K. Bolsonaro arrasa nas cidades mais brancas e ricas; Haddad nas mais negras e pobres. El País, Madri, 26 out. 2018. Eleições no Brasil, p. 11. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/24/actualidad/1540379382_123933.html. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10...
, p. 9).

A imigração também tem se apresentado como tema relevante no debate público nacional. Uma pesquisa do Datafolha (MANTOVANI, 2018MANTOVANI, F. 67% dos brasileiros defendem maior controle da entrada de imigrantes. Folha de S. Paulo. São Paulo, 20 dez. 2018. Venezuela, p. 4. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/12/67-dos-brasileiros-defendem-maior-controle-da-entrada-de-imigrantes.shtml. Acesso em: 29 dez. 2018.
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018...
) chegou à conclusão de que 67% da população brasileira concordam que “o Brasil deve controlar mais a entrada de Imigrantes”, sendo que 42% concordam totalmente, 24% concordam parcialmente, 1% não concorda nem discorda, 12% discordam em parte, 18% discordam totalmente, 2% não sabem. Esses números aumentam de acordo com a renda (74% entre os que ganham mais de dez salários mínimos e 62% entre os que ganham menos de dois salários mínimos), com o gênero (homens (72%) e mulheres (62%)) e com o alinhamento político nas últimas eleições (73% entre os eleitores de Jair Bolsonaro e 58% entre os eleitores de Fernando Haddad (PT)).

Curiosamente, no Brasil, os imigrantes representam menos de 1% da população, embora os entrevistados demonstrem uma percepção superestimada do fenômeno, afirmando que essa cifra chegaria a 30% do total. Demonstra-se, com isso, que a xenofobia brasileira funda-se mais em aspectos imaginários do que na realidade concreta (RIBEIRO; ORTELLADO, 2019RIBEIRO, M. M.; ORTELLADO, P. Pesquisa com eleitores e não eleitores de Jair Bolsonaro São Paulo, março-abril de 2019. Monitor das ruas: Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPoPAI-USP). São Paulo, abr. 2019. Disponível em: https://www.monitordigital.org/2019/04/07/pesquisa-municipal-com-eleitores-de-bolsonaro-marco-e-abril-19/. Acesso em: 24 abr. 2019.
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).

Passemos, então, às características específicas do eleitorado de Bolsonaro. Através delas, os dados apresentados podem se cruzar na formação de um eleitor/público/auditório ideal para a nova direita brasileira, bem como nos dar sinais das potencialidades da sua atuação no cenário político a curto e médio prazos. Conforme Ribeiro e Ortellado (2019)RIBEIRO, M. M.; ORTELLADO, P. Pesquisa com eleitores e não eleitores de Jair Bolsonaro São Paulo, março-abril de 2019. Monitor das ruas: Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPoPAI-USP). São Paulo, abr. 2019. Disponível em: https://www.monitordigital.org/2019/04/07/pesquisa-municipal-com-eleitores-de-bolsonaro-marco-e-abril-19/. Acesso em: 24 abr. 2019.
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, 61% desse eleitorado se consideram muito conservadores, sendo 47% de católicos ou evangélicos; 65% não possuem nenhuma preferência partidária, o que aponta para a descrença no sistema político ou para a sensação de não se sentir representado; 53% consomem notícias políticas diariamente, sendo os principais meios a televisão (31%), sites de notícias (27%) e Facebook (13%), o que aparentemente daria um maior poder aos meios tradicionais de informação neste grupo.

Todavia, o que, curiosamente, Ribeiro e Ortellado (2019)RIBEIRO, M. M.; ORTELLADO, P. Pesquisa com eleitores e não eleitores de Jair Bolsonaro São Paulo, março-abril de 2019. Monitor das ruas: Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPoPAI-USP). São Paulo, abr. 2019. Disponível em: https://www.monitordigital.org/2019/04/07/pesquisa-municipal-com-eleitores-de-bolsonaro-marco-e-abril-19/. Acesso em: 24 abr. 2019.
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conseguem perceber é um forte sentimento antissistêmico, através do qual os entrevistados demonstram desconfiança tanto na imprensa quanto na política partidária, a qual estaria imersa em “corrupção generalizada”, vejamos os dados: 85% concordam que a internet permite descobrir verdades que os jornais e a TV querem esconder; 53% que a grande imprensa é inimiga do povo; 69% que os partidos tradicionais são todos corruptos; e 43% que as redes sociais agora impedem que políticos ajam contra a vontade do povo. Sobre a percepção desses eleitores em relação aos programas sociais, 61% afirmaram que o Programa Bolsa Família estimula as pessoas a não trabalharem e 44% que as cotas para negros em universidades tiram vaga de quem merece mais.

A respeito dos movimentos de gênero, 39% entendem que as feministas são contra os valores da família e 37% que o movimento gay corrompe as crianças. Artistas e professores também foram considerados contrários aos valores tradicionais, expondo uma tendência anti-intelectualista desse eleitorado, no qual 47% entendem que os professores estão abordando temas que contrariam os valores da família e 59%, que os artistas da Globo – emissora conhecida pelo impacto das suas telenovelas na programação cotidiana noturna da população – não respeitam os valores morais. Há também uma tendência ao punitivismo entre esses eleitores, sendo que 79% corroboraram que os direitos humanos atrapalham o combate ao crime e 90% que é preciso punir os criminosos com mais tempo de cadeia. Por fim, para 53%, é preciso diminuir a entrada de imigrantes no Brasil e 30% concordam que, para que todo mundo tenha emprego, é preciso abrir mão de direitos trabalhistas (RIBEIRO; ORTELLADO, 2019RIBEIRO, M. M.; ORTELLADO, P. Pesquisa com eleitores e não eleitores de Jair Bolsonaro São Paulo, março-abril de 2019. Monitor das ruas: Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPoPAI-USP). São Paulo, abr. 2019. Disponível em: https://www.monitordigital.org/2019/04/07/pesquisa-municipal-com-eleitores-de-bolsonaro-marco-e-abril-19/. Acesso em: 24 abr. 2019.
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).

Não obstante, em apenas 3 meses de governo, o presidente Jair Bolsonaro perdeu expressivamente o seu capital político, sendo considerado o presidente com pior avaliação em um primeiro mandato desde 1989. De acordo com Gielow (2019)GIELOW, I. Reprovação de Bolsonaro cresce para 38% em meio a crises, mostra Datafolha. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 set. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/09/reprovacao-de-bolsonaro-cresce-para-38-em-meio-a-crises-mostra-datafolha.shtml. Acesso em: 18 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019...
, uma pesquisa realizada pelo Datafolha revelou que 30% dos brasileiros avaliam o atual governo como ruim ou péssimo, 32% avaliam-no como ótimo ou bom e 33% avaliam-no como regular. A mesma pesquisa demonstra que 59% ainda acreditam que ele fará uma gestão ótima ou boa. Para Bramatti e Sartori (2019)BRAMATTI, D.; SARTORI, C. Bolsonaro perde ‘voto de confiança’ dos mais pobres. O Estado de São Paulo. São Paulo, 29 abr. 2019. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-perde-voto-de-confianca-dos-mais-pobres,70002808368?fbclid=IwAR2GfGLYNH1LCSmsL6w1nMy9TW2RaiGgDEKPSclMGdODdnAZ0RYAJTGESbw. Acesso em: 29 abr. 2019.
https://politica.estadao.com.br/noticias...
, o presidente perdeu o “voto de confiança” dos mais pobres, baseando-se na deterioração do seu apoio nas capitais (- 36%) e periferias (- 18%); entre evangélicos (- 25%) e católicos (- 33%); nas regiões Sudeste (- 28%) e Sul (- 22%), fundamentais para a sua eleição; até 1 salário mínimo (- 34%), entre 1 e 2 (- 31%), entre 2 e 5 (- 23%) e mais de 5 (- 22%); até a 4ª série (- 27%), até a 8ª série (- 40%), com Ensino Médio (- 26%) e com Ensino Superior (- 22%); por fim, entre homens (- 28%) e entre mulheres (- 27%).

A pesquisa Ibope Inteligência mostrou que, de janeiro a abril de 2019, a proporção de brasileiros que afirmaram ser ótimo ou bom ter um governo militar caiu de 62% para 49% e os que consideram ruim ou péssimo aumentou de 32% para 45%; já o apoio a um líder forte que desconsidere deputados, senadores e eleições caiu de 66% para 56% – cifra ainda bastante expressiva – e os que consideram ruim ou péssimo cresceu de 30% para 39% (PREFERÊNCIA..., 2019).

Dentre outros fatores, a agenda neoliberal implementada parece funcionar como um ponto de contradição real em uma coesão social que se constituiu mais por questões emocionais, morais e de segurança do que por um projeto político-econômico hegemônico. No que se refere aos ambientes virtuais, a maior agilidade na circulação das informações e um contato aparentemente mais direto entre representantes e representados em comparação com as ferramentas tradicionais de diálogo entre as instituições e a sociedade civil têm sido fundamentais na construção da opinião pública na atualidade, ensejando, a um só tempo, a sensação de aumento da representatividade política pelo personalismo, a fragmentação social em grupos cada vez mais autocentrados e a circulação massiva de denúncias ou notícias falsas. Tendo isso por pressuposto, na seção seguinte, analisaremos quantitativamente os tweets coletados, buscando avaliar a organização lexical desse posicionamento político.

Como se fala? O Twitter como ferramenta digital de interação política da nova direita brasileira (2010-2019)

Com o intuito de avaliar a forma pela qual o presidente Jair Bolsonaro se expressa nas redes sociais, coletamos para análise todas as suas mensagens publicadas no seu perfil oficial na rede social Twitter no período de 31 de março de 2010 – momento da criação do seu perfil – a 07 de março de 2019, totalizando 4 mil 523 tweets. Desconsideramos, para tanto, retweets e replies, ou seja, não foram considerados o reenvio de tweets antigos e nem as respostas de Jair Bolsonaro a algum tweet ou discussão em torno de algum dos seus tweets.

Os programas de coleta de mensagens foram feitos na linguagem de programação Python. Essa linguagem funciona utilizando módulos, que são arquivos com várias funções já definidas, e é bastante conhecida e utilizada ao redor do mundo. Dentre muitos outros, existem módulos de Python para realizar operações matemáticas, analisar textos, gerar figuras e fazer cálculos estatísticos. Para este trabalho, foram utilizados módulos para gerar as figuras e principalmente o módulo NLTK4 4 Disponível em: https://www.nltk.org/. Acesso em: 7 out. 2021. , o qual permite identificar e classificar palavras. Importante destacar que o procedimento de coleta adotado pode ser aplicado a qualquer perfil no Twitter e que todas as ferramentas de programação utilizadas são gratuitas e disponibilizadas na internet.

Para extrair os dados, confeccionamos um código que utiliza o módulo Selenium para automatizar o seguinte protocolo: i) abrir o navegador de internet Firefox; ii) visitar a página de busca do Twitter5 5 Disponível em: https://twitter.com/search-home. Acesso em: 7 out. 2021. ; iii) identificar e armazenar os ids – numeração de identificação – dos tweets do perfil de Jair Bolsonaro no período considerado; (iv) após coletar os ids dos tweets de interesse, confeccionar um outro código em Python que utiliza o módulo Tweepy, o qual permite utilizar a API – Application Programming Interface – do Twitter e os ids dos tweets coletados para extrair todas as informações dos tweets de interesse. Esse procedimento não foi realizado diretamente através da API do Twitter porque ela limita a extração apenas aos últimos 3 mil 200 tweets em uma mesma conta.

Em posse dos dados, confeccionamos um código que utiliza o módulo de Python NLTK – Natural Language Toolkit – para identificar, extrair e contar todas as palavras contidas nos tweets analisados; desconsiderando, contudo, para a nossa análise as seguintes stop words6 6 Stop words são itens lexicais que, por serem muito comuns e, portanto, não serem considerados importantes para a análise pretendida, não entram na contagem. Não há parâmetros universais para a sua definição, pois depende dos tipos de dados que os pesquisadores desejam gerar. Comumente, são excluídos artigos, vocativos, pronomes, preposições e conjunções, por exemplo. :

‘à’,’às’,’a’,’e’,’o’,’ao’,’as’,’os’,’aos’,’um’,’uma’,’uns’,’umas’,’sem’,’me’,’em’,’no’,’na

’,’nos’,’nas’,’mas’,’de’,’do’,’da’,’dos’,’das’,’se’,’ou’,’com’,’como’,’são’,’tem’,’meu’,’ seu’,’sua’,’meus’,’seus’,’pouco’,’muito’,’suas’,’por’,’pelo’,’pela’,’sobre’,’com’,’que’,’

embora’,’para’,’há’,’até’,’entre’,’q’,’d’,’mais’,’nosso’,’nossa’,’hoje’,’via’,’ñ’,’só’,’não ’,’vamos’,’já’,’sim’,’não’,’sempre’,’quem’,’isso’,’dia’,’bolsonaro’,’obrigado’,’abraço’.

Além dessas, foram adicionadas às stop words os nomes próprios Jair, flaviobolsonaro e carlosbolsonaro. As palavras “obrigado” e “abraço” foram adicionadas por serem inseridas no contexto protocolar de encerramento do texto, enquanto a palavra “via” foi descartada por fazer referência a outros perfis de Twitter (informação via outra fonte).

O módulo NLTK também permite classificar as palavras em categorias como substantivos, verbos e adjetivos. Essa tarefa é realizada utilizando o método machine learning – ou melhor, estamos utilizando um modelo específico de aprendizagem supervisionada dentro da grande área machine learning –, o qual utiliza um banco de dados para “treinar a máquina” para analisar dados – nesse caso, classificar corretamente as palavras. Quanto maior o banco de dados, maior a precisão da classificação. Para a língua inglesa, o módulo NLTK utiliza um banco de dados bastante robusto e devido a isso produz resultados significativamente mais precisos na classificação de palavras. Para a língua portuguesa, como o banco de dados utilizado não é tão extenso quanto o utilizado em inglês, a classificação é mais imprecisa.

Para a nossa análise, foram confeccionados gráficos de barras considerando as palavras sem dividi-las por categorias – itens lexicais gerais – e considerando as categorias substantivos, verbos e adjetivos, sendo que tais gráficos mostram as 10 palavras mais utilizadas e as suas respectivas frequências. Para os mapas de palavras foram consideradas as 100 palavras mais utilizadas. Relembrando que as stop words foram desconsideradas em todos os gráficos e mapas gerados. Em síntese, A) extraímos os tweets; B) identificamos as palavras; C) excluímos as stop words; D) quando foi o caso, classificamos as palavras em categorias; E) contamos a quantidade de vezes que cada palavra aparece; F) geramos os gráficos de barras e os mapas de palavras.

Evidentemente, toda metodologia apresenta limites e potencialidades, pois se baseia em pressupostos de pesquisa e depende daquilo que se almeja mostrar, tornando secundários outros aspectos. Nesse sentido, antes de passarmos aos gráficos e mapas, apresentamos algumas limitações dessa metodologia, tentando, como contraparte, apontar suas potencialidades:

  • 1ª) Considerando que esta pesquisa se baseia em pressupostos interdisciplinares, aproximando procedimentos computacionais daqueles da análise discursiva com o fito de produzir uma análise quantitativa que processe uma extensão de informações consideravelmente maior do que aquela que o(a) pesquisador(a) consegue avaliar individualmente, perde-se a análise do contexto enunciativo relacionado às palavras utilizadas. Todavia, embora seja difícil analisar todos os significantes individualmente, aqueles itens lexicais que se mostrarem mais fundamentais podem ser analisados de acordo com o seu contexto de uso, tornando possível que, após a geração de dados, o(a) investigador(a) possa fazer o caminho inverso, tentando reconstruir qualitativamente a sua função na situação de uso real (abordagem top-down e bottom-up). Deve-se ter em mente que uma palavra mais recorrente não significa, necessariamente, sua maior importância semântica em um dado discurso, apesar de sua frequência poder apontar para uma preferência ideológica do público alvo. No que se refere ao aspecto intradiscursivo, é possível gerar arquivos com as sentenças mostrando o uso cotextual de cada palavra, além de analisar as publicações que geraram maior interação. Nossa pretensão futura é desenvolver mapas lexicais que demonstrem as relações entre essas palavras e os contextos de uso – permitindo identificar aquelas que são centrais para a conexão entre texto e condições enunciativas –, a organização de proposições maiores e suas relações com as postagens de maior impacto. Além disso, pretendemos comparar os usos lexicais/proposicionais da cadeia semântica da nova direita em relação tanto a um corpus com discursos concorrentes – como é o caso da “esquerda” – quanto a um corpus com a média de uso de grupos não marcados politicamente. Isso demanda um tempo significativo de pesquisa;

  • 2ª) É preciso avançar na definição de critérios para a geração da lista de stop words. Tomemos, por exemplo, algumas das que foram excluídas da nossa análise, a saber: “ñ”, “obrigado” e “abraço”. O advérbio “não”, na sua forma abreviada, pode demonstrar, a um só tempo, informalidade frente ao leitor, o princípio da economia linguística e a negação em relação a um determinado tema com o qual se busca marcar posição contrária. Sua frequência poderia elucidar, inclusive, a constituição axiológica de uma subjetividade mais marcada pela negação de algo do que pela afirmação. No caso de “obrigado” e “abraço”, como marcas de polidez, elas permitem conotações pragmáticas nas redes sociais, que acabam por funcionar, no caso do discurso político, como ferramentas de aproximação entre representantes e representados. Essa aproximação pessoal entre locutor e auditório potencializaria, de um lado, o processo de persuasão e, de outro, garantiria relações mais frequentes e duradouras nesses espaços, haja vista que encenariam tanto uma relação de amizade – ressaltando os interesses pessoais e as emoções – quanto uma representação institucional – ressaltando o controle da função profissional e da racionalidade política –. Escolhemos privilegiar a análise de palavras mais marcadas ideologicamente, permitindo-nos, futuramente, contrastar com discursos políticos concorrentes8 8 De acordo com Pinto (2006, p. 105), os conceitos “deslocamento” e “condensação” são fundamentais à Análise do Discurso, sendo que o primeiro aponta para a metáfora – o entendimento de um termo/conceito por outro – e o segundo, para a hegemonia, isto é, a forma pela qual um discurso ou sentido consegue se sobrepor – processo de sobredeterminação – a um conjunto de outros que lhe atravessam sem se reduzirem a ele, dando-lhe coerência ideológica: “Deslocamentos e condensações - são duas formas muito interessantes de organização de discursos políticos, religiosos, místicos, naqueles discursos que querem impor uma verdade ou querem esconder uma verdade. O trabalho dos sonhos, segundo Freud, é do deslocamento dos sentidos. Isso é um trabalho metafórico. Sonha-se com alguma coisa, mas quando se analisa o símbolo que sonhamos, ele não tem obrigatoriamente nada a ver com os conteúdos explícitos dos sonhos, isto é o processo de deslocamento. [...] No discurso político há inúmeros exemplos de processos de deslocamento, como a centralidade no discurso da violência em detrimento do discurso de combate à desigualdade social; a atribuição às catástrofes naturais de fracassos de políticas agrícolas; a atribuição à desqualificação do trabalhador sua condição de desempregado. O conceito de condensação é distinto. [...] A hegemonia é um forte momento de condensação. Podemos ter uma luta por democracia [no caso do nosso trabalho, uma ‘luta contra ela’], por exemplo, e essa luta trazer muitos grupos diferentes, trazer muita gente para dentro dessa luta porque o termo democracia condensa muitos sentidos [desde junho de 2013, o termo ‘corrupção’ assumiu esse lugar]”. ;

  • 3ª) A classificação das palavras em substantivos, verbos e adjetivos é feita de maneira automática utilizando machine learning (doravante, ML). Em linguagem mais técnica, podemos dizer que o problema de Part-of-Speech (POS) tagging é um problema de supervised learning em Machine Learning. Isto é, dada uma base de dados rotulada (com os dados já classificados), pode-se treinar o algoritmo para prever os rótulos de outros dados semelhantes, visto que utilizamos um banco de dados e um algoritmo para treinar a máquina para classificar as palavras. Esse processo pode levar a alguns erros, os quais podem ser minimizados ajustando a lista de stop words e melhorando a classificação a partir de outros dados de treinamento, outras bibliotecas em Python. Há, por exemplo, a scikit-learn, que é uma biblioteca de ML que também tem um “taggeador” de português considerado bastante eficiente. Uma outra questão é que, fora das suas relações intradiscursivas – cotextuais –, fica difícil ter certeza se um item lexical está na função de substantivo ou de adjetivo. Apesar disso, resolvemos simplificar os procedimentos no intuito de apresentar os primeiros resultados, os quais já podem ser significativamente interessantes para esse tipo de pesquisa. Passemos às análises em si.

No gráfico abaixo, pode-se notar a evolução da quantidade mensal de tweets enviados por Jair Bolsonaro ao longo do período estudado. As linhas pontilhadas verticais servem para demonstrar os meses nos quais ocorreram a aceitação do pedido impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) pelo então Presidente da Câmara dos Deputados, o deputado federal Eduardo Cunha (filiado ao Movimento Democrático Brasileiro/MDB), em 02 de dezembro de 2015, e o segundo turno das eleições presidenciais, entre 07 e 28 de outubro de 2018.

Gráfico 1
– Frequência mensal dos Tweets de Bolsonaro

Há um crescimento notável da atividade do perfil @jairbolsonaro a partir da abertura do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, momento no qual Bolsonaro passa a se destacar frente aos seus concorrentes como “representante ideal” do discurso da extrema direita no país, fruto de uma convergência entre grupos sociais neoliberais, conservadores cristãos, militaristas e agropecuaristas. Pouco após, em 17 de abril de 2016, por exemplo, angariou novos admiradores e opositores com o seu voto favorável à abertura desse processo, no qual elogiou o Coronel Carlos Brilhante Ustra – considerado juridicamente o principal torturador do período militar – e o Exército Nacional, posicionou-se contra a suposta tentativa de o governo do PT implementar nas escolas o que chamara de Kit Gay, opôs-se ao que teoricamente seria uma organização comunista no Brasil, como é o caso do think tank de esquerda “Foro de São Paulo”, e assumiu uma postura conservadora cristã no âmbito da política institucional (MORAIS, 2019MORAIS, A. R. A. O discurso político da extrema-direita brasileira na atualidade. Cadernos de Sociedade e Linguagem, Brasília-DF, v. 20, n. 1, 2019.).

Ao concluir o seu voto com o slogan da sua campanha presidencial, condensou9 9 Segundo Pêcheux (2009, p. 151, itálicos do autor): “Diremos, então, que o ‘pré-construído’ corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e ‘seu sentido’ sob a forma da universalidade (‘o mundo das coisas’), ao passo que a ‘articulação’ constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito”. esse posicionamento ideológico da seguinte forma: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Demonstrou, com isso, eficiência em personificar a imagem do antipetismo, diretamente associada ao anticomunismo. Durante o processo eleitoral e já após eleito, aproximou-se com mais clareza dos ideais do libertarianismo e do neoliberalismo. Dezembro de 2015, portanto, é um “divisor de águas” no alçamento da imagem de Jair Bolsonaro a figura nacional, antes mais restrita à política do Rio de Janeiro. Sua atividade virtual corrobora o nosso raciocínio, chegando ao auge no período do segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Por outro lado, a queda exponencial dos seus tweets após as eleições pode ser explicada pelo fato de, possivelmente, Jair Bolsonaro ter se detido mais em replies e retweets, não considerados para esta análise.

No que diz respeito à organização linguística dos enunciados, para Saussure (2006SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006. Original de 1916. [1916]), a linguagem humana se organiza em dois eixos, o associativo, relacionado ao pensamento na medida em que se organiza in absentia, e o sintagmático, relacionado ao uso da língua na forma de discurso na medida em que se organiza in praesentia. Segundo o linguista: “[...] no discurso, os termos estabelecem entre si, em virtude de seu encadeamento, relações baseadas no caráter linear da língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo” (SAUSSURE, 2006SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006. Original de 1916. [1916], p. 142); “[...] fora do discurso, as palavras que oferecem algo de comum se associam na memória e assim se formam grupos dentro dos quais imperam relações muito diversas. [...] Elas não têm por base a extensão; sua sede está no cérebro” (SAUSSURE, 2006SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006. Original de 1916. [1916], p. 143).

Em Pêcheux (2009)PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2009., as relações associativas apontam para o interdiscurso – ou discurso transverso – e as relações sintagmáticas para o intradiscurso – ou articulação –. Ambas são simbolizadas na concretude das relações contraditórias humanas, as quais possibilitam a emergência de formações imaginárias. Dito de outro modo, da relação entre o simbólico (real da língua) e o imaginário (real da história), constitui-se a natureza ideológica da linguagem, na qual os sentidos irrompem de acordo com as relações materiais que estabelecem com os grupos sociais.

Para Pêcheux (2009)PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2009., os indivíduos transformam-se em sujeitos – processo de sobredeterminação – através das suas ações na linguagem (falas, gestos, imagens etc.). Não há sujeito sem ideologia e não há ideologia sem sujeito, afirma o analista do discurso. Quando se fala, fala-se de algum lugar, isto é, a articulação dos enunciados proferidos por um sujeito considera as condições de enunciação que tornam possível dizê-los, sendo que o processo de encadeamento remete ao simbólico (língua), o qual se organiza a partir de pré-construídos11 11 Como foi apontado, a análise de itens lexicais isolados dificulta o entendimento das suas classes gramaticais. Para solucionar problemas imediatos para a análise, consideraremos que “todos” pode assumir a posição de substantivo, a de pronome indefinido e a de locução pronominal (“de todos”, como presente no slogan da campanha presidencial de Jair Bolsonaro, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). Algo semelhante ocorre com o item lexical “verdade”, que poderia tanto ser substantivo (“A verdade...”) como adjetivo (“X é verdade”). significados pela constituição imaginária – histórica/ideológica – dos saberes humanos10 10 No dizer de Pêcheux (2009, p. 146-147, itálicos do autor): “as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem. Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.) [isto é, acrescentamos, articulado sob a forma de um gênero discursivo]”. .

Na Análise do Discurso, as formações discursivas – regras histórico-institucionais que regem as enunciações – autorizam/possibilitam os dizeres, maneira pela qual uma instância dessubjetivada (“diz-se na linguagem”) institui-se em sujeito (“aquele que diz”). Isso significa que a subjetividade deve ser compreendida na imanência da linguagem, sem concatenação estritamente lógica, pois não é determinada biológica ou matematicamente (PÊCHEUX, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2009.).

Para Orlandi (2013)ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 11. ed. Campinas, SP: Pontes, 2013., uma análise discursiva pressupõe, necessariamente, a passagem da superfície discursiva – texto/discurso – para o objeto discursivo – formação discursiva – e deste para o processo discursivo – formação ideológica –, permitindo compreender como o simbólico produz significações. Sendo os enunciados científicos também gestos de interpretação, tanto a montagem do corpus quanto o processo analítico representam o exercício rigoroso da prática teórica pelo pesquisador, a qual deve contar com “um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise” (ORLANDI, 2013ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 11. ed. Campinas, SP: Pontes, 2013., p. 67); ou seja, um processo contínuo de descrição-interpretação do objeto discursivo analisado e do seu funcionamento social.

No presente trabalho, os tweets são a materialidade textual através da qual podemos descrever as características da formação discursiva na/pela qual fala Jair Bolsonaro e o modo como esta última engendra as formações ideológicas de grupos sociais maiores na sociedade brasileira. Piovezani (2015PIOVEZANI, C. Falar em público na política contemporânea: a eloquência pop e popular brasileira na idade da mídia. In: COURTINE, J.-J.; PIOVEZANI, C. História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. p.290-337., p. 291) afirma que “a política não se encerra na fala, mas começa por ela. Se o dizer os reflete de modo privilegiado, ele mais fundamentalmente engendra os diversos consensos e conflitos humanos”. E acrescenta, “uma marca característica do discurso político é sua condição de fala pública cujo propósito mais ou menos manifesto consiste em manter ou em adquirir adesão ideológica” (PIOVEZANI, 2015PIOVEZANI, C. Falar em público na política contemporânea: a eloquência pop e popular brasileira na idade da mídia. In: COURTINE, J.-J.; PIOVEZANI, C. História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. p.290-337., p. 291).

Tomando isso por pressuposto, o pesquisador realiza uma arqueologia da fala pública na política brasileira, privilegiando a relação entre retórica, eloquência e meios de comunicação em massa, tais como o palanque, a rádio e a televisão. Demonstra, assim, como a “presença distante” do político no palanque torna-se cada vez mais a “distância presente” possibilitada pelo advento da televisão. Se, com a rádio, a voz passa a circular sem corpo, com a televisão, o corpo transforma-se primordialmente em rosto (PIOVEZANI, 2015PIOVEZANI, C. Falar em público na política contemporânea: a eloquência pop e popular brasileira na idade da mídia. In: COURTINE, J.-J.; PIOVEZANI, C. História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. p.290-337.).

Nossa análise dos usos da rede social Twitter na fala pública nos permite avançar na descrição das características, entre permanências e mudanças, do discurso político brasileiro na era das mídias digitais, as quais ensejam: (i) uma personalização crescente da política, com o aprofundamento da sensação de distância próxima do líder, a preponderância do ethos sobre o logos na atual racionalidade política e a dissolução contínua da diferença entre posicionamentos públicos e privados; (ii) a radical substituição da organização argumentativa clássica da política, com pronunciamentos mais formais, pela articulação da fala pública com base no senso comum, diminuindo, a um só tempo, a importância da eloquência para a persuasão do eleitorado – seguindo o raciocínio de Piovezani (2015)PIOVEZANI, C. Falar em público na política contemporânea: a eloquência pop e popular brasileira na idade da mídia. In: COURTINE, J.-J.; PIOVEZANI, C. História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. p.290-337. – e “guetizando” os grupos sociais pela lógica dos seguidores virtuais, que, por vezes, tendem a apenas endossar suas crenças e emoções políticas prévias ao abdicarem do conflito inerente ao debate público das ideias.

Além disso, o nosso procedimento metodológico contribui para materializar uma certa imagem – literalmente – de um campo associativo, paradigmático ou interdiscursivo, mais do que do sintagmático ou intradiscursivo. Se este último geralmente funciona como o ponto de partida comum da análise qualitativa, o primeiro, como construção teórica mais abstrata, é mais difícil de ser visualizado. Nesse viés, é como se pudéssemos, através de uma análise computacional, produzir uma espécie de fotografia da memória discursiva do grupo político investigado. Compartilhada via campo lexical, ela adquiriria conexão lógica pela sua articulação e circulação nas/pelas redes sociais (digitais ou não). Através desse vocabulário e suas relações imaginárias, portanto, os sujeitos podem se reconhecer e se comunicar, posicionando-se sobre eles nos ambientes virtuais, no caso da nossa pesquisa.

Analisaremos, agora, quatro gráficos de barras (2, 3, 4 e 5) mostrando os 10 (dez) itens lexicais gerais, substantivos, verbos e adjetivos mais utilizados por Jair Bolsonaro nos tweets analisados e suas respectivas frequências. Ao lado de cada gráfico, mostraremos um mapa de palavras (1, 2, 3 e 4) correspondente, confeccionados a partir dos 100 itens lexicais – gerais, substantivos, verbos e adjetivos – mais utilizados nessas mensagens, sendo que o tamanho das palavras é proporcional à frequência das mesmas. Vejamos o gráfico e o mapa das palavras gerais:

Como pode-se notar, dentre os dez itens lexicais mais utilizados, temos os substantivos Brasil (1º), todos (3º), PT (4º) e Governo (6º), os adjetivos grande (5º), esquerda (9º) e verdade (10º), duas ocorrências do verbo “ser” (é (2º) e ser (8º)) e uma do verbo “estar” (está (7º)), apontando ora para um sentido de essência (“é” ou “ser”), ora para um de estado (“está”). Considerando os substantivos, interessante notar a forma como o item lexical “Brasil” assume preponderância em relação aos demais, provavelmente, pela sua associação ao discurso nacionalista-militar e à tentativa de superar a fragmentação partidária em prol da unificação política do país, reforçado pelo significante posicionado em terceiro lugar, “todos”, fundamento da ideia de “união nacional” e “interesse comum”. Não obstante, o discurso político é bastante institucionalizado, de modo que há um conjunto de itens lexicais e expressões que tendem a ser transversais aos distintos discursos que buscam falar nesse lugar, via sistema eleitoral. “Brasil, um país de todos”, por exemplo, foi o slogan dos Governos Lula (2002 a 2010), do PT. O posicionamento ideológico em relação a palavras como “Brasil” e “todos”, portanto, poderá ser melhor delineado a partir de uma visão contrastiva com outros discursos, como o da esquerda política. A priori, temos como hipótese que tal palavra será preponderante em discursos da nova direita11 11 Como foi apontado, a análise de itens lexicais isolados dificulta o entendimento das suas classes gramaticais. Para solucionar problemas imediatos para a análise, consideraremos que “todos” pode assumir a posição de substantivo, a de pronome indefinido e a de locução pronominal (“de todos”, como presente no slogan da campanha presidencial de Jair Bolsonaro, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). Algo semelhante ocorre com o item lexical “verdade”, que poderia tanto ser substantivo (“A verdade...”) como adjetivo (“X é verdade”). .

Os demais itens lexicais que nos interessam são “PT”, “grande”, “esquerda” e “verdade”, sendo que os significantes “PT” e “esquerda” demonstram sua relevância por serem os marcadores dos opositores ou inimigos políticos, a partir dos quais os discursos alinhados à extrema-direita ou direita políticas precisam firmar a legitimidade e autoridade dos seus projetos de país, denunciando as fragilidades dos seus antípodas e/ou incitando o medo e o ódio. Há uma tendência a utilizar um raciocínio metonímico “de parte pelo todo” entre esses signos para que se possa desautorizar todo o campo político da esquerda pelas críticas a um dos partidos/grupos que a compõem. Curiosamente, o termo “direita” não aparece nessa lista, sendo, possivelmente, “deslocado” implicitamente pela forma como o discurso nacionalista se utiliza dos itens lexicais “Brasil” e “todos”, tentando colocar-se como posicionamento “neutro” – de unificação nacional – e mitigar-se como posição ideológica – viés de interesse particular ou grupal –, a qual é sempre atribuída ao “outro”. Já “grande” pode estar tanto associado a um viés mais ufanista, destacando a grandeza – política, econômica e moral – dos grupos hegemônicos do país quanto hiperdimensionar os aspectos negativos dos adversários.

Por fim, o termo “verdade” tem adquirido centralidade no debate público nacional, seja pelo fato de se tentar instaurar “novas verdades”, via revisionismo histórico da narrativa sobre a Ditadura Militar e demais movimentos autoritários e/ou conservadores nacionais, seja pelo fato de se tentar desconstruir a “verdade do outro”, como uma relativização que denuncia o outro/opositor/inimigo como um agente que tenta incutir as suas verdades particulares como as verdades de todo mundo (“doutrinação”). Tais fenômenos são, fundamentalmente, os mecanismos pelos quais têm se instaurado um “regime de pós-verdade” na organização da dinâmica política no país; ou seja, de um lado, tenta-se revelar a “verdade” – em si – escondida pelos grupos supostamente excluídos que tomaram/haviam tomado o poder, os quais teriam dominado o país e seriam responsáveis pela perseguição ao “cidadão de bem” (ricos/classe média, brancos, heterossexuais, da – extrema – direita política), alicerce semântico da “normalidade” na formação discursiva da extrema direita brasileira na atualidade; de outro, busca-se destruir “fatos estabelecidos” e “verdades objetivas”, associando-as à expressão política dos interesses de grupos ideológicos que buscariam controlar o país, sendo, portanto, os verdadeiros opressores, transgressores, dominadores. Nesse processo, há a massificação do uso das fake news.

Comumente, a neutralidade ideológica dos grupos extremistas se fundamenta em conceitos com pretenso teor a-histórico/metafísicos, como “Deus”, “natureza”, “nação”, “tradição” e “moral”. Os grupos não alinhados a esses ideários são acusados de tentarem impor uma dominação cultural contra a “ordem”, conceito transdiscursivo que perpassa os discursos político, religioso, econômico e militarista (MORAIS, 2018MORAIS, A. R. A. Estética da Intolerância: extremismo político e arte no Brasil atual. Revista Rua, Campinas, SP, v. 24, n. 2, p. 499-524, nov. 2018. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8653498/18553. Acesso em: 25 abr. 2021.
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). Em suma, haveria a verdade em si – da união e da paz – e a verdade política, da ideologia, da fragmentação e do conflito. Passemos à análise dos substantivos:

Gráfico 3
– Frequência de substantivos Mapa de palavras 2 – Substantivos

Se compararmos o gráfico dos substantivos com o das palavras gerais, perceberemos poucas inclusões novas, notadamente, “consideração” (5ª), “assista” (7ª) – que se configura como erro de filtragem, por ser verbo – e “país” (8ª), sendo as duas primeiras pouco marcadas ideologicamente. A mudança das posições, entretanto, mostra-se interessante, pois “PT” sobe da quarta para a segunda posição, “governo” da sexta para a terceira e “verdade” da décima para a quarta. A entrada do item lexical “país” (8º) na lista aponta para a possibilidade metafórica – sintagmática – de organização desse pensamento, associando-se por substituição possível a “Brasil”, o qual continua na primeira posição. Temos, assim, uma relação de sinonímia entre ambos, os quais se conectam ao viés “nacional” e à “burocracia estatal”. Os significantes “governo” (3º) e “presidente” (6º) são ambíguos, pois não sabemos se se referem aos próprios “governo” e “presidente” ou aos anteriores. A marcação de temporalidade em relação à frequência das palavras poderá definir mais claramente o contexto de uso. Abaixo, os verbos:

Gráfico 4
– Frequência de verbos Mapa de palavras 3 – Verbos

O verbo “ser” aparece em distintas formas, a saber: é (1ª), na terceira pessoa do singular do presente do indicativo. Tal marca verbal funciona como uma “marca de metalinguagem”, no sentido atribuído por Orlandi (2009)ORLANDI, E. P. A linguagem e o seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas, SP: Pontes, 2009., que sustenta que, na estrutura “X é...”, ela adquire uma função referencial importante ao atribuir uma existência em si – ontológica – àquilo a que o discurso se refere. Através dela, associa-se a essa entidade características e qualidades essenciais. Em vista disso, o verbo ser na forma “é” funcionaria como um importante marcador ideológico, a partir do qual pode-se, inclusive, debater as conjugações seguintes do mesmo verbo; ser (3ª), no infinitivo; “será” (4ª), terceira pessoa do singular do futuro do indicativo, possivelmente, associando-se ou a uma postura de negação do presente em relação ao que se propõe ou a uma denúncia caso o estado de coisas se mantenha. Ter-se-ia, nesses casos, uma conotação de mudança em relação às condições enunciativas da qual se fala; “foi” (6ª), terceira pessoa do singular do pretérito perfeito, posicionando-se sobre um dado estado de coisas ou tido como desejado ou como superado, relacionando o presente ao passado. Poderia ser, por exemplo, ou uma apologia do passado ou uma denúncia em relação ao grupo político opositor.

O verbo “estar”, por sua vez, aparece como: está (2ª), na terceira pessoa do singular do indicativo, dando conotação de estado a uma determinada situação; “estamos” (5ª), primeira pessoa do plural do indicativo, apontando para uma incorporação do auditório ao enunciado pela identificação grupal simbólica entre “quem fala” e “quem escuta”, semelhante a “temos” (8ª); “estão” (7º), na terceira pessoa do plural do indicativo, como estado de coisas transitório para um referente no plural. A ideia de mudança está presente em praticamente qualquer posicionamento político, no intuito de direcionar as frustrações sociais aos projetos concorrentes. Cada projeto afirma-se como a “mudança”, a “transformação” e o “novo”, por oposição à “continuidade”, ao “mesmo” e ao “antigo”12 12 De acordo com Pinto (2006, p. 107, itálico nosso): “A idéia da mudança é um significante vazio [no sentido freudiano de que pode assumir praticamente qualquer sentido] na política brasileira. Toda vez que um candidato fala em mudança cria-se uma expectativa positiva. A mudança é um significante vazio, ao mesmo tempo em que contém um valor positivo muito grande. Daí que, como cada um encontra na mudança um significado, cada brasileiro coloca no conceito de mudança o significado que quer: a mudança pode ser tanto do capitalismo para o socialismo, como no valor da aposentadoria da seguridade social”. . O significante “veja” (10ª), imperativo do verbo “ver”, aponta para uma função sensorial, podendo associar-se potencialmente à “verdade”, no sentido de presenciar ou descobrir algo. O verbo “ir”, no futuro do indicativo (“vai” (9ª)), demanda uma reconstrução discursiva mais elaborada. Por fim, temos os dados dos adjetivos:

Nesse gráfico, podemos perceber o quanto essa classe gramatical parece ser privilegiada para uma análise do campo lexical se nos ativermos à ideia de cadeias semânticas (MORAIS, 2018MORAIS, A. R. A. Estética da Intolerância: extremismo político e arte no Brasil atual. Revista Rua, Campinas, SP, v. 24, n. 2, p. 499-524, nov. 2018. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8653498/18553. Acesso em: 25 abr. 2021.
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, 2019MORAIS, A. R. A. O discurso político da extrema-direita brasileira na atualidade. Cadernos de Sociedade e Linguagem, Brasília-DF, v. 20, n. 1, 2019.). Ao olhar para ele, o leitor poderá perceber quase automaticamente sentidos possíveis a cada um dos significantes. Pêcheux (2009)PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2009. explica esse fenômeno pela relação entre sentidos literais e sentidos naturalizados, associando a evidência/obviedade à força ideológica sobre o simbólico em uma dada sociedade. Ademais, o fato de serem qualificadores traz consigo uma característica axiológica intrínseca. Se, no gráfico 2, os itens lexicais “grande” e “esquerda” aparecem, respectivamente, na quinta e nona posições, no gráfico 5, eles são alçados à primeira e quarta posições. “Boa” (2ª) e “bom” (6ª) são dois marcadores morais claros, os quais se apresentam – implicitamente – na própria metáfora que define o típico apoiador da nova direita: o “cidadão de bem” ↔ “cidadão bom”.

Gráfico 2
– Frequência de palavras Mapa de palavras 1 – Itens lexicais

Gráfico 5
– Frequência de adjetivos Mapa de palavras 4 – Adjetivos

Tanto “brasileiros” (8ª) quanto “brasileiro” (9ª), se na posição de adjetivos – visto que também podem assumir a posição de substantivos: “o(s) brasileiro(s))...” –, apontam para aqueles que escutam, o auditório do discurso político, os verdadeiros destinatários das propostas dos representantes institucionais do país: o “povo brasileiro”. Isto é, servem como qualificadores daquilo que pertence “aos brasileiros”. Implicitamente, pela sua associação metafórica tendencial à ideia de “nação”, presente, por exemplo, pelo significante “nacional” (7º), tais termos apontam para uma ideia de maioria e de hegemonia, vinculando-se ao conceito de “povo”. Já o item lexical “federal” (10ª) relaciona-se, prioritariamente, à burocracia estatal e às suas instituições, como pode ser o caso da própria “Polícia Federal”, que assumiu protagonismo na atualidade. A associação em cadeia dos adjetivos “grande” → “boa” → “forte” → “militar” → “bom” → “nacional” → “brasileiro(s)” formaria uma cadeia semântica positivada nessa formação discursiva, enquanto “federal” pode tanto se associar positivamente a um “governo” ou “instituição” quanto a uma denúncia contra a “esquerda” no poder ou na prisão, seja como substantivo, seja como adjetivo.

Concluímos nossas análises ressaltando, novamente, que o percurso metodológico e interpretativo realizado é inicial, de modo que o experimento que fizemos neste texto serve para apontar as potencialidades de análises quantitativas a respeito do discurso político da nova direita brasileira. Partindo das conclusões a que chegamos, os nossos próximos passos e desafios são: melhorar o processo de filtragem (stop words) e processamento dos dados, diminuindo a ambiguidade dos itens lexicais em relação às classes gramaticais a que podem pertencer; constituir um corpora com a temática da intolerância no Brasil, podendo melhorar a precisão e expressividade dos nossos dados, bem como suas interrelações intertextuais e interdiscursivas; elaborar gráficos complexos que possibilitem identificar as relações multidimensionais dos itens lexicais através da distribuição das conexões – valências – que estabelecem; desenvolver um modelo de processamento de dados que possa considerar expressões, sintagmas e proposições maiores, de modo a tentar avaliar o funcionamento de outras categorias analíticas, tais como metáforas, metonímias, nominalizações e slogans; avaliar modos de produzir análises comparativas com a média social de uso desses itens lexicais e expressões com a de grupos políticos concorrentes, como a esquerda política, e mesmo com discursos políticos intolerantes de outras culturas, demandando a elaboração de uma metodologia de tradução linguística e adequação das categorias analíticas a essa complexidade. Com esses dados, esperamos produzir análises qualitativas e quantitativas mais exaustivas e relevantes ao longo dos próximos anos.

Considerações finais

No presente trabalho, tivemos por intuito desenvolver uma análise quantitativa dos substantivos, verbos e adjetivos mais utilizados em 4 mil 523 tweets postados pelo presidente Jair Bolsonaro em seu perfil na rede social Twitter entre 31 de março de 2010 e 07 de março de 2019. Os dados avaliados dialogam com mais clareza com aquilo que Saussure (2006SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006. Original de 1916. [1916]) chama de relações associativas e o que Pêcheux (2009)PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2009. denomina de interdiscurso. Se tais dados apontam com certa clareza para os campos lexicais e semânticos do discurso político da nova direita brasileira, a ausência de estruturas sintagmáticas e de marcações co(n)textuais apresenta problemas para a análise. Apesar disso, entendemos que os aspectos teórico-metodológicos apresentados demonstram um potencial para o desenvolvimento de pesquisas linguístico-discursivas de diferentes perspectivas sobre essa temática, tão atual quanto urgente.

REFERÊNCIAS

  • 1
    O texto está estruturado de modo a tentar entrelaçar os conceitos de ethos, pathos e logos. Por isso, organizamos as seções tentando entender “quem fala”, “quem escuta” e “como se fala”. Por questões de espaço, não desenvolveremos reflexões aprofundadas sobre esses três conceitos argumentativos, resguardando-nos a defini-los rapidamente da seguinte forma: “um argumento são proposições destinadas a fazer admitir uma dada tese. Argumentar é, pois, construir um discurso que tem a finalidade de persuadir. Como qualquer discurso, o argumento é um enunciado, resultante, pois, de um processo de enunciação, que põe em jogo três elementos: o enunciador, o enunciatário e o discurso, ou, como foram chamados pelos retores, o orador, o auditório e a argumentação propriamente dita, o discurso. Esses três fatores concorrem para o ato persuasório” (FIORIN, 2017FIORIN, J. L. Argumentação. São Paulo: Contexto, 2017., p. 69).
  • 2
    É importante destacar, contudo, que há uma intensa atuação de robôs no perfil do presidente brasileiro. Para fins de comparação, seria interessante avaliar a proporção do mesmo fenômeno no perfil do líder político norte-americano. De acordo com Lago, Massaro e Cruz (2018), vinculados ao InternetLab e utilizando-se da ferramenta desenvolvida pela Universidade de Indiana (EUA) chamada Botometer, estipula-se que 400 mil seguidores da página do então presidenciável Jair Bolsonaro no Twitter eram robôs, o equivalente a 33,8% do total.
  • 3
    A esse respeito, consultar Morais (2018)MORAIS, A. R. A. Estética da Intolerância: extremismo político e arte no Brasil atual. Revista Rua, Campinas, SP, v. 24, n. 2, p. 499-524, nov. 2018. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8653498/18553. Acesso em: 25 abr. 2021.
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    .
  • 4
    Disponível em: https://www.nltk.org/. Acesso em: 7 out. 2021.
  • 5
    Disponível em: https://twitter.com/search-home. Acesso em: 7 out. 2021.
  • 6
    Stop words são itens lexicais que, por serem muito comuns e, portanto, não serem considerados importantes para a análise pretendida, não entram na contagem. Não há parâmetros universais para a sua definição, pois depende dos tipos de dados que os pesquisadores desejam gerar. Comumente, são excluídos artigos, vocativos, pronomes, preposições e conjunções, por exemplo.
  • 7
    Maingueneau (2005)MAINGUENEAU, D. Gênese dos Discursos. Curitiba: Criar Edições, 2005. analisa o contraste entre as formações discursivas religiosas do humanismo devoto e do jansenismo a partir de uma análise quantitativa, além da valência lexical, conforme apontada no primeiro ponto. Dialogaremos de forma mais detida com essa metodologia de trabalho nos próximos passos da pesquisa.
  • 8
    De acordo com Pinto (2006PINTO, C. R. J. Elementos para uma análise de discurso político. Barbarói, Santa Cruz do Sul, v. 24, p. 87-118, 2006., p. 105), os conceitos “deslocamento” e “condensação” são fundamentais à Análise do Discurso, sendo que o primeiro aponta para a metáfora – o entendimento de um termo/conceito por outro – e o segundo, para a hegemonia, isto é, a forma pela qual um discurso ou sentido consegue se sobrepor – processo de sobredeterminação – a um conjunto de outros que lhe atravessam sem se reduzirem a ele, dando-lhe coerência ideológica: “Deslocamentos e condensações - são duas formas muito interessantes de organização de discursos políticos, religiosos, místicos, naqueles discursos que querem impor uma verdade ou querem esconder uma verdade. O trabalho dos sonhos, segundo Freud, é do deslocamento dos sentidos. Isso é um trabalho metafórico. Sonha-se com alguma coisa, mas quando se analisa o símbolo que sonhamos, ele não tem obrigatoriamente nada a ver com os conteúdos explícitos dos sonhos, isto é o processo de deslocamento. [...] No discurso político há inúmeros exemplos de processos de deslocamento, como a centralidade no discurso da violência em detrimento do discurso de combate à desigualdade social; a atribuição às catástrofes naturais de fracassos de políticas agrícolas; a atribuição à desqualificação do trabalhador sua condição de desempregado. O conceito de condensação é distinto. [...] A hegemonia é um forte momento de condensação. Podemos ter uma luta por democracia [no caso do nosso trabalho, uma ‘luta contra ela’], por exemplo, e essa luta trazer muitos grupos diferentes, trazer muita gente para dentro dessa luta porque o termo democracia condensa muitos sentidos [desde junho de 2013, o termo ‘corrupção’ assumiu esse lugar]”.
  • 9
    Segundo Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2009., p. 151, itálicos do autor): “Diremos, então, que o ‘pré-construído’ corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e ‘seu sentido’ sob a forma da universalidade (‘o mundo das coisas’), ao passo que a ‘articulação’ constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito”.
  • 10
    No dizer de Pêcheux (2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2009., p. 146-147, itálicos do autor): “as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem. Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.) [isto é, acrescentamos, articulado sob a forma de um gênero discursivo]”.
  • 11
    Como foi apontado, a análise de itens lexicais isolados dificulta o entendimento das suas classes gramaticais. Para solucionar problemas imediatos para a análise, consideraremos que “todos” pode assumir a posição de substantivo, a de pronome indefinido e a de locução pronominal (“de todos”, como presente no slogan da campanha presidencial de Jair Bolsonaro, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). Algo semelhante ocorre com o item lexical “verdade”, que poderia tanto ser substantivo (“A verdade...”) como adjetivo (“X é verdade”).
  • 12
    De acordo com Pinto (2006PINTO, C. R. J. Elementos para uma análise de discurso político. Barbarói, Santa Cruz do Sul, v. 24, p. 87-118, 2006., p. 107, itálico nosso): “A idéia da mudança é um significante vazio [no sentido freudiano de que pode assumir praticamente qualquer sentido] na política brasileira. Toda vez que um candidato fala em mudança cria-se uma expectativa positiva. A mudança é um significante vazio, ao mesmo tempo em que contém um valor positivo muito grande. Daí que, como cada um encontra na mudança um significado, cada brasileiro coloca no conceito de mudança o significado que quer: a mudança pode ser tanto do capitalismo para o socialismo, como no valor da aposentadoria da seguridade social”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2019
  • Aceito
    12 Jan 2020
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