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2 x Lugones com Sade

2 x Lugones with Sade

Resumo

O objetivo deste texto é registrar e desdobrar uma singular reincidência na obra de César Aira, a dupla aparição do espectro do escritor Leopoldo Lugones (1874-1938), suplementado em ambas as ocasiões pelo Marquês de Sade. Trata-se de duas abordagens absolutamente distintas do autor de Lunario sentimental e La guerra gaucha, feitas por Aira em 1985 e 1990: a primeira - breve, biográfica, destrutiva - no Diccionario de autores latinoamericanos; a segunda - longa, patética e divertida - em Lugones, ficção em torno do escritor argentino no dia de seu suicídio. Ambas são concluídas com referências a Sade em semelhante e diferente repetição, capaz de fundir vida e obra, experiência e ficção, de modo sarcástico e violento.

Palavras-chave:
Lugones; Sade; César Aira; Diccionario de autores latinoamericanos

Abstract

The aim of this paper is to record and unravel a singular recurrence within César Aira’s work; namely the double appearance of the specter of writer Leopoldo Lugones (1874-1938), supplemented in both occasions by Marquis de Sade. Aira took two completely different approaches to these appearances by the author ofLunario sentimentalandLa guerra gaucha: the first one, in Diccionario de autores latinoamericanos in 1985, was brief, biographical, destructive; the second one, inLugones in 1990, was lengthy, pathetic and amusing, a fictional account of the Argentinian writer on the day of his suicide. Both appearances conclude by referencing the Marquis of Sade in a similar yet different iteration that fuses life and work, experience and fiction in a sarcastic and violent manner.

Keywords:
Lugones; Sade; César Aira; Diccionario de autores latinoamericanos

Resumen

El objetivo de este texto es registrar y desarrollar una singular reincidencia en la obra de César Aira, la doble aparición del espectro del escritor Leopoldo Lugones (1874-1938), suplementado en ambas ocasiones por el Marqués de Sade. Son dos abordajes completamente distintos del autor de Lunario sentimental y La guerra gaucha, hechas por Aira en el 1985 y el 1990: la primera -breve, biográfica, destructiva- en el Diccionario de autores latinoamericanos; la segunda -larga, patética y divertida - en Lugones, ficción en torno del escritor argentino en el día de su suicidio. Ambas concluyen con referencias a Sade en una similar y diferente repetición en que se funden vida y obra, experiencia y ficción de modo sarcástico y violento.

Palabras clave:
Lugones; Sade; César Aira; Diccionario de autores latinoamericanos

Duas vezes se apela aos personagens do título deste texto nas escrituras de César Aira, num dicionário e numa novelita - o Diccionario de autores latinoamericanos (1985, 2001AIRA, César. Diccionario de autores latinoamericanos. Buenos Aires: Emecé, 2001. p. 328-330.) e Lugones (1990, 2020AIRA, César. Lugones. Buenos Aires: Blatt & Ríos, 2020 (e-book).). Duas vezes estes monstros da tradição literária e paraliterária - uma central, europeia, outra periférica, americana - se cruzam em Aira; no primeiro caso, o do verbete, em viés biográfico, mas crítico, dadas as peculiaridades do dicionário em questão; no segundo, o da ficção, em pleno gozo da “extravagante irisação do pensamento”1 1 Formulação extraída de “El hornero”, de César Aira, em Relatos reunidos, 2013. da prosa de Aira; em ambos os casos (um sintético, outro extenso), com mergulhos na figura “retumbante e controvertida”2 2 Os adjetivos são devidos a Miguel Dalmaroni no início do prefácio à edição brasileira, que reúne Contos fatais e As forças estranhas. de Lugones e menções finais ao Marquês de Sade. Por que Lugones e Sade na mesma mesa de dissecção? Trata-se, na verdade, da dissecção impiedosa de vida-e-obra de Leopoldo Lugones na mesa do Dr. Aira3 3 Para lembrar Las curas milagrosas del Dr. Aira (1998). sob a sanha do Marquês de Sade. Percorrer o verbete de 1985 e a novelita de 1990 - ambos contendo um único parágrafo4 4 Com duas colunas por página no Diccionario, o verbete começa no final da p. 328 e termina no início da p. 330; já a novelita conta com um único parágrafo de 98 páginas em e-book. Utilizo, no entanto, neste trabalho, a tradução brasileira de minha autoria (inédita), contando 82 páginas. -, deve nos aproximar de alguns indícios da “euforia selvagem” dessa ficção de Aira, em que se confundem documento e monumento, comédia e tragédia, alto e baixo, modernidade e fascismo. Com o detalhe de que o termo “Sade” também tem duplo sentido, um propriamente “sádico” e outro significativamente institucional, como se verá.

O verbete

(...) nossas ideias são também espíritos, espíritos que aspiram a realizar, como os astros no céu e as flores sobre a Terra, não a sombria struggle for life da ciência, mas a divina struggle for light dos seres superiores... L. Lugones (2009LUGONES, Leopoldo. Contos fatais. As forças estranhas. Trad. André de Oliveira Lima e Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Globo, 2009., p. 192), “Ensaio de uma cosmogonia em dez lições”

É, de fato, o dedicado a Lugones um dos verbetes mais carregados de juízos sobre a obra de um escritor, revelando um feroz apetite crítico, inexistente desse modo nas centenas de biografemas do Diccionario em suas 634 páginas. Postado entre um escritor cubano, El Lugareño, e um brasileiro, Luís Pedro (ambos do século XIX), o verbete informa que ele nasceu “en 1874 en Villa María del Río Seco, Córdoba” e que nesta província iniciou sua intensa atividade jornalística, “muy joven” (AIRA, 2001AIRA, César. Diccionario de autores latinoamericanos. Buenos Aires: Emecé, 2001. p. 328-330., p. 328). A voz que escapa do verbete logo se posiciona em relação a seu objeto ao informar que Lugones publica, em 1904, uma “memória” sobre El imperio jesuítico, resultando em “uno de los pocos libros de Lugones todavía hoy medianamente legible” (p. 329)5 5 Citações seguintes sempre à p. 329. . A partir daí, os juízos de valor do verbete tornam-se cada vez mais críticos: “La guerra gaucha (1905) es un volumen de relatos que constituyen vago pretexto para una cuantiosa acumulación léxica; la insensibilidad literaria de Lugones se manifiesta, definitiva e irremediable, en este libro.” Em 1906, publica o volume de contos Las fuerzas estrañas “en el gusto”, diz a voz, “muy modernista, de lo esotérico y lo fantasmagórico”. Surge, então, a referência a seu Lunario sentimental (1906), cuja definição, tão lapidar quanto inclemente, diz se tratar de uma “imposible traducción quevediana de Laforgue”.

Verbete-monumento em tom de epitáfio, repassa as publicações do tempo do centenário da independência, em 1910, a cujos festejos contribui com intensidade, inclusive com a proposta da construção de um “Templo de la Patria”, “idea que repetiría mucho después, incluso en los detalles arquitectónicos, el ministro peronista López Rega (teósofo aficionado como Lugones)”6 6 López Rega foi um político peronista de vertente fascista, perseguidor implacável da guerrilha montonera, que foi comissário geral da polícia federal (como antes Lugones filho) e ministro do Bem-Estar (!) do governo de Isabel Perón, destituído em 1975, na antevéspera do golpe militar de 1977, e preso em 1986 até sua morte três anos depois. . De livro em livro, a voz sempre encontra um adjetivo negativo para designar, por exemplo, sua “aventurada [quer dizer, arriscada] interpretación de los mitos griegos” em Las limaduras de Hephaestos (1910), ou sua Historia de Sarmiento (1911), visto como um “libro gracianesco, lleno de frases tonantes desprovistas casi por entero de significado”. Nessa década de 10, faz viagens à Europa como correspondente e “colaborador regular do jornal La Nación, decisivo para a repercussão de sua figura” (DALMARONI, 2009DALMARONI, Miguel. “Prefácio”. In: LUGONES, L. As forças estranhas. Contos fatais. São Paulo: Globo, 2009. p. 7-19., p. 9).

Com densos livros de poesia, conferências e também doutrinários, “cierra la etapa abierta en su juventud socialista y anarquista; en la década de 1920 su postura política pasa a un conservantismo militante que desemboca en el fascismo”. A voz destrutiva do verbete ressurge ao listar novas antologias de poesia nas décadas de 20 e 30: “Su último intento poético, los Romances de Río Seco (1938) fue, como tantas otras cosas en Lugones, un fatal error”. Refere-se aos Cuentos fatales (1924) como “una desmayada revisión de la temática de Las fuerzas extrañas, ahora con más aroma a revista ilustrada”, e ao seu único romance, El ángel de la sombra (1926), que “nunca se reeditó”. Publica livros de todo tipo, de divulgação científica e de variedades eruditas, e encerra a carreira na década de 30 com “algunos desvaríos políticos” (e vão mais quatro títulos patrioteiros). Vale notar, a propósito, que nas duas últimas décadas de vida Lugones inicia “sua estrepitosa carreira de ideólogo do golpismo militar” (DALMARONI, 2009DALMARONI, Miguel. “Prefácio”. In: LUGONES, L. As forças estranhas. Contos fatais. São Paulo: Globo, 2009. p. 7-19., p. 19), tendo declarado, já em 1924, “la hora de la espada”, ou seja, sua adesão entusiástica ao fascismo.

As últimas dez linhas do verbete - com sua voz insatisfeita com o estado de dicionário - invadirão, pouco mais tarde, as páginas da novelita Lugones, que Aira escreve e engaveta em 1990:

Sus últimos años fueron melancólicos entre otras cosas por un romance que tuvo con una adolescente, contrariado por la oposición de su único hijo que era el jefe de la Policía de Buenos Aires. Por encargo oficial, inició una biografía de Roca, que dejó inconclusa al suicidarse en 1938. Sus disposiciones testamentarias repiten las del Marqués de Sade (AIRA, 2001AIRA, César. Diccionario de autores latinoamericanos. Buenos Aires: Emecé, 2001. p. 328-330., p. 329-330).

Com o advento da morte de Lugones, começa a narrativa de Aira. Com a(s) referência(s) a Sade, ela se conclui.

A novelita

O certo é - para que se demorar em coisas tristes? - que numa dessas manhãs encontramos nosso amigo morto, com a cabeça recostada no respaldo da sua cadeira. L. Lugones (1992, p. 35), “A força ômega”

Em entrevista a Alan Pauls7 7 Com o título de “Mucho Aira”, a entrevista realizada por e-mail, durante 2020, foi publicada em maio de 2021, na revista Lengua, no site de Penguin Libros: https://www.penguinlibros.com/es/lengua/entrevistas/entrevista-Cesar-Aira-Alan-Pauls , Aira tenta entender por que não publicou a novelita após escrevê-la, ao mesmo tempo em que manifesta maior apreço pelo que produziu em torno de 1990, antes e depois, incluindo Lugones e vários relatos fundamentais em que formatou suas novelitas de cem páginas, um pouco mais ou menos. É o caso de Lugones, cujo tom é o da “euforia selvagem” antes mencionada, com base na mesma entrevista:

Creo que tiene esa euforia salvaje de escritura que yo tenía antes, y que ha quedado enterrada bajo capas sucesivas de desencantos y desánimos. No sé por qué no la publiqué en su momento. Puede ser que porque hubo una época, que quizás fue esa, en que aparecieron muchas novelas ficcionalizando personajes históricos, o sus parientes, el primo de Hitler, la tía de Verlaine, cosas así, y no quise participar (AIRA, 2021AIRA, César. Lugones. Trad. autor (2021), inédita.).

Alan Pauls, que pertence à geração imediatamente posterior à de Aira na literatura argentina, o questiona sobre a linguagem obscena e desbocada da narrativa, justo num escritor - segundo Pauls - “antes sóbrio”. Aqui vale a pena transcrever sua resposta completa, já que propõe mais algumas hipóteses, temperadas com o costumeiro sarcasmo, para o fato de ter ficado engavetada por trinta anos, além de manifestar sua ojeriza pela moda da ficcionalização de personagens históricos da época, acima manifestada:

Sí, quizás eso [a obscenidade] también contribuyó a que no la publicara en su momento. Ese lenguaje chabacano era, y sigue siendo, el más común en la narrativa argentina. Ahora me pregunto por qué tengo ese prurito de no hacer lo que hacen los demás. Si estaba de moda escribir sobre la tía de Verlaine, ¿por qué yo no lo hice? Si todos escribían con palabrotas y sexo, ¿por qué yo no? Y mi negativa era tan fuerte que sacrificaba dejándola inédita, una novela que seguramente me había llevado unos buenos meses de trabajo. No podía ignorar, no era tan ciego, que si seguía la corriente y escribía como los demás mis libros se iban a vender más y yo iba a ganar más y ser más feliz. Además, podía hacerlo, con esteLugonesme lo había probado. Pero seguí en la mía. Creo que cuando uno se hace una idea personal de la literatura es inevitable que termine saboteando su carrera. Sería preferible no hacerse ninguna idea, ¿no? (AIRA, 2021AIRA, César. Lugones. Trad. autor (2021), inédita.).

Arrematando a resposta em nome da literatura como “enunciação coletiva” (à maneira deleuziana) contra uma “ideia pessoal” dela, após ter sugerido matreiramente que só o que interessa é o dinheiro, Aira prefere voltar à sobriedade que supostamente caracterizaria suas escrituras - ainda que se esmere em ébrias obscenidades em diferentes lugares, como em Dante y Reina (1996) e El santo (2015). Neste último, aliás, Aira encara deliberadamente o que, para uns, é erotismo e, para outros, mera pornografia. Ao contrário, porém, do que afirma na entrevista, a linguagem chabacana, chula, baixa, se apresenta e se desdobra de outro modo, não tendo nada a ver com qualquer ficcionalização convencional de personagens históricos: o emprego dessa linguagem na novelita tem antes a precisa função de se contrapor frontalmente ao empolamento e à solenidade representadas pela figura de Leopoldo Lugones, tanto na vida como na obra, profundamente mescladas no relato. Como indicado acima, trata-se do último dia de vida de Lugones, que realmente se suicida num hotel de uma ilha do Delta do Tigre, no dia 18 de fevereiro de 1938, aos 63 anos de idade. Neste preciso dia, é literalmente disparada a narrativa (inclusive ao se iniciar com um disparo de revólver), que oferecerá, entre outros assombros, uma sobrevida ao tão célebre quanto sinistro protagonista.

Além de policialesco (há referências explícitas ao gênero; há o filho policial do protagonista), o Lugones de Aira igualmente chama a atenção pelo dispositivo narrativo revelado no final do texto, em que a primeira pessoa é atribuída a um pequeno réptil. Trata-se, nada mais nada menos, do que um jacaré, que é Aira, e que serve a Aira primeiro para pintar - com o seu couro como paleta de cores de um paisagista japonês - e, segundo, para falar: é o próprio animal quem conta e quem escreve a estória, tendo apenas aprendido a escrever, graças aos ensinamentos do mestre-protagonista e à inteligência do aprendiz. Apesar do advento do jacaré, Lugones apresenta uma trama linear, uniformemente rocambolesca, embora as frases, como de costume, transbordem de ideias e fulgurações, com o característico modo airiano de mesclar ensaio e ficção. Como observou Reinaldo Laddaga, sua literatura aspira à condição de arte contemporânea, vale dizer, à condição da improvisação, do instantâneo e do mutante. E, de fato, ela se torna “arte contemporânea” ao enunciar-se como a emissão de um espetáculo “donde un artista realiza sus números” (LADDAGA, 2007LADDAGA, Reinaldo. Espectáculos de realidad. Rosario: Beatriz Viterbo, 2007., p. 10) e experimentando com procedimentos, como o do jacaré escritor. Nesse caso, com base na vida e na morte de outro escritor, sendo ele ninguém menos que Leopoldo Lugones. Levado a cabo por um borgiano-lamborghiniano, o resgate de Lugones só poderia se dar como sátira e por contraste radical, estando este no extremo oposto do que aqueles postulariam como artistas. Aira, no entanto, o ressuscita - ainda que no dia da morte - e o transforma.

Mas quem, afinal, escreve Lugones? Se em Cómo me hice monja (1993) foi “la niña César Aira”, aqui o escritor é um certo animal em miniatura: um jacaré, um pequeno monstro, o próprio “niño César Aira”. O truque aparece no final da narrativa e é uma espécie de recomeço improvisado “sobre la marcha”. Temos, então, o relato em cujo início se lê: “Numa tarde do final do verão passado chegou em nossa ilha...” e temos sua retomada nas páginas finais com a mesmíssima frase, citada, entre aspas, pelo jacaré, seguida da pergunta “Está bom, não acha?” (AIRA, 2021AIRA, César. Lugones. Trad. autor (2021), inédita., p. 75)8 8 A partir desta citação, menciono apenas os números de páginas de minha tradução do texto. . O início é reproduzido literalmente, salvo o termo “passado”, o que faz do relato um peculiar palimpsesto. Segundo declara o jacaré, a narrativa (da narrativa) pretende ser uma “homenagem” a Lugones, que este reluta fortemente em aceitar. Mas, já familiarizado com o interlocutor, e despeitado, o jacaré pede silêncio para continuar, enquanto segue inventando, isto é, escrevendo e reescrevendo a mesmíssima estória.

A passagem poderia ser vista como a própria “cena da escritura” do “niño César Aira” em seu escritório de Pringles ou de Flores, escrevendo, como sempre, “sem vacilações”:

O jacaré escrevia como um escolar aplicado e em menos de cinco minutos preencheu a primeira página com sua letra redonda e laboriosa, sem deixar margens em nenhum dos quatro lados do papel; virou a folha e continuou do outro lado. Pelo visto, não resumia. Estavam nisso, um escrevendo sem vacilações, sem buscar uma palavra ou um giro, um verdadeiro ditado mental (p. 75).

Um verdadeiro ditado mental, aquilo mesmo que a fada obscena da literatura despejaria - ou dispararia - sobre o corpo do escritor, sobre sua mão direita, gozosa, masturbatória, sem parar. Digamos que Aira, fiel a Duchamp, leia o já-pronto e, sem ruminar, o ponha para fora: uma espécie de processo antropofágico ao contrário e a toda velocidade, em que os alimentos entram pelo rabo - como o pato de borracha que entra pelas nádegas de Lugones - e saem pela boca em formas mutantes, em vários tons, adaptáveis às circunstâncias, conforme o procedimento utilizado a cada relato. Em Lugones é um narrador de carne-e-osso, meio bicho, meio gente, que está ali suando e narrando (como, ainda jovem, suou com Ema)9 9 Suou mas só um pouco: na contracapa de seu primeiro livro publicado, Ema la cautiva (1981), Aira escreve que: “Abjuré del Ser: me volví Sei Shonagon, Sherezada, más los animales. Durante varias semanas me distraje. Sudé un poco. Me reí. Y al terminar resultó que Ema, mi pequeña yo mismo, había creado una pasión nueva, por la que pueden cambiarse todas las otras como el dinero se cambia por todas las cosas: la Indiferencia. ¿Qué más pedir?” (citado no prólogo de Sandra Contreras à reedição de 2011). , mas precisamente por isso também não o é: trata-se do procedimento, ou do experimento com o procedimento, em Lugones, através de um dispositivo que produz cores e depois nomes, palavras, através do devir-escritor de um jacaré de madeira, um autômato em miniatura de um pintor de paisagens japonês, a fornecer a matéria-prima da pintura.10 10 A engenhoca de madeira animada remete a outros autômatos de Aira - de El cerebro musical a El santo -, assim como a ilha do Delta de Lugones remete ao “cinema transcendental” de La invención de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares, sem a solenidade fantástica deste que o próprio Lugones também explorou.

Teatro grand-guignolesco do fim do novo mundo, o primeiro ato encena a chegada de uma lancha ao cais da ilha e do hotel (então realmente existente) El Tropezón. Um tropeção é justamente o que dispara o relato, posto em ação por um narrador onisciente através de uma queda que não se deu e de um tiro de revólver que, sim, se deu, por causa do tropeço. Toda uma cena plástica e sonora, em que um chute para frente dado pelo protagonista - aprendido na prática da esgrima - o salva de cair na água e, ao mesmo tempo, provoca o disparo acidental. O grupo que o recebe assiste a essa primeira cena boquiaberta - como Lugones, mais tarde, vendo o jacaré-Aira escrever: de imediato, se colocam em choque os universos opostos da glória das letras nacionais, naquele momento incógnito, e a família vulgar que habita a ilha. Seus costumes e sua linguagem se mostrarão opostos até o final, mas pouco a pouco vão se encontrar e até mesmo se coadunar. Eis a sardônica homenagem de Aira a seu personagem, arrematando o que antecipara no verbete do Diccionario, cuja voz, que já se anunciava monstruosa, se realiza plenamente no relato.

Se o pintor japonês se revelará um disfarce no meio da narrativa, Lugones não o é menos, à sua maneira, desde o início. Diante das circunstâncias - o tropeção e o tiro acidental que atinge as nádegas da dona do hotel, mais o desejo de permanecer incógnito -, ele se apresenta como o médico que não é, um certo Doutor Ferraguto, “o cirurgião mais prestigiado de Buenos Aires” (p. 7), homônimo de um personagem de Rayuela (1963), de Julio Cortázar. Dado que em Aira tudo é hiperbólico, não basta homenagear Lugones, é preciso ao mesmo tempo “homenagear” Cortázar, relacionando malandramente um ao outro11 11 Vale notar que, no verbete do Diccionario de autores latinoamericanos, dedicado a Cortázar, Aira é muito mais condescendente do que em outras manifestações sobre o autor de O jogo da amarelinha. . Trata-se, com esse disfarce inicial de médico, de levar “a comédia ainda mais longe” (p. 7), como se diz e se faz, cada vez mais radicalmente, no texto: Lugones tira do bolso os óculos fundo-de-garrafa, os quais deixam tudo “claro”, resultando na perspectiva distorcida ou nebulosa que o protagonista manterá até o fim do relato. A cena seguinte é a do deslocamento da mulher ferida até o prédio do hotel: ela pesa “toneladas” e ostenta uma “rosa vermelha”, de sangue, sob as nádegas, precisamente, a ferida deixada pelo tiro de raspão. Lugones se regozija, então, por ter inventado uma identidade fictícia diante do grupo formado por Marisol, filha da dona, seu Lucho (o zelador) e a dita “viúva” Luisa González, vítima do disparo. A linguagem intercala o chulo e o formal e o tom é de burla constante, de chistes “malos” sobretudo.

Pouco a pouco, vão aparecendo as demais personagens: primeiro é apresentada a braço-direito da viúva, Elvira, com quem Lugones-Ferraguto vai lidar com dificuldade em torno de um pedido de água quente para tratar a mulher ferida. Esta, a dona do hotel, fará o contraponto central do relato com Lugones, seguida pelas demais personagens femininas. Ele não tem bagagem, veio para morrer, e quase provoca uma morte ao desembarcar; elas querem devorá-lo vivo e sem demora, enquanto ele busca manter as devidas e solenes distâncias. Conversas se cruzam na novelita, entre pontos e vírgulas, sem qualquer marca do tipo aspas ou travessão: as falas entram e saem das bocas mais ou menos sujas, conforme as circunstâncias. Na décima página de Lugones surge a primeira referência ao gênero policial, quando ele lembra da bala disparada e disparadora: onde terá ido parar? Ela voltará no relato, ou melhor, continuará passando ininterruptamente, perdida, achada, já que os tempos e planos se superpõem e a novelita recomeça no final. Nada a ver, porém, com o oroboro ou o “escorpião encalacrado”: o relato é, antes, plano, como o jacaré, como uma folha em branco, pronta para ser preenchida a tinta, que se duplicará. Plano também como a tela do pintor japonês e, simultaneamente, multidimensional, um cubo, um proscênio, um palco para Lugones - “glória das letras nacionais e pai do chefe de polícia”, conforme o Diccionario. Disparos escritos superpostos: a bala segue seu percurso páginas afora, até o fim, quando retorna; os crimes vão se sucedendo aos poucos e até a nota policial explícita surge quando se menos espera, com menção a Ellery Queen: um distinto turista e uma cozinheira manifestam em discurso direto o mesmo entusiasmo pelo autor policial (também ele falso, um pseudônimo).

A aproximação improvável com Luisa se dá inexoravelmente, contra tudo e contra todos, a começar por Lugones. O quarto escada acima, sem número na porta, é o “nove”. Elvira, no interior do quarto, o convida sem mais para trepar. Diante do silêncio de pedra dele, ela manifesta temor por seus “olhos de louco”: pode ser um estrangulador à solta. Na atroz realidade, porém, ele se provaria um estrangulador de si mesmo. Da sua indiferença na estória, assomam teorias da distância e da etiqueta, em forma de “simultaneidades desconcertantes [que] foram atribuídas por ele a uma velocidade que parecia reinar na ilha, uma velocidade muito alta decerto” (p. 12). A própria chegada de Lugones é vista como uma “nova aceleração” (p. 13). Sagaz, a viúva sabe desde sempre que se trata de um falso médico. Lugones, por outro lado, tem um leitor de sua obra em outro personagem-chave, Pedro Gálmez, o contador-pensador, ao mesmo tempo aliado e inimigo da viúva: “Gálmez era inteligente e ela queria vê-lo morto” (p. 12). Falsa viúva ela também, como se verá, não bastava ser sagaz, era preciso ser igualmente sádica. Lugones ainda reserva lugar para outra “homenagem” e outro disfarce, o de “Horacio Quiroga”. Este abre a porta de seu quarto e interpela a viúva sobre o disparo de uma bala, ficando sem resposta: é o jacaré-Aira semeando rastros aqui e ali.

Tendo invadido o quarto de Lugones, a viúva Luisa e a filha Marisol não o encontram e concluem, sem papas na língua, que “tinha ido cagar mesmo” (p. 15). Lugones ressurge, preocupado com o desaparecimento de sua arma, e a viúva quer absorver o que puder da celebridade incógnita em sua ilha: ele responde de má vontade, contra si mesmo, e vai se deixando levar pelo “vigor errático” da mulher. É quando Luisa arranca-lhe o disfarce de doutor: “Chega de farsa. Você não é médico. Você é Leopoldo Lugones, o autor de La guerra gaucha. Tenho lhe visto muito na Caras y Caretas” (p. 17). Esquecido de que mantém postos os óculos, ele se volta para a janela, chamado pela viúva (pois tudo ocorre como que simultaneamente), surpresa com a visão de três corpos em movimento, os petulantes do “sete” (que ajudarão “Horacio Quiroga” em sua fuga, como se verá) e “a polaca”, antes de sua transformação em sereia e entidade do Delta. Nesta cena, a viúva disfarçada não hesita em dizer a Lugones: “Temos que manter a decência a qualquer custo” (p. 18).

Durante o banho que o protagonista é levado a tomar, cruzam-se algumas cenas externas enquanto ele reflete sobre tudo e nada na tina de madeira. Os “petulantes” também o veem pela janela, sem reconhecê-lo, através de uma gota de cristal, “como uma obrinha de Méliès” (p. 19). No quarto “sete”, em que estão com a prostituta polaca, ela se encontra desmaiada e ensanguentada na cama: sexo e violência. Já Lugones, pensativo na banheira, se diz: “Que coisa escorregadia é a inteligência! Que conceito acomodado!” (p. 20). Com um patinho de borracha à mão, pensa sobre a viúva, pergunta-se se é inteligente ou não e admite que sua velocidade o aniquila: tratava-se de uma experiência “daquelas para repensar tudo”. Precisamente, a novelita Lugones é a colocação em marcha, em alta velocidade, entre o barulho e o silêncio, do ato de “repensar tudo”, isto é, de pôr abaixo o alto e o baixo, promovendo o encontro - em forma de esfregação e bolinagem, para usar a linguagem ambiente - de civilização e barbárie. Lugones refletia na banheira: “O pensamento [...] se alimentava de uma esperança, a de recomeçar do zero, desse nada a que chegaria por fim. Mas como nunca chegava, nunca recomeçava” (p. 21). A novelita Lugones, de Aira, é também esse recomeçar do zero, “desse nada a que chegaria por fim” o pensamento. E segue toda a cena idiota12 12 O adjetivo “idiota” tampouco é fortuito a propósito da obra de Aira, ao contrário. No ensaio “Aira: o idiota da família”, coda do livro Héroes sin atributos. Figuras de autor en la literatura argentina (2009), Julio Premat parte justamente de Lugones: “Para Lugones, a missão do escritor, seu papel na fundação de uma linguagem e de uma nacionalidade, reside na criação de uma figura grandiosa de si mesmo”. Aira propõe o exato oposto, tendo derrubado tal “grandiosidade” em verbete e novelita: “Literatura idiota, então, como estratégia de existência e de defesa”, conclui Premat, cujo ensaio traduzido se encontra aqui: http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/premat.html da banheira e do pato que era preciso esconder e que, mesmo não existindo na realidade, acabou escondido no meio das nádegas de Lugones. Seguem as reflexões dessa cena sobre as alegrias da barbárie e as tristezas da civilização, onde, de repente, a ficção é definida como “o disparo da realidade” (p. 23): em Aira, a realidade sempre vence a ficção, ao mesmo tempo que sempre perde, porque se trata da corrida de Aquiles e da tartaruga.

A cena da banheira provoca efeitos inesperados: a água da tina vaza sobre o quarto de baixo e uma singela goteira faz Gálmez - “outro homem da sua mesma idade e índole” (p. 23) - despertar. Gálmez lembra então do sonho policial que tivera, “um sonho em que alguém atirava” - e, com esta terceira camada onírica, a narrativa vai oferecendo antes vagas senhas oblíquas do que propriamente as pistas dos policiais clássicos, dos quais extrai no entanto um certo saber: “[Gálmez] Tinha lido suficientes romances policiais para saber que uma detonação onírica representava um tiro na realidade” (p. 24). Na realidadeficção da pequena ilha, o contador-pensador desconfia e é, ao mesmo tempo, um leitor de La guerra gaucha de Lugones. Antidetetive, ele tenta ligar os primeiros fios soltos da trama: nada poderia - ou deveria - escapar do “sistema Gálmez”. Agregue-se que, na sua biblioteca, atrás do livro de autoria de Lugones, ele guardava uma arma nunca disparada: o mesmo livro terá diferentes funções no relato. Outros dois personagens extravagantes da novelita são duas velhas solteironas, mãe (Ilse) e filha (Fia)13 13 “Mija”, no original. . Ao entrarem em conversação com outros hóspedes - o casal Goicochet com as duas filhas adolescentes -, referem-se a certas “coisas estranhas” que ocorrem ali. Mediante o elogio da observação que - dizem - “é tudo”, chegam a Ellery Queen (p. 27), autor policial preferido de Ilse e do sr. Goicochet (e de Aira).

Ao grupo de hóspedes junta-se outro casal, este com sete filhos: ouvem-se mil sons de pássaros e bichos - a algazarra comum nas novelitas de Aira -, “uma confeitaria com orquestra” (p. 29), na definição de uma das senhoras. A Natureza e sua Música, o “cinema amazônico”14 14 Expressão de Dante y Reina (1997). que cruza toda a obra de Aira. Aqui, no entanto, o bulício da Natureza não era superior ao do suposto tiroteio. Mafiosos ou simples caçadores? É o moleque Carlitos que sabe das coisas, tendo recebido boa gorjeta pelo transporte da polaca até o quarto do hotel. É ele quem revela, ou põe a nu, para Marisol, enquanto copulam no bosque, outros disfarces: “Horacio Quiroga” é Leocadio Buenaventura, que está acompanhado por Elizabeth Roca del Castillo, amante de Leocadio e ex-mulher do “Ministro”. Ambos aguardam a chegada de Clarita, filha de Elizabeth, a fim de fugirem via Uruguai para Paris. Amigos de Leocadio, os almofadinhas faziam parte do teatro armado para a fuga do trio. Na cena do bosque, Marisol lembra, preocupada, de Gálmez, que tem “um método infalível: quando ele dorme sobre a escrivaninha, ele baba e o desenho que a baba faz sobre o mata-borrão mostra o que vai acontecer!”. Superstições, responde Carlitos, “desta vez a baba não vai falar, relaxa” (p. 32). Marisol deixa a dúvida no ar. A baba não vai falar, mas - poderíamos retrucar - o jacaré vai escrever.

No quarto dos amantes, Leocadio e Elizabeth estão nervosos e a única forma de se acalmarem é apelar para o sadismo (no caso dele) e o masoquismo (no caso dela). Ela é surrada, a pedido, com diferentes objetos. Sade vai se insinuando e impondo sua sombra na narrativa. Quando Leocadio desce para ver os amigos do “dez”, são discutidas as circunstâncias de suas ações e fazem menção a “Leopoldo Lugones, filho”: “Sabe o que me preocupa? confessa Patricio. Que Leopoldo Lugones já saiba e esteja atrás de nós. Leocadio olhou-o sopesando a resposta. O nome do temido Chefe de Polícia bastava para instilar prudência até nas frases” (p. 34). Sonâmbula na cama, a polaca emite um som: “La Guerra Gaucha”... para espanto dos três: “São vozes que lhe vêm” (p. 35). Leocadio então informa com ar superior: “Sabem quem é o autor deste livro? Leopoldo Lugones, pai” (p. 35). Alarme: o delegado-torturador Leopoldo Lugones, inventor da picana eléctrica, na Buenos Aires convulsionada da “década infame”, já deve estar em seu encalço.

Chegada a hora de concretizar a fuga, o bando se encaminha para um embarque clandestino nos fundos da ilha, onde o casal retira seus disfarces - adeus, Horacio Quiroga, o escritor uruguaio que se suicida em Buenos Aires um ano antes de Lugones - e a polaca segue falando qualquer coisa de mau agouro aos ouvidos dos implicados. Nesse ínterim, Carlitos confessa a Leocadio seu medo de Gálmez e o apresenta como “o homem cuja inteligência incluía todas as demais” (p. 38). “Gálmez”, exclama a polaca, cuja presença na ilha Leocadio desconhecia. O que foi suficiente para que, à distância, o próprio se sentisse instigado no seu quarto, ainda que negasse ter poderes paranormais: tratava-se do “mero exercício do pensamento” (p. 38). Gálmez desce então em direção ao embarque clandestino, mas chega atrasado e observa furtivo apenas o que restara da cena. Os almofadinhas e Carlitos já haviam retornado ao hotel, Clarita já havia chegado e os mesmos facínoras que a sequestraram já haviam levado a polaca para morrer nas águas do Delta. O casal e Clarita estão em silêncio e são observados por Gálmez. De repente, o trio se transforma em pássaros, para espanto do contador-pensador descrente. Pássaros que batem asas em retirada: mais um mito de origem se formava na ilha, escreve (e escreverá) o jacaré-Aira.

Hora do chá, última cerimônia da jornada no hotel: “Voltem, voltem, em nenhum lugar serão tratados como aqui, dizia a viúva com linguagem de tortas e bolinhos, torradas e geleias” (p. 41). Discursos, aplausos, algazarra, maldades (de Carlitos com as adolescentes), conversas cultas e triviais, ambas invariavelmente insuportáveis para Lugones, que aproveita para dar um passeio de fim de tarde na ilha, quando, finalmente, ocorre a entrada em cena do jacaré. Lugones caminha pensativo, solene, e então intervém, de repente, o narrador da novelita:

Lugones soube que estava acontecendo algo importante dentro dele. Isto ele me contou depois; não faço mais do que reproduzir o seu relato e já não faço um resumo, ao contrário; a partir daqui tudo será detalhe (p. 46).

Franzino, de chapéu coco, todo de preto, sua “figurinha recortada de um jornal” se surpreende, então, ao deparar com o “japonês” pintando “uma espécie de aquarela em cinzas, que captava muito bem o espírito da tarde” (p. 47). O pintor reage friamente diante dos arroubos do maior escritor argentino, flagrado em seu patetismo. Mas o que acaba por surpreendê-lo é o fato de que as cores são extraídas não de tintas, mas das escamas de um “jacaré anão”, “uma coisa nunca vista, ao menos por Lugones”. Surge, então, a experiência com o procedimento, a “rousselização”15 15 Como se sabe, Raymond Roussel é um dos faróis de Aira. Cf. “Raymond Roussel. La clave unificada”, em Evasión y otros ensayos (2018). de Lugones, ou da novelita com esse nome: “A surpresa fez Lugones deixar a conferência e prestar atenção no procedimento”... “A paisagem não se sabia se ia ganhando ou perdendo forma” (p. 47). Na sequência do relato, o jacaré terá o poder de transformar o ânimo de Lugones, no mesmo movimento em que irá aprendendo a escrever pelas mãos do mestre. E ele, de fato, escreverá o que ouve e não o que houve (feito Oswald de Andrade), ainda que, como Ménard, não mude uma única palavra ou pontuação do original. O pequeno animal (re)escreve - vale dizer, improvisa, inventa - o último dia da vida de Leopoldo Lugones.

Antes da revelação do jacaré-escritor, Lugones vê a lancha com os turistas partindo em direção ao trem para a capital. O que ele não vê é a escala numa ilha próxima, onde desembarcam as duas “velhas senhoras”, que tiram seus disfarces e se metamorfoseiam em dois homens-rãs. De volta ao hotel, encontra Luisa e Gálmez no salão: ela quer apresentá-los, mas Lugones se antecipa dizendo que acaba de encontrar um “pintor japonês tomando uma impressão do crepúsculo” (p. 50). O jacaré entra no jogo de cena: primeiro a viúva diz se tratar do velho mito do japonês, que morreu há cinquenta anos. Gálmez apenas assente, mas Lugones responde tirando o bicho do bolso pelo rabo. Não satisfeito, informa que viu dois seres estranhos: “Eram dois humanoides de pele preta lustrosa, como um encerado, com enormes pés-de-pato e estavam sentados no barranco.” A polícia, é o fim, pensa a viúva. Gálmez duvida de Lugones e diz, filosófico: “Às vezes as coisas mais estranhas são as reais e as menos estranhas são as alucinações.” “A realidade supera a ficção!”, diz, por sua vez, a viúva (p. 50).

Lugones é então convidado para o jantar. “Que jantar?”, ele pergunta, ouvindo a resposta tonitruante de Luisa a respeito daquele que será o banquete final da novelita, com grande fartura de bebidas e comidas, de sangue, cianureto, gritos e tiros, resultando em duas mortes no salão: um verdadeiro festim sado-masô, com direito à distensão na cozinha logo após a confirmação dos óbitos de Gálmez (alvejado por seu Lucho com a arma de Lugones) e seu Lucho (que bebe, por engano, o cianureto de Lugones), em função de uma discussão sobre o escritor. É o gran finale da tragicomédia dadá na qual Aira arranca Lugones de suas altitudes de predestinado. Quanto a Sade, Lugones não apenas compartilhou com ele as disposições testamentárias, como diferentes gerações de sua família parecem ter tido o sadismo inscrito no DNA. Conforme atestam as biografias disponíveis, Lugones pai, que se supunha imortal, deu cabo da própria vida em 1938; Lugones filho, feroz defensor da ditadura de Uriburu nos anos 30, encarnaria em si próprio a “hora da espada” paterna, e se suicidaria em 1971; a tragédia familiar parece superar qualquer outra: Piri Lugones, filha e neta dos Leopoldos, foi guerrilheira montonera e consta que teria sido torturada pelo próprio pai, Leopoldo Lugones, filho, que, por sua vez, havia acossado, como policial, Leopoldo Lugones, pai.

Quando Carlitos, a pedido da patroa, vai espionar Lugones no quarto, o vê conversando com um jacaré em diálogo tenso: o jacaré o esnoba, ele se irrita e o chama de “bicho de merda”. Lugones está inquieto: “Como você sabe inclusive o que não vê nem experimenta?” Aira, pela voz do jacaré, se sai com esta: é “uma longa história” [que] “algum dia vou te contar” (p. 52). Lugones relata, então, a “tragédia da sua vida” que é “não ser escritor”, confirmando-se, na ficção, o que a voz do verbete já havia sugerido no Diccionario:

Esta é uma longa história, disse o jacaré: algum dia vou te contar, se te interessa de verdade. E você, por que se interessa por mim? perguntou-lhe Lugones. Isso é coisa minha. Continue com o que você estava me dizendo. O que eu estava te dizendo? Que é escritor. Ah, isso. Silêncio. O jacaré: Você disse que era a tragédia da sua vida. E o que você acha? Não grite, Lugones, não grite que com isso você não soluciona nada. Você me pergunta o que eu acho? Não acho nada, porque não sei o que é ser escritor (p. 52).

Afirmação típica de Aira: para ser escritor é preciso não saber o que é ser escritor. Desenrola-se na sequência um longo diálogo entre ambos, que desemboca na lição de escritura dinâmica, quando o bicho aprende a escrever o que já vinha escrevendo. Escritura ready-made: já estava feito o relato que se reduplica e se desdobra, tinta de jacaré que é. Em seguida, e a propósito, surgem no relato os nomes de Borges, Girondo e Macedonio, todos contemporâneos de Lugones. Sua memória dos pares não poderia deixar de ser patética: “Todos os que riam de mim, Borges, Girondo, Macedonio Fernández, todos tinham razão! E eu que pensava que era por ciúmes” (p. 53). Eis que o jacaré põe Lugones no divã procurando convencê-lo de que seu caso não é tão grave, tudo isso com uma voz rangente, ao mesmo tempo perturbadora e simpática para o protagonista. Simultaneamente, vêm à tona os problemas práticos do definitivo dia: o revólver desapareceu, o cianureto não (comemora Lugones). É quando o jacaré dirige um sermão ao próprio mestre, no qual vem embutida a grande lei airiana do contínuo “que preside tudo”:

É curioso: soa um grito e todos se perguntam “o que foi isso”. É como se todas as conversas ficassem interrompidas. Pois bem, desta vez, Lugones, você terá a experiência de uma conversa que não fica interrompida, muito pelo contrário. É provável que no labirinto de meditações errôneas em que você se meteu sobre a vida e sobre o instante, você tenha perdido de vista a grande lei do contínuo que preside tudo. Você, em seu caso especial, que não é tão especial como você acredita, mas enfim, você precisa, justo neste momento, que alguém te dê um exemplo, para que veja que os exemplos não existem, porque estão no contínuo do grande discurso geral. Isso vai te ensinar que você não é um exemplo como pensa, um exemplo extremo de desespero ou de escritor que não foi escritor ou o que você quiser. Nada disso, irmão: você está no trilho. E a tal ponto que o que você vai aprender já sabia, de outra maneira o contínuo não estaria completo desde o início. Talvez te pareça uma coisa difícil ainda, mas retenha isto: o exemplo não existe e o que ele ensina já se sabia. Fez uma pequena pausa e se pôs a contar o que estava acontecendo em outro lugar da casa. Lugones o escutava com uma atenção fascinada, mas ao mesmo tempo com uma parte do ouvido atento ao que sucedia nos corredores distantes e lhe parecia estar assistindo a uma verdadeira duplicação do instante (p. 57).

A duplicação do instante é uma repetição com diferença, ou - nos termos de Raul Antelo (2019ANTELO, Raul. “Aira ou a literatura como reprodução ampliada”. In: ERBER, Laura; ROSA, Victor da (org.). O congresso de literatura. Ensaios sobre César Aira. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019. p. 49-77., p. 51) - uma reprodução ampliada, “essa paradoxal reiteração criadora” que é característica da “estética de César Aira”16 16 No ensaio “Aira ou a literatura como reprodução ampliada”, Antelo (2009, p. 52) também observa que “a reprodução, em Aira, vincula-se, como em Borges, a uma forma da esterilidade, a do monstro”. , apresentada aqui tanto no gesto de pôr reiteradamente em relação Lugones com Sade, quanto na repetição dos planos da própria novelita: a tragicomédia dadá emitida pelo jacaré-anão, utilizado por Aira como procedimento de pintura e escritura. As formas de duplicação são diversas no relato, a exemplo da cópula que Lugones, crendo-se invisível, avista num quarto “em que Marisol e Carlitos se acoplavam com frenesi”, o que observa “com uma espécie de alegria, tão rara nele” (p. 62). Quando penetra na biblioteca, depara-se com Gálmez lendo La guerra gaucha, logo “esse livro odioso” que havia banido de sua vida. A viúva o via, pensa Lugones, como alguém que “detinha todas as chaves do que acontecia na ilha” (p. 63): duplicava, portanto, conclui Lugones, a função do jacaré.

Quanto aos negócios ilícitos da dona do hotel, tratava-se, nada mais nada menos, que do contrabando de papel uruguaio para a imprensa anarquista, que combate a mesma ditadura defendida por Lugones filho (e pai): Luisa, como ingênua engrenagem da luta política, que logo vai desembocar no primeiro governo de Perón (1946-55), o qual, por sua vez, vai definir o destino argentino. Vale observar, aliás, que os dois policiais do relato, com os disfarces úteis de homens-rãs, são, ainda na água, violentamente mortos pelo avatar aquático da polaca. Que, não satisfeita, entrega, como oferenda, dois corações humanos. A viúva e seu Lucho17 17 Às vezes, disfarçado de pintor japonês, seu Lucho é, na verdade, Luciano, ex-marido de Luisa, pai com ela de Marisol e possível pai de Carlitos: não poderia faltar a sugestão de incesto em Lugones com Sade. assistem à cena do cais; Lugones aparece no local e se espanta com a visão dos corações sob a Lua. Nesse ponto, o inverossímil de verdade, ao menos no início da narrativa, acontece, com a entrada em conexão de Lugones e Luisa: “O aspecto imediato que tomaram seus pensamentos coincidia com o da viúva, a tal ponto que sem saber era como se selassem um casamento da alma”. Após lhe perguntar “Não colocamos os corações a teus pés?” (p. 65), toma-o pelo braço e o leva até o alpendre onde o papel está sendo armazenado. Ali, faz justamente uma grande loa ao papel em branco, pátria da criação e de gloriosos escritores: como Lugones, segundo ela.

Finalmente, vão todos para o jantar em que se desenrolam as cenas finais da novelita. Ricamente adornada, a mesa é digna da altitude de Leopoldo Lugones e nela justamente se discute a “arte de viver” como invenção europeia e que ele tinha tido o privilégio de compartilhar nos salões parisienses. Quanta semelhança, quanta diferença. Socialista arrependido, eterno aristocrata e fascista assumido, Lugones desdenha seus conterrâneos provincianos, seus ideais democráticos e sua existência bárbara. No que vem acompanhado por Gálmez, que afirma:

Reconhecemos a arte de viver dos franceses e por esse mesmo gesto não a temos. Então só podemos aspirar à transmutação, ao simulacro, a essa forma suprema da inexistência: a representação. Essa é a “forma argentina”, não acha? perguntou para Lugones. Podia ser... Seria, balbuciou o escritor, seria como ter uma literatura” (p. 68).

Ter ou não ter uma literatura? Reprodução expandida e reescritura de uma certa forma estrafalária de vida, Lugones, de Aira, ainda reserva algumas provocações políticas, como o amor pelos direitos das massas manifestado aos gritos por Luisa González, “a imagem plebeia e alegórica da democracia” (p. 69). À mesa, os papéis, os disfarces vão terminando de cair, a começar pelo jacaré, com quem seu Lucho informa que igualmente conversa e justamente quando se disfarça de japonês. O bicho aparece, então, no alto da escada, dizendo estar com fome e, instado pelos aplausos, de lá se joga diretamente pelo corrimão e a toda velocidade. Lugones o apresenta: chama-se Roberto. Logo, porém, se inquieta com os “solilóquios dementes” que se seguem, lembrando-o excessivamente da história da sua própria vida. Entre pensamentos deprimentes, coloca o cianureto no copo, dizendo se tratar de vitaminas. Num corte abrupto, Lugones ressurge no quarto, sem se dar conta: é a hora do solilóquio do jacaré, que está sobre a mesa, diante dos “olhos de louco” do protagonista. Nesse ponto, Lugones descobre analfabeto o mais inteligente dos seres viventes: começa a lição de escrita, que rapidamente termina com sucesso, e o jacaré logo se põe a escrever: “Já sei! Posso fazer uma crônica desta jornada, que foi tão importante para mim”, diz o animal, começando com a chegada de Lugones, “como em uma homenagem a você”: “Numa tarde do final do verão chegou em nossa ilha” (p. 75)... Finalmente, agora, quando a estória já recomeçara, era possível terminar. Quando ouvem uma gritaria no térreo, o jacaré não se deixa afetar e segue escrevendo, indiferente. Gálmez e seu Lucho, bêbados, lutam e se matam à mesa. Lugones desce e a viúva desesperada tenta abraçá-lo, ele se esquiva e enfia-lhe uma cadeira nas ancas: o folhetim da hora-da-espada, o teatro patafísico, a pornochanchada maluca tomam conta da cena, como se estivéssemos numa peça de Raúl Damonte, mais conhecido como Copi.

Mortes consumadas no salão principal, para aliviar as almas e esquecer dos crimes, por um momento seguem todos para a cozinha, onde a cena se modifica por completo: bebem café e conhaque, Marisol estuda Geografia - porque “amanhã é segunda-feira” (p. 79) - e as tensões se aliviam instantaneamente, Lugones incluído. Mas não deixam de se perguntar o que fazer e Lugones sugere falar a verdade, o que não se sustenta nem por um segundo: “A verdade sobre esse revólver e esse cianureto?”; “O que você acha que o seu filho faria se ficasse sabendo?”, pergunta Luisa: “Me encerra num manicômio e não me deixa sair mais” (p. 79). A solução vem, então, a reboque da mudança do rumo da estória do “grande escritor” Leopoldo Lugones, segundo Aira: ele se fará passar pelos dois mortos, que são parecidos com ele. Lugones, duplo cadáver: seus biógrafos vão poder oscilar entre o cianureto e o revólver, sugere o narrador. Quanto ao destino dos cadáveres, sugere Luisa, “podemos dar um ao seu filho, outro à Sade” - a Sociedade Argentina de Escritores, fundada em 1932, e presidida, nos seus primeiros anos, pelo próprio Lugones. E não seriam necessárias duas lápides, porque, no seu testamento, o escritor pedia para ser exumado - como Sade - a céu aberto.

No refeitório, “os dois cadáveres tinham se lugonizado notavelmente” (p. 81): duas vezes Lugones, sempre assombrado pelo fantasma de Sade. No quarto, o jacaré continua escrevendo, ao mesmo tempo em que se confessa ser um mero avatar de César Aira, com tudo o que isso significa. A começar por este bicho-narrador, que não se sente tentado a parar para pensar em nenhum momento. Lugones não voltou e o quarto “nove” foi mantido intacto no recreio El Tropezón, transformado em museu. Quem é o mestre de quem? Mestre é a última palavra de Lugones.

Referências

  • AIRA, César. Lugones Buenos Aires: Blatt & Ríos, 2020 (e-book).
  • AIRA, César. Lugones Trad. autor (2021), inédita.
  • AIRA, César. Diccionario de autores latinoamericanos Buenos Aires: Emecé, 2001. p. 328-330.
  • AIRA, César. Relatos reunidos Buenos Aires: Mondadori, 2013.
  • AIRA, César. Evasión y otros ensayos Buenos Aires: Random House, 2018.
  • ANTELO, Raul. “Aira ou a literatura como reprodução ampliada”. In: ERBER, Laura; ROSA, Victor da (org.). O congresso de literatura. Ensaios sobre César Aira Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019. p. 49-77.
  • CONTRERAS, Sandra. “Prólogo”. In: Aira, C. Ema la cautiva Buenos Aires: Eudeba, 2011. p. 7-22.
  • DALMARONI, Miguel. “Prefácio”. In: LUGONES, L. As forças estranhas. Contos fatais São Paulo: Globo, 2009. p. 7-19.
  • LADDAGA, Reinaldo. Espectáculos de realidad Rosario: Beatriz Viterbo, 2007.
  • LUGONES, Leopoldo. Contos fatais. As forças estranhas Trad. André de Oliveira Lima e Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Globo, 2009.
  • PAULS, Alan. “Mucho Aira”. Entrevista com César Aira. Revista Lengua, Penguin Libros. Disponível em: https://www.penguinlibros.com/es/lengua/entrevistas/entrevista-Cesar-Aira-Alan-Pauls Acesso em: 17.03.2021.
    » https://www.penguinlibros.com/es/lengua/entrevistas/entrevista-Cesar-Aira-Alan-Pauls
  • PREMAT, Julio. “Aira, el idiota de la familia”. Héroes sin atributos. Figuras de autor en la literatura latinoamericana México: Fondo de Cultura Económica, 2009. p. 237-251. [Versão brasileira disponível em http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/premat.html ]
    » http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/premat.html
  • 1
    Formulação extraída de “El hornero”, de César Aira, em Relatos reunidos, 2013AIRA, César. Relatos reunidos. Buenos Aires: Mondadori, 2013..
  • 2
    Os adjetivos são devidos a Miguel Dalmaroni no início do prefácio à edição brasileira, que reúne Contos fatais e As forças estranhasDALMARONI, Miguel. “Prefácio”. In: LUGONES, L. As forças estranhas. Contos fatais. São Paulo: Globo, 2009. p. 7-19..
  • 3
    Para lembrar Las curas milagrosas del Dr. Aira (1998).
  • 4
    Com duas colunas por página no Diccionario, o verbete começa no final da p. 328 e termina no início da p. 330; já a novelita conta com um único parágrafo de 98 páginas em e-book. Utilizo, no entanto, neste trabalho, a tradução brasileira de minha autoria (inédita), contando 82 páginas.
  • 5
    Citações seguintes sempre à p. 329.
  • 6
    López Rega foi um político peronista de vertente fascista, perseguidor implacável da guerrilha montonera, que foi comissário geral da polícia federal (como antes Lugones filho) e ministro do Bem-Estar (!) do governo de Isabel Perón, destituído em 1975, na antevéspera do golpe militar de 1977, e preso em 1986 até sua morte três anos depois.
  • 7
    Com o título de “Mucho AiraPAULS, Alan. “Mucho Aira”. Entrevista com César Aira. Revista Lengua, Penguin Libros. Disponível em: https://www.penguinlibros.com/es/lengua/entrevistas/entrevista-Cesar-Aira-Alan-Pauls . Acesso em: 17.03.2021.
    https://www.penguinlibros.com/es/lengua/...
    ”, a entrevista realizada por e-mail, durante 2020, foi publicada em maio de 2021, na revista Lengua, no site de Penguin Libros: https://www.penguinlibros.com/es/lengua/entrevistas/entrevista-Cesar-Aira-Alan-Pauls
  • 8
    A partir desta citação, menciono apenas os números de páginas de minha tradução do texto.
  • 9
    Suou mas só um pouco: na contracapa de seu primeiro livro publicado, Ema la cautivaCONTRERAS, Sandra. “Prólogo”. In: Aira, C. Ema la cautiva. Buenos Aires: Eudeba, 2011. p. 7-22. (1981), Aira escreve que: “Abjuré del Ser: me volví Sei Shonagon, Sherezada, más los animales. Durante varias semanas me distraje. Sudé un poco. Me reí. Y al terminar resultó que Ema, mi pequeña yo mismo, había creado una pasión nueva, por la que pueden cambiarse todas las otras como el dinero se cambia por todas las cosas: la Indiferencia. ¿Qué más pedir?” (citado no prólogo de Sandra Contreras à reedição de 2011CONTRERAS, Sandra. “Prólogo”. In: Aira, C. Ema la cautiva. Buenos Aires: Eudeba, 2011. p. 7-22.).
  • 10
    A engenhoca de madeira animada remete a outros autômatos de Aira - de El cerebro musical a El santo -, assim como a ilha do Delta de Lugones remete ao “cinema transcendental” de La invención de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares, sem a solenidade fantástica deste que o próprio Lugones também explorou.
  • 11
    Vale notar que, no verbete do Diccionario de autores latinoamericanos, dedicado a Cortázar, Aira é muito mais condescendente do que em outras manifestações sobre o autor de O jogo da amarelinha.
  • 12
    O adjetivo “idiota” tampouco é fortuito a propósito da obra de Aira, ao contrário. No ensaio “Aira: o idiota da família”, coda do livro Héroes sin atributos. Figuras de autor en la literatura argentina (2009PREMAT, Julio. “Aira, el idiota de la familia”. Héroes sin atributos. Figuras de autor en la literatura latinoamericana. México: Fondo de Cultura Económica, 2009. p. 237-251. [Versão brasileira disponível em http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/premat.html ]
    http://culturaebarbarie.org/sopro/outros...
    ), Julio Premat parte justamente de Lugones: “Para Lugones, a missão do escritor, seu papel na fundação de uma linguagem e de uma nacionalidade, reside na criação de uma figura grandiosa de si mesmo”. Aira propõe o exato oposto, tendo derrubado tal “grandiosidade” em verbete e novelita: “Literatura idiota, então, como estratégia de existência e de defesa”, conclui Premat, cujo ensaio traduzido se encontra aqui: http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/premat.html
  • 13
    “Mija”, no original.
  • 14
    Expressão de Dante y Reina (1997).
  • 15
    Como se sabe, Raymond Roussel é um dos faróis de Aira. Cf. “Raymond Roussel. La clave unificada”, em Evasión y otros ensayos (2018AIRA, César. Evasión y otros ensayos. Buenos Aires: Random House, 2018.).
  • 16
    No ensaio “Aira ou a literatura como reprodução ampliadaANTELO, Raul. “Aira ou a literatura como reprodução ampliada”. In: ERBER, Laura; ROSA, Victor da (org.). O congresso de literatura. Ensaios sobre César Aira. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019. p. 49-77.”, Antelo (2009ANTELO, Raul. “Aira ou a literatura como reprodução ampliada”. In: ERBER, Laura; ROSA, Victor da (org.). O congresso de literatura. Ensaios sobre César Aira. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019. p. 49-77., p. 52) também observa que “a reprodução, em Aira, vincula-se, como em Borges, a uma forma da esterilidade, a do monstro”.
  • 17
    Às vezes, disfarçado de pintor japonês, seu Lucho é, na verdade, Luciano, ex-marido de Luisa, pai com ela de Marisol e possível pai de Carlitos: não poderia faltar a sugestão de incesto em Lugones com Sade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2021
  • Aceito
    15 Ago 2021
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