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Autoficção brasileira: influências francesas, indefinições teóricas

Brazilian autofiction: french influence, theory's controversy

Resumos

Desde a invenção do neologismo "autofiction" pelo teórico e escritor Serge Doubrovsky na quarta capa de seu romance Fils, em 1977, o termo provoca discussões polêmicas no universo da teoria literária francesa, num longo e inacabado processo de inscrição da autoficção como gênero. Na prática, no entanto, o termo é cada vez mais popular, utilizado por autores contemporâneos nas mais diversas literaturas. Nesse artigo, expõem-se algumas questões a respeito do assunto por parte de teóricos franceses, revelando-se ainda como o neologismo contagia a literatura brasileira contemporânea, rendendo uma multiplicidade de formas de apropriação do exercício autoficcional.

autoficção; autobiografia; literatura brasileira


Since the creation of the word "autofiction" by French writer Serge Doubrovsky in order to define his novel entitled Fils, in 1977, there have been lots of controversies among French literature professors who study the subject and never achieve a consensus about its correct definition. Nevertheless, the word is even more popular nowadays, as it is widely used by contemporary authors in many literatures. In this article, some of these controversial discussions are exposed, as well as some examples of autofictions in Brazilian literature.

autofiction; autobiography; Brazilian literature


Depuis l'invention du néologisme «autofiction» par le théoricien Serge Doubrovsky dans la quatrième de couverture de son roman Fils, en 1977, le terme suscite des polémiques dans l'univers de la théorie littéraire française, sur un long et inachevé processus d'inscription de l'autofiction en tant que genre. Et pourtant, le mot devient de plus en plus populaire et les auteurs contemporains des diverses littératures s'en servent. Dans cet article, quelques discussions qui agitent les théoriciens français sur ce thème sont avancées, en montrant comment la littérature brésilienne contemporaine s'est exposée au contact de ce néologisme, avec toute une multiplicité de formes dans son appropriation de l'exercice autofictionnel.

autofiction; autobiographie; littérature brésilienne


Autoficção brasileira: influências francesas, indefinições teóricas

Brazilian autofiction: french influence, theory's controversy

Luciana Hidalgo

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Desde a invenção do neologismo "autofiction" pelo teórico e escritor Serge Doubrovsky na quarta capa de seu romance Fils, em 1977, o termo provoca discussões polêmicas no universo da teoria literária francesa, num longo e inacabado processo de inscrição da autoficção como gênero. Na prática, no entanto, o termo é cada vez mais popular, utilizado por autores contemporâneos nas mais diversas literaturas. Nesse artigo, expõem-se algumas questões a respeito do assunto por parte de teóricos franceses, revelando-se ainda como o neologismo contagia a literatura brasileira contemporânea, rendendo uma multiplicidade de formas de apropriação do exercício autoficcional.

Palavras-chave: autoficção; autobiografia; literatura brasileira.

ABSTRACT

Since the creation of the word "autofiction" by French writer Serge Doubrovsky in order to define his novel entitled Fils, in 1977, there have been lots of controversies among French literature professors who study the subject and never achieve a consensus about its correct definition. Nevertheless, the word is even more popular nowadays, as it is widely used by contemporary authors in many literatures. In this article, some of these controversial discussions are exposed, as well as some examples of autofictions in Brazilian literature.

Keywords: autofiction; autobiography; Brazilian literature

RÉSUMÉ

Depuis l'invention du néologisme «autofiction» par le théoricien Serge Doubrovsky dans la quatrième de couverture de son roman Fils, en 1977, le terme suscite des polémiques dans l'univers de la théorie littéraire française, sur un long et inachevé processus d'inscription de l'autofiction en tant que genre. Et pourtant, le mot devient de plus en plus populaire et les auteurs contemporains des diverses littératures s'en servent. Dans cet article, quelques discussions qui agitent les théoriciens français sur ce thème sont avancées, en montrant comment la littérature brésilienne contemporaine s'est exposée au contact de ce néologisme, avec toute une multiplicité de formes dans son appropriation de l'exercice autofictionnel.

Mots-clés: autofiction; autobiographie; littérature brésilienne.

Desde a invenção do neologismo "autofiction" pelo escritor e teórico francês Serge Doubrovsky em 1977, a ideia de unir autobiografia e ficção em narrativas contemporâneas consolida-se. A palavra, sonora e eficaz, traduzida no Brasil como autoficção, pouco a pouco quebra a rigidez da tradição - tanto que, em 2013, será enfim incluída na nova edição do Dicionário Houaiss. Uma vez incorporada, popularizada e divulgada na mídia, passará à etapa seguinte: banalizada. O que nos anos 1970 começou com o registro simples de um autor no esforço de definir seu próprio, híbrido romance (intitulado Fils), traduziu-se como uma espécie de nouvelle vague, um sopro a mais no contexto das neovanguardas.

Passadas as décadas, o termo, no entanto, permanece teoricamente flou, ou seja, nebuloso e controvertido. Estudos literários na França avançam e regridem no longo processo de inscrição do neologismo como gênero, sem uma definição clara dos limites entre a autobiografia, tão precisamente circunscrita pelo teórico Philippe Lejeune, e a chamada autoficção. Daí o paradoxo e uma questão primordial: por que ler autores brasileiros sob a perspectiva da autoficção, um neologismo importado, uma vez que sequer na França há um consenso teórico a respeito?

Flutuante entre a prática criativa dos autores e o olhar científico dos teóricos, entre a leitura referencial e a leitura ficcional, o eu real e o eu fictício,1 1 Referência ao livro Le je réel/Je fictif - Au-delà d'une confusion postmoderne, de Arnaud Schmitt. Toulouse: Presse Universitaires du Mirail, 2010. a complexidade do neologismo não permite uma unanimidade. O impasse levou o próprio Serge Doubrovsky à simples conclusão: "Era um neologismo necessário".2 2 É importante dizer que todos os trechos de livros extraídos de originais franceses e citados ao longo desse artigo foram traduzidas diretamente para o português a fim de facilitar a leitura. *1 *1 (DOUBROVSKY, Serge. «C'est fini: entrevista realizada por Isabelle Grell». Je & Moi, La Nouvelle Revue Française, org. de Philippe Forest. Paris: Gallimard, número 598, outubro de 2011: 23. ) Ou, como enunciou Philippe Forest, trata-se de "um fenômeno",*2 *2 (FOREST, Philippe. «Je & Moi: avant-propos». Je & Moi, La Nouvelle Revue Française, org. de Philippe Forest. Paris: Gallimard, número 598, outubro de 2011: 12. ) não exatamente de um movimento literário.

Num contexto vazado por imprecisões, coube enfim ao teórico Jean-Louis Jeanelle uma observação acurada sobre a inquestionável potência do neologismo doubrovskiano: "[...] agora o que menos importa é dar uma definição estrita e estável desse conceito e sim tentar entender por que ele exatamente, e não outro, vem despertando paixões intelectuais antes suscitadas pelo romance autobiográfico".*3 *3 (JEANELLE, Jean-Louis. «D'une gêne persistante à l'égard de l'autofiction». Je & Moi, La Nouvelle Revue Française, org. de Philippe Forest. Paris: Gallimard, número 598, outubro de 2011: 55. )

No Brasil, a discussão teórica em torno da autoficção de alguma forma influencia a própria produção e também a recepção de textos, em sequência ao semelhante processo ocorrido na França - Philippe Gasparini historiciza toda essa evolução em Autofiction - Une aventure du langage.*4 *4 (GASPARINI, Philippe. Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008) Nesse contexto, em 2005, o escritor e ensaísta Silviano Santiago foi um dos pioneiros a apresentar seu livro de contos Histórias mal contadas*5 *5 (SANTIAGO, Silviano. Histórias mal contadas. Rio de Janeiro: Rocco, 2005) como autoficção. Segundo o autor, ele já havia abordado, em obras anteriores, questões como experiência, memória, sinceridade e verdade poética, até o dia em que descobriu o neologismo de Doubrovsky. O termo, segundo ele, era conveniente para designar questões inscritas em seu projeto ficcional desde Em liberdade:

A fim de evitar mal entendidos, afirmo que em nenhum momento do passado remoto usei a categoria autoficção para classificar os textos híbridos por mim escritos e publicados. Quando pude, evitei a palavra romance. No caso de Em liberdade (1981), um diário íntimo falso "de" Graciliano Ramos, classifiquei o livro de "uma ficção de", para o desagrado dos editores que preferem o ramerrão do gênero. [...] Não tive pejo em usar "memórias" para O falso mentiroso. Memórias têm boa tradição ficcional entre nós. [...] Finalmente, acrescento que fiquei alegremente surpreso quando deparei com a informação de que Serge Doubrovsky, crítico francês radicado nos Estados Unidos, tinha cunhado, em 1977, o neologismo autoficção [...]. Em suma, passei a usar como minha a categoria posterior e alheia de autoficção.*6 *6 (Trecho da palestra proferida por Silviano Santiago no colóquio "A literatura de si mesmo", realizada em novembro de 2007 no Espaço Sesc.)

En 2007, Tatiana Salem Levy igualmente apresentou seu primeiro romance, A chave da casa,*7 *7 (LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. Rio de Janeiro: Record, 2007) como autoficção. Em foco, histórias pessoais entrelaçadas: a relação com a mãe à beira da morte; a busca de sua genealogia na Turquia; instantâneos da relação intensa com um homem que flerta com a violência. Nessa literatura-decalque da vida, a autora assume a autoficção, apropriando-se de um termo que conheceu durante uma parte de seu doutorado (bolsa-sanduíche) realizada em Paris.

Tatiana opta pela narração em primeira pessoa, mas evita dar nome à protagonista. Silviano, por sua vez, em Histórias mal contadas, fragmenta o eu em vários personagens que, nos diversos contos, os mais pessoais, são anônimos. No conto "Vivo ou morto", o autor apenas insinua sua identidade, numa espécie de private joke perceptível ao leitor. A certa altura, o personagem, perseguido pelo FBI, diz: "Meu corpo estava a leilão na praça norte-americana. Valia vinte mil dólares. Quem dá mais? Façam seu jogo, senhores! Meu codinome estava a descoberto: Santiago".*8 *8 (SANTIAGO, Silviano. Histórias mal contadas. Rio de Janeiro: Rocco, 2005: 110. ) Mais adiante, nas últimas histórias do livro, o nome aparece de novo, na assinatura, por exemplo, de uma carta imaginária a Mário de Andrade.

Os dois autores em questão assumem suas histórias pessoais - seja em entrevista, no press-release da editora ou no texto da orelha do livro - sem seguir a máxima de Doubrovsky: "[...] na autoficção, o autor deve dar seu próprio nome ao protagonista, pagar o preço por isso [...] e não se legar a um personagem fictício".*9 *9 (DOUBROVSKY, Serge. Apud VILAIN, Philippe. Défense de Narcisse. Paris: Grasset, 2005: 205. ) Nesses casos, portanto, trata-se mais da "autoficção anominal ou nominalmente indeterminada",*10 *10 (VILAIN, Philippe. L'Autofiction en théorie. Paris: Les Éditions de la Transparence, 2009: 74. ) assim classificada e praticada pelo escritor francês Philippe Vilain em seus romances. Ou, numa alusão a Roland Barthes, trata-se simplesmente do eu, esse "pronome do imaginário".*11 *11 (BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975: 62. )

Um ponto em comum une os mais variados exercícios autoficcionais: a possibilidade de apagar, ao menos embaralhar, os limites entre uma verdade de si e a ficção, mesmo se isto revoluciona a ideia de pacto autobiográfico definida por Philippe Lejeune, abrindo novas perspectivas de leitura - a leitura simultaneamente referencial e ficcional de um mesmo texto.

É justamente essa liberdade, a ausência de fronteiras entre o autobiográfico e o ficcional, que parece atrair cada vez mais autores nas diversas literaturas, aí incluída a brasileira. E é justamente o que provocará as grandes discussões e interdições mais tarde no domínio da teoria, já que parte dos teóricos recusa a recepção, digamos, ambígua do texto apresentado como autoficção. Para Philippe Lejeune, o leitor, diante da ideia de ler um texto simultaneamente como autobiografia e ficção, não consegue medir exatamente o que isso significa; e acaba o lendo como uma autobiografia clássica.*12 *12 (LEJEUNE, Philippe Apud GASPARINI, Philippe. Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008: 93. )

Na mesma linha de raciocínio, o teórico Arnaud Schmitt enuncia: o cérebro é uma máquina seletiva que não comporta uma recepção paradoxal entre os registros ficcional e referencial. Daí a necessidade de invenção de outro termo, mais apropriado, onde a palavra ficção seja suprimida: é de Schmitt a sugestão do termo autonarração para dar conta do que muitos autores chamam de autoficção.*13 *13 (SCHMITT, Arnaud. "La perspective de l'autonarration", Poétique, número 149, fevereiro de 2007: 15-29. ) O novo termo designaria melhor, a seu ver, o texto autobiográfico no qual o autor se utiliza de técnicas narrativas típicas do romance. Ou seja: recusa autoficção, justamente pelo que o neologismo sugere de ficcional em sua composição etimológica.

Em Autofiction & Autres mythomanies littéraires (2004), Vincent Colonna mostra como autoficção tornou-se um vocábulo catalisador, capaz de reunir e dar sentido a narrativas meio autobiográficas meio ficcionais frequentemente mal-compreendidas na literatura. É como se o termo, uma vez criado, redimisse automaticamente, por seu efeito etimológico, todo um arsenal de escritos difusos na história literária. A seu ver, a invenção de Doubrovsky confunde-se com a de romance autobiográfico nominal:

[...] [Doubrovsky] preenchia um verdadeiro vazio, pois, ao reinventar com outro rótulo o romance pessoal ou a autobiografia, permitia o retorno de uma noção caída em desgraça na crítica e negada como categoria literária há pelo menos três gerações. O selo de qualidade e a prática deste romanesco íntimo (com ou sem nome próprio) haviam sido rechaçados como defeitos na grande literatura, de Flaubert a Proust; e desde o pós-guerra [...] seu uso é um tabu tanto na história da literatura como na crítica.*14 *14 (COLONNA, Vincent. Autofiction & Autres mythomanies littéraires. Paris: Tristam, 2004: 196. )

Toda essa polêmica teórica, no entanto, não impediu, nem impede, o sucesso do neologismo entre autores contemporâneos de literaturas sortidas. O fenômeno cresce e se agiganta. Segundo Philippe Gasparini, a autoficção surgiu no contexto pós-1968, pós-Freud, decorrente de uma liberação em vários sentidos, mas, sobretudo, da palavra e do comportamento. O corpo estaria mais presente na autoficção do que na então chamada autobiografia. No entanto, este mesmo corpo, tão sexualizado nos anos 1960/70, surgiria, nas narrativas autoficcionais, cerceado por seus próprios limites, defeitos e doenças. O teórico refere-se basicamente a autores franceses, mas alguns romances brasileiros incluem-se nessa ideia, a começar por O filho eterno (Record, 2007), de Cristóvão Tezza, e, em retrospectiva, duas obras escritas nos estertores da experiência manicomial: Armadilha para Lamartine (Labor do Brasil, 1975), de Carlos & Carlos Sussekind, e Quatro-Olhos (Alfa-Ômega, 1976), de Renato Pompeu.

Para Philippe Gasparini, o conceito autoficção não configura exatamente um gênero, mas sim a forma contemporânea de um "arquigênero", o espaço autobiográfico assim definido por Philippe Lejeune:

Não se trata de saber qual, entre a autobiografia e o romance, seria o mais verdadeiro. Nem um nem outro; à autobiografia faltariam a complexidade, a ambiguidade etc.; ao romance, a exatidão; seria então: um mais outro? Mais do que isso: um em relação ao outro. O que se torna revelador é o espaço em que se inscrevem as duas categorias de textos, sem se reduzir a nenhuma delas. O efeito de destaque obtido por este procedimento gera a criação, para o leitor, de um espaço autobiográfico.*15 *15 (LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1996: 42. )

Nessa linha de raciocínio, Philippe Gasparini prefere designar então a nova categoria como autonarração, tomando emprestado o termo criado por Arnaud Schmitt em 2005 e definindo-o da seguinte forma:

Texto autobiográfico e literário que apresenta vários traços de oralidade, inovação formal, complexidade narrativa, fragmentação, alteridade, falta de unidade e autocomentários, que tende a problematizar a relação entre escrita e experiência.*16 *16 (GASPARINI, Philippe. Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008: 311. )

Coube a Serge Doubrovsky, em sucessivas reflexões teóricas sobre a sua própria prática literária e a de certos autores por ele considerados autoficcionais, defender o neologismo e teorizá-lo, diferenciando-o da autobiografia de diversas formas:

[A autoficção] é uma variante pós-moderna da autobiografia, na medida em que se desprende de uma verdade literal, de uma referência indubitável, de um discurso historicamente coerente, apresentando-se como uma reconstrução arbitrária e literária de fragmentos esparsos da memória.*17 *17 (DOUBROVSKY, Serge. Apud VILAIN, Philippe. Défense de Narcisse. Paris: Grasset, 2005: 212. )

O inventor do neologismo tenta sustentá-lo teoricamente com base em sua experiência de ensaísta e professor de literatura, além de escritor. A seu ver, o que conta é o desejo autobiográfico, mas fragmentado, utilizado em prol do primado da narrativa, isto é, de uma grande preocupação estética, sendo o resultado final, o livro, lido como um romance e não como uma recapitulação histórica. Sobre a possibilidade de uma linha concreta a separar autoficção e autobiografia, Serge Doubrovsky a apaga de vez:

[...] toda autobiografia é uma forma de autoficção e toda autoficção uma variante da autobiografia. Não há separação absoluta. A autoficção é a forma romanesca utilizada pelos escritores para se narrarem, desde meados do século XX até o início do século XXI. Isto mudará provavelmente um dia, mas a autoficção terá tido seu sucesso. Não creio que seja eterna.*18 *18 ( Ibidem: 211-212.)

O sucesso da palavra "autoficção" é nítido nas mais diversas culturas, não apenas na literatura, mas em outros domínios estéticos, como as artes visuais. Na prática autoficcional, quando a ficção se adiciona à autobiografia, o efeito é, sem dúvida, uma soma inexata, que paradoxalmente subtrai de cada elemento exatamente aquilo que o caracterizava. De início, a ficção pode parecer menos criativa porque a princípio origina-se de uma história real, e a autobiografia menos real por contar com a liberdade da imaginação. Entretanto, em vez de subtrair, para autores contemporâneos, essa conta parece inflacionar. Trata-se de auto + ficção, etimologia aparentemente simples. Escritores pensam, portanto, ganhar dos dois lados, sem nada a perder, com toda uma liberdade que, no domínio teórico, suscita cada vez mais problemáticas.

Pouco concernidos pelos bastidores da teoria, autores seguem seu percurso. Na literatura brasileira, conforme preceitos doubrovskianos, é possível detectar traços de autoficções em vários autores. Para citar alguns: Ferréz,*19 *19 (FERRÉZ. Capão Pecado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. ) Michel Laub*20 *20 (LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ) e Rodrigo de Souza Leão.*21 *21 (LEÃO, Rodrigo de Souza. Todos os cachorros são azuis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. ) Em geral, trata-se de uma autoficção anominal ou nominalmente indeterminada, mas com brechas que sugerem um caminho em direção à identidade onomástica: no romance citado de Rodrigo de Souza Leão, por exemplo, o autor chega a deixar seu nome no personagem principal, embora o faça apenas na penúltima página, muma espécie de autodiálogo:

Dia D. Hora H. A bomba e seu cogumelo de endorfinas explodem em meu corpo baionetado e com a química dos anjos. A ogiva. E depois, Rodrigo? O que fez do depois? Aqui onde as nuvens se encontram, levo sempre um choque maior do que os que levei no hospício.*22 *22 (LEÃO, Rodrigo de Souza. Todos os cachorros são azuis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008: 77. )

No contexto heterogêneo de expressões autoficcionais, há que se mencionar ainda o virtual universo dos blogs, onde alguns nomes se lançaram e, a partir do alcance popular de seus posts, escreveram livros que deslizam, em maior e menor grau, na direção da autoficção - Clara Averbuck*23 *23 (AVERBUCK, Clara. Máquina de pinball. São Paulo: Conrad do Brasil, 2002. ) e Fal Azevedo*24 *24 (AZEVEDO, Fal. Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. ) são dois exemplos. E o que dizer de Miguel Sanches Neto e seu Chove sobre minha infância (Record, 2000), uma narrativa autobiográfica apresentada como ficção pelo autor?

Se uma linhagem autoficcional pode ser um dia estabelecida com precisão na história da literatura brasileira contemporânea, levando-se em conta a ideia central de Serge Doubrovsky - a identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista -, há que se destacar ainda a publicação de O gosto do apfelstrudel (Rio de Janeiro: Escrita Fina, 2010), de Gustavo Bernardo. No romance, o escritor serve-se conscientemente do termo autoficção para ficcionalizar os últimos dias do pai em coma. O protagonista não leva o nome do autor e sim suas iniciais. É uma quase-identidade onomástica, quase uma autoficção comme il faut, mas ainda abreviada pelo pudor.

Entre os romances recém-lançados que sugerem algum tipo de desdobramento do eu do autor, um dos mais sólidos exemplos de autoficção é, sem dúvida, Ribamar (Rio de Janeiro: Record, 2010), de José Castello. Embora o autor alegue não tê-lo escrito sob o signo da autoficção, ele "paga o preço" sugerido por Serge Doubrovsky e nomeia seu personagem principal, ele próprio, José, do início ao fim, sem hesitação.

Em Autofiction - Une aventure du langage, Philippe Gasparini lista diversos critérios estabelecidos por Serge Doubrovsky ao longo de décadas na tentativa de circunscrever os limites da autoficção e sua passagem de neologismo à prática literário-teórica: a identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista; a apresentação do livro como romance; uma preocupação formal original; uma urgência de verbalização imediata da situação vivida; a reconfiguração do tempo linear da narrativa; o emprego do "presente" e não do passado, como nas autobiografias tradicionais; o engajamento do autor em relatar apenas "fatos estritamente reais";3 3 Referência ao texto da quarta capa do livro Fils, de Serge Doubrovsky (Paris: Galilée, 1977), que será mencionado adiante. a pulsão do escritor de se revelar em sua verdade; e os autocomentários, ou metadiscurso.*25 *25 (GASPARINI, Philippe. Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008: 209. )

Ribamar é um livro-luto. José, o filho, escreve em primeira pessoa uma espécie de carta-romance endereçada ao pai Ribamar, já falecido. Ao fazer o luto por meio da escrita, ele se escreve, a si próprio. A certa altura, José vai até a pequena cidade de Parnaíba em busca do passado paterno. Lá encontra um tio, a quem diz escrever a biografia do pai. Mas é uma mentira, ele sabe. José escreve sobre ele mesmo:

Viajei a Parnaíba na esperança de restaurar sua infância. Tudo que encontro são pedaços da minha. Torno-me, assim, o obstáculo que fecha meu caminho rumo a você. Volto a ser o filho inconveniente. Como me livrar de mim e me concentrar em você, pai?*26 *26 (CASTELLO, José. Ribamar. Rio de Janeiro: Record, 2010: 99. )

Assombrado por Franz Kafka, José teme repetir o projeto do escritor tcheco, que escreveu Carta ao pai*27 *27 (KAFKA, Franz. Carta ao pai. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ) ao seu progenitor Hermann, dando-a à sua mãe para que nunca fosse lida. José sabe também que Ribamar nunca lerá seu livro.

Preceitos doubrovskianos são perceptíveis ao longo de toda a narrativa: José Castello empreende uma reconfiguração do tempo linear, entrelaçando referências a Kafka, reflexões íntimas no presente e reminiscências da infância. Trata-se, sem dúvida, de um romance, assim apresentado pelo autor, marcado por uma escrita que ao mesmo tempo visa a uma verbalização imediata da relação filho-pai e ostenta uma preocupação formal que remete à aventura da linguagem mencionada por Doubrovsky na quarta capa de seu romance Fils, no instante da criação do neologismo autoficção. A saber:

[...] Ficção, a partir de acontecimentos e fatos estritamente reais. Se assim preferirem, 'autoficção', por se ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, sem respeito à chamada 'boa forma' nem à sintaxe do romance, seja ele tradicional ou inovador.*28 *28 (DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977. )

Em Ribamar destaca-se ainda a pulsão do autor de se revelar em sua verdade e outra característica bastante valorizada por Philippe Gasparini na autoficção ou autonarração: o metadiscurso. O autor-personagem tece comentários sobre o romance ao longo de todo o romance, afirmando mesmo a "superioridade da ficção", o que lhe permite enunciar: "Aqui faço da verdade o que quero".*29 *29 (CASTELLO, José. Ribamar. Rio de Janeiro: Record, 2010: 37. ) Mais adiante, diz: "[...] não escrevo versos. Nunca escrevi. As notas que tomo para o livro que escreverei formam uma prosa difusa, que não é nem reflexão, nem confissão, nem ficção, e é tudo isso um pouco. Poesia não é".*30 *30 ( Ibidem: 132.)

A essa altura, uma questão fundamental postulada por Philippe Vilain torna-se pertinente: "Deve-se [...] aplicar o rótulo autoficção a textos cujos autores não os apresentam nem os assumem dessa forma?"*31 *31 (VILAIN, Philippe. L'Autofiction en théorie. Paris: Les Éditions de la Transparence, 2009: 21. ) Tal questionamento revelou-se pertinente na teoria literária francesa a partir do momento em que teóricos passaram a aplicar o rótulo autoficção a obras de autores contemporâneos como Annie Ernaux (autora, entre outros, de Écrire la vie. Paris: Gallimard, 2011) e ela o recusou. No sentido inverso, a escritora francesa Camille Laurens (autora, entre outros, de Dans ces bras-là. Paris: P.o.l., 2000) não só passou a utilizar o neologismo como o defende e participa de colóquios sobre o tema, ajudando a refletir artístico-teoricamente sobre a sua prática.

No Brasil, autores que utilizaram o neologismo, a exemplo de Silviano Santiago, Tatiana Salem Levy e Gustavo Bernardo, são grandes conhecedores da teoria da literatura, uma vez que, além de escritores, são professores de literatura e ensaístas (Silviano e Gustavo) ou doutores em literatura (Tatiana) - assim como o próprio Serge Doubrovsky, que reflete sobre sua obra com o olhar do teórico e, provavelmente, escreve impregnado pelo conhecimento da teoria.

A ausência de consenso na teoria literária francesa em torno da autoficção certamente reflete na recepção da literatura autoficcional brasileira. Mas é preciso analisar o fenômeno com precaução, para que não se ceda à tentação de aplicar levianamente um termo francês à literatura nacional. No Brasil, percebe-se mesmo um certo pudor na forma como alguns autores empregam o neologismo - um cuidado, aliás, a ser valorizado num país periférico e colonizado, que ao longo de sua história acumula episódios por vezes excessivos, caricaturais, de cópias de modelos culturais estrangeiros (nesse sentido, a Belle Époque no Brasil, espécie de simulacro da Belle Époque na França, é um arquivo de memórias sobre o assunto).

Apesar de toda a fluidez do fenômeno, no entanto, não há mais como ignorá-lo. Aquela nouvelle vague dos anos 1970 ganhou forma ao longo das décadas, encorpando-se numa tsunami bem contemporânea - um efeito da globalização? - que terá sua importância, deixará rastros, e mesmo alguns estragos, nas culturas mais diversificadas (há registros de autoficções nas literaturas europeias, sul-americanas, africanas, árabes etc.) sem que, possivelmente, jamais se chegue a um consenso.

A potência do neologismo, contudo, já passou por sucessivas provações. Apesar dos detratores, das indefinições no campo teórico, o termo revela-se cada vez mais necessário, fundamental, e a sua intrínseca sugestão poética parece bastar a inúmeros autores pelo mundo, cada qual decifrando-o à sua maneira muito particular, cada vez mais interessados no "grande número de combinações possíveis [...] quase infinitas", como atesta Philippe Lejeune. A seu ver, autoficção "não é um conceito teórico, e sim a designação empírica e histórica de uma série de textos, de designação variável conforme seus locutores". Apesar disso, conclui: "[...] utilizemos, se quisermos, o termo autoficção no senso mais amplo e vago, para designar este lugar intermediário onde se passam tantas coisas apaixonantes e complicadas [...]".*32 *32 (LEJEUNE, Philippe. «Georges Perec: autobiographie et fiction». Genèse et autofiction. Belgique: Academia Bruylant, número 6, 2007: 143-144. )

Na prática literária, portanto, isso é exatamente o que acontece. Afinal, para boa parte dos escritores, a teoria não tem a menor importância no instante da criação. No caso da autoficção, talvez o que realmente interesse seja a carga de sugestão ontológica do neologismo; a pulsão do eu, da expressão do eu, tão urgente que o faz ultrapassar todos os limites. Isto é, o neologismo parece avalizar autores, mas o que os move, e inspira, no fundo, em vários casos, é a urgência de sua situação pessoal - e do registro desta, que em geral supera o puro depoimento.

Na autoficção brasileira, não por acaso algumas obras são romances-luto - outra coincidência em relação à autoficção francesa, já que, segundo Philippe Gasparini, temas como o luto e as questões de filiação são mais presentes do que a sexualidade, fazendo com que os "heróis" dos romances de autoficção na França sejam, em sua maior parte, os pais ou os filhos dos escritores. Nesse sentido, no Brasil, aos exemplos já citados - A chave da casa, de Tatiana Salem Levy, O gosto do apfelstrudel, de Gustavo Bernardo, e Ribamar, de José Castello - há que se acrescentar ainda O filho eterno, de Cristóvão Tezza.

Paradoxalmente, O filho eterno é um livro-luto originário de um nascimento: o nascimento do filho do escritor, um menino diagnosticado como portador da Síndrome de Down. Apesar do título-tema, o autor só fala de si mesmo: a angústia de pai, a vida profissional sem saída, a doença do filho a jogá-lo no inferno mais íntimo.

Cristóvão Tezza assume a história pessoal, mas evita narrá-la na primeira pessoa. Prefere adotar a terceira pessoa, numa provável tentativa de distanciamento de si mesmo. Entretanto, ao longo da narrativa, por vezes o eu torna-se ele e vice-versa:

Mas eu também não tenho nada ainda, ele diria, numa espécie metafísica de competição. Nem casa, nem emprego, nem paz. Bem, um filho - e, sempre brincando, viu-se barrigudo, severo, trabalhando em alguma coisa enfim sólida, uma fotografia publicitária da família congelada na parede. Não: ele está em outra esfera da vida. Ele é um predestinado à literatura - alguém necessariamente superior: um ser para o qual as regras do jogo são outras.*33 *33 (TEZZA, Cristóvão. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2007: 10. )

Há frases iniciadas na primeira pessoa e terminadas na terceira. Todo um jogo pontuado por uma sutileza muito bem construída, que revela um diálogo íntimo ao mesmo tempo lúcido e quase esquizofrênico entre eu e ele. Em entrevistas, Cristóvão Tezza afirmou ter projetado esse livro como um ensaio, mas, ao escrever a primeira página, a ficção se impôs - e o resultado é uma pulsão de sinceridade, de verdade, traduzida num estilo impecável. Mais do que uma comoção, é a história de uma raiva, do luto por um ser vivo. Mais do que autocomentário, trata-se de autoironia.

É possível exumar, na história da literatura, todo um pioneirismo autoficcional que, no caso do Brasil, teria como um dos gênios fundadores Lima Barreto. O autor não somente escreveu romances marcadamente autobiográficos (a exemplo de Recordações do escrivão Isaías Caminha) como quase inscreveu a identidade onomástica na literatura brasileira em 1919, ao lançar Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Em meio à correspondência trocada pelo autor com Antônio Noronha dos Santos, uma carta evidencia essa questão: Lima Barreto o avisa do envio dos originais (de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá) para o amigo revisar e textualmente escreve: "Você deve anotar onde está 'Afonso' que eu quero cortar".*34 *34 (BARRETO, Lima. Um longo sonho de futuro. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1998: 235. ) Afonso (Henriques de Lima Barreto) escrevera os originais com seu próprio nome, tendo o cuidado de cortá-lo na revisão, substituindo-o pelo do personagem.

Nesse sentido, é fundamental citar igualmente O cemitério dos vivos,*35 *35 (BARRETO, Lima. Diário do hospício e O cemitério dos vivos. São Paulo: Cosac Naify, 2010. ) romance-desdobramento das anotações de Lima Barreto (reunidas editorialmente como Diário do hospício) realizadas durante a segunda temporada do autor no Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro, em 1919/20. Tragado pela situação-limite, pela internação no manicômio ocorrida à sua revelia, Lima Barreto recorre à escrita. No entanto, à saída do hospício, essa literatura da urgência, essa narrativa-limite - composta por notas sobre o cotidiano de paciente psiquiátrico etc. - não parece mais suficiente, o que o leva a escrever um romance a partir de sua experiência. E o que passa a interessar é exatamente esse processo que leva o autor a converter a narrativa-limite em romance-limite.

Toda essa ideia de literatura da urgência e narrativa-limite (aí incluída uma extensa análise dos romances autobiográficos do autor) é desenvolvida no livro de minha autoria, intitulado Literatura da urgência - Lima Barreto no domínio da loucura,*36 *36 (HIDALGO, Luciana. Literatura da urgência - Lima Barreto no domínio da loucura. São Paulo: Annablume, 2008. ) e não será aqui repetidamente desenvolvida. O que importa destacar nessa reflexão é o caráter híbrido da autoficção avant-la-lettre empreendida pelo escritor: ao partir do eu, de suas questões mais íntimas, Lima Barreto denunciou questões sociais, raciais e políticas coletivas. Ao unir vida e obra, o autor quebrou os rígidos códigos ficcionais da literatura de sua época, sendo recusado pela crítica, que não perdoou a virulência verbal com a qual ele expunha traumas e práticas históricas nacionais - no seu caso, eram coincidentes.

Lima inaugurou uma via exclusiva de dizer o eu na literatura brasileira, indo além do egocentrismo e sugerindo uma possibilidade mais ampla: uma espécie de narcisismo útil, que é igualmente visível em O que é isso, companheiro? (São Paulo: Companhia das Letras, 1996), de Fernando Gabeira, lançado em 1979. Ao contrário da tendência narcisista da autoficção francesa, uma pecha que levou o escritor Philippe Vilain a escrever o ensaio Défense de Narcisse (Defesa de Narciso), o eu de Gabeira manifesta-se menos narcisista, uma vez que engajado numa causa coletiva: a luta armada contra o regime militar instaurado no Brasil nos anos 1960-70.

Apresentado pela (atual) editora como romance-depoimento (termo extraído do press-release que consta do site da Companhia das Letras), O que é isso, companheiro? se inicia com uma epígrafe assinada justamente por um dos maiores romancistas do Brasil, Guimarães Rosa: "[...] narrar é resistir". A frase, curta e consistente, insinua a tendência autoficcional do relato de Fernando Gabeira, muito além de um simples testemunho jornalístico, objetivo, puramente informativo. Pelo contrário, a narrativa é vazada pela subjetividade do autor e por alguns trechos mais literários. Percebe-se como o eu fica cada vez mais presente ao longo da narrativa, especialmente após a experiência da tortura do autor-narrador-protagonista.

Diante da leitura de O cemitério dos vivos, de Lima Barreto, e de O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, uma questão espreita: por que o autor que escreve a partir de uma situação-limite - geralmente marcada pela violência, pelo esgarçamento da dialética vida-morte - recorre à ficção ao voltar à vida "normal"? Por que, num dado momento, o puro depoimento não basta? Talvez porque o caráter extraordinário de uma experiência radical apague as fronteiras socialmente estabelecidas entre a ideia de verdade e de ficção, entre o eu racional e seu corpo aprisionado ou torturado. Resta ao eu sobrevivente o exercício de narrar (resistir?) como seu corpo administra a situação-limite - uma vivência que por vezes adquire traços quase ficcionais, dado o seu absurdo.

Nesse contexto, torna-se importante citar Cidade de Deus (São Paulo: Companhia das Letras, 1997) e a fragmentação do eu do autor, Paulo Lins, em inúmeros personagens. Em entrevista ao escritor Ferrez, no programa "Manos e minas", exibido na TV Cultura em 1/08/2009, Paulo Lins diz o seguinte a respeito de Cidade de Deus: "É um dos primeiros livros a falar desse tema [a favela, a violência] com um olhar interno. Apesar disso, não tem mérito nenhum para a arte. Mas, enquanto questão política, é muito importante." Em outro momento, ele afirma: "É tudo ficção."

O paradoxo está no centro das duas respostas e da obra em si. Por que recorrer à ficção, afirmá-la, valorizá-la, e ao mesmo tempo reduzir o valor artístico do romance? Paulo Lins sempre teve o cuidado de se desprender, ele, autor, morador da Cidade de Deus desde a infância, dos meninos personagens que compõem o romance. Para o autor, a Cidade de Deus é a protagonista. Tal ambiguidade valoriza a ficção e quebra a tendência narcísica. Por outro lado, dada a história pessoal do autor, que consta do seu perfil e já foi bastante divulgada pela mídia, a leitura do livro como autoficção é, para alguns leitores, inevitável.

Reza a prudência que se avance lentamente na análise da autoficção brasileira à luz da prática e da teoria francesa, esse terreno movediço pontuado por contradições, mas também por coincidências, isto é, traços comuns entre autoficções produzidas na França e no Brasil. Se não há conclusões definitivas, ao menos algumas questões podem iluminar novos caminhos de reflexão: talvez, para alguns autores, o termo "autoficção", por si só, ajude a amalgamar os mais diversos paradoxos contidos em narrativas que reúnem fatos reais e fictícios, desde que a literatura é literatura; talvez seja possível pensar ainda numa espécie de autoficção-limite como recurso extraordinário do eu submetido a condições em que o humano está em risco. Este eu, geralmente ameaçado pelo social, pelo coletivo, ao purgar no centro de uma situação-limite, passa a ignorar códigos da boa moral e do bom costume, colocando à prova a sua própria humanidade. Este eu, mais do que partido, fragmenta-se. Passa a se apresentar no plural: eus-ficções, aparentemente em busca da raiz ontológica desse somatório - e, no cerne dessa busca, desse excesso de si mesmo, em alguns casos, a autoficção de neologismo torna-se antídoto.

Recebido em 20/08/2012

Aprovado em 15/09/2012

Luciana Hidalgo é doutora em literatura comparada (UERJ), com um pós-doutorado na Université Paris III - Sorbonne Nouvelle (Bolsista da CAPES - Proc. número BEX 4083/10-5), e autora do romance O passeador (Rocco, 2011), da biografia Arthur Bispo do Rosario - O senhor do labirinto (Rocco, 1996, 2011) e do ensaio Literatura da urgência - Lima Barreto no domínio da loucura (Annablume, 2008) - por esses dois últimos livros, ganhou dois prêmios Jabuti, nas categorias "Reportagem" e "Teoria/Crítica literária". E-mail: <lucianahidalgo10@gmail.com>

  • *1 (DOUBROVSKY, Serge. «C'est fini: entrevista realizada por Isabelle Grell». Je & Moi, La Nouvelle Revue Française, org. de Philippe Forest. Paris: Gallimard, número 598, outubro de 2011: 23.
  • *2 (FOREST, Philippe. «Je & Moi: avant-propos». Je & Moi, La Nouvelle Revue Française, org. de Philippe Forest. Paris: Gallimard, número 598, outubro de 2011: 12.
  • *3 (JEANELLE, Jean-Louis. «D'une gêne persistante à l'égard de l'autofiction». Je & Moi, La Nouvelle Revue Française, org. de Philippe Forest. Paris: Gallimard, número 598, outubro de 2011: 55.
  • *4 (GASPARINI, Philippe. Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008)
  • *5 (SANTIAGO, Silviano. Histórias mal contadas. Rio de Janeiro: Rocco, 2005)
  • *7 (LEVY, Tatiana Salem. A chave da casa. Rio de Janeiro: Record, 2007)
  • *8 (SANTIAGO, Silviano. Histórias mal contadas. Rio de Janeiro: Rocco, 2005: 110.
  • *9 (DOUBROVSKY, Serge. Apud VILAIN, Philippe. Défense de Narcisse. Paris: Grasset, 2005: 205.
  • *10 (VILAIN, Philippe. L'Autofiction en théorie. Paris: Les Éditions de la Transparence, 2009: 74.
  • *11 (BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975: 62.
  • *12 (LEJEUNE, Philippe Apud GASPARINI, Philippe. Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008: 93.
  • *13 (SCHMITT, Arnaud. "La perspective de l'autonarration", Poétique, número 149, fevereiro de 2007: 15-29.
  • *14 (COLONNA, Vincent. Autofiction & Autres mythomanies littéraires. Paris: Tristam, 2004: 196.
  • *15 (LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1996: 42.
  • *16 (GASPARINI, Philippe. Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008: 311.
  • *17 (DOUBROVSKY, Serge. Apud VILAIN, Philippe. Défense de Narcisse. Paris: Grasset, 2005: 212.
  • *19 (FERRÉZ. Capão Pecado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
  • *20 (LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • *21 (LEÃO, Rodrigo de Souza. Todos os cachorros são azuis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
  • *22 (LEÃO, Rodrigo de Souza. Todos os cachorros são azuis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008: 77.
  • *23 (AVERBUCK, Clara. Máquina de pinball. São Paulo: Conrad do Brasil, 2002.
  • *24 (AZEVEDO, Fal. Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
  • *25 (GASPARINI, Philippe. Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008: 209.
  • *26 (CASTELLO, José. Ribamar. Rio de Janeiro: Record, 2010: 99.
  • *27 (KAFKA, Franz. Carta ao pai. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  • *28 (DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1977.
  • *29 (CASTELLO, José. Ribamar. Rio de Janeiro: Record, 2010: 37.
  • *31 (VILAIN, Philippe. L'Autofiction en théorie. Paris: Les Éditions de la Transparence, 2009: 21.
  • *32 (LEJEUNE, Philippe. «Georges Perec: autobiographie et fiction». Genèse et autofiction. Belgique: Academia Bruylant, número 6, 2007: 143-144.
  • *33 (TEZZA, Cristóvão. O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2007: 10.
  • *34 (BARRETO, Lima. Um longo sonho de futuro. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1998: 235.
  • *35 (BARRETO, Lima. Diário do hospício e O cemitério dos vivos. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
  • *36 (HIDALGO, Luciana. Literatura da urgência - Lima Barreto no domínio da loucura. São Paulo: Annablume, 2008.
  • *1
    (DOUBROVSKY, Serge. «C'est fini: entrevista realizada por Isabelle Grell».
    Je & Moi, La Nouvelle Revue Française, org. de Philippe Forest. Paris: Gallimard, número 598, outubro de 2011: 23. )
  • *2
    (FOREST, Philippe. «Je & Moi: avant-propos».
    Je & Moi, La Nouvelle Revue Française, org. de Philippe Forest. Paris: Gallimard, número 598, outubro de 2011: 12. )
  • *3
    (JEANELLE, Jean-Louis. «D'une gêne persistante à l'égard de l'autofiction».
    Je & Moi, La Nouvelle Revue Française, org. de Philippe Forest. Paris: Gallimard, número 598, outubro de 2011: 55. )
  • *4
    (GASPARINI, Philippe.
    Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008)
  • *5
    (SANTIAGO, Silviano.
    Histórias mal contadas. Rio de Janeiro: Rocco, 2005)
  • *6
    (Trecho da palestra proferida por Silviano Santiago no colóquio "A literatura de si mesmo", realizada em novembro de 2007 no Espaço Sesc.)
  • *7
    (LEVY, Tatiana Salem.
    A chave da casa. Rio de Janeiro: Record, 2007)
  • *8
    (SANTIAGO, Silviano.
    Histórias mal contadas. Rio de Janeiro: Rocco, 2005: 110. )
  • *9
    (DOUBROVSKY, Serge.
    Apud VILAIN, Philippe.
    Défense de Narcisse. Paris: Grasset, 2005: 205. )
  • *10
    (VILAIN, Philippe.
    L'Autofiction en théorie. Paris: Les Éditions de la Transparence, 2009: 74. )
  • *11
    (BARTHES, Roland.
    Roland Barthes por Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975: 62. )
  • *12
    (LEJEUNE, Philippe
    Apud GASPARINI, Philippe.
    Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008: 93. )
  • *13
    (SCHMITT, Arnaud. "La perspective de l'autonarration",
    Poétique, número 149, fevereiro de 2007: 15-29. )
  • *14
    (COLONNA, Vincent.
    Autofiction & Autres mythomanies littéraires. Paris: Tristam, 2004: 196. )
  • *15
    (LEJEUNE, Philippe.
    Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1996: 42. )
  • *16
    (GASPARINI, Philippe.
    Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008: 311. )
  • *17
    (DOUBROVSKY, Serge.
    Apud VILAIN, Philippe.
    Défense de Narcisse. Paris: Grasset, 2005: 212. )
  • *18
    (
    Ibidem: 211-212.)
  • *19
    (FERRÉZ.
    Capão Pecado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. )
  • *20
    (LAUB, Michel.
    Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. )
  • *21
    (LEÃO, Rodrigo de Souza.
    Todos os cachorros são azuis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. )
  • *22
    (LEÃO, Rodrigo de Souza.
    Todos os cachorros são azuis. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008: 77. )
  • *23
    (AVERBUCK, Clara.
    Máquina de pinball. São Paulo: Conrad do Brasil, 2002. )
  • *24
    (AZEVEDO, Fal.
    Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. )
  • *25
    (GASPARINI, Philippe.
    Autofiction - Une aventure du langage. Paris: Seuil, 2008: 209. )
  • *26
    (CASTELLO, José.
    Ribamar. Rio de Janeiro: Record, 2010: 99. )
  • *27
    (KAFKA, Franz.
    Carta ao pai. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. )
  • *28
    (DOUBROVSKY, Serge.
    Fils. Paris: Galilée, 1977. )
  • *29
    (CASTELLO, José.
    Ribamar. Rio de Janeiro: Record, 2010: 37. )
  • *30
    (
    Ibidem: 132.)
  • *31
    (VILAIN, Philippe.
    L'Autofiction en théorie. Paris: Les Éditions de la Transparence, 2009: 21. )
  • *32
    (LEJEUNE, Philippe. «Georges Perec: autobiographie et fiction».
    Genèse et autofiction. Belgique: Academia Bruylant, número 6, 2007: 143-144. )
  • *33
    (TEZZA, Cristóvão.
    O filho eterno. Rio de Janeiro: Record, 2007: 10. )
  • *34
    (BARRETO, Lima.
    Um longo sonho de futuro. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1998: 235. )
  • *35
    (BARRETO, Lima.
    Diário do hospício e O cemitério dos vivos. São Paulo: Cosac Naify, 2010. )
  • *36
    (HIDALGO, Luciana.
    Literatura da urgência - Lima Barreto no domínio da loucura. São Paulo: Annablume, 2008. )
  • 1
    Referência ao livro
    Le je réel/Je fictif -
    Au-delà d'une confusion postmoderne, de Arnaud Schmitt. Toulouse: Presse Universitaires du Mirail, 2010.
  • 2
    É importante dizer que todos os trechos de livros extraídos de originais franceses e citados ao longo desse artigo foram traduzidas diretamente para o português a fim de facilitar a leitura.
  • 3
    Referência ao texto da quarta capa do livro
    Fils, de Serge Doubrovsky (Paris: Galilée, 1977), que será mencionado adiante.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      20 Ago 2012
    • Aceito
      15 Set 2012
    Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: alea.ufrj@gmail.com