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Como César Aira pode mudar sua vida

How Cesar Aira can change your life

Resumo

Neste ensaio busco explorar algumas ressonâncias entre a construção de um subgênero do comentário contemporâneo de literatura, traduzido no híbrido crítica/autoajuda, e alguns aspectos do trabalho de César Aira, que construiu ao longo de sua carreira uma obra bastante refratária ao jogo comumente celebrado entre literatura e pedagogia, fundado no papel orientador que a criação literária poderia ter em termos de fomentar prescrições morais louváveis. Crendo que assim Aira pensou e fez, creio também que, à revelia de suas possíveis intenções autorais, há algo em sua literatura que nutre certo panorama ético. Busco aqui comentar e discutir esse panorama a partir de uma leitura, necessariamente pontual, de um conjunto de textos de Aira que flertam com a autobiografia e a autoficção (como La Vida Nueva), associados a outros que operam com a questão da relação entre literatura e vida (como El Náufrago e Cecil Taylor), convocados em torno de um anedotário pessoal de motivação exploratória a partir do tema estabelecido no título.

Palavras-chave:
autoajuda; autobiografia; Aira

Abstract

In this essay I seek to explore some resonances between the construction of a subgenre of contemporary literature commentary, translated into the hybrid criticism/self-help, and some aspects of César Aira's work, who has developed throughout his career a body of work that was quite refractory to the game commonly played between literature and pedagogy, founded on the leading role that literary creation could have in terms of fostering laudable moral prescriptions. Believing that this is how Aira thinks and acts, I also believe that, despite his possible authorial intentions, there is something in his literature that nurtures a certain ethical panorama. I seek here to comment on and discuss this panorama from a timely reading of a selection of texts by Aira that flirt with autobiography and autofiction (such as La Vida Nueva), associated with others that deal with the relationship between literature and life (such as El Náufrago and Cecil Taylor), summoned around a stock of personal anecdotes of exploratory motivation based on the theme established in the title.

Keywords:
self-help; autobiography; Aira

Resumen

En este ensayo busco explorar algunas resonancias entre la construcción de un subgénero del comentario de la literatura contemporánea, traducido en el híbrido crítica/ autoayuda, y algunos aspectos de la obra de César Aira, quien construyó a lo largo de su carrera una obra bastante refractaria al juego comúnmente celebrado entre literatura y pedagogía, fundado en el papel tutor que la creación literaria puede desempeñar en términos de fomentar prescripciones morales loables. Creyendo que así pensó e hizo Aira, creo también que, a pesar de sus posibles intenciones autorales, hay algo en su literatura que nutre un cierto panorama ético. Busco aquí comentar y discutir este panorama a partir de una lectura, necesariamente puntual, de un conjunto de textos de Aira que coquetean con la autobiografía y la autoficción (como La Vida Nueva), asociados a otros que trabajan el tema de la relación entre literatura y vida (como El Náufrago y Cecil Taylor), convocados alrededor de una anécdota personal de motivación exploratoria basada en la temática establecida en el título.

Palabras-clave:
autoayuda; autobiografía; Aira

I

Faz pouco tempo comecei a me dar conta de que estava há alguns anos acumulando um conjunto de livros que tinham como uma espécie de ponto de fuga comum a ideia de que é possível aprender algo sobre a vida com a literatura. Dito assim, de chofre, parece algo muito banal, pouco controvertido: quem vai disputar uma ideia dessas? Mil e uma justificativas para o paideuma literário passam por isso: pelo entendimento de que há um ensinamento subjacente à leitura literária. Vão variar o grau em que essa noção é abraçada, ou a ênfase conferida aos saberes que se supõe que o literário possui e pode compartilhar. Mas a crença em um aprendizado com a literatura é antiga, e tão disseminada que alcança o incontroverso. Se há aprendizado, há mudança, transformação: se a literatura pode ensinar, pode, portanto, “mudar sua vida”.

Mas esses livros que comecei, de maneira casual e errática, a colecionar, davam uma volta a mais nesse parafuso, aproximando essa concepção do universo da autoajuda. Termo acomodado em uma região de infâmia sem inflamação no espaço crítico contemporâneo, a autoajuda seria uma espécie de subgênero dos subgêneros, ainda mais miserabilizável por sua alegada força de panaceia, e sua venda de noções de progresso moral a baixo custo, em baixa voltagem, em tendência conformista. Autoajuda é dinheiro, é best-seller, é um fora da literatura: onde está a autoajuda, a literatura já saiu de cena, todo o jogo do ensinamento é um avesso ao literário, que se constitui e opera por outra ordem de perturbação.

Esses livros me interessavam por promover o que me parecia à primeira lida um curto-circuito. Faziam uso de uma ideia amiga ao universo dos professores de literatura, críticos, juízes literários: valorizavam conteúdos, lições, empenhos de leitura garantindo recompensas e, a maior, a do aprimoramento moral. Mas faziam um pacto com o demônio: recorriam à lógica do best-seller, flertavam com Paulo Coelho, assumiam que, se acreditamos que a literatura ensina, acreditaríamos talvez em trabalhos de popularização do que ela ensina, em uma pegada prática, em uma facilitação desse uso do literário - e daí saem os manuais para o uso da literatura a favor da existência. Constituíam uma população bibliográfica diversa: dentro dessa inclinação comum manifestavam bastante heterogeneidade interna para manter um interesse continuado e favorecer a comparação e contraste. O primeiro que li, Como Proust pode mudar sua vida, de Alain De Bottom (2011De BOTTON, Alain. Como Proust pode mudar sua vida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011. ), me atraiu no manuseio inicial por sua mescla de indícios de vida e obra espalhados em fotos ao longo de um texto com uma diagramação original; parecia uma biografia mansa, pouco pretensiosa, de Proust, que tampouco concedia muito à presença do autor do livro, sujeito que, habitando as franjas de uma certa filosofia francófona do bem-viver, publicou uma variedade de livros de temas afins, abordando como viajar, como trabalhar, como melhorar em vida a partir da leitura de alguns livros. Os títulos dos capítulos entregavam seu propósito sem peias: “Como amar a vida hoje”, “Como ler para si mesmo”, “Como não se apressar”. Todas essas são coisas que almejo, como não me interessar por esse livro, que ainda mescla essas dicas à aventura da Recherche?

Esse título foi replicado para outra presença importante em meu paideuma, Pessoa, com o Como Fernando Pessoa pode mudar sua vida (PITELLA; PIZARRO, 2016PITELLA, Carlos; PIZARRO, Jerónimo. Como Fernando Pessoa pode mudar sua vida. Primeiras lições. Rio de Janeiro: Tinta da China, 2016. ). Seus autores são eruditos exegetas da obra do poeta português, e autorizam aqui o que corresponde ao que guarda seu subtítulo, Primeiras lições: trata-se de uma introdução a Pessoa, um livro-cofre no qual foram amealhadas algumas razões para se interessar por Pessoa, partindo do pressuposto de que ele não é efetivamente conhecido, permanece envolto em mistérios, bibliográficos e biográficos. Não mencionam o trabalho anterior, de De Bottom, mas até em design os livros se assemelham, com sua economia de texto leve e transparente arrodeando imagens abundantes. Organizados alfabeticamente, os modos que esse livro ensina a partir do legado de Pessoa incluem “Como colecionar provérbios”, “Como fazer caricaturas”, “Como organizar o que não tem organização”, “Como ser livre”, “Como ser um pássaro”, tudo meticulosamente anotado e ricamente ilustrado. Na apresentação, dizem “A quem quer que encontre este livro e deseje conhecer ou reconhecer Fernando Pessoa, avisamos: ele ainda pode mudar a sua vida! E talvez essa seja a função primordial de sua obra, o seu grande valor” (op. cit., p. 14).

Saí comprando outros livros, tentando organizar alguma reflexão em torno desse tema, planejando fazer um ensaio, o que estou chamando de livros de autoajuda literária. São livros que mercam com certa respeitabilidade e transação com o cânone (Proust, Pessoa, Austen, etc.), celebrando afinidades com o comentário crítico corrente, que são sustentados por reputações razoáveis de estudo, análise e cultivo e, simultaneamente, acenam na direção do cuidado de si, do uso da literatura como remédio ou rota terapêutica, e querem fazer valer uma certa noção de que, para se ajudar, basta ler e aprender a lição, colocando-a em exercício na vida. Quanto mais lia essas coisas mais me interessava, e assim cheguei em trabalhos como os de Deresiewicz (2011DERESIEWICZ, William. A Jane Austen education: How six novels taught me about love, friendship, and the things that really matter. New York: The Penguin Press, 2011. ) sobre Jane Austen, McCall Smith (2013McCALL SMITH, Alexander. What W. H. Auden can do for you. Princeton: Princeton University Press, 2013.) sobre W. H. Auden, Mead (2014MEAD, Rebecca. My life in Middlemarch. New York: Crown Publishers, 2014.) sobre Gorge Eliot, e Colman (2018COLMAN, Adam. New uses for failure. Ben Lerner’s 10:04. New York: Fiction Advocate, 2018.) sobre Ben Lerner. São livros muito distintos, mas em todos retornamos ao pleito de Pitella e Pizarro que citei: a verdade simples enunciada em termos da possibilidade de mudança representada por uma leitura. Por mais que a crença de que “talvez essa seja a função primordial de sua obra, o seu grande valor” dispare meu alarme cético, não posso refrear a evidência de que uma fonte do gosto e do apego por certas leituras está no que elas representam enquanto mudança pessoal e chave para a autocompreensão e construção da identidade. Seja do modo de ler, de perceber, de sentir e compreender, a mudança será também, sempre e necessariamente, por modesta que seja, uma mudança de vida. É desse tipo de experiência, creio, que Saer fala em ensaios como “El mundo transfigurado” (1999SAER, Juan José. La narración-objeto. Buenos Aires: Seix Barral, 1999.) e “Narrathon” (2004SAER, Juan José. El concepto de ficción. Buenos Aires: Seix Barral, 2004.): já que li, sou outro; por que li, mudei eu, mudou o mundo.

Essas coisas todas aparecem aqui como um preâmbulo por que creio que nenhum outro autor que li pode ter contribuído mais para alguma “mudança de vida” de minha parte que César Aira. Ao mesmo tempo, talvez não conheça nenhum outro autor mais avesso a essa forma de compreensão e uso da literatura. Esse empenho pragmático direto, bem como suas habituais instâncias de melhoramento e de aprimoramento moral, essas ideias bondosas e benevolentes, de chave para uma boa vida: o que pode ser mais anti-Aira que isso? “Esse peculiar questionamento da significação a que chamamos Literatura [...] é sempre uma intenção desviada, [...] um sonho em processo”: essas afirmações de César Aira (2007bAIRA, César. Pequeno manual de procedimentos. Curitiba: Arte & Letra, 2007b. , p. 83-84) acenam para uma angulação do literário que reposiciona a noção facilitada de um ensinamento, ou de um conteúdo, que uma vez capturado constituiria uma operação de aprendizagem que, tendo sido instanciada, propiciaria um bem. Não se trata disso, funciona de outra maneira, aponta Aira: processo, mais que produto; desvio, mais que rumo reto; significação questionada, mais que organizada. O que se estimula, na frequentação da literatura, é a biblioteca, o sistema, o envio continuado a relacionamentos, aproximações e contrastes entre livros. “No gênero best-seller”, diz Aira (op. cit., p. 83-84), “importa mais o livro que seu autor (e aqui descobrimos, por contraste, que na literatura acontece o oposto). […] A literatura é sempre uma intenção desviada; o best-seller, uma intenção realizada.” Estou me apoiando em um ensaio para delinear esse traço da fisionomia autoral de Aira, mas a presença é espalhada e abundante: “Lendo literatura genuína não se adquire nada além de cultura literária, a mais inofensiva de todas” (op. cit., p. 85). E, no entanto, apesar desse e de outros movimentos que nos levariam a desconfiar da própria possibilidade, me vejo aqui às voltas com a convicção de que César AiraAIRA, César. Cumpleaños. Barcelona: Debolsillo/ Mondadori, 2001. pôde mudar minha vida, de que algo sua literatura me ensinou e de que talvez houvesse algo a ser escrito a respeito.

II

Quando fui pela primeira vez à Argentina, lembrei de um ensaio de Augusto de Campos intitulado “Quase-Borges”. Campos relata como, viajando a Buenos Aires junto com a mulher e o filho, em férias familiares, lhe ocorreu reprisar a experiência que havia tido um seu conhecido, um certo Omar Khouri:

Em Buenos Aires, passando pela Calle Maipú, tentou o impossível: apertou o botão do interfone, pediu uma entrevista e, como num sonho, viu-se no apartamento de Borges; sentou-se ao seu lado, conversou longamente com ele, ajudou-o a vestir o paletó para ser fotografado e voltou com muitas anotações e belíssimas imagens do inacreditável encontro (CAMPOS, 2001CAMPOS, Augusto de. Quase-Borges. In: SCHWARTZ, Jorge (Org.) Borges no Brasil. São Paulo: Editora Unesp/ Imprensa Oficial do Estado, 2001., p. 367).

Um pouco mais cioso de certo decoro mínimo, ou menos crente no poder do improviso, Campos decide consultar a lista telefônica e ligar antes, se anunciando, solicitando a visita e a entrevista, avisando que iria com a família, todos admiradores de Borges. É atendido pela governanta, que passa o telefone ao próprio Borges; marcam uma hora, vão, e o ensaio é o relato do encontro, incluindo a repetição do gesto anteriormente referido, com o paletó imprescindível para as fotos. É um encontro muito bonito, no qual tudo corre à perfeição e até o que dá errado, sai bom. Por exemplo, as fotos não dão certo, ficam ruins, e o filme logo acaba, e mesmo numa segunda visita realizada com o propósito maior de uma foto melhor, o flash estraga: o encontro não sobrevive bem na indexação barata do referente por meio da fotografia, mas subsiste como memória depositada no texto, que em vários momentos evoca justamente isso, a memória, suas formas, suas transformações. Ainda, um mesmo lance no qual Borges comenta a língua japonesa é reiterado com discreta diferença, como se acontecesse nas duas vezes como alusão a algo que nunca se deixa saber por completo. A conversa entre Campos e Borges é um pas de deux, uma coreografia graciosa e perfeita, e o ensaio termina muito bem, longe dali, quando Borges já é uma lembrança de Campos, uma recordação de haverem habitado temporariamente um apartamento modesto e um pouco sombrio na Calle Maipú.

Esse ensaio me fascinava e, quando o li, logo quando esse livro que o coleta foi lançado, ele me comoveu muito: se mostrava, aí, um Borges humano, em surdina, nenhum histrionismo nem espetáculo. Um homem viveu, leu e escreveu, ficou cego. Vive na lembrança, fala sobre isso; está frágil, depende de cuidados de outrem para sobreviver, mas sua presença revela abertura e acuidade, folheando a memória como se a um livro único, irrepetível. Não havia mais, nem era preciso haver mais.

Todavia, com o passar do tempo, passei a desconfiar do ensaio. O personagem de nome árabe que abre o texto, por exemplo, me incomodava, não só pela celebração do sucesso de sua desfaçatez de intrépido, mas também por sua facilidade alusiva (um texto sobre Borges que começa com alguém que se chama Omar - e, ademais, é “poeta e artista gráfico”?). O encontro dos dois é só ressonância e magia simpática, e tudo Campos teria registrado a posteriori, pois esqueceu o gravador e duvida mesmo que Borges tivesse permitido seu uso. Conversam sobre muita poesia e etimologia, é muita coisa para lembrar assim, ainda mais estando em férias, ainda mais estando com a família. A desconfiança, todavia, não inibia a fruição, não funcionava como uma censura de regozijo. Estava bem que fosse assim, talvez até melhor: que fosse borgiano também o relato do encontro, que acolhesse a maneira às vezes imponderável como a ficção adentra o viver e vice-versa. Ocorrido em 1984, o encontro está próximo da morte de Borges, que menciona a viagem ao Japão que será registrada em seu Atlas; nada se fala de Maria Kodama, que todavia estava certamente presente, na vida de Borges, então e depois.

O fato é que, quando fui pela primeira vez à Argentina, lembrei desse ensaio de Augusto de Campos sobre Borges e me ocorreu fazer o mesmo, mas com César Aira. Peguei o catálogo telefônico do quarto do hotel (essas coisas ainda existiam), e localizei Aira, em Flores, foi fácil. Fiquei um tempo fazendo isso, lembro, e procurei muita gente: encontrei Sarlo, que aparentemente não estava muito longe de onde eu estava; havia muitos Gonzalez, não conseguia definir qual seria o Horácio certo, e o mesmo ocorria com Gandolfo: “Eduardo”? Assim me distraí por um tempo, na cama do hotel, e planejei o trajeto, também com a ajuda do catálogo telefônico, para no dia seguinte, à tarde, fazer uma visita a César Aira. Tive um impulso de me anunciar por telefone, como teria feito Campos. Mas refreei isso, temi o rechaço, e me ocorreu que a verdadeira aventura estaria em ir até lá, bater à porta, e me anunciar: fazer exatamente o mesmo que o antecessor de Campos tinha feito, e desempenhar, no cotidiano do autor admirado, o papel do intempestivo, um advento.

Parecia, me ocorreu, algo que poderia constar de um romance de Aira, um incidente tão insólito e ao mesmo tempo inofensivo, uma porta aberta para um momento no qual os sentidos se desestabilizam um pouco, quando as coisas aparecem ainda em estado de latência e pouco organizadas pela possibilidade de uma resposta habitual. Uma pessoa bate à porta de César Aira e se anuncia, Senhor Aira, boa tarde. Sou um professor brasileiro, me chamo Antonio, leio sua obra há muitos anos e a admiro enormemente. Vim a Buenos Aires a trabalho e como tinha uma folga pensei que seria uma boa oportunidade para conhecer o senhor e conversar um pouco. Num fim de tarde de quarta-feira, ninguém espera que algo assim ocorra. Poderia dar em nada, poderia não encontrar ninguém em casa, poderia me encontrar com o rechaço de Aira: tudo isso seria tranquilo também, seria já habitação do campo de possibilidades propiciado pelo gesto anômalo e algo aberrante que eu pretendia realizar, e no qual pensava enquanto rumava para Flores no metrô e depois enquanto caminhava os mais ou menos 10 quarteirões entre o metrô e a esquina onde mora César Aira.

“Campo de possibilidades”, “gesto anômalo, algo aberrante”: não que eu tivesse plena consciência do que estava fazendo, ou de seu alcance e implicações. Eu era jovem, e isso queria dizer, entre outras coisas, que dispunha de um pouco mais de força para o dispêndio de mim mesmo em empreitadas sobre as quais eu pouco havia arrazoado previamente. Eu estava na Argentina pela primeira vez, e isso queria dizer que algo muito desejado e esboçado em digressões e afastamentos do ramerrão cotidiano tinham se materializado nessa viagem, que me ocorreu de maneira fortuita e algo inesperada, propiciada por um convite de uma colega de trabalho para que eu desse algumas aulas a professores de português argentinos em formação. Havia tempo e saúde e disponibilidade para algum despropósito, para um gesto de pouca consequência como esse que empreendia, determinado a bater na porta de Aira e, com isso, angariar um jeito de entrar na história da literatura argentina. Poderia dar em nada, poderia ser muito. Mas, de alguma maneira, se revestia dessa roupagem para mim: bater à porta de Aira era literalizar a ideia da crítica como encontro com o autor, transformar em gesto o que até ali havia sido gesto de outro tipo, acontecido em privacidade e imaginação, por força da operação de leitura de seus textos. Não era exatamente o mesmo que aconteceria se eu encontrasse Aira em uma feira literária, esperasse o final de sua palestra e fosse aos autógrafos tietá-lo: agora, era uma excursão ao desconhecido, com pouco mais a não ser seu propósito a lhe conferir uma âncora com o factual. Era uma aventura e, a caminho de Flores, me irmanava a personagens de Julio Verne em viagens maravilhosas, ao centro ou ao redor da Terra, ao fundo do mar ou a ilhas misteriosas: me irmanava a tantos personagens do próprio Aira que, tal como esses heróis oitocentistas, se lançam sem peias e, nesse lançar-se, tem lugar a peripécia, a reflexão, a vida, tudo.

III

Não tenho memória precisa do que pensava ou sentia enquanto me encaminhava para lá: os incidentes se confundem um pouco, compondo uma mistura inextricável de esquecimento e invenção, a lembrança não é positividade pura e é assaltada por fragmentos soltos que, vistos agora, ganham força metonímica, mas são também a experiência se remendando para acontecer em texto. Por exemplo, recordo vividamente que a certa altura passei por uma casa muito linda, com uma modéstia íntegra, cuidada sem labor excessivo, antiga e conservada, mas evidentemente usada, marcada pelo tempo. Pensei que devia ser ali, que aquela deveria ser a casa de Aira: pareciam paredes propícias à guarida de um autor como ele, parecia uma casa propícia à sua biblioteca, seus trabalhos como tradutor, seus encontros com amigos do campo literário.

Alguma consideração sobre a casa de Aira também ocorreu a Alan Pauls, que em seu conhecido ensaio sobre Aira diz “Como el que tiene un sueño, tengo este flashback: soy joven, muy joven, y voy a ver a Aira. En el camino hacia el barrio de Flores me asalta una vieja duda: tienen casa los escritores?” (PAULS, 2014PAULS, Alan. Temas lentos. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2014., p. 47). Não duvido da casa de Aira, mas me sinto próximo a Pauls pela consideração do que seria a habitação provável, pela introdução do problema de conceber o autor em sua domesticidade, e portanto naquilo em que mais se assemelha a nós, a todos os outros que, ainda que não tenham autoria, nem obra, têm domesticidade. A casa, aqui, aparece como um refúgio da imaginação: projeto uma vida em seu interior, tenho fantasias sobre o que aqueles espaços propiciam ao viver de quem os habita. Em El Náufrago (AIRA, 2011bAIRA, César. El náufrago. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2011b.), experimentamos essa passagem para a domesticidade como o Outro da literatura: após nos enviar às peripécias de um náufrago a la Robinson Crusoé (que é também um jeito de dizer que todo náufrago é um náufrago a la Robinson Crusoé, que a invenção desse náufrago literário por Defoe contaminou toda a experiência subsequente do naufrágio), Aira nos remove da situação da ilha deserta, assombrada por um fantasma que esquarteja humanos e deposita seus restos na praia, para o horror atônito do protagonista sem nome. Solitário, agoniado e aflito, o protagonista (mais uma vez, como Robinson Crusoé) não abdicou ainda de sua capacidade inquisitiva e de sua mobilidade racional, e concebe uma artimanha para descobrir quem, ou o quê, o acompanha na ilha de maneira tão bizarra, realizando diariamente oferendas macabras e ameaçadoras. Fará uma vigília noturna e, assim, descobrirá, por testemunho, a natureza do fato inexplicável. Durante essa noite de mil anos na qual o náufrago, vigilante e incandescente, busca dirimir sua ignorância, algo modestamente maravilhoso e banal tem lugar alhures, que leva o narrador a comentar que

Lo que predominaba era un sentimiento difuso de dejá-vu. Y no era para menos. La esencia, en efecto, estaba en la repetición. Y si bien lo repetido, en la cultura de la novedad, era mal visto en general, en este caso gustaba. Tenía algo de milagroso, que lo irrepetible se repitiera (AIRA, 2011bAIRA, César. El náufrago. Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2011b., p. 74).

“Um sentimento difuso de dejá-vu”: será que era isso que eu sentia, a caminho da casa de Aira? Tentava repetir um feito reportado por Campos, realizar algo que havia sido realizado por Pauls: o que era repetição, o que era novo? O que os moveu, o que me movia?

A casa que pensei ser a de Aira não era, soube, conferindo o número, e que me recorde dessa suposição, quando esqueci de tantas outras coisas desse passeio, me faz lembrar de outras coisas que ocorreram nessa jornada, que teriam como ponto de semelhança maior o fato de que todas elas conduzem à casa de Aira, embora nenhuma delas me conduza exatamente ao que eu almejava, que era não apenas a chegada à casa do Autor, mas o que Pauls conseguiu: o acolhimento, o direito de passagem, o ingresso no “cuarto de las herramientas”:

Llego, me hacen pasar. El camino me desconcierta: no veo libros por ninguna parte, y para colmo cruzamos por la cocina. (Soy tan joven, tan pre-Puig, que no atino a pensar la cocina como espacio literario.) Eh!, pienso. Adónde me llevan? La entrevista tiene lugar en un cuartito decepcionante, pegado a la cocina - lo que alguien de otra época, mi abuelo, por ejemplo, hubiera llamado “el cuarto de las herramientas” (PAULS, 2014PAULS, Alan. Temas lentos. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2014., p. 47).

As assimetrias da história, os certames incompatíveis da vida, nos quais não sabemos aferir com facilidade quem ganha e quem perde: Pauls se queixa e se decepciona ao adentrar o que para mim seria o Santo Graal. O quarto de ferramentas de Aira: o local onde trabalha, escreve, pensa, vive. Mesa, cadeira, abajur, poltrona, instrumentos de escrita, cadernos, computador: o berço da invenção de um autor admirado, a fonte de onde saíram suas narrativas, seus ensaios, resenhas e reflexões, possivelmente um diário que talvez só venha à luz postumamente, o álbum e as pastas contendo um histórico de publicações, contratos, acertos. Tudo ao alcance da mão, o que seria ter acesso a isso?

Pauls não comenta nada mais a respeito do espaço, o que é uma pena: para ele, aparentemente, valeu pouco a visita juvenil à casa de Aira, que ele deixa repousar no ensaio apenas como um vestíbulo que permitisse o acesso a eixos da poética aireana, grandes explicações sistemáticas. Ao contrário, e um pouco em resposta ao ensaio de Pauls, imaginava, enquanto caminhava por Flores e consumia os quarteirões que me separavam da casa de Aira, que entrar naquele quarto de ferramentas era meu propósito maior. A ideia de emular Campos visitando Borges se resolvia, em meu caso, em alcançar a permissão para aceder ao quarto de ferramentas e habitar, ainda que por um período breve, aquele espaço, também habitado por Aira, e que em minha imaginação canhestra parecia atender aos ditames da Lei das Contiguidades Anômalas, e constituir uma permissão para habitar, também, um pouco, a literatura argentina - e, por que não, a Literatura. Não conseguia imaginar prêmio maior ao final daquela peregrinação, e a essa altura já sonhava em ser recebido com uma disponibilidade tranquila por parte de Aira que, sorridente, me diria algo como “Ah, claro, claro, entre, por favor... aceita um café?”. Não haveria o ritual de colocar o paletó para tirar uma foto, como houve em Borges: nada de governantas, nenhuma cerimônia. Haveria Aira, seu quarto de ferramentas, uma conversa literária.

Imaginava, assim, lembro, Aira como alguém que ocupasse o lugar de Dickens no conhecido quadro de Buss, O sonho de Dickens (Figura 1), que mostra justamente o escritório do escritor, seu local de trabalho:

Figura 1.
O sonho de Dickens, de Buss.

Cochilando em sua cadeira, Dickens é retratado por Buss como alguém que vive um sonho em processo, um sonho que vemos, flutuando no espaço, com mil personagens em miniatura no ar, amorosos e perversos, heróicos e infames, tudo que nos encantou nos livros de Dickens, uma vida em literatura. O ambiente é vitoriano e modesto: uma parede de livros, uma escrivaninha robusta com gavetas, uma cesta de vime ao lado, um abajur. Nada, exteriormente, é ostentatório ou excessivo, mas nessa austeridade habita o sonho vivo da literatura.

Imaginava algo assim para Aira: no caso dele, as figurinhas flutuantes e vaporosas seriam Ema, A Cativa, que estaria ao lado do Pequeno Monge Budista e da Princesa Primavera; ao lado, a maravilhosa Sarita Subercaseaux voava em seu Ovo Mágico, perseguida pelo Cérebro Musical; Carlos Fuentes, multiplicado por mil, como um formigueiro de Carlos Fuenteses amestrados, aparecia no centro de um picadeiro no qual O Mago executava seu número enquanto O Barbaverde consumava uma perseguição exitosa nos bastidores. Haveria mais, muitos, outros, alguns muito simples, todos criados por Aira, entidades aliviadas de gravidade que me alegraram e aborreceram ao longo dos tantos anos de leitura desses romancinhos. E lá estaria Aira, habitando o centro de sua mansarda, agora mesmo, sem saber que eu estava chegando mas já à minha espera. Pois eu estava a caminho de me tornar, possivelmente, um desses personagens de um livro futuro, no qual se narraria o incidente tão típico de Aira de uma tarde de quarta-feira, num inverno, no qual o narrador está trabalhando, escrevendo, e toca o interfone e uma voz lá embaixo, ao mesmo tempo estrangeira e familiar, diz: Senhor Aira, boa tarde. Sou um professor brasileiro, me chamo Antonio, leio sua obra há muitos anos e a admiro enormemente. Vim a Buenos Aires a trabalho e como tinha uma folga pensei que seria uma boa oportunidade para conhecer o senhor e conversar um pouco. Aira poderia escrever isso e eu - à maneira do que já havia acontecido antes com Alberto Giordano em Los mistérios de Rosario (1994AIRA, César. Los mistérios de Rosário. Buenos Aires: Emecé, 1994.) - poderia me tornar um personagem de César Aira. Assim, enquanto caminhava pelas ruas de Flores, prosseguia rumo à casa de Aira num sentido material, físico, executava uma aproximação em um mapa. Mas, simultaneamente, realizava um gesto imaterial, embora igualmente eficaz: o de incrementar minhas chances de participação na história da literatura. A cada quarteirão que passava, progredia, e me transformava, embora imperceptivelmente, passando na vida de sujeito, mera pessoa física, a personagem, matéria de narração, próximo da lenda, primo distante de Ulisses, de Ali-Babá, de Macunaíma.

IV

Quando imaginava o quartinho de trabalho de Aira como um símile da ilustração de Buss o fazia como é típico do exercício da imaginação ordinária, esboçando uma representação edulcorada da imagem e salpicando de subtrações (faltavam personagens, eu não lembrava todos, nem de Dickens, que dirá de Aira) e adições (imaginava tudo em cores, mas é um quadro incompleto, ficou como esboço e de colorido há apenas a figura de Dickens em sua poltrona). Fazia, voluntariamente, uma ligeira correção temporal a distinguir essa minha imagem mental, e supunha um toca-discos na estante, bem como uma coleção de discos de vinil, muitos discos de jazz. Quando imaginava Aira em seu quarto de ferramentas o pensava ouvindo música: curtindo, baixinho, enquanto escrevia, algum disco de Cecil Taylor.

Taylor tem um lugar particular em minha experiência com a música por que, salvo engano, a primeira vez que fui exposto a alguma forma de vanguarda em arte foi através dele. Assistia, com meu pai, a um programa de variedades na TV Educativa, eu devia ter uns 10 ou 11 anos. Por uma dessas configurações enigmáticas do universo, naquele dia houve uma apresentação de Taylor. O que era aquilo? Era música, mas também era outra coisa. Estava dentro da música, mas parecia estar do lado de fora, ou do lado avesso. Talvez estivesse dentro, mas então o continente da música seria mais amplo, mais indômito, mais perigoso, e ali se ouvia a voz de um nativo da Terra Incognita dos mapas antigos. Não sabia, não tinha como saber, não tinha notícia de nada parecido, e no entanto algo acontecia, aconteceu, e aconteceu comigo. Fato é que o estado de ignorância atônita que descrevo é conhecido por todos: assim também foi o mundo para todos nós em algum momento, todo o mundo conheceu algo novo, algo de que não tínhamos notícia, e foi assim, na travessia da perplexidade e do estranhamento, que fiz minhas pazes com o que via, que vi e ouvi Taylor pela primeira vez. Por muito tempo sequer recordava daquela experiência de contato com a radicalidade irrepreensível de Taylor, até que me reencontrei com ele e sua música tal como foram descritos na “biografia” que César Aira lhe dedicou. Aira me devolveu àquela lembrança, o que quer dizer que me devolveu a algo de minha juventude, de minha infância, e promoveu enfim um encontro, que era também um retorno, a Cecil Taylor, e a uma memória e a um trecho esquecido de mim mesmo.

Pus o termo biografia entre aspas antes por querer ressaltar a anomalia, a peculiaridade do texto de Aira e o que representa de incômodo para as balizas tradicionais do gênero. Mas talvez não devesse, talvez fosse melhor compreender efetivamente o que Aira realizou como uma forma de biografia, uma alternativa à forma habitual da biografia. Exame cuidadoso da estranheza fundamental de Taylor, o livro é um empenho de fã e fruto de admiração que eu mesmo nunca consegui conquistar. Ouvir Cecil Taylor me enerva, me incomoda, é como um comichão em uma região do corpo que estou impedido de coçar, e só acredito alcançar aqui e ali, de maneira muito eventual, algum acolhimento. Sua música resulta para mim, em geral, como algo que almeja precisamente isso: flutuar em um espaço de particularidade absoluta, existindo porque sim, uma reverência do capricho à arte, uma dedicação da vida ao particular. Pouco afeito e incapaz de dar conta das exegeses de alta voltagem musicológica da crítica jazzística, encontrei no livro de Aira uma maneira de fazer um pacto com Cecil Taylor e, enquanto caminhava por uma rua de Flores naquela tarde, me lembrei das transações de Taylor com sua música narradas por Aira: do oceano de incompreensão e maus-tratos que sua arte pianística recebeu, da insistência tranquila com que Taylor reiterava seus gestos de incompatibilização, à vontade consigo mesmo e, malgrado tudo, continuando em sua particularidade absoluta.

A certa altura, voltando para casa no metrô numa madrugada, Taylor tem uma epifania, e seu entendimento é fruto não apenas de um sedimento de experiências, mas também da oscilação rítmica e do embalo próprio do vagão de metrô tardio, vazio:

Cuando volvía a su casa en el tren, el movimiento, el paso de las estaciones inmóviles produjo en él un estado propicio al pensamiento. Entonces advirtió que la lógica de todo asunto era perfectamente clara, y se preguntó por qué no lo había visto antes: en efecto, en esos relatos aleccionadores con pianos y violines siempre hay un músico al que al principio no aprecian y al final sí. Ahí estaba el error: en el paso del fracaso al triunfo, como si fueran el punto A y el punto B, unidos por una línea. En realidad el fracaso es infinito, porque es infinitamente divisible, cosa que no sucede con el éxito (AIRA, 2011aAIRA, César. Cecil Taylor. Buenos Aires: Mansalva, 2011a., p. 73-74).

Reescrevendo um paradoxo de Zenão, Taylor se liberta para se repetir, para continuar, para insistir sendo o que já era, nadando no oceano do fracasso. Zenão será reescrito por Aira ainda mais uma vez, em seu La vida nueva (2007aAIRA, César. La vida nueva. Buenos Aires: Mansalva, 2007a.), no qual narra sua relação com Hugo Achával, seu primeiro editor, o que veio a publicar o mítico Moreira (1975AIRA, César. Moreira. Buenos Aires: Achával Solo, 1975.), a inauguração de Aira como autor publicado em livro. Em sua biografia de Lamborghini, Strafacce (2008STRAFACCE, Ricardo. Osvaldo Lamborghini, una biografía. Buenos Aires: Mansalva, 2008.) dedica algumas páginas a descrever as idas e vindas que afligiram Aira com essa publicação anunciada e adiada várias vezes, e essa história é retomada, no romance de Aira, com o volume ligeiramente aumentado, o desenlace ligeiramente desviado. Agora, o que temos é a história da publicação, acompanhando os fatos narrados por Strafacce - mas é a história da publicação que não acontece, do adiamento que se multiplica, da flecha que nunca chega ao alvo e, assim, do autor que nunca é publicado, se convertendo por essa via em uma pessoa que nunca chega a ser autor. Uma vida especulativa, que nega a vida da qual se origina o que lemos. Um experimento levado a cabo não a partir de um método rigoroso e de uma aposta em resultados esperados, mas um risco jocoso, semelhante ao de “un niño que juega al químico y mezcla dos sustancias para ver qué pasa” (AIRA, 2008AIRA, César. César Aira. Un repaso a la literatura argentina. In: ALFIERI, Carlos. (Ed.) Conversaciones. Madrid: Katz, 2008. , p. 21).

O que estava acontecendo comigo naquela caminhada? Hoje me faço essa pergunta e a acolho sabendo que ela não é meramente retórica, constituindo o típico mistério com o qual posso me haver - ou, como diz Aira (2018AIRA, César. Evasión y otros ensayos. Buenos Aires: Literatura Random House, 2018., p. 46), trato aqui de “perseguir mis misterios, que no tenían nada de trascendentes. Misterios a mi medida”. Eu estava pela primeira vez na Argentina, era jovem, estava vivendo algo desejado há muito tempo. Um laboratório de substâncias nas quais ainda se entrevia sua pulsação de mistério, e muito pouco havia sido sedado pela cinza do ceticismo e pela secura pragmática do saber arraigado. Decidi de supetão usar meu tempo livre para tentar repetir o que Augusto de Campos havia logrado conseguir com Borges: decidi me encontrar com um autor, bater à sua porta, e esperava ser o depósito de algo de sua atenção, apostava na possibilidade de adentrar sua casa, quem sabe sua literatura, a literatura. Nessa caminhada, cumprindo os quarteirões entre o metrô e o número da rua, que já se aproximava, pensava nessas coisas e noutras mais, das quais não lembro, pois as misturas que fazemos em certos momentos da vida atendem mais aos caprichos de uma criança que busca a surpresa e o encantamento mais que a execução e o sucesso. Era o que aprendi com César Aira, era uma das mudanças de vida que atribuía ao fato de ter lido seus livros: uma certa alquimia no trato com o fracasso, abraçar a grande fortuna que me permitia estar ali, caminhando, em alguma medida despojado dos condicionamentos do apropriado, em direção a um gesto absurdo, acreditando na possibilidade de sucesso desse gesto, pouco ciente do que, efetivamente, significaria “sucesso” na situação, vivendo “en un nihilismo feliz” (AIRA, 2018AIRA, César. Evasión y otros ensayos. Buenos Aires: Literatura Random House, 2018., p. 30).

Poderia fracassar, é bem verdade, mas isso importava menos. Veja o que acontece em La vida nueva: fracassos são passados em revista, há o fracasso de Achával em publicar o livro, há o fracasso de Aira em ter seu livro publicado, há o fracasso de uma vida que poderia ter sido, é vista ao longe, mas não chega nunca, não foi. Nenhum ressentimento por não ter sido, e alguma ternura pelo que foi, de dentro do fracasso, visto como possibilidade, potência, esboço de uma forma de ser: essa é a atmosfera benevolente na qual Aira envolve seu depoimento sobre uma vida que ele não teve, a de um Aira que não escreve, não escreveu. Era como se atestasse “Escrevi, mas nada aconteceu. Não me fiz escritor”. Não houve carreira, ou vida literária, aquele Aira feneceu para que outro Aira pudesse florescer. Como uma espécie de Gato de Schrödinger literário, o livro que lemos foi escrito por um Aira que é e não é autor, que viveu e não viveu a vida em literatura que tinha me levado até ali, até aquele fim de tarde em Flores, no inverno, há muito tempo, buscando adentrar a literatura, encontrar um quarto de ferramentas que existe e não existe, e que está aqui quando enfim alcanço a porta de Aira e aperto a campainha, pronto para me anunciar.

Referências

  • AIRA, César. Evasión y otros ensayos Buenos Aires: Literatura Random House, 2018.
  • AIRA, César. Cecil Taylor Buenos Aires: Mansalva, 2011a.
  • AIRA, César. El náufrago Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2011b.
  • AIRA, César. César Aira. Un repaso a la literatura argentina. In: ALFIERI, Carlos. (Ed.) Conversaciones Madrid: Katz, 2008.
  • AIRA, César. La vida nueva Buenos Aires: Mansalva, 2007a.
  • AIRA, César. Pequeno manual de procedimentos Curitiba: Arte & Letra, 2007b.
  • AIRA, César. Cumpleaños Barcelona: Debolsillo/ Mondadori, 2001.
  • AIRA, César. Los mistérios de Rosário Buenos Aires: Emecé, 1994.
  • AIRA, César. Moreira Buenos Aires: Achával Solo, 1975.
  • ALFIERI, Carlos. (Ed.) Conversaciones Madrid: Katz, 2008.
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  • SAER, Juan José. La narración-objeto Buenos Aires: Seix Barral, 1999.
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  • SCHWARTZ, Jorge (Org.) Borges no Brasil São Paulo: Editora Unesp/ Imprensa Oficial do Estado, 2001.
  • STRAFACCE, Ricardo. Osvaldo Lamborghini, una biografía Buenos Aires: Mansalva, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2021
  • Aceito
    15 Ago 2021
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