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O ENSINO DA LÍNGUA ESTRANGEIRA EM CONFLITO: A BUSCA DE ATITUDES CRÍTICAS CONCILIADORAS

RESUMO

A aprendizagem de uma língua estrangeira pressupõe não apenas o domínio das dimensões sistêmica e funcional, mas também o desenvolvimento de uma atitude crítica, considerando aspectos como a consciência dos inúmeros conflitos que subjazem ao estudo das línguas e as inúmeras tentativas de solução já apresentadas, seja por meio do confronto ou da conciliação. O objetivo principal deste trabalho é investigar a possibilidade de uma solução conciliadora para esses conflitos, propondo, para isso, uma metodologia com base nas afinidades eletivas. A fundamentação teórica vem da Análise Crítica do Discurso, que induz a emergência do conflito, e passa pelas Culturas de Paz, que tentam resolver o conflito pelo diálogo. Os dados são coletados do que foi publicado pela imprensa mundial em 12 de setembro de 2001, sobre os ataques às Torres Gêmeas em Nova York no dia anterior. A conclusão é de que a solução do conflito pela via da atitude conciliadora implica, da parte do enunciador, uma ruptura provisória com seu contexto imediato para construir vínculos mais duradouros com interlocutores de outras culturas.

Linguística Aplicada Crítica; Análise Crítica do Discurso; Culturas de Paz; Afinidades eletivas

ABSTRACT

Learning a foreign language includes not only mastering its systemic and functional dimensions, but also developing a critical attitude, considering aspects such as awareness of the numerous conflicts that underlie its study, along with numerous solutions already attempted, either through confrontation or conciliation. The main objective of this study is to investigate the possibility of a conciliatory solution to these conflicts, proposing a methodology based on Elective Affinities. The theoretical underpinnings come from Critical Discourse Analysis, inducing conflict emergence, and attaching to it the concept of Peace Cultures, with the idea that conflict can be resolved through dialogue. The data are collected from what was published by the world press on September 12, 2001, about the attacks on the Twin Towers in New York the day before. The conclusion is that conflict resolution through conciliatory attitudes challenges the speaker to enact a provisional rupture with its immediate context to build more lasting bonds with interlocutors of other cultures.

Critical Applied Linguistics; Critical Discourse Analysis; Cultures of Peace; Elective affinities

Introdução

Este trabalho parte do pressuposto de que o ensino da língua estrangeira/adicional (LE) é uma prática pedagógica que visa dar ao aluno o domínio da língua em três dimensões fundamentais: sistêmica, funcional e crítica. Vemos a dimensão sistêmica no nível mais baixo, com base no conceito de signo, entendido como instrumento de representação para as coisas no mundo e que supõe no aluno a necessidade de automatização do léxico e da sintaxe da língua estudada. No nível intermediário, aparece a dimensão funcional, em que a língua é vista como instrumento de ação na relação com o outro: de modo inconsciente, usa-se a língua para atingir determinados objetivos, seja para elogiar, incentivar, orientar ou mesmo para desqualificar, humilhar, marginalizar a pessoa com quem se fala. É inconsciente porque normalmente não se tem noção de que a língua é o instrumento usado para produzir essas ações, na medida em que falar é agir ( AUSTIN, 1975AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press, 1975. ). Finalmente, no nível mais elevado, chega-se à dimensão crítica, definida aqui como o gesto de reflexão que traz para o nível da consciência o que é feito inconscientemente no uso da língua. Quando alguém fala, escuta, lê ou escreve, pode, por exemplo, estar excluindo o outro ou sendo excluído por ele, praticando ou sofrendo a exclusão sem se dar conta do que está acontecendo; permanecendo no nível da ação sem reflexão. Atuar na dimensão crítica é, portanto, mostrar como isso acontece no uso da língua, desvelando para o sujeito o que foi silenciado, ocultado ou naturalizado ( FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Trad. Izabel Magalhães. Brasília: Ed. da UnB, 2001. ).

O principal objetivo deste trabalho é construir um conceito teórico-metodológico de ensino crítico conciliador. Vê-se a sala de aula de LE como um espaço atravessado por conflitos ideológicos que podem afetar a aprendizagem do aluno, tanto no sentido negativo, com conflitos mal resolvidos, que podem prejudicar seu desempenho, como no sentido positivo, em que o tratamento adequado dos conflitos, dado pelo professor, possa levar o aluno a descobrir o encanto de aprender a LE e chegar ao prazer sem culpa de conhecer a cultura do outro. Para demonstrar de que modo esse objetivo pode ser realizado, constrói-se o conceito teórico-metodológico de ensino crítico conciliador: (1) parte-se da Análise Crítica do Discurso (ACD) de Fairclough (1989FAIRCLOUGH, N. Language and power. New York: Longman, 1989. , 2001FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Trad. Izabel Magalhães. Brasília: Ed. da UnB, 2001. , 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: New York: Routledge, 2003. ), que induz a emergência do conflito, com a promessa de retirar o aluno de um estado indesejável de alienação; (2) recorre-se ao conceito de culturas de paz ( GALTUNG, 1969GALTUNG, J. Violence, peace, and peace research. Journal of Peace Research, London, v. 6, n. 3, p. 167-191, 1969. , 1995GALTUNG, J. Peace by peaceful means. London: Sage, 1995. , 2003GALTUNG, J. Paz cultural: algumas características, 2003. Disponível em http://www.palasathena.org.br/arquivos/conteudos/Paz_Cultural_Johan_Galtung.pdf. Acesso em: 02 dez. 2021.
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; OXFORD, 2014OXFORD, R. L. (org.). Understanding peace cultures. Charlotte, NC: IAP, 2014. ), em que o conflito se resolve pelo diálogo entre elementos da cultura, procurando também dar à ACD uma perspectiva crítica mais construtiva; e (3) conclui-se com a proposta das afinidades eletivas ( FUSTER GARCÍA, 2009FUSTER GARCÍA, F. Afinidades electivas» entre literatura y sociología: el suicidio de Andrés Hurtado en el árbol de la ciencia como ejemplo de suicidio anómico. EPOS, Frielendorf, v. 26, p. 61-75, 2009. ; GASPAR, 2009GASPAR, S. F. D. La novela como conocimiento social: “el primo Basilio” de Eça de Queirós. 2009. 354f. Tese (Doutorado en Teoría Sociológica) - Facultad de Ciencias Políticas y Sociología, Universidad Complutense de Madrid, Madrid, 2009. ), fazendo um levantamento de possíveis pontos de contato nas brechas que se buscam entre ideologias antagônicas. Para a análise e discussão do corpus , volta-se à ACD, sob o viés das afinidades eletivas, para demonstrar seu potencial de ruptura com elementos de discursos cristalizados e abrir espaços para alianças conciliadoras com elementos de outros discursos.

Fundamentação

Dividimos a fundamentação em três instâncias, assim encadeadas: (1) ausência do conflito, (2) emergência do conflito e (3) solução do conflito. Para caracterizar esse encadeamento da maneira mais sucinta possível, precisamos inicialmente definir alguns termos que usaremos neste trabalho, incluindo o que entendemos por “ideologia”, “enunciado” e termos derivados dessas palavras. Há uma polissemia entranhada nesses termos que precisa ser desfeita, ainda que de modo ad hoc , para o fim específico de facilitar a exposição neste trabalho. Para isso, enfrentamos o desafio de recorrer a vários autores e teorias, buscando mais as afinidades conceituais do que as divergências, fazendo sínteses, ressignificando alguns termos e esclarecendo as acepções selecionadas. Trata-se de um trabalho de natureza essencialmente integracionista e transdisciplinar, na perspectiva de Chouliaraki e Fairclough (2010)CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Critical Discourse Analysis in organizational studies: towards an integrationist methodology. Journal of Management Studies, West Sussex, v. 47, n. 6, p. 1213-1218, 2010. .

Vemos “enunciado” como um segmento da linguagem que forma uma unidade de sentido, seja uma sequência de sentenças, uma frase ou até mesmo uma simples palavra ( HURFORD; HEASLEY, 2004HURFORD, J. R.; HEASLEY, B. Curso de semântica. Trad. Delzimar da Costa Lima e Dóris Cristina Gedrat. Canoas, RS: Ed. da ULBRA, 2004. ), usado na forma oral e escrita ( MACKAY, 2000MACKAY, A. P. M. Atividade verbal: processo de diferença e integração entre fala e escrita. São Paulo: Plexus, 2000. ). Termos relevantes, derivados da palavra “enunciado”, são “enunciador” e “enunciatário”, oriundos dos estudos da linguagem ( BAKHTIN, 1990BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1990. ; BENVENISTE, 1989BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989. ; DUCROT, 1987DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987. ), e usados aqui para facilitar a exposição, vendo (1) “enunciador”, como aquele que fala ou escreve, produzindo o enunciado, e (2) “enunciatário”, como aquele a quem se fala ou escreve. Tanto enunciador como enunciatário têm um “lugar de fala” ( RIBEIRO, 2017RIBEIRO, D. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017. ), onde produzem, distribuem e/ou consomem seus enunciados. Nem sempre é fácil definir esses lugares, principalmente o do enunciatário, que muitas vezes está oculto: o enunciador parece dirigir-se a alguém a sua frente quando na realidade se dirige a alguém muito distante, como o exemplo do parlamentar aparentemente dirigindo-se aos colegas, mas mirando o eleitor do outro lado da câmera. Seguem alguns exemplos de enunciados, oriundos de enunciadores de diferentes partes do planeta, valendo-se já de possíveis amostras de afinidades conciliadoras, selecionadas pelo viés da não-violência: “Olho por olho e o mundo acabará cego” (Gandhi, líder indiano); “O primeiro gesto humano é o abraço” (Eduardo Galeano, escritor uruguaio); “Se o outro morrer, parte de mim também morre porque somos todos parte da humanidade” (Resumo de um poema de John Donne, poeta inglês); “Eu existo porque me vejo refletido nos teus olhos” (Tradução livre da palavra ubuntu, da língua zulu). A própria definição de Goethe sobre afinidade eletiva pode ser mais um exemplo: “No trabalho sói acontecer o mesmo que na dança: parceiros que logram manter o mesmo passo tornam-se imprescindíveis; nasce então um sentimento de bem-estar que é partilhado por ambos os dançarinos” (GOETHE, 2014, p. 74).

Entende-se por ideologia “um corpo de ideias característico de um determinado grupo ou classe social”, conforme uma das possíveis definições oferecidas por Eagleton (1991EAGLETON, T. Ideology: an introduction. London: Verso, 1991. , p. 1), e que está implícita no que é dito ou escrito explicitamente por alguém. Uma frase como “Os Estados Unidos são um país rico porque seu povo é honesto e trabalhador” pode refletir uma posição ideológica construída sobre o pressuposto de que outros países são pobres porque seu povo é desonesto e indolente. Já a famosa frase do General Porfírio Diaz, ex-presidente do México “Pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos” pode passar a ideologia de que a riqueza do primeiro mundo é construída pela oferta da mão de obra barata, pelo trabalho escravo e pela submissão generalizada dos pobres do terceiro mundo aos interesses das multinacionais. A noção de ideologia, como conjunto de ideias de um grupo, não tem compromisso com a verdade comum, generalizada e universal. São diferentes maneiras de ver o mundo, desde um alinhamento ao realismo mágico do subalterno – a festa do dia dos mortos no México – até a crença positivista de que as pessoas pragmáticas se preocupam mais com a vida do que com a morte, alinhando-se com a ética protestante e com o espírito capitalista ( WEBER, 2004WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ) e, por isso, produzindo mais riqueza e bem-estar. Nesta linha de pensamento positivista, o pobre do terceiro mundo pode até ser visto como pobre por opção, renunciando aos bens materiais e distribuindo-os aos pobres se os possui, mas é geralmente visto como alguém que simplesmente desgosta do trabalho, vendo-o como um castigo. A fusão da religião com o capitalismo, de um lado, e o desprezo pelos bens materiais, do outro, refletem duas ideologias diferentes, na noção que se dá aqui ao termo.

Vejamos agora como se encadeiam a ausência, emergência e solução do conflito. Na área do ensino da LE, a ausência do conflito é marcada não só pela alienação, seja do professor, do aluno ou de ambos, mas também pelo deslumbramento ingênuo da cultura e língua do outro, que ocorre de modo acrítico ( MOITA LOPES, 1996MOITA LOPES, L. P. de “Yes, nós temos bananas” ou “Paraíba não é Chicago, não”: um estudo sobre a alienação e o ensino de inglês como língua estrangeira no Brasil. In: MOITA LOPES, L. P. de (org.). Oficina de Linguística Aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996. p.37-62. ; COX; ASSIS-PETERSON, 2001COX, M. I. P.; ASSIS-PETERSON, A. A. de. O professor de inglês: entre a alienação e a emancipação. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 4, n. 1, p.11-36, 2001. ) e normalmente sem condições de sustentabilidade, o que pode acabar no desencanto com a cultura do outro ( PAVLENKO; BLACKLEDGE, 2004PAVLENKO, A.; BLACKLEDGE, A. Introduction: new theoretical approaches to the study of negotiation of identities in multilingual contexts. In: PAVLENKO, A.; BLACKLEDGE, A. Negotiation of identities in multilingual contexts. Clevedon: Multilingual Matters, 2004. p. 1-34. ). O professor de LE, principalmente no caso de línguas hegemônicas como o inglês, por ser mentalmente colonizado, torna-se um colonizador em seu próprio país ( MOITA LOPES, 1996MOITA LOPES, L. P. de “Yes, nós temos bananas” ou “Paraíba não é Chicago, não”: um estudo sobre a alienação e o ensino de inglês como língua estrangeira no Brasil. In: MOITA LOPES, L. P. de (org.). Oficina de Linguística Aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996. p.37-62. ), atuando no nível da consciência ingênua ( FREIRE, 1979FREIRE, P. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ), sem se dar conta de que está inocentemente adotando o discurso do colonizador, negando a si mesmo e silenciando a própria voz ( SALOMÃO, 2017SALOMÃO, A. C. B. Concepções de cultura no ensino de línguas: reflexões para a formação de professores. Acta Scientiarum, Maringá, v. 39, n. 2, p. 155-165, 2017. ).

A emergência do conflito surge da problematização dos discursos cristalizados ( DUBOC, 2012DUBOC, A. P. M. Atitude curricular: letramentos críticos nas brechas da formação de professores de inglês. 2012. 246f. Tese (Doutorado em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. ), alertando para a naturalização de discursos hegemônicos ( WODAK, 2003WODAK, R. De qué trata el análisis crítico del discurso (ACD): Resumen de su historia, sus conceptos fundamentales y sus desarrollos. In: WODAK, R.; MEYER, M. (org.). Métodos de Análisis Crítico del Discurso. Barcelona: Gedisa, 2003. p. 17-34. ) que são apresentados como certificadores do que é justo e correto, mas que sub-repticiamente acabam legitimando diferentes formas de violência ( GALTUNG, 1995GALTUNG, J. Peace by peaceful means. London: Sage, 1995. ). A Análise Crítica do Discurso ( FAIRCLOUGH, 1989FAIRCLOUGH, N. Language and power. New York: Longman, 1989. ; RESENDE; RAMALHO, 2006RESENDE, V. de M.; RAMALHO, V. Análise de Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006. ; COTS, 2006COTS, J. M. Teaching ‘with an attitude’: Critical Discourse Analysis in EFL Teaching. ELT Journal, Oxford, v. 60, n. 4, p. 336-345, 2006. ; DUBOC, 2013DUBOC, A. P. M. Teaching with an attitude: finding ways to the conundrum of a postmodern curriculum. Creative Education, Irvine, CA, v. 4, n. 12, p. 58-65, 2013. ; RORATO, 2016RORATO, D. C. C. P. Uma proposta didática de ensino crítico da língua inglesa. Revista Interfaces, Guarapuava, v. 7, n. 1, p. 70-77, 2016. ; MAGALHÃES; MARTINS; RESENDE, 2017) é uma abordagem teórico-metodológica que inclui as dimensões de práticas sociais, discursivas e textuais, que resumimos abaixo, incorporando um realinhamento mais conciliador, considerando “uma orientação integracionista e propositalmente porosa de metodologia de pesquisa que privilegia a transdisciplinaridade sobre o rigor” ( CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 2010CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Critical Discourse Analysis in organizational studies: towards an integrationist methodology. Journal of Management Studies, West Sussex, v. 47, n. 6, p. 1213-1218, 2010. , p. 1218).

Na dimensão social, o discurso é percebido como um exemplo de prática social ( OLIVEIRA; CARVALHO, 2013OLIVEIRA, L. A.; CARVALHO, M. A. B. Fairclough. In: OLIVEIRA, L. A. (org.). Estudos do discurso: perspectivas teóricas. São Paulo: Parábola, 2013. p. 281-309. ), recurso que as pessoas usam para tentar compreender e agir sobre a sociedade, transformar o mundo ou, mais comumente, mantê-lo como está. Busca-se descobrir de que modo o texto, por meio de palavras e imagens, contribui para produzir uma determinada representação do mundo, qual é a ideologia que subjaz a essa representação e quem se beneficia dela, considerando-se aí grupos de poder, raças, classes sociais, profissões de maior ou menor prestígio social, etc. O exemplo, dado por Bhabha (1998BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. , p. 111), sobre o discurso colonial, demonstra claramente essa visão e de como a ação colonizadora pode ser justificada em benefício do colonizador: “O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução”.

Já na dimensão discursiva, as escolhas são feitas a partir do contexto imediato, relacionadas ao papel que o enunciador assume não só em relação ao enunciatário, mas também em relação a outros enunciados. A frase do Barão de Itararé, “Deus dá peneira a quem não tem farinha”, remete provavelmente a outro provérbio, “Deus dá nozes a quem não tem dentes”. O enunciador desempenha aqui o papel de humorista e supõe que o enunciatário conheça o provérbio original para poder apreciar o humor que é sobreposto ao texto. O contexto de enunciação mostrará também se é apenas uma tirada de humor, uma crítica a quem não sabe aproveitar os dons que recebeu ou mesmo uma censura mordaz ao desperdício de recursos com pessoas mal-agradecidas. Temos aí, nessa interação com o enunciatário e com outros enunciados, um exemplo de prática discursiva, pressupondo um sujeito letrado, com capacidade de compreender e produzir diferentes práticas sociais de leitura e escrita.

A dimensão textual, finalmente, analisa os aspectos voltados para as escolhas lexicais, sintáticas e semânticas, entre outras, que são feitas por quem fala ou escreve para impactar quem ouve ou lê. Vejam-se possíveis exemplos: “Vem ser feliz com eu” terá um efeito diferente de “Vem ser feliz comigo”; jargões corporativos e profissionais podem ser usados para demonstrar poder e excluir o outro; frases bíblicas vão ter um apelo maior para uma plateia religiosa. Na dimensão textual, como se vê, o efeito sobre o outro emerge da escolha dos elementos textuais feita pelo enunciador. Vê-se aí o discurso como texto.

A separação das três dimensões da ACD – social, discursiva e textual – é feita aqui apenas por razões de exposição didática. Na realidade elas ocorrem simultaneamente.

A ACD, pela sua capacidade de desenvolver a consciência crítica, tem sido vista não só como um meio pelo qual compreendemos o funcionamento da sociedade, mas também como um recurso que podemos usar para nos proteger das armadilhas que os autores, consciente ou inconscientemente, inserem em seus textos para nos induzir a ver práticas sociais naturalizadas por preconceitos, como se fossem legítimas da convivência humana. Essa característica da ACD como instrumento de consciência crítica, essencial para entender a língua como recurso de ação social, tem sido usada, no entanto, com frequência maior para destacar os aspectos negativos do uso da língua, com ênfase nas falhas de comunicação, mal-entendidos e conflitos ( OXFORD, 2013OXFORD, R. L. The language of peace, communicating to create harmony. Charlotte, NC: IAP, 2013. ). Por essa razão, sem ignorar o aporte teórico e metodológico propiciado pela ACD, sentimos a necessidade de ir além, buscando também o conceito de paz cultural, com base em Galtung (1969GALTUNG, J. Violence, peace, and peace research. Journal of Peace Research, London, v. 6, n. 3, p. 167-191, 1969. , 1995GALTUNG, J. Peace by peaceful means. London: Sage, 1995. , 2003GALTUNG, J. Paz cultural: algumas características, 2003. Disponível em http://www.palasathena.org.br/arquivos/conteudos/Paz_Cultural_Johan_Galtung.pdf. Acesso em: 02 dez. 2021.
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) e complementando-o com a noção de afinidades eletivas, de Weber (2004)WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. . Vê-se a necessidade de sair de um ativismo polarizado, em que a língua é vista mais como um sistema gerador de conflitos, para entrar em um mundo conciliador, por uma via de não-violência, onde a língua emerge como um instrumento possível de conciliação entre diferentes ideologias. Desvelar o conflito, como faz a ACD, é necessário, mas não suficiente. Buscando subsídios no princípio básico da Teoria Crítica ( HORKHEIMER, 1989HORKHEIMER, M. Filosofia e teoria crítica. São Paulo: Nova Cultural, 1989. ) de que além de descrever a realidade é necessário também transformá-la, propõe-se que o desenvolvimento da consciência crítica não deva ficar apenas na constatação do conflito, mas incluir também a busca da solução. Considerando ainda que tentar resolver o conflito pela violência apenas o intensifica, busca-se a solução pela via conciliadora, mesmo percebendo que a luta pela solução pacífica é mais um desejo do que uma realidade. Entende-se que não há aqui espaço para a ingenuidade: de quatro grandes pacifistas da História – incluindo Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela e John Lennon – três foram assassinados, vítimas da violência que combatiam.

Galtung (2003)GALTUNG, J. Paz cultural: algumas características, 2003. Disponível em http://www.palasathena.org.br/arquivos/conteudos/Paz_Cultural_Johan_Galtung.pdf. Acesso em: 02 dez. 2021.
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nos alerta para a necessidade de ver a paz como um conceito abstrato que não existe na realidade. O autor usa a metáfora da bolsa de valores para explicar que a palavra “paz” é como um título patrimonial que perdeu o lastro, representando uma parcela do nosso capital linguístico que foi desgastado pelo uso excessivo e pela inflação. Paz é uma palavra que perdeu a confiança dos investidores/usuários da língua pela falta de credibilidade de quem a usa e do objetivo para o qual é usada. Ainda, segundo Galtung, a paz não existe para promover a paz, não é uma representação pacífica e não-violenta da realidade, mas uma maneira de resolver o conflito. Para isso, propõe substituir o conceito abstrato da palavra “paz” pelo conceito concreto da expressão “cultura de paz atuante”. As pessoas envolvidas no conflito precisam acreditar que se responderem à violência com violência o conflito não se resolverá; é necessário que se comportem de modo criativo, flexível e não-violento para chegar a uma solução. A cultura de paz atuante é construída com base na empatia (como é estar no lugar do outro), na reversibilidade (evitar fazer algo irreversível) e na flexibilidade (para viabilizar futuros possíveis). “A violência é terrivelmente irreversível. Somente nos desenhos animados (...) é que seres achatados, (...) ressurgem da morte, ganhando vida nova (...). Na vida real, (...), tal coisa não acontece” (GALTUNG, 2003, p. 8).

O conceito de cultura de paz foi também retomado por Oxford (2014OXFORD, R. L. (org.). Understanding peace cultures. Charlotte, NC: IAP, 2014. , p. 5), que a define como um “processo ativo e dinâmico para desenvolver a harmonia”, não só descartando a ideia de paz como a simples ausência de conflito, mas também abrindo caminho para soluções práticas, como uma opção viável para transformar o mundo a partir de pequenas culturas de paz criadas em sala de aula. Entre os recursos propostos para resolver os conflitos destacam-se, na obra organizada pela autora, a busca de valores, ideias, práticas e artefatos que possam ser compartilhados por membros de diferentes culturas. São citados como exemplos os judeus, cristãos e muçulmanos, todos unidos pelo traço comum de uma mesma herança histórica. Culturas de paz podem também ser fomentadas e ter mais valor quando emergem de grupos arraigadamente antagônicos, como as facções de uma penitenciária, gangues de rappers ou países separados por guerras, mas que conseguem se apegar a alguns aspectos que possam ser compartilhados em suas práticas.

Encontrar um traço comum sustentável que possa ser compartilhado entre participantes de dois sistemas antagônicos – sejam indivíduos, grupos ou países – é provavelmente o maior desafio para a solução dos conflitos que emergem quando se adota uma abordagem crítica para ensino da LE. Há questões extremamente sensíveis, principalmente as de natureza ideológica, envolvendo problemas de hegemonia e relações de poder que precisam ser resolvidos. Para vencer essas barreiras ideológicas, recorre-se aqui ao conceito de afinidades eletivas.

Afinidade eletiva, com base em Löwy (2011)LÖWY, M. Sobre o conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber. Plural, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 129-142, 2011. , é o processo pelo qual duas formas culturais entram em convergência ativa e produzem uma simbiose cultural. Podemos listar como formas culturais um dogma religioso, uma atitude política ou um comportamento econômico. Trata-se de um processo recíproco, iniciado pela procura, que leva ao encontro e resulta na união, fundamentalmente produzindo uma simbiose das duas formas. Contribuem para essa fusão a descoberta de determinadas analogias de sentido e parentescos íntimos entre as duas formas culturais. O termo vem da alquimia medieval, passando pela Literatura, principalmente com o romance de Goethe, sob o mesmo título, e chegando à Sociologia com Weber ( LÖWY, 2011LÖWY, M. Sobre o conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber. Plural, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 129-142, 2011. ). Na química da Idade Média, afinidade eletiva era a força que produzia a fusão íntima entre dois elementos, gerando uma nova substância. Goethe aproveitou esse conceito como metáfora para explicar a paixão entre um homem e uma mulher que desfazem seus laços anteriores para recriar um novo tipo de ligação entre eles. Weber (2004)WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. transpõe o termo da Literatura para a esfera científica, como uma tentativa de explicar a fusão entre a ética protestante do trabalho e o espírito do capitalismo pela emergência de determinadas afinidades que são compartilhadas tanto pela ética religiosa como pelo comportamento econômico da época. O autor argumenta que os valores espirituais da religião, com base na ética do trabalho e da poupança, juntamente com os valores materiais da economia, convergem para produzir um resultado comum, que é a acumulação de riquezas e bens materiais.

Na análise que faz dos escritos de Weber, Löwy (2011)LÖWY, M. Sobre o conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber. Plural, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 129-142, 2011. lista dez exemplos de afinidades eletivas, sendo três internas, quando se formam dentro de uma determinada esfera social, e sete externas, quando atravessam esferas sociais diferentes, que descreveremos a seguir, tomando a liberdade de transpô-las para o mundo contemporâneo e com exemplos mais adequados ao tema que desenvolvemos aqui. As afinidades eletivas internas referem-se a exemplos das esferas religiosa, econômica e cultural. Um exemplo possível na esfera religiosa seria a escolha dos versículos adequados da bíblia a serem lidos pelo ministro para a encomendação do corpo em um velório, que seriam versículos diferentes daqueles usados para o batismo de uma criança, de modo a respeitar, de um lado, a tristeza e perda de um ente querido, versus a alegria e esperança, do outro lado. Na esfera econômica, o líder sindical, dependendo da atitude da plateia, do meio de comunicação que estiver usando, das manobras dos patrões, entre inúmeros outros aspectos, terá que mudar seu discurso, o tom de sua voz ou direção de seu olhar, entre outros aspectos, também inúmeros, para criar a afinidade mais adequada com seu público e chegar ao resultado desejado. Na esfera cultural, entra-se em um espaço mais amplo, com a diversificação maior das afinidades, que tipicamente se multiplicam em inúmeros artefatos, podendo emergir em livros impressos, algoritmos de computador, redes sociais, shows musicais planetários, sites de encontros online, big data etc. O sucesso na busca de um parceiro em um site de encontros, por exemplo, envolve a capacidade de buscar afinidades que possam ser compartilhadas com o outro. Quanto mais exclusivas forem essas afinidades, mais fortes e duradouros serão os laços entre os parceiros, considerando que uma afinidade que pode ser compartilhada com muitas pessoas enfraquece os laços da união. Um adulto que acredita piamente na existência de unicórnios provavelmente criará laços mais fortes com um outro adulto que mantenha essa mesma crença do que com um adulto que a ironize.

Das sete afinidades eletivas externas, o exemplo clássico, visto acima, é o da ética protestante, na esfera da religião, com o espírito do capitalismo, na esfera da economia. Outros exemplos dados, além da religião e da economia, envolvem as classes sociais, questões políticas, pensamento burguês, estilos de vida etc. Na área da Linguística Aplicada, encontramos uma análise do discurso “Eu tenho um sonho”, de Martin Luther King, feita por Kramsch (2011)KRAMSCH, C. The symbolic dimensions of the intercultural. Language teaching, Cambridge, v. 44, n. 3, p. 354-367, 2011. , sob a perspectiva da competência simbólica. Embora a autora não mencione em seu texto a expressão “afinidades eletivas”, ela na verdade usa o conceito ao mostrar como King fundiu em seu discurso, com muita competência simbólica, os recursos da retórica afro-americana, típica dos sermões dos negros, com o discurso da elite branca, mostrando a habilidade do orador em selecionar as analogias e parentescos mais próximos entre duas formas culturais diferentes, criando novas figuras de linguagem e cativando, desse modo, tanto os negros como os brancos que compunham seu público.

Os aspectos relevantes para esta pesquisa no levantamento feito por Löwy (2011)LÖWY, M. Sobre o conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber. Plural, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 129-142, 2011. são os diferentes elementos das esferas da atividade humana que propiciam a emergência dessas afinidades, e como esses elementos se comportam no processo de fusão. Entre eles, resumindo Löwy, destacamos:

  • - A necessidade de parentesco espiritual, congruência e adequação entre duas formas culturais para que a fusão tenha início.

  • - Consciência de que as semelhanças entre as duas formas criam a possibilidade, mas não a necessidade de convergência ativa.

  • - A possibilidade de que afinidade comporta níveis de aproximação e fusão, iniciando a convergência de estruturas inicialmente separadas até chegar à simbiose cultural entre os elementos, produzindo uma unidade sólida e íntima.

No caso da aprendizagem de uma LE, as afinidades eletivas externas ocorrem entre formas culturais mais distantes, na medida em que não emergem apenas de esferas sociais diferentes, mas também de culturas diferentes, muitas vezes ocultando e dificultando o acesso às afinidades que se buscam, seja pela simples distância geográfica ou por outros fatores mais complexos. Às vezes a cultura do outro se fecha dentro de uma couraça de isolamento e pode ser necessário um trabalho paciente em busca de brechas nessa couraça para encontrar do outro lado as afinidades necessárias para resolver o conflito. As próprias afinidades eletivas contribuem para ampliar essas brechas de acesso.

Toda aprendizagem pressupõe uma participação que se inicia periférica para o aprendiz, mas que vai aos poucos dando-lhe as habilidades e atitudes necessárias para que ele se integre à nova comunidade, como membro legítimo e com sentimento de pertença ( LAVE; WENGER, 1991LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge: University Press, 1991. ). Na aprendizagem de uma língua hegemônica, o aluno normalmente não consegue completar esse percurso que vai da periferia para o centro; com a extrema dificuldade de usufruir uma participação periférica legítima, pode acabar como subalterno, marginalizado diante da hegemonia da língua e cultura do outro, mesmo que tenha adquirido todas as habilidades e atitudes que a caracterizam, como demonstrou Kumaravadivelu (2016)KUMARAVADIVELU, B. The decolonial option in English teaching: can the subaltern act? TESOL Quarterly, Malden, v. 50, n. 1, p. 66–85, 2016. em seu texto predominantemente autobiográfico. O uso das afinidades eletivas emerge aqui como uma opção que pode ser tentada para criar brechas nas barreiras e muros que se levantam entre culturas diferentes, propiciando pelo menos a possibilidade de vínculos sustentáveis entre indivíduos e grupos de um e outro lado. A seguir mostramos como isso pode ser feito.

Metodologia

Este texto é uma pesquisa de natureza qualitativa, orientada por uma abordagem sociológica, com base na noção das afinidades eletivas de Weber (2004)WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. , usando como ferramenta a Análise Crítica do Discurso (ACD), para desvelar os conflitos frequentemente represados pelo discurso dominante, e recorrendo às culturas de paz atuante, com base em Galtung (2003)GALTUNG, J. Paz cultural: algumas características, 2003. Disponível em http://www.palasathena.org.br/arquivos/conteudos/Paz_Cultural_Johan_Galtung.pdf. Acesso em: 02 dez. 2021.
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e Oxford (2013OXFORD, R. L. The language of peace, communicating to create harmony. Charlotte, NC: IAP, 2013. , 2014OXFORD, R. L. (org.). Understanding peace cultures. Charlotte, NC: IAP, 2014. ), para a solução do problema.

O que se propõe fazer aqui, buscando afinidades entre formas culturais distantes, sejam separadas geograficamente por muros construídos entre países e/ou ideologicamente por barreiras entre discursos antagônicos, é fazer um levantamento de enunciados afinados com o conceito de culturas de paz atuante ( GALTUNG, 2003GALTUNG, J. Paz cultural: algumas características, 2003. Disponível em http://www.palasathena.org.br/arquivos/conteudos/Paz_Cultural_Johan_Galtung.pdf. Acesso em: 02 dez. 2021.
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) que ofereçam a possibilidade de produzir uma brecha nas couraças de proteção usadas por nações, etnias, línguas e culturas – dominantes ou subalternas. Essas barreiras podem ser construídas tanto para bloquear a entrada como a saída. Vejam-se, por exemplo, o muro entre Estados Unidos e México, construído para impedir a entrada, e o muro de Berlin, feito para bloquear a saída.

O corpus desta investigação é constituído de enunciados gerados a partir do noticiário da imprensa mundial que seguiu aos ataques de 11 de setembro de 2001, que resumimos a seguir. Na manhã do dia 11, uma terça-feira, 4 aviões de passageiros foram sequestrados por 19 militantes da al-Qaeda para atacar, em missões suicidas, 3 alvos estratégicos dos Estados Unidos: (1) as Torres Gêmeas, símbolo do poder econômico dos Estados Unidos, incluindo 2 prédios de 110 andares, no centro financeiro de Nova York; (2) o Pentágono, sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos no Distrito de Washington; e (3) um terceiro alvo, provavelmente o prédio do Congresso americano ou da Casa Branca, malogrado porque o piloto e os passageiros reagiram contra os sequestradores e o avião acabou caindo a caminho de Washington. O dano maior foi causado às Torres Gêmeas, atingidas por dois aviões, que resultou em 2.606 mortes, contra 125 no Pentágono, atingido por um dos quatro aviões. Nenhum passageiro dos aviões conseguiu sobreviver. Além das vidas perdidas e dos mais de 6.000 feridos, houve também abalos financeiros na Bolsa de Nova York, na ordem de dezenas de bilhões de dólares, a extinção imediata de milhares de postos de trabalho e, do ponto de vista político, a aprovação do governo Bush, que subiu para 90%, a declaração de guerra ao Afeganistão e a aprovação do PATRIOTIC act , lei que permitia ao governo americano interceptar mensagens telefônicas e de e-mails sem mandado judicial. Nos 6 dias que seguiram ao 11 de setembro, foram registrados, em vários lugares dos Estados Unidos, incêndios, atos de vandalismos, assaltos, tiroteios, perseguições e um homicídio.

O impacto emocional dos ataques gerou muitas manifestações de repúdio e de solidariedade aos sequestradores e parentes das vítimas, não necessariamente nessa ordem. O antiamericanismo aflorou em diferentes países, inclusive no Brasil, com declarações de louvor ao gesto dos sequestradores, visto como heróis de um país do terceiro mundo que conseguiram abalar os alicerces do império americano ( ALMEIDA, 2011ALMEIDA, P. R. de 11 de setembro, dez anos: recepção no mundo, reações no Brasil. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, v. 11, n. 124, p. 21-36, 2011. ). A solidariedade às vítimas e aos Estados Unidos ficou mais restrita aos pronunciamentos oficiais. O que segue é uma pequena amostra, altamente seletiva, de enunciados que refletem pronunciamentos e manifestações que se destacaram no noticiário da imprensa mundial nos dias seguintes aos ataques de 11 de setembro. O critério para a seleção desse pequeno corpus foi o próprio discurso que cada um dos textos selecionados instaura, partindo da ideia de que esse discurso, por imposições do contexto, gera expectativas sobre o que pode ser dito.

Grosso modo, as manifestações sobre o 11 de setembro alinham-se ou mais à esquerda, vendo o ataque como uma retaliação de subalternos contra o império, ou mais à direita, em solidariedade ao governo americano. Para muitos, incluindo figuras conhecidas como o linguista Noam Chomsky, os ataques de 11 de setembro tiveram raízes em inúmeros atos de terrorismo perpetrados pelos Estados Unidos contra outros países, incluindo os golpes de estado no Brasil, depondo o presidente João Goulart, eleito pelo povo, e no Chile, derrubando o governo eleito de Allende, coincidentemente em um 11 de setembro, e pondo em seu lugar o ditador Pinochet, responsável pela morte e tortura de milhares de pessoas. Entre os exemplos que refletem um discurso ideologicamente mais alinhado com a esquerda, destacamos o depoimento da deputada gaúcha Luciana Genro, na época, do PT: “...essa tragédia é de responsabilidade do governo norte-americano, porque os Estados Unidos promovem o terrorismo de Estado no mundo inteiro” ( ALMEIDA, 2011ALMEIDA, P. R. de 11 de setembro, dez anos: recepção no mundo, reações no Brasil. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, v. 11, n. 124, p. 21-36, 2011. , p. 26-27). É a mesma ideia que se encontra na manifestação oficial do governo do Iraque, em pronunciamento lido na televisão iraquiana em 12/09/2001: “Os caubóis americanos estão colhendo os frutos de seus crimes contra a humanidade”. Seguem dois exemplos do lado oposto, alinhado pelo lugar de fala da direita, o primeiro de um jornal de Israel: “A América foi atacada não pelo que fez de errado, mas pelo que fez certo e por ser a esperança do mundo” ( Jerusalem Post , 12/09/2001); o segundo, do General Colin Powell, Secretário de Estado na época: “Podem ter certeza de que o espírito americano prevalecerá sobre esta tragédia”. A necessidade de um inimigo comum para unir o povo é também usada: “A América está unida” (Presidente Bush, 12/09/2001); “O verdadeiro patriotismo odeia a injustiça em seu próprio país mais do que em qualquer outro lugar” (Citação repetida após os ataques, de Clarence Darrow, famoso advogado americano falecido em 1938). De modo geral, percebe-se nos depoimentos da esquerda, a tendência de olhar para o passado, tentando justificar os ataques, enquanto os da direita tendem a olhar para o futuro, apagando o passado e exaltando o sentimento de patriotismo.

Foram inicialmente coletados cerca de 200 enunciados, incluindo pronunciamentos de pessoas famosas, manifestações de rua, depoimentos em listas de discussão, populares na época, e declarações oficiais de autoridades de diferentes países. O conteúdo dessas declarações oficiais variava pouco de um país para outro, mas o que predominava eram manifestações de solidariedade aos americanos, mesmo de países com um histórico de desafeto em relação aos Estados Unidos. O respeito imposto pelos lugares de fala parecia levar os enunciadores a dizer o que deveria ser dito, mais do que aquilo que realmente gostariam de dizer. O próprio Afeganistão, onde campos de treinamento da al-Qaida operavam sem qualquer restrição, afirmou textualmente, na voz de seu ministro de relações exteriores: “Denunciamos esse ataque terrorista, seja quem for que estiver por trás dele.”

Dos 200 enunciados iniciais, criamos uma segunda lista de 20 enunciados, não apenas eliminando as redundâncias e conteúdos repetidos, mas principalmente enfocando aqueles que não se prendiam às expectativas impostas pelos lugares de fala dos enunciadores, tanto da esquerda como da direita, permitindo hibridizações. A declaração do escritor britânico Martin Amis, comentando o 11 de setembro no Jornal The Guardian , serve para ilustrar essa perspectiva integracionista do enunciado, em que se procura um ponto mais distante no horizonte, além do patriotismo dos Estados Unidos, possivelmente englobando tanto a esquerda como a direita: “Nosso melhor destino, como coabitantes planetários, é o desenvolvimento do que tem sido chamado de “consciência de espécie” – algo além dos nacionalismos, blocos, religiões, etnias” ( AMIS, 2001AMIS, M. Fear and loathing. The Guardian, London, 2001. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2001/sep/18/september11.politicsphilosophyandsociety. Acesso em: 22 jun. 2021.
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). Dos 20 enunciados selecionados para compor esta segunda lista, elaboramos uma terceira, restrita a apenas 3 enunciados, apresentados no Quadro 1 , onde acreditamos ser possível perceber cruzamentos entre a esquerda e a direita, deixando algumas brechas para a emergência das afinidades eletivas que estamos procurando.

Quadro 1
– Enunciados produzidos no contexto dos ataques de 11 de setembro

Análise e discussão

Para a análise dos enunciados, vamos usar como instrumento um questionário elaborado a partir do Modelo Analítico de Fairclough (2003)FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: New York: Routledge, 2003. e incorporando o que foi desenvolvido por outros pesquisadores ( COTS, 2006COTS, J. M. Teaching ‘with an attitude’: Critical Discourse Analysis in EFL Teaching. ELT Journal, Oxford, v. 60, n. 4, p. 336-345, 2006. ; OXFORD, 2013OXFORD, R. L. The language of peace, communicating to create harmony. Charlotte, NC: IAP, 2013. , 2014OXFORD, R. L. (org.). Understanding peace cultures. Charlotte, NC: IAP, 2014. ; RORATO, 2016RORATO, D. C. C. P. Uma proposta didática de ensino crítico da língua inglesa. Revista Interfaces, Guarapuava, v. 7, n. 1, p. 70-77, 2016. ). O modelo segmenta a análise em três níveis: (1) prática social, (2) prática discursiva e (3) texto. O Quadro 2 , resume o instrumento proposto. Concluímos a análise com uma discussão sobre afinidades eletivas que perpassam os enunciadores e enunciatários nesses três níveis de práticas.

Quadro 2
– Instrumento para a análise dos enunciados

A análise envolve enunciados produzidos por sujeitos e instituições que estão relacionados aos ataques de 11 de setembro e que tinham em comum o objetivo de resolver o conflito gerado pelos incidentes por via da não-violência. Buscam-se os lugares de fala dos enunciadores e enunciatários e as estratégias usadas pelos enunciadores para atingir os objetivos que tinham em mente. A separação entre práticas sociais, discursivas e texto é feita para fins de exposição; na realidade, em qualquer evento comunicativo, esses três níveis ocorrem simultaneamente.

Prática social

Vamos descrever nesta seção quem são os enunciadores dos textos a serem analisados, tentando resumir: (1) o contexto imediato do enunciador; (2) as convicções que estão por trás dos enunciados; (3) e as possíveis consequências das falas.

Do ponto de vista de prática social, os enunciados escolhidos remetem a três enunciadores de identidades sociais bem distintas. Sandy Dahl, vítima da tragédia, tinha 40 anos na época, estava casada com o piloto havia cinco anos, era comissária de bordo, de nacionalidade americana e ligada à seita da Ciência Cristã. Arafat, muçulmano, 70 anos, Nobel da Paz em 1994, era o líder da Organização para a Libertação da Palestina, politicamente alinhado com os militantes que executaram o ataque. O Project Wisdom era um projeto educacional americano ligado à formação de alunos do ensino primário e secundário, que se propunha principalmente à produção de materiais de orientação educacional para as escolas filiadas a ele, sem uma seita religiosa definida, ainda que tendendo ao cristianismo. Temos, portanto, pessoas e instituições diferentes em todos os aspectos, incluindo as nacionalidades de origem, as atividades que exerciam e as crenças que professavam.

Em relação às convicções que estão por trás desses enunciados, o que se percebe inicialmente é uma aproximação entre os enunciadores, causada simultaneamente pelo compartilhamento de ideias e pelo afastamento entre cada enunciador e o contexto imediato de onde falam. Em vez de um alinhamento a determinados valores culturais que costumam assomar em momentos de crise – como o apelo ao patriotismo, o cultivo ao ódio e mesmo a defesa da guerra – o que emerge dos três enunciadores é um afrontamento compartilhado a esses valores. O apelo da esposa do piloto de que não há “tempo para o ódio”, a declaração do Project Wisdom de que “há pessoas no mundo inteiro que são gentis e caridosas” e mesmo as condolências “em nome do povo palestino”, enviadas por Arafat, de quem precisemos talvez lembrar que foi detentor do Nobel da Paz para que suas palavras tenham lastro neste contexto, são todos elementos que aproximam esses enunciadores tão diversos entre si. O que dizem aponta para a convicção de que é possível construir um outro mundo com base na aceitação da diversidade, fomentando possíveis culturas de paz, tentando buscar algo que paira além da retaliação.

Prática discursiva

Dentre as inúmeras possibilidades de análise, oferecidas pela ACD em relação à prática discursiva, vamos nos ater aqui aos lugares de fala do enunciador, do enunciatário e principalmente o que o enunciador está tentando fazer com o enunciado que está produzindo. Em outras palavras, vamos resumir para quem Arafat, a viúva e o Project Wisdom estão falando e que tipo de valores culturais estão passando.

O lugar de fala mais delicado é o de Arafat, que tem como enunciatário de sua mensagem não só os americanos, mas também os palestinos, seus liderados e opositores históricos dos Estados Unidos, além de pessoas de todo o planeta, da esquerda e da direita, todos interessados em ouvir o que ele teria a dizer. Ao redor de Arafat, os palestinos protestam nas ruas com cartazes do tipo “Para nós todo dia é onze de setembro”; do outro lado, em Israel, a imprensa proclama que os Estados Unidos são a esperança do mundo. Arafat, no fogo cruzado entre dois mundos opostos, opta por ignorar a ambos, descarta a neutralidade e, em linguagem simples e direta, jogando com o prestígio que tem sobre seus liderados e líderes do planeta, condena com veemência o ataque. Faz isso não apenas em seu nome, mas também em nome do povo palestino, conclamando-o a não ignorar o conflito, que existe, mas a tentar uma solução por via não violenta. Ao contrário de alguns líderes que incitam seu povo à guerra, às vezes até inventando inimigos, Arafat parece ser do tipo que tenta acalmar a fúria de seu povo contra um inimigo, que é real, para tentar encontrar alguma brecha por onde possa introduzir alguma centelha de negociação, acreditando que o desejo de paz seja um valor universal, mesmo para povos acostumados à guerra.

O lugar de fala da viúva é o da vítima, que momentaneamente ganha voz por ter participado de uma tragédia que abalou o mundo e principalmente por ter tentado tirar daí, com a morte do marido, uma lição de vida: “(...) aprenderemos que a vida é curta e que não há tempo para o ódio”. Ou seja, se não há tempo para o ódio, haverá tempo para o amor, para o que une as pessoas, não para o que as separa. Há uma postura bíblica na sua fala, lembrando e até questionando, o Eclesiastes de que há um tempo para toda atividade debaixo dos céus: “Tempo para amar e tempo para odiar; tempo para guerra e tempo para paz” (3.8). Para Sandy, não há tempo nem para o ódio nem para a guerra. Recupera o poema de John Donne de que somos parte da humanidade. O que disse foi espontâneo, sem nenhuma pressão do lugar de fala de pessoa comum e desconhecida, sem compromisso com seus inúmeros enunciatários, com uma fala que ganhou as manchetes dos jornais de todas as partes do mundo.

Já o Project Wisdom tem um lugar de fala mais amplo, falando de um espaço institucional, com voz coletiva, mas com um enunciatário bem determinado, com um apelo dirigido especificamente ao aluno das escolas filiadas ao projeto. Para fazer o apelo, usa o modo verbal imperativo, seja na segunda pessoa do singular (“Não esqueça”), falando diretamente ao enunciatário, seja na primeira pessoa do plural (“Vamos parar e pensar”), não falando para ele, mas pondo-se ao lado dele. Enunciador e enunciatário não estão em oposição, mas compartilhando o mesmo espaço, sem o apelo ao patriotismo ou a um inimigo comum para manter essa união.

Texto

Vamos fazer a análise do texto verificando o conteúdo dos enunciados, considerando o que foi dito e o que foi silenciado. Sandy, usando a primeira pessoa do plural (“aprenderemos”) silenciou tudo o que poderia ter dito sobre seu marido, que aparentemente lutou com os sequestradores e contribuiu, junto com os passageiros, para que o avião caísse antes de chegar ao prédio do congresso; como também silenciou sobre a indignação que deve ter sentido como vítima dos ataques. Em relação à morte do marido, a expectativa seria que Sandy destacasse o espírito de patriotismo, o heroísmo do gesto, reiterando que ele deu a vida pelo país. Considerando sua indignação, poderia ter feito um apelo para que os Estados Unidos vingassem a morte de seus compatriotas. No entanto, de tudo o que poderia ter dito, escolheu falar sobre a brevidade da vida e sua incompatibilidade com o ódio, apagando todo o resto. Esse apagamento, ocultando o que poderia ter dito e não disse, parece ter contribuído para ampliar o impacto do que disse.

Arafat optou por falar tanto na primeira pessoa do plural (“condenamos este ataque”, “em nome do povo palestino”) como no singular (“transmito minhas condolências”, “em meu nome”). Ao longo da frase, notamos que começa falando no plural, passa para o singular, assumindo sua posição de líder e termina no plural, produzindo, ao mesmo tempo, um gesto de união e de confronto com o povo que lidera e que nas ruas está apoiando o ataque. Obviamente conhecia o sofrimento dos refugiados palestinos, com suas casas destruídas e inúmeras mortes a lamentar. Poderia ter aproveitado a oportunidade para transmitir ao mundo a tragédia de seu próprio povo, maior que a tragédia americana, mas preferiu silenciar, deixar que outros o fizessem. Ao transmitir as condolências não pareceu irônico porque demonstrou que sabia do que estava falando: foi mais ambicioso, olhando mais longe e procurando um valor maior, além do sonho impossível de uma paz imediata. Tinha que usar uma linguagem simples, objetiva e direta, sem apelar para metáforas pacificadoras. Pode ter desejado que suas palavras fossem pequenas sementes jogadas ao vento e que pudessem cair e germinar em algum lugar, produzindo como fruto uma cultura de paz, mas obviamente não poderia falar nesses termos e o desejo, se existiu, teve que ser silenciado.

O texto fica ainda mais simples na mensagem enviada aos alunos pelo Project Wisdom: o verbo vai para o imperativo e pede ao enunciatário para ver a tragédia de uma maneira diferente, apelando para ver o outro com respeito e compreensão. Há um apagamento no que é solicitado, sem críticas a um ou outro lado, sem chamamento ao patriotismo, heroísmo ou hasteamento da bandeira na frente da casa.

A atitude conciliadora

A afinidade que aproxima Arafat da esposa viúva do piloto americano e do Project Wisdom gera duas consequências antagônicas entre si, ao mesmo tempo afastando e aproximando os enunciadores. A consequência imediata é a do afastamento, que ocorre entre cada enunciador e sua comunidade de origem: as amigas da viúva poderão estranhar seu apelo contra o ódio; Arafat não apenas sabia que o ataque aos Estados Unidos era perigoso, como também que os palestinos, celebrando na ruas, não iam gostar de suas palavras; a mensagem enviada às escolas pelo Project Wisdom provavelmente não seria lida para os alunos.

Por outro lado, é esse afastamento das comunidades de origem, negando a solução fácil de criar um inimigo comum e buscando uma cultura de paz, que aproxima enunciadores tão distantes e distintos entre si. Quanto mais se aproximam de um lado mais se afastam do outro, criando-se às vezes a necessidade de uma guarda pessoal reforçada para que o líder possa caminhar no meio de seu povo, como se estivesse protegido por uma couraça de maior ou menor visibilidade.

A outra consequência esperada, ainda que extremamente remota, é que enunciados desse tipo, de natureza conciliadora, produzam brechas nas inúmeras barreiras, ideológicas e geográficas que se interpõem entre países, seitas e etnias, criando vínculos possíveis entre pessoas distantes, separadas por países, seitas e etnias diferentes e que, desse modo, possam gerar culturas de paz. O impacto da mensagem enviada às escolas no dia seguinte ao 11 de setembro, com menos de 10 ocorrências no Google, foi ainda inexpressivo; a manifestação de Arafat, detectada em torno de 250 websites é um pouco mais significativa; já a declaração da viúva do piloto, repetida em mais de 10.000 páginas da web, criadas depois do 11 de setembro, mostra que há um anseio reprimido de paz, perpetuado ao longo do tempo.

A busca pela cultura de paz nos três enunciados é feita por um rompimento inicial com valores do lugar de fala imediato, transgredindo as expectativas de retaliação, que são condenadas, para se aproximar de um lugar de fala de reconciliação, visto como um valor cultural maior, que é perpetuado. O papel de cada um dos enunciadores – Sandy como vítima, Arafat como suspeito e o Project Wisdom como instituição americana – contribui para legitimar este apelo de paz.

O que segue é uma sugestão de como o uso de afinidades eletivas no ensino de uma língua hegemônica como o inglês, poderia ser pensada pelo professor de línguas. Dois aspectos devem ser destacados aqui. O primeiro é que não se trata de uma proposta de ensino, mas apenas de uma atitude, definida no caso como uma atitude crítica conciliadora. O segundo aspecto é que a afinidade eletiva não está necessariamente associada a um determinado valor cultural; é apenas uma opção que se faz entre possíveis comportamentos que se desejam construir, que podem ser pacíficos, violentos ou de qualquer outra natureza, embora, obviamente, estejamos aqui interessados em escolhas não-violentas.

Dois aspectos relevantes na proposta de uma determinada afinidade eletiva é definir o que se procura e onde procurar. Para isso leva-se em conta o enunciado, o enunciador e o enunciatário, em conjunto com as práticas sociais, discursivas e textuais. A ambição maior não é apenas construir no aluno uma consciência crítica, que mostre os artifícios do discurso hegemônico para legitimar valores indesejáveis, que são apresentados como corretos, mas também construir uma consciência crítica conciliadora, capaz de viabilizar uma solução sustentável para o conflito pela via da não-violência.

O que se procura, então, são elementos conciliadores, alianças possíveis, capazes de aproximar e aliar formas culturais antagônicas, incluindo valores religiosos, raciais, sociais e, principalmente, componentes das relações de poder entre culturas hegemônicas e subalternas. Os três enunciados analisados acima são exemplos desses componentes conciliadores. Outros exemplos clássicos incluem textos (ex.: o discurso “Eu tenho um sonho” de Martin Luther King), canções (ex.: Imagine de John Lennon), comerciais (ex.: os da Coca-Cola mostrados anualmente no Super Bowl ), filmes ( Gran Torino , de Clint Eastwood). São exemplos conciliadores pela possibilidade de propiciar e deflagrar nos alunos o desenvolvimento e a sedução pelas culturas de paz.

Definido o que procurar, o segundo aspecto relevante é definir os lugares de fala dos enunciadores e as relações possíveis que podem ser estabelecidas com os enunciatários nesses enunciados. Na medida em que o ensino da LE, em situações autênticas de uso, envolve principalmente a interação entre sujeitos de países diferentes, as possibilidades de criação de afinidades eletivas são normalmente do tipo externo, envolvendo culturas distintas.

Um exemplo, com possibilidade de propiciar a emergência desse tipo de afinidade externa está no filme Grand Torino , dirigido e produzido por um cineasta dos Estados Unidos, em que os dois personagens principais estão colocados nos dois extremos de uma escala sociológica de vida cotidiana, que vai do hegemônico ao subalterno. Do lado hegemônico, está Walt Kowalski, o americano típico, aposentado e veterano de guerra, associado aos valores do sexo masculino, cor branca e orientação heterossexual, que caracterizam o posicionamento ideológico dominante do mundo ocidental ( PENNYCOOK, 2017PENNYCOOK, A. Posthumanist applied linguistics. New York. Routledge, 2017. ). Do lado subalterno, Thao, o adolescente chinês, imigrante, de cor amarela, surpreendido ao tentar roubar o carro do americano em sua iniciação ao mundo do crime. O encontro entre os dois personagens, nascidos e doutrinados para se odiarem e se desprezarem, trazia todos os ingredientes para um desfecho trágico, mas o que acontece é o contrário: nasce e cresce entre eles uma relação de respeito mútuo que se consolida em amizade, contendo cenas hilárias como aquela em que Kowalski tenta, sem muito sucesso, ensinar Thao a falar como um homem. Quando se olha de perto, o que parece ser apenas uma apologia do machismo, com heróis americanos encouraçados atrás de seus rifles de guerra, deixa transparecer brechas, e se pode perceber, atrás dos muros, uma abertura para a solidariedade humana. De onde menos se espera, pode surgir uma mensagem conciliadora, com possibilidade de criar afinidades eletivas onde mais se precisa, incluindo as relações norte/sul e oeste/leste. Gran Torino , como tantos outros exemplos do cinema, da música, da literatura, da publicidade e das artes em geral, oferecem aos professores de línguas essa possibilidade.

Conclusão

Ver o ensino e a aprendizagem da LE como um empreendimento de fraternidade universal pode e deve ser considerado um aspecto relevante para os professores, mas isso não implica a negação dos conflitos que podem surgir entre as diferentes ideologias que circulam dentro e fora da sala de aula. O conflito faz parte das relações humanas e a tentativa de negá-lo é uma atitude ingênua que leva à alienação, principalmente no ensino de uma LE hegemônica. A busca de uma atitude conciliadora, com base no discurso da fraternidade universal, pode ser mais uma armadilha do discurso hegemônico, se não for abordada de uma perspectiva crítica. Por outro lado, a perspectiva crítica pode oferecer uma visão irreversivelmente negativa do ensino de línguas hegemônicas, afirmando, por exemplo, que o professor de inglês tipicamente adota a ideologia do opressor e passa a atuar como colonizador em seu próprio país, o que inviabiliza uma proposta conciliadora. O que se tentou fazer neste texto, entre outras alianças, foi fundir os dois lados, a crítica contundente com a atitude conciliadora, para que o ensino de línguas deixasse de ser um instrumento de alienação para ser um instrumento de paz.

Partindo da ideia de que negar o conflito é alienação, propomos, em um primeiro momento, a necessidade de reconhecê-lo pela problematização, o que foi feito pela via da ACD (Análise Crítica do Discurso). Num segundo momento, para a solução do conflito, fomos além da ACD, recorrendo às ideias de Galtung (1969GALTUNG, J. Violence, peace, and peace research. Journal of Peace Research, London, v. 6, n. 3, p. 167-191, 1969. , 1995GALTUNG, J. Peace by peaceful means. London: Sage, 1995. , 2003GALTUNG, J. Paz cultural: algumas características, 2003. Disponível em http://www.palasathena.org.br/arquivos/conteudos/Paz_Cultural_Johan_Galtung.pdf. Acesso em: 02 dez. 2021.
http://www.palasathena.org.br/arquivos/c...
) e de Oxford (2013OXFORD, R. L. The language of peace, communicating to create harmony. Charlotte, NC: IAP, 2013. , 2014OXFORD, R. L. (org.). Understanding peace cultures. Charlotte, NC: IAP, 2014. ) sobre as culturas de paz, buscando uma solução pela não-violência. No terceiro e último momento, em uma tentativa de consolidar as culturas de paz, propomos o desenvolvimento de uma atitude crítica conciliadora, usando o conceito das afinidades eletivas. Em que pese a truculência de alguns governos de países hegemônicos, blindados atrás de suas couraças e atemorizando os subalternos com armas cada vez mais sofisticadas, o que se propõe é que há a possibilidade de brechas nessas couraças, para que se criem pontos de contatos com pessoas e entidades que estão lá do outro lado e com as quais podemos criar alianças de afinidades. Há conflitos no mundo inteiro, como também há pessoas no mundo inteiro que desejam solucionar os conflitos por via pacífica, inclusive nos países hegemônicos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    4 Jun 2019
  • Aceito
    4 Jul 2020
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