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Apresentação do v. 22, n. 2, 2020, de Alea. Estudos Neolatinos

Presentation of v. 22, issue 2, of Alea. Estudos Neolatinos

Toda vez que assumimos a preparação de um número de tema livre, deparamo-nos com as mesmas perguntas: Como integrar o material recebido, tão heterogêneo, em um corpus harmônico, capaz de gerar uma boa proposta de debate e reflexão para os leitores? Como elaborar com esse conjunto de colaborações um atrativo sumário e partindo dele postular um caminho possível de leitura? Essa tarefa constitui sempre um desafio. Nessa oportunidade, recebemos textos dos mais variados âmbitos dos estudos neolatinos e dos estudos comparados. Artigos focados em temas e problemas das literaturas hispano-americana, espanhola, canadense, italiana, francesa, brasileira; textos voltados para a dimensão comparada ou de evidente inflexão teórica, âmbito no qual apareceram outras literaturas como horizonte de reflexão; trabalhos interessados na crônica, no romance, na poesia, no ensaio, ou atentos a outros suportes e práticas mediais.

Para articular esse vasto universo, imaginamos um percurso: os três primeiros artigos, que constituem um primeiro núcleo de reflexão, estão voltados para os estudos coloniais e pós-coloniais. O primeiro texto se debruça sobre as singularidades da crítica pós-colonial no Brasil. Partindo da necessidade de provincianizar os estudos pós-coloniais, isto é, compreender as reflexões críticas sobre os efeitos do colonialismo, em suas diferentes configurações históricas e políticas, como um arquivo de saberes pós-coloniais, o texto propõe uma estruturação singularizada do pós-colonial nos estudos brasileiros, buscando preservar as particularidades do desenvolvimento histórico e social do país na hora da crítica situar seus debates. O segundo texto se aprofunda nas cartas de Manuel de Nóbrega, achando nesses documentos verdadeiros deslocamentos nos modos de dizer do arquivo colonial, formas que chegaram a transformar a planificação mesma das práticas evangelizadoras europeias. E o terceiro coloca frente a frente a Teologia da Libertação e a Teologia da Dominação, focando o olhar no pensamento teológico-imperial de Juan Ginés de Sepúlveda, autêntico precursor de uma Teologia da Dominação americana.

Esse percurso que desenhamos como guia possível de leitura tem continuidade em outros três textos, estes centrados no tema da recepção. O primeiro, focado na recepção crítica da obra do grande poeta espanhol Antonio Gamoneda, introduz um importante debate crítico e historiográfico na literatura espanhola, ao mostrar como a circulação da obra gamonediana incidiu e modificou as tensões estéticas que dominavam o campo literário espanhol da pós-guerra. O segundo, atento à recepção crítica da obra de Machado de Assis, confronta posições estéticas e ideológicas bem diferenciadas à hora de pensar a dialética do universal/nacional na obra do mestre brasileiro, alicerçando seu estudo na crítica de Roberto Schwarz a Memórias póstumas de Brás Cubas. E o terceiro levanta uma discussão sobre a recepção de Dante Alighieri na Itália de inícios do século XVIII, partindo das considerações de Ludovico Muratori sobre a obra de Dante em seu tratado Della perfetta poesia italiana, publicado em 1706.

O terceiro núcleo de textos que integram esse percurso de leitura articula-se em torno à dimensão comparatista. O primeiro artigo desse conjunto recupera a conhecida imagem de Roberto Arlt, morto, sendo retirado pela janela de um quarto de um prédio pobre de Buenos Aires, a elaboração dessa cena por Piglia e a singular leitura que Bolaño faz dessa imagem de Piglia, ao ponto de ver neste o São Paulo de Arlt, o fundador de sua igreja. O texto executa uma original hermenêutica dessas imagens e dessas figuras, assim como dos efeitos que elas produzem na disseminação de uma obra. O segundo texto estuda os romances Cidade de Deus (1997LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.), de Paulo Lins e Trilogia sucia da Havana (1998GUTIERREZ, Pedro Juan. Trilogía sucia de La Habana. Barcelona: Anagrama, 1998.), de Pedro Juan Gutierrez, no âmbito das novas formas do realismo que se impõem no panorama literário latino-americano a partir dos anos noventa do século XX, com a proposta de lê-los como ato democrático de identificação com sujeitos historicamente marginalizados e como reconhecimento de um novo sujeito político que nasce com a crise dos grandes projetos utópicos do século XX. Na sequência, o terceiro texto propõe estudar dois universos discursivos produzidos nos anos sessenta em duas regiões muito diferentes culturalmente (Canadá e Brasil), mas que se integram a uma mesma prática deconstrutora de matrizes colonialistas, La fille de Christophe Colomb (1969DUCHARME, Réjean. La fille de Christophe Colomb. Paris: Gallimard, 1969.) do escritor canadense Réjean Ducharme e os textos do disco Tropicália ou Panis et Circencis (1968GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano et al. Tropicália ou Panis et Circencis. São Paulo: Philips, 1968. Companhia Brasileira de Discos CGC nº 33.177.411/3 / R 765.040 [LP]) do compositor brasileiro Gilberto Gil. E o último texto desse núcleo faz uma exploração das utopias letradas transmitidas ao longo de século XVI e inícios do XVII, enfocando um elemento específico das elucubrações humanistas: a ficção de encontros utópicos entre os mundos antigo e novo na Utopia de Thomas Morus, em A Tempestade de Shakespeare e nos Ensaios de Michel de Montaigne.

Já um quarto movimento de leitura reúne textos que, de diversas maneiras, privilegiam a imagem visual, a performatividade ou que articulam a dimensão comparada ao estudo da literatura e seus vínculos com outras artes e outras práticas mediais. Os dois primeiros textos têm o cinema como foco: um analisa narrativas contemporâneas em que o cinema está presente sob a forma de referência intermidiática, interessando-se por obras como Onde andará Dulce Veiga? (1990ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga? Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Saraiva, 2012.), do brasileiro Caio Fernando Abreu, e Short Movies (2015TAVARES, Gonçalo M. Short Movies. Porto Alegre; São Paulo: Dublinense, 2015.), do português Gonçalo M. Tavares; e o outro faz um balanço do cinema independente no período da construção da democracia no Brasil entre 1985 e 2016, localizando produções nas que emergem identidades tradicionalmente escamoteadas no cinema nacional. Na sequência, outros dois textos interessam-se pela poesia visual de Augusto de Campos e pelas experiências performáticas de Yoko Ono: um artigo está focado nas relações poesia/fotografia/montagem cinematográfica, colocando oútis (o texto que abre o livroNão de Augusto de Campos) como centro da reflexão; e o outro indaga nas potencialidades de uma prática performática como experiência crítica do pensamento, mostrando como a performance/drama é uma experiência textual capaz de inserir um espaço político no teatro. Já o quinto trabalho desse núcleo está focado nas relações da arte com a cultura de massas nos anos setenta, analisando as Cosmococas de Hélio Oiticica e Neville D'Almeida, e a revista Navilouca, no que tange às relações com o resíduo. A partir da distinção desses dois modos possíveis de relação com o lixo, apresenta-se o conceito de “aparelhos residuais”, que é definido como uma modalidade de vínculo através do qual a arte experimental produziu a incorporação dos restos da cultura de massa.

Esse percurso de leitura aqui proposto conclui com um estudo sobre a obra de Paul Celan. As imagens do corpo em ruínas, a presença de uma voz poética advinda da própria morte, o embate entre línguas, o movimento de contração que a poesia de Celan experimenta, tornando-se cada vez mais fragmentária, mais silenciosa, são algumas das chaves que o autor do texto propõe para fundamentar sua ideia da negatividade como concepção delineadora de uma poética. Esse texto fecha a seção de Artigos.

Na seção de Tradução incluímos a tradução ao português de um conto do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos. Os direitos de tradução do texto, originalmente publicado em espanhol, foram gentilmente cedidos pelo escritor para Alea, pelo que lhe externamos nosso agradecimento. Também agradecemos ao tradutor, que mediou em favor da nossa revista com o escritor, fez a tradução e ainda acompanhou seu trabalho com uma breve apresentação. Villalobos é conhecido pelo leitor brasileiro através das edições de Companhia das Letras dos romances Festa no covil (2010), Se vivêssemos num lugar normal (2012), Te vendo um cachorro (2015) e Ninguém precisa acreditar em mim (2016). Entregamos nessa oportunidade aos leitores um conto de 2017VILLALOBOS, Juan Pablo. Memoria fantasma. Revista de la Universidad de México, n. 159, 2017..

A seção de Resenhas fecha o número com três convites de leitura: as cartas de Antoine Berman1 1 Cartas para Fouad El-Etr (2018). para Fouad El-Etr, em tradução da pesquisadora Simone Petry para Zazie Edições; a leitura de José Miguel Wisnik2 2 Maquinação do mundo - Drummond e a mineração (2018). da poesia de Drummond de Andrade, com a interpretação de uma das mais potentes composições poéticas do mestre mineiro, “A máquina do mundo”; e uma coletânea de ensaios de crítica feminista que assina Rita Terezinha Schmidt3 3 Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminista (2017). , Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande de Sul.

Como já é tradicional nas páginas da Alea, colaboraram no número professores e pesquisadores de diversas universidades brasileiras e estrangeiras: Universidade Federal de Pernambuco, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Estadual Paulista, Universidade de São Paulo, Universidade Federal de Ouro Preto, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal de Santa Maria, Universidad de Buenos Aires (Argentina), École Normale Supérieure de Lyon (França) e Universidad de Barcelona (Espanha). Chegue a todos o nosso agradecimento.

A nossos leitores, mais uma vez, desejamos-lhes uma boa e produtiva leitura.

Referências

  • ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga? Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Saraiva, 2012.
  • BERMAN, Antoine. Cartas para Fouad El-Etr Tradução de Simone Petry. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.
  • DUCHARME, Réjean. La fille de Christophe Colomb Paris: Gallimard, 1969.
  • GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano et al Tropicália ou Panis et Circencis São Paulo: Philips, 1968. Companhia Brasileira de Discos CGC nº 33.177.411/3 / R 765.040 [LP]
  • GUTIERREZ, Pedro Juan. Trilogía sucia de La Habana Barcelona: Anagrama, 1998.
  • LINS, Paulo. Cidade de Deus São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
  • SCHMIDT, Rita Terezinha. Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminista Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017.
  • TAVARES, Gonçalo M. Short Movies Porto Alegre; São Paulo: Dublinense, 2015.
  • VILLALOBOS, Juan Pablo. Memoria fantasma. Revista de la Universidad de México, n. 159, 2017.
  • WISNIK, José Miguel. Maquinação do mundo - Drummond e a mineração São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • 1
    Cartas para Fouad El-Etr (2018BERMAN, Antoine. Cartas para Fouad El-Etr. Tradução de Simone Petry. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.).
  • 2
    Maquinação do mundo - Drummond e a mineração (2018WISNIK, José Miguel. Maquinação do mundo - Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.).
  • 3
    Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminista (2017SCHMIDT, Rita Terezinha. Descentramentos/convergências: ensaios de crítica feminista. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020
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