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O contra

Resumos

Para abrir o acesso da linguagem às realidades sensíveis, é preciso, para Ramuz, atacar o objeto em sua massa, respeitando sua diferença. Ramuz experimenta felicidade quando permanece entre as coisas do mundo. Mas uma hostilidade é inseparável dessa felicidade. Seu olhar vai contra as coisas, ou as vê virem contra ele.

Ramuz; linguagem; representação


In order to unfold the approach of language to sensitive realities, it is necessary, according to Ramuz, to attack the object in its mass, respecting its difference. Ramuz experiments happiness when he remains between the things of the world. His gaze goes against things, or sees them coming against him.

Ramuz; language; representation


Pour ouvrir l'accès du langage aux réalités sensibles, il faut, pour Ramuz, attaquer l'objet dans sa masse, l'aborder par le dehors, en respectant sa différence. L'écrivain éprouve du bonheur à demeurer parmi les choses du monde. Mais une hostilité est inséparable de ce bonheur. Son regard va contre les choses, ou les voit venir contre lui.

Ramuz; langage; représentation


O contra1 1 Texto publicado em Paris no número da revista Europe dedicado a Ramuz (nº 853, mai 2000). Um primeiro esboço foi publicado em Genebra, na revista Lettres (nº 6, 1945).

Jean Starobinski* * Estudou literatura e medicina na Universidade de Genebra. Após a publicação do livro Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l'obstacle (1958), foi encarregado do ensino da história das idéias e da literatura francesa na Universidade de Genebra. Em livros como Montesquieu (1953, nova versão aumentada em 1994), L'Oeil vivant (1960, nova versão aumentada em 1999), La relation critique (1970), Trois fureurs (1974), Montaigne en mouvement (1982), Le remède dans le mal (1989), Jean Starobinski serviu-se de uma metodologia crítica próxima dos textos e atenta aos aspectos fundamentais da experiência literária. Voltou-se para a relação da literatura com as artes em L'Invention de la liberté (1964), Les Emblèmes de la raison (1973), Portrait de l'artiste en saltimbanque (1970), Largesse (1994). É considerado um dos grandes críticos literários da atualidade. Alguns títulos publicados em língua portuguesa: 1789: os emblemas da razão (Companhia das Letras, 1988); Montesquieu (Companhia das Letras, 1990); Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo (Companhia das Letras, 1991); Montaigne em movimento (Companhia das Letras, 1993); A invenção da liberdade (Unesp, 1994).

RESUMO

Para abrir o acesso da linguagem às realidades sensíveis, é preciso, para Ramuz, atacar o objeto em sua massa, respeitando sua diferença. Ramuz experimenta felicidade quando permanece entre as coisas do mundo. Mas uma hostilidade é inseparável dessa felicidade. Seu olhar vai contra as coisas, ou as vê virem contra ele.

Palavras-chave: Ramuz, linguagem, representação

ABSTRACT

In order to unfold the approach of language to sensitive realities, it is necessary, according to Ramuz, to attack the object in its mass, respecting its difference. Ramuz experiments happiness when he remains between the things of the world. His gaze goes against things, or sees them coming against him.

Key words: Ramuz, language, representation

Abrir o acesso da linguagem às realidades sensíveis para as quais não há palavras prontas, dar força de expressão aos objetos simples cuja presença é opaca e muda, escrever – mais que descrever – um gesto ou uma paisagem em sua aparição indecomponível: são essas as exigências que a arte extremamente voluntária e obstinada de Ramuz busca satisfazer. Ele disse, em Razão de ser (1914)*1 *1 (Ramuz, Charles-Ferdinand. Raison d'être. Lausanne: C. Tarin, 1914. ) , o que foi seu despertar: "Apenas meus olhos e meus sentidos operam: eles bastam para tudo agora". Fundada sobre as percepções primeiras, sua linguagem experimenta incessantemente as resistências – a da palavra, a das coisas. Encontra-se nela um homem que resolveu experimentar-se a si mesmo na consideração da medida do que lhe resiste. Houve sem dúvida, para começar, uma relação difícil com a linguagem, uma desconfiança a respeito da língua do bom uso, que é uma língua artificial. Uma dupla impossibilidade é constatada: o "bom francês" é inadequado, mas o falar local também o é. É preciso, pois, criar uma língua nova e, para criá-la, é preciso começar por recuar, buscando em silêncio evidências que sirvam para estabelecer a justeza do que se escreverá. Ramuz diz e nos faz sentir isso a cada linha: um olhar se antecipou à palavra, um olhar atual sobre o mundo presente, mas também um olhar reminiscente sobre objetos ausentes. Após esse tempo de interrogação, as palavras serão bem-vindas, serão palavras e frases de justo peso. "E pareceu-nos que a salvação vinha quando havíamos sido recolocados diante das coisas. Contato imediato com as coisas, choque e reação: eis tudo"*2 *2 (Ramuz, Charles-Ferdinand. Raison d'être. Ob. cit.) .

Colidimos com a coisa, não a penetramos. Chocamo-nos contra ela, apoiamos sobre ela a mão, avaliamos sua consistência. Ela permanece compacta, preserva sua obscuridade interna. Sua dignidade está em sua recusa. Nenhuma magia permite vê-la aclarar-se de dentro, em seu centro. É preciso atacar o objeto em sua massa, levar em conta sua aspereza e suas arestas. É preciso abordá-lo pelo lado de fora, respeitando sua diferença. Ramuz experimenta felicidade quando permanece entre as coisas do mundo. Mas uma hostilidade é inseparável dessa felicidade. Seu olhar vai contra as coisas, ou as vê virem contra ele. "De repente, de todo lado, tudo lhe vinha contra." As coisas se manifestam por meio da reação que exercem sob a ação do olhar ou da mão. O contra, isto é, a preposição que marca a oposição, adverbializa-se, a ponto de se integrar ao próprio verbo. Essa particularidade do estilo de Ramuz está profundamente ligada a uma idéia da condição humana. Idéia à qual ele não temeu dar uma dimensão teológica, ao se servir do termo. Na admirável passagem de Adão e Eva (1932)*3 *3 (Ramuz, Charles-Ferdinand. Adam et Eve. Paris: L'Age d'Homme, 1990. ) em que Bolomey lê o terceiro capítulo da Gênese, o contra exprime a primeira conseqüência da expulsão do Paraíso:

Eles saem do que é feito para o homem e para o prazer do homem, eles entram no que é feito contra ele; saem do que ajudava o homem para entrar no que o nega. [...] A neve cai ou faz calor demais, é a mesma coisa. É contra nós. É para nos impedir de viver. Eles saíam do Jardim; tinham diante de si a aridez de um solo não cultivado. Vão ter fome, vão ter sede, oh! antes eles não conheciam nem a fome nem a sede. Eles vão conhecer o cansaço.

O contra é a expressão de uma adversidade fundamental, oposição na qual não se afrontam apenas o ser humano e o mundo, mas também o homem e a mulher, cada ser e ele mesmo: "Então não nos mantemos nós mesmos senão destruindo, e tudo é guerra, nada se eleva a não ser sobre ruínas para tornar-se a seu turno ruína". O casal expulso do Paraíso se recusa a avançar, mas deve, no entanto, consentir em andar rumo ao desconhecido, caindo, reerguendo-se:

Eles não querem avançar porque todo avanço os leva a morrer.

Eles recuam, se recusam, dizem não, mas depois, porque está neles um peso que é a culpa, acabam mesmo caindo para a frente.

Eles dizem sim, são forçados a dizer sim.

O não da recusa e o sim da aquiescência se encontram no cerne da poética de Ramuz. Seguramente, o mundo tem uma face hostil, é preciso entrar em luta com ele. Mas esse mundo temível é a estadia que devemos aceitar: nele tam bém encontramos a beleza. Ramuz acha necessário escutar esses imperativos tão contraditórios ao mesmo tempo. Escrever é inscrever nas coisas e nas palavras a marca de uma luta e também buscar um acordo, dar ao adversário as provas de amor e de fidelidade que ele merece. O contra também deve ser um com. Tal é o desafio que Ramuz não perde de vista. Em sua escrita, está em ação uma vontade que não se contenta simplesmente em mostrar as coisas: sua intenção confessa é transpô-las. No que diz respeito ao mostrar, o "realismo" sabia o que fazer e se satisfazia. Ramuz, por sua vez, desejava ir mais longe: elevar sua visão na direção de um sentido mais alto. A fábula da origem e da queda – a fábula da expulsão e do exílio para fora de um primeiro Grande Jardim da unidade – não é apenas o motivo condutor da narração romanesca em Adão e Eva: nós a reencontramos quase nos mesmos termos em Lembranças a respeito de Igor Strawinsky (1928)*4 *4 (Ramuz, Charles-Ferdinand. Souvenirs sur Igor Strawinsky. Paris: Séquences, 1928. ) , quando Ramuz, recordando suas conversas com o compositor, define a tarefa da arte:

Para além dos dois países [o de Strawinsky e o de Ramuz], para além de todos os países, para além de nós mesmos, há talvez o País (perdido, depois reencontrado, depois novamente perdido, depois reencontrado por um instante): onde se têm em comum um Pai e uma Mãe, onde o grande parentesco dos homens por um instante é entrevisto. E não é para reavistá-lo, e para nenhuma outra coisa, que tendem em suma todas as artes, não é para isso que tendem as palavras que se escrevem, os quadros que se pintam, as estátuas que se talham na pedra ou que se moldam em bronze: para isso, e para nenhuma outra coisa? Atingimos por um instante talvez o homem de antes da maldição, de antes da primeira bifurcação da qual cada uma das ramificações comportou depois uma nova bifurcação, e esta uma outra, e assim sucessivamente ao infinito, de maneira que no final cada um está sozinho no seu pequeno fim de trilha, onde se sente que nada está terminado, nada floresceu, nada é completo, nada é perfeito, pois nenhuma música é perfeita, nenhum livro, nenhum quadro, e todo trabalho inicialmente é duro, todo trabalho difícil, todo trabalho, toda espécie de trabalho se faz inicialmente contra nós mesmos, e contra Alguém – até que, em raros instantes, por uma espécie de inversão, intervenha a benção, haja essa colaboração com Alguém, haja essa possibilidade de retorno, esse retorno, esse "reencontro".

O Alguém (com maiúscula) é um ser transcendente, que não pode receber outro nome. Não é Deus. Também não é o mundo. Ele está no cerne de "nós mesmos", quando se trata da luta contra ele, e é com ele que em raras ocasiões a "colaboração" no trabalho perseverante sucede à luta. Essa grande frase arquejante culmina expressamente na inversão do contra em com.

Apenas de maneira intermitente e breve – quase inesperada – o poeta obtém o favor de uma parceria com o misterioso adversário. Ramuz, que fala de exílio e separação, que invoca a memória da unidade, não se deixa lograr por nenhuma ilusão de retorno. Ele não apresenta a infância, "o elementar", a natureza, como refúgios para os desenraizados que somos. Não se pode censurá-lo por ter cultivado um ideal regressivo, em que a natureza teria constituído o remédio de todas as feridas. O progresso da potência mecânica – a dos motores – o inquieta, pois muda a face do mundo e destrói antigos equilíbrios: as novas estruturas políticas que resultarão dessas mudanças não farão crescer as separações? A condição camponesa, tal como ele a representa, é uma relação concreta com a natureza. Mas ele sabe que essa relação secular é precária, e vê as questões se multiplicarem. Por mais acolhedor que seja Ramuz para com uma espécie de nostalgia de um mundo primeiro, o motivo dominante de sua obra não é o lamento, mas a inquietude.

O que admiro em Ramuz é que ele não tenha buscado dar de nenhum dos escritores da terra uma percepção euforizante. Não procura neles nenhum acalento, nenhuma embriaguez reconfortante. Presta atenção, antes de tudo, aos momentos em que se rompe o pacto entre os homens e seu meio. "A natureza é em toda parte violenta", Ramuz escreve em Necessidade de grandeza*5 *5 (Ramuz, Charles-Ferdinand. "Besoin de Grandeur". Em: Œuvres complètes, vol. 4. Lausanne: Rencontre, 1972. ) , "aqui ela está mesmo em seu cúmulo de violência, queremos dizer no seu cúmulo de instabilidade, sendo ao mesmo tempo arquitetada e incessantemente puxada para baixo." A águia e a geleira obedecem apenas às suas próprias leis e, acima dessas leis particulares, há uma "lei das leis":

[...] que é que se deve ir de mais vida sempre para menos vida, que é que se deve ver caírem todas as coisas, inclusive nós, que é que se tende sem cessar para baixo e que a montanha tende para baixo; como é bastante claro, aliás, pois as águas que dela descem a arrastam incessantemente com elas; e agora, escute: o que significam estes risos, estas zombarias contínuas, estes cochichos, estes rugidos (quando uma pedrinha cede a seu peso contra a encosta, quando a avalanche começa a deslizar deixando um ponto mais elevado para um ponto menos elevado, quando a geleira se fende no meio, ou então é um bloco de gelo que durante muito tempo oscila e balança como uma árvore, antes de desabar com as raízes para o alto), estes ruídos da montanha que predizem seu fim?

Na relação do homem com o mundo, insinua-se o medo. Porque o mundo é indiferente. Ou porque os homens escutaram o "espírito maligno". Uma vertigem maléfica – o sopro negro da doença – pode se apoderar de toda uma cidade e escurecer seu céu. O malefício pode também consistir na ilusão da vida fácil – em uma vida que não teria que fazer esforço contra nenhuma adversidade –, como fazem crer as promessas do Diabo em História do soldado.

Se é preciso, enfim, que a alegria seja reencontrada, que o mal seja repelido, que uma ordem seja restabelecida, será por uma redenção religiosa, como deixaria supor uma tão constante referência à Queda? Não creio. Ramuz conhece apenas reintegrações efêmeras, momentos em que o mundo se ilumina. Passagens. "Passagem do poeta". Passagem de Juliette, o tempo de uma única paixão (A Beleza sobre a terra)*6 *6 (Ramuz, Charles-Ferdinand. "La Beauté sur la terre". Œuvres complètes, vol. 19. Lausanne: Rencontre, 1953). . Os sabores são itinerantes e os homens não os sabem acolher. Seus poderes são tanto mais emocionantes quanto menos duram.

Recebido em 31/10/2003

Aprovado em 15/03/2004

Tradução: Marcelo Jacques de Moraes

  • *1 (Ramuz, Charles-Ferdinand. Raison d'être. Lausanne: C. Tarin, 1914.
  • *3 (Ramuz, Charles-Ferdinand. Adam et Eve. Paris: L'Age d'Homme, 1990.
  • *4 (Ramuz, Charles-Ferdinand. Souvenirs sur Igor Strawinsky. Paris: Séquences, 1928.
  • *5 (Ramuz, Charles-Ferdinand. "Besoin de Grandeur". Em: uvres complètes, vol. 4. Lausanne: Rencontre, 1972.
  • *6 (Ramuz, Charles-Ferdinand. "La Beauté sur la terre". uvres complètes, vol. 19. Lausanne: Rencontre, 1953).
  • *
    Estudou literatura e medicina na Universidade de Genebra. Após a publicação do livro
    Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l'obstacle (1958), foi encarregado do ensino da história das idéias e da literatura francesa na Universidade de Genebra. Em livros como
    Montesquieu (1953, nova versão aumentada em 1994),
    L'Oeil vivant (1960, nova versão aumentada em 1999),
    La relation critique (1970),
    Trois fureurs (1974),
    Montaigne en mouvement (1982),
    Le remède dans le mal (1989), Jean Starobinski serviu-se de uma metodologia crítica próxima dos textos e atenta aos aspectos fundamentais da experiência literária. Voltou-se para a relação da literatura com as artes em
    L'Invention de la liberté (1964),
    Les Emblèmes de la raison (1973),
    Portrait de l'artiste en saltimbanque (1970),
    Largesse (1994). É considerado um dos grandes críticos literários da atualidade. Alguns títulos publicados em língua portuguesa:
    1789: os emblemas da razão (Companhia das Letras, 1988);
    Montesquieu (Companhia das Letras, 1990);
    Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo (Companhia das Letras, 1991);
    Montaigne em movimento (Companhia das Letras, 1993);
    A invenção da liberdade (Unesp, 1994).
  • *1
    (Ramuz, Charles-Ferdinand.
    Raison d'être. Lausanne: C. Tarin, 1914. )
  • *2
    (Ramuz, Charles-Ferdinand.
    Raison d'être. Ob. cit.)
  • *3
    (Ramuz, Charles-Ferdinand.
    Adam et Eve. Paris: L'Age d'Homme, 1990. )
  • *4
    (Ramuz, Charles-Ferdinand.
    Souvenirs sur Igor Strawinsky. Paris: Séquences, 1928. )
  • *5
    (Ramuz, Charles-Ferdinand. "Besoin de Grandeur". Em:
    Œuvres complètes, vol. 4. Lausanne: Rencontre, 1972. )
  • *6
    (Ramuz, Charles-Ferdinand. "La Beauté sur la terre".
    Œuvres complètes, vol. 19. Lausanne: Rencontre, 1953).
  • 1
    Texto publicado em Paris no número da revista
    Europe dedicado a Ramuz (nº 853, mai 2000). Um primeiro esboço foi publicado em Genebra, na revista
    Lettres (nº 6, 1945).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Recebido
      31 Out 2003
    • Aceito
      15 Mar 2004
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