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Apresentação do v. 23, n. 3 de Alea. Estudos Neolatinos

Presentation of volume 23, issue 3, of Alea. Estudios Neolatinos

Em entrevista concedida para o Clarin de Buenos Aires em junho de 1991, César Aira se autodescreve como “um escritor extraordinariamente silencioso” (AIRA, 1991AIRA, César. Todo escritor inventa su idioma. César Aira: literatura y paradojas. Entrevista concedida a Hinde Pomeraniec. Clarín, Cultura y Nación, p. 1-3, 27 jun. 1991., p. 3). Essa afirmação teve, a partir desse momento, certa cristalização na caracterização de sua trajetória literária, considerando que, em contraste com sua ativa intervenção pública nos anos 1980 (em férias, apresentações, entrevistas), os anos 1990 parecem instalar outra imagem do escritor, agora mais reservado e fugidio dos meios de comunicação. Porém, esse silencio mediático de Aira a partir de 1990 contrastará com uma presença cada vez mais intensa em dois espaços definitórios de consagração no campo literário: o mercado editorial e a academia.

Conforme o valioso estudo de Maria Belén Rivero (2021BELÉN RIVEIRO, Maria. Por uma sociologia do espaço editorial: o caso de César Aira e Beatriz Viterbo. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 62, p. 1-19, 2021. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/37431 . Acesso em: 03 nov. 2021.
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), entre 1991 e 2001 Aira publica 36 livros, em 13 editoras diferentes, ao tempo em que o estudo crítico de sua obra começa a multiplicar-se e solidificar-se no âmbito acadêmico universitário. Nesses espaços cresce também a publicação de seus textos, o escritor começa a intervir nas páginas de revistas acadêmicas de forma sistemática. O panorama a partir de 2001 não é diferente, se pensamos na vocação frenética de Aira para a escrita, que o leva à publicação de outra trintena de livros, se reparamos na multiplicação das traduções de sua obra e se atentamos para a crescente atividade crítica nos espaços acadêmicos em torno de seu trabalho.

Pensando na atenção que a obra de César Aira vem suscitando no âmbito acadêmico brasileiro, e contando também com os valiosos laços de trabalho que nossa revista desenvolve com instituições e pesquisadores argentinos estudiosos de sua obra, decidimos fazer uma chamada para um número de Alea que sistematizasse em um dossiê reflexões críticas em torno à obra de Aira, um dos escritores mais originais e profícuos das letras latino-americanas da contemporaneidade. Essa chamada teve um excelente retorno, cujos resultados oferecemos agora para nossos leitores.

César Aira é um autor que transita fluidamente entre os gêneros narrativos, o ensaio, a crítica literária; que desenvolve formas aparentemente despretensiosas, mas sempre voltadas para uma substantiva reflexão em torno do processo da escrita; interessado em captar e interpretar “o procedimento” (CONTRERAS, 2002CONTRERAS, Sandra. Las vueltas de César Aira. Rosario: Beatriz Viterbo, 2002.), isto é, o processo que define uma obra, um gênero ou um movimento literário; permanentemente preocupado com a autorreflexividade autoral, mas convicto de que o escritor é um mito literário que faz existir o livro; tradutor; editor; professor universitário; figura singular e multifacetada que não deixa de surpreender com seu trabalho.

Essas múltiplas faces de Aira, que o(a)s editore(a)s convidado(a)s se empenharam em captar na organização do material recebido e que invocam na epígrafe de sua apresentação por meio das palavras de Alan Pauls, ficam registradas em textos muito variados em perspectivas, em formas e em maneiras de “narrar” a experiência crítica, já que como o(a)s editore(a)s convidado(a)s postulam:

a exposição de um problema crítico é também uma questão imaginativa, a “singularização de um ponto de vista”, como afirmava Contreras, capaz de (re)inventar um modo de ler a obra e o autor [...] os textos aqui reunidos não sustentam nenhuma vontade de explicação da obra completa de Aira, nem mesmo esse é o caso quando se debruçam sobre apenas uma das tantas produções do autor. Os ensaios podem ser lidos como narrativas (não porque sejam invenções ao pé da letra), mas porque são relatos dos modos como cada um experimentou a leitura dos vários matizes da obra de Aira e construiu sua intervenção crítica.

Assim, o texto que abre o dossiê expande os limites do que tradicionalmente associamos com o exercício crítico, aproximando-se do diário, para oferecer recordações, apontamentos de leituras, fragmentos críticos, material aparentemente disperso, mas que em seu conjunto articula uma reflexão íntima em torno da obra e da figura de César Aira. O segundo texto que compõe o dossiê tematiza o trânsito entre a produção crítica e a obra de ficção de Aira. Na sequência, dois textos propõem uma leitura de Moreira (1975), o texto inaugural na produção narrativa do escritor argentino, e os seguintes dois textos exploram a face autorreflexiva de sua obra.

Como descrever uma literatura que resiste a qualquer princípio de ordem e de diferenciação? É a pergunta cardinal que mobiliza o sétimo artigo do sumário, um texto que investiga a ambivalência constitutiva do procedimento narrativo na obra de Aira, considerando o papel das construções adversativas nesse projeto de escrita. O seguinte, focado em Los fantasmas (1991), recupera as reflexões sobre o realismo de Aira ao se questionar se não será o fantasma uma figuração do hiato, do buraco em que a palavra se liberta de seu referente material e, portanto, de seu efeito realista, e permanece flutuando de alguma forma como mero sinal. Na sequência, o dossiê acolhe um artigo que reflete sobre outra das faces de Aira, a de tradutor, e um texto que investe na reflexão sobre o exotismo como um modo privilegiado de entender a “dinâmica da escrita” de Aira. Fecha o dossiê um artigo que tensiona as possibilidades do ensaio autobiográfico ao ler, sob os efeitos de um anedotário pessoal, um conjunto de textos de Aira que flertam com a autobiografia, a autoficção ou que discutem a relação entre literatura e vida.

Além dos 11 artigos que compõem o dossiê e das valiosas palavras de apresentação do(a)s editore(a)s convidado(a)s para a organização do volume, deixamos espaço para as seções já tradicionais em nossa revista: Artigos, Resenhas e Memória.

Na seção Artigos reunimos trabalhos focados na obra de três grandes paradigmas estéticos da literatura brasileira. O primeiro texto apresenta uma reflexão sobre as noções de arquivo e marginália, debruçando-se no estudo das anotações de Hilda Hilst nas margens do livro O amante de lady Chatterley, de D.H. Lawrence, durante a sua leitura. A partir desse material inédito encontrado nos arquivos da escritora, trata-se de pensar contornos da Hilda Hilst leitora e de que modo esses rastros na moldura da página de Lawrence dialogam com sua obra. O segundo volta à inesgotável obra de Guimarães Rosa para estudar como a tensão linguística de seus textos não remete a um simples investimento formal ou exercício vanguardista, mas a uma integração cósmica, que reconcilia o homem com a natureza. Conforme argumenta sua autora, dizer, no caso de Guimarães Rosa, equivale a dar à luz e, neste ato genesíaco, a linguagem se absorve do ímpeto metamórfico da natureza, concebida como corpo vivo. E o terceiro artigo da seção se aproxima de Poetamenos, a coletânea do poeta paulistano Augusto de Campos, resultado da tradução intersemiótica, ou transcriação, do serialismo de Anton Webern. Os autores aprofundam-se nas relações entre concretismo e serialismo, para argumentar que a transcrição da técnica serial musical está relacionada ao fim do ciclo histórico do verso e que esta fornece à linha evolutiva preconizada pelos concretistas um modelo e um método criativo rigorosos.

Na seção Resenhas divulgamos dois livros que podem ser de grande interesse de nossos leitores: de Julio Premat, ¿Qué será la vanguardia? Utopías y nostalgias en la literatura contemporánea, que aparece con o selo editorial da Viterbo Editora (Rosário, Argentina) e de Sonia Netto Salomão, Machado de Assis e o cânone ocidental: itinerários de leitura, publicada com o selo da EdUERJ (Rio de Janeiro, Brasil).

A última seção da revista está dedicada à memória de Edson Rosa da Silva, Professor Titular de Língua e Literatura Francesa do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ, fundador da nossa revista e editor desse projeto por mais de 20 anos, que nos deixou em dezembro passado. Ao cumprir-se o primeiro ano de sua ausência física entre nós, mostramos a permanência de sua obra e de seu legado intelectual com as palavras pronunciadas pelo Prof. Dr. Marcelo Jacques de Moraes na Congregação da Faculdade de Letras da UFRJ de 12/02/2021, que homenageou ao Prof. Edson Rosa, assim como com dois trabalhos críticos sobre os dois últimos livros que deixara nosso saudoso colega em processo de edição, A reflexão da literatura: ensaios sobre literatura francesa (2020) e A cabeça de obsidiana: Malraux diante de Picasso (2021). O primeiro reúne uma coletânea de ensaios produzidos ao longo de 20 anos, que em seu último ano de vida Edson organizou e revisou com muita dedicação e alegria. Trata-se de um livro que possibilita uma apreensão do que poderíamos entender como o método teórico-crítico que balizou todo seu trabalho como pesquisador. O segundo é a tradução de La tête d’obsidienne de André Malraux, escritor ao que Edson dedicou uma parte significativa de sua obra. O livro mostra uma importante área na produção intelectual de Edson Rosa da Silva, a tradução.

Colaboraram no volume professores e pesquisadores de diversas universidades brasileiras e argentinas, muitos deles apoiados por agências de fomento à pesquisa (CNPq, FAPERJ e CONICET). Da Argentina recebemos colaborações de professores e pesquisadores das seguintes instituições: Universidad Nacional de Rosario, Universidad Nacional del Litoral, Universidad Nacional de Córdoba, Universidad Nacional de La Plata e Universidad de Buenos Aires. Procedentes de instituições brasileiras, recebemos os trabalhos de professores das seguintes universidades: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Estadual da Paraíba, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Agradecemos a participação de todos os autores e, de maneira especial, agradecemos à Profa. Dra. Ieda Magri (UERJ), à Profa. Dra. Luciene Azevedo (UFBA) e ao Prof. Dr. Cristian Molina (UNR) pela instigante proposta do dossiê e pelo trabalho desenvolvido em todas as etapas da produção do presente volume. Aos nossos leitores, como sempre, desejamos boas e frutíferas leituras.

Referências

  • AIRA, César. Todo escritor inventa su idioma. César Aira: literatura y paradojas. Entrevista concedida a Hinde Pomeraniec. Clarín, Cultura y Nación, p. 1-3, 27 jun. 1991.
  • BELÉN RIVEIRO, Maria. Por uma sociologia do espaço editorial: o caso de César Aira e Beatriz Viterbo. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 62, p. 1-19, 2021. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/37431 Acesso em: 03 nov. 2021.
    » https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/37431
  • CONTRERAS, Sandra. Las vueltas de César Aira Rosario: Beatriz Viterbo, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021
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