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Palavras dos editores convidados. César Aira: autoria, crítica e tradução

Guest editors’ words. Cesar Aira: authorship, criticism and translation

Que imagem de escritor se pode deduzir dessa estranha compulsão à ubiquidade? A de um autor de culto? Um autor para consumidores selvagens de histórias? Um autor para vanguardistas? Um autor para aprendizes de escritores? (PAULS, 2012PAULS, Alan. El arte de vivir en arte. In: PAULS, Alan. Temas lentos. Seleção e edição de Leila Guerriero. Santiago, Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2012., p. 169)

Em Biografia, César Aira nos coloca diante de um personagem que, entre outras coisas, desejaria desenhar, mas não encontra um método, tudo lhe parece de difícil apreensão. Então resolve comprar uma câmera fotográfica, imaginando que poderia fotografar tudo o que quisesse e usar essa fotografia como modelo para desenhar. Escolhe um jogo de habilidades em equitação, na feira gauchesca de Mataderos, para seu primeiro experimento. Coloca-se onde ele imagina ser o lugar ideal para captar uma imagem perfeita: o momento preciso no qual a lança do gaúcho, que vai a galope em seu cavalo, atravessa o círculo, marcando seu ponto, como um gol. Fez apenas essa foto, de todo contente com seu achado. No momento de revelá-la, porém, não havia nada: nem cavaleiro, nem cavalo, nem círculo, nem lança. Há uma explicação: sua câmera, de fabricação russa, muito primitiva, abria o olho lentamente e voltava a fechá-lo. A conclusão vem rápida: “o cavalo, pelo visto, havia sido muito mais veloz” (AIRA, 2014AIRA, César. Biografía. Buenos Aires: Mansalva, 2014., p. 44).

Tomamos essa imagem para ilustrar o trabalho da crítica diante dos romancezinhos de Cesar Aira. Não queremos “perder tempo” citando mais uma vez a profusão de sua produção, o que o irrita como lugar comum de sua crítica, conforme aparece no texto de Alberto Giordano, “Nuestros años Aira”, mas, mais do que isso, assinalar a perspicácia de seus temas, a abordagem, por vezes escamoteada, dos problemas teóricos que seus livros apresentam, sempre antecipando as questões da crítica. Seus romancezinhos, aparentemente despretensiosos, estão sempre às voltas com a discussão do processo de escrita, da forma e desforma do gênero, numa autorreflexão infinita como o outro lado, indissociável, de seus temas. Ou, melhor dizendo, transformam em tema a escolha da forma narrativa, tornando, assim, a produção ficcional crítica e teórica ao mesmo tempo.

Essa é apenas uma de suas peculiaridades que os textos deste dossiê abordam. Mas César Aira tem muitas faces - como bem enumera a epígrafe que tomamos de “El arte de viver en arte”, de Alan Pauls -, que acabam por se revelar aqui no estudo de pesquisadores brasileiros e argentinos, seus leitores, comentadores, críticos.

Em um comentário publicado em 2003, Martín KohanKOHAN, Martín. Dos recientes lecturas modernas. Boletín 11- Ceticly. CENTRO DE ESTUDIOS DE TEORÍA Y CRÍTICA LITERARIA - Facultad de Humanidades y Artes - UNR, dezembro de 2003. Disponível em: Disponível em: https://www.cetycli.org/publicaciones/boletines/40-boletin-11.html . Acesso em: 14 jul. 2021.
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destacava duas publicações, que, segundo o crítico e romancista, voltavam às categorias de obra e autor. Comentando La dicha de Saturno de Julio PrematPREMAT, Julio. Coda. Héroes sin atributos. Figuras de autor en la literatura argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. p. 237-251. Há tradução de Joca Wolff disponível em Revista Sopro, 64/ janeiro de 2012. http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/premat.html
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e Las vueltas de Cesar Aira de Sandra Contreras, Kohan relacionava aquelas categorias ao que chamou de uma “leitura totalizadora” empreendida pelo olhar crítico de Premat e Contreras, sobre a produção de Saer e Aira, respectivamente. Kohan afirma que a pulsão por desvendar o todo das obras desses escritores estava ancorada e reforçada pela aposta dos críticos nas categorias de obra e autor, o que garantia a “eficácia dos sistemas explicativos” que propunham.

Não deixa de ser interessante notar o comentário que faz em relação à leitura de Premat sobre Saer, creditando-lhe um “efeito de antecipação”, por acreditar que à obra desse autor estava destinado “certo grau de articulação integral”. Como há uma ressalva de que a “literatura de Saer” resiste a essa totalização, é possível entender que é a fortuna crítica do autor a responsável por uma futura estabilização. Essa sugestão torna-se mais concreta na disparidade que assinala entre o empreendimento crítico de Contreras e a “fuga para frente do contínuo literário” produzido por Aira, evidência máxima da rejeição a qualquer leitura ciosa em criar uma organicidade de “Obra Completa”. Sandra Contreras responde a Kohan. Talvez fosse mais apropriado afirmar que intervém no debate. De fato, esse é o título de sua reflexão, “IntervenciónCONTRERAS, Sandra. Intervención. Boletín 11- Ceticly. CENTRO DE ESTUDIOS DE TEORÍA Y CRÍTICA LITERARIA - Facultad de Humanidades y Artes - UNR, dezembro de 2003. Disponível em: Disponível em: https://www.cetycli.org/publicaciones/boletines/40-boletin-11.html . Acesso em: 14 jul. 2021.
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”, que problematiza a rejeição a priori das categorias obra e autor e a associação de ambas a uma modernidade clássica, que Kohan, sem afirmar, sugere que é demodê.

Mencionamos aqui essa protopolêmica porque acreditamos que a chamada de publicações para um dossiê sobre um autor específico pode também se inserir no debate sobre a validade das categorias de obra e autor hoje. Lá se vão quase 20 anos da publicação dos textos de Contreras e Kohan. Apresentando uma espécie de reflexão sobre o método crítico que adotou ao propor a leitura da obra de Aira, Contreras afirma que acolhe o autor como um “anacronismo interessante”. Talvez, o que tem sido chamado de “o retorno do autor” torne a discussão menos anacrônica hoje. De qualquer forma, a diversidade das perspectivas aqui reunidas demonstra o quanto a exposição de um problema crítico é também uma questão imaginativa, a “singularização de um ponto de vista”, como afirmava Contreras, capaz de (re)inventar um modo de ler a obra e o autor, pois, os textos aqui reunidos não sustentam nenhuma vontade de explicação da obra completa de Aira, nem mesmo esse é o caso quando se debruçam sobre apenas uma das tantas produções do autor. Os ensaios podem ser lidos como narrativas (não porque sejam invenções ao pé da letra), mas porque são relatos dos modos como cada um experimentou a leitura dos vários matizes da obra de Aira e construiu sua intervenção crítica.

Nesse sentido, o dossiê é também uma boa maneira de perceber a relação entre um autor e seus leitores críticos. Se é verdade, como disse Premat, que a obra de Aira “não está nunca onde se espera” e que é uma armadilha para “leituras críticas organizadas”, acreditamos ser possível afirmar que as contribuições aqui reunidas reconhecem e aceitam essa imprevisibilidade e retiram dela a matéria principal com que criam modos de ler a obra e o autor César Aira.

Abrindo o dossiê, em “Nuestros años Aira: anotaciones para um diario”, Alberto Giordano expande a compreensão da tarefa crítica, aproximando-se do diário para refletir sobre o modus operandi crítico de Aira, amalgamando um tom biográfico calcado na amizade entre o crítico e o autor a reflexões agudas sobre a prática crítica de ambos. Seus “apuntes autobiográficos” destacam a experiência original que a leitura de Aira, seja na crítica ou nos romances, impõe aos leitores, já que, como afirma Giordano, Aira é capaz de dar uma guinada literária em um argumento teórico e na literatura elabora refinadas “reflexiones e digresiones próprias de un moralista clásico pero enunciadas por una sensibilidad contemporânea”.

O texto de Joca Wolff, “2x Lugones com Sade”, tematiza o trânsito entre a produção crítica e a ficção de Aira, aproximando seu verbete sobre Leopoldo Lugones no Dicionário de autores latinoamericanos e o romance Lugones, escrito na década de 1980 e publicado somente em 2020. O texto mostra como o espectro de Lugones aparece de maneiras distintas em Aira: no verbete do dicionário de forma “breve, biográfica, destrutiva”, diz Joca, e no romance, “longa, patética e divertida”, ambas suplementadas pela figura do Marquês de Sade. Pontuado com citações de Lugones, o texto de Joca oferece um duplo interesse aos leitores brasileiros, ao apresentar esse escritor recentemente traduzido ao português como que duelando com as formas que Aira lhe dá, ao mesmo tempo real e ficcionalmente.

Rafael Arce em “Moreira, un Zarathustra cimarrón y marxista” propõe uma leitura de Moreira a contrapelo da fortuna crítica, pois pretende investigar o romance como uma produção que, apesar de anunciar características que marcaram a assinatura do autor, pode sugerir uma relação intensa com a conformação do campo literário argentino na década de 1970 e também com a trajetória de Borges. Partindo da violência formal de Moreira em relação aos excessos da vanguarda da época e da juventude do escritor, Arce nota as ligações óbvias entre a primeira obra de Aira e, por exemplo, escritores como Osvaldo Lamborghini. Arce defende, assim, que o autor inventa um começo para si preterindo a publicação de Moreira, escrito em 1972, e propõe uma leitura do romance que, “aunque no desdeña las claves que proporciona la obra completa, intenta al mismo tiempo desprenderse de ellas”.

Proposição semelhante é defendida por Wanderlan Alves que também lê Moreira como obra inaugural de Aira. Em “Voltar ao Moreira: escrever a leitura: experiência e risco em César Aira”, defende que o romance seja lido considerando a construção do mito em torno da figura do autor em relação com a assinatura de Aira ou com o “efeito-Aira”. Assim como Arce, Alves especula que Moreira cria um “desvio”, um “deslocamento” em relação à tradição nacional, pois Aira desreferencializa o personagem para criar uma verossimilhança própria ao relato, à literatura ou, como diz Alves, “o único compromisso de Aira é com o próprio relato e com sua lógica interna”.

A exploração da face autorreflexiva dos romances aparece no texto “Inscrição e arquivamento em El error, de César Aira”, de Kelvin Falcão Klein, que pensa o projeto literário de Aira a partir de Derrida e Foucault, mostrando como em diversas ficções, mas em especial em El error, Aira mobiliza o arquivo da linguagem e da tradição literária como tema, cenário e dispositivo de ação e performance e de que maneira esse uso do arquivo mostra “a posição atípica de Aira” na literatura contemporânea, “uma inscrição que, ao fazer uso das regras de uma prática, visa continuamente modificar e problematizar essa mesma prática” a partir da categoria de erro.

As drogas são os motivos autorreflexivos que aparecem na leitura de Silvio Mattoni, que trabalha sobre alguns romances de César Aira, nos quais as drogas modificam o trajeto de seus personagens e estabelecem a possibilidade de levantar ideias sobre a escrita, a leitura e a imaginação. No texto de Mattoni, as drogas inventadas de Aira cumprem o papel de uma fuga para adiante, onde se redefine a realidade e as possibilidades da narração.

“Cómo describir una literatura que se resiste a cualquier principio de orden y diferenciación?”, se pergunta Maria Belén Riviero em “Las adversativas y una posición ambivalente en la literatura de César Aira”. A autora investiga a ambivalência constitutiva do procedimento narrativo de Aira considerando as “construcciones adversativas” que dão o tom da literatura criada por Aira e que, segundo a autora, valem também para analisar a postura do escritor e sua trajetória editorial no campo literário argentino.

O artigo de Valeria Sager sobre Los fantasmas (1991) recupera as reflexões sobre o realismo de Aira para colocá-las em uma área onde ele é redefinido. Ao se concentrar na figura do fantasma, Sager argumenta que ela é como a distância entre o signo e o referente, o que indica a interrupção na qual as palavras são sobrepostas apenas por uma distância. O realismo de César Aira consistiria na invenção de um paradoxo segundo o qual tudo na linguagem é fantasma e, ao mesmo tempo, nem tudo é.

O texto “Os dois índios alegres: Wilcock em Aira”, de Raúl Antelo, um dos introdutores de Aira no Brasil, pensa outra das suas faces, a de tradutor. Partindo da ideia de que ainda que Wilcock e Aira “compartilhem um espaço de experiência comum, não há referências de um ao outro em suas obras”, Antelo faz uma incursão pelas suas escritas e traduções em busca de uma arquificção comum ou, pelo menos, em funcionamento como justaposição. O maior mérito do texto de Antelo está justamente na pesquisa exaustiva de fontes, que culmina na listagem de colaborações e traduções dos dois autores, nos dando uma ideia mais elaborada de suas fricções e aproximações em temas e concepção de escrita.

O texto de Karl Erik Schøllhammer, “Escrever a diferença - o exotismo segundo César Aira”, investe na reflexão sobre o exotismo como um modo privilegiado de entender a “dinâmica da escrita” de Aira. Karl Erik parte de um pequeno ensaio “Exotismo”, de 1993, publicado no Brasil na coletânea organizada e traduzida por Eduard Marquardt e Maschio Chaga (2007), com o belo e instigante título “Pequeno manual de procedimentosAIRA, César. Pequeno manual de procedimentos. Organização de Marco Maschio Chaga e Eduard Marquardt. Trad. Eduard Marquardt. Curitiba: Arte & letra, 2007.”, sublinhando o nacionalismo e a língua materna como novo repositório, moderno, de exotismo. Para aprofundar outras dimensões do exotismo deslindadas por Aira em sua leitura de Victor Segalen e de Raymond Roussel, Karl Erik vai buscar um exemplo brasileiro em “Recado do morro”, de João Guimarães Rosa, onde aparece de maneira exemplar a estranheza da língua materna e a impossibilidade, para o estrangeiro, de distinguir entre ver e ouvir. Além de Rosa, outro escritor brasileiro lido por Aira comparece entre os exemplos para se pensar a estranheza do exotismo: Mário de Andrade.

O final do dossiê constitui uma abertura. “Como César Aira pode mudar sua vida”, de Antonio Marcos Pereira, centra-se no percurso ensaístico e narrativo que constitui a tentativa de visita à casa de Aira, numa primeira viagem a Buenos Aires. A intempestividade do ensaio remete aos procedimentos inventados e delirantes de Aira, enquanto a ida à casa do escritor torna-se um poderoso impulso afetivo que revê o imaginário e os lugares comuns em torno da figura de César Aira. Relembrando as visitas de Alan Pauls, ainda jovem escritor, à casa de Aira, Antonio Marcos Pereira desenvolve ali o seu próprio percurso como um desvio, sem marcação prévia e exibindo o seu imaginário crítico sobre o percurso do escritor argentino. Quando o ensaísta bate à porta, a leitura termina. Nessa intermitência, entendemos, este dossiê bate à porta de uma prática, de um efeito e também de uma obra que, na literatura argentina contemporânea, se abre para um futuro que já é a possibilidade de um encontro, sem fim e sempre feliz, com César Aira.

Referências

  • AIRA, César. Biografía Buenos Aires: Mansalva, 2014.
  • AIRA, César. Pequeno manual de procedimentos Organização de Marco Maschio Chaga e Eduard Marquardt. Trad. Eduard Marquardt. Curitiba: Arte & letra, 2007.
  • CONTRERAS, Sandra. Intervención. Boletín 11- Ceticly. CENTRO DE ESTUDIOS DE TEORÍA Y CRÍTICA LITERARIA - Facultad de Humanidades y Artes - UNR, dezembro de 2003. Disponível em: Disponível em: https://www.cetycli.org/publicaciones/boletines/40-boletin-11.html Acesso em: 14 jul. 2021.
    » https://www.cetycli.org/publicaciones/boletines/40-boletin-11.html
  • KOHAN, Martín. Dos recientes lecturas modernas. Boletín 11- Ceticly. CENTRO DE ESTUDIOS DE TEORÍA Y CRÍTICA LITERARIA - Facultad de Humanidades y Artes - UNR, dezembro de 2003. Disponível em: Disponível em: https://www.cetycli.org/publicaciones/boletines/40-boletin-11.html Acesso em: 14 jul. 2021.
    » https://www.cetycli.org/publicaciones/boletines/40-boletin-11.html
  • PAULS, Alan. El arte de vivir en arte. In: PAULS, Alan. Temas lentos Seleção e edição de Leila Guerriero. Santiago, Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2012.
  • PREMAT, Julio. Coda. Héroes sin atributos. Figuras de autor en la literatura argentina Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. p. 237-251. Há tradução de Joca Wolff disponível em Revista Sopro, 64/ janeiro de 2012. http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/premat.html
    » http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/premat.html

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2021
  • Aceito
    27 Set 2021
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