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La Niña de Plata: a história de dona Maria de Padilha e Dom Pedro I por Lope de Vega

La Niña de Plata: Dona Maria de Padilha and Dom Pedro I’ story by Lope de Vega

Resumo

Das Cronicas de Ayala à entidade pombogira, as tradições sobre Maria de Padilha atravessaram muitas encruzilhadas, inclusive aquela percorrida pela comédia no século XVII. No impresso de 1617, vemos na Novena Parte, de Lope de Vega, a comédia La Niña de Plata contar a história de dom Pedro I e seu meio-irmão, dom Enrique, além da história de Dorotea, que é um modelo de mujer ingeniosa codificado por Lope de Vega na Novena Parte. Argumentamos que podemos supor a presença de Maria de Padilha na peça através do ambiente de cortesania e que Dorotea e Padilha são mujeres ingeniosas.

Palavras-chave:
La Niña de Plata ; Lope de Vega; Novena Parte ; mujer ingeniosa ; Maria de Padilha

Abstract

From Ayala’s Chronicles of Ayala to the Pombo Gira entity, the traditions about Maria de Padilha have crossed many crossroads, including those covered by comedy in the 17th century. In the 1617 print, Lope de Vega’s comedy La Niña de Plata in his Novena Parte tells the story of dom Pedro I and his half-brother dom Enrique, and also the story of Dorotea, which is a model of mujer ingeniosa coded by Lope de Vega in the book. We argue that we can assume Maria de Padilha’s presence in the play through the courtier's environment and that Dorotea and Padilha are mujeres ingeniosas.

Keywords:
La Niña de Plata ; Lope de Vega; Novena Parte ; mujer ingeniosa ; Maria de Padilha

Resumen

Desde las Crónicas de Ayala hasta la entidad pombogira, las tradiciones sobre María de Padilla han atravesado muchas encrucijadas, incluso la que recorrió la comedia en el siglo XVII. En el impreso de 1617 vemos en la Novena Parte de Lope de Vega la comedia La Niña de Plata contar la historia de dom Pedro I y su medio hermano dom Enrique, además de la historia de Dorotea, que es un modelo de mujer ingeniosa codificada por Lope de Vega en la Novena Parte. Argumentamos que podemos suponer la presencia de María de Padilla en la obra a través del ambiente de cortesanía y que Dorotea y Padilla son mujeres ingeniosas.

Palabras-clave:
La Niña de Plata ; Lope de Vega; Novena Parte ; mujer ingeniosa ; Maria de Padilla

La Niña de Plata é a quinta peça da primeira docena que Lope de Vega organizou para ser impressa por Francisca de Medina, quem aparece no frontispício do fólio com 12 peças como viúva de Alonso MartinMARTIN, viuda de Alonso. Parte Veinte de las comedias de Lope de Vega Carpio, Procurador Fiscal de la Camara Apostolica. Madrid: Alonso Perez, 1625. de Balboa (1617BALBOA, viuda de Alonso Martin de. Doze comedias de Lope de Vega, sacadas de sus originales por el mismo, Novena Parte. Madrid: Alonso Perez, 1617.). Esse primeiro impresso, chamado Novena Parte, como o próprio Lope diz intitular no prólogo, é marcado pela presença de mujeres ingeniosas, que pareciam rondar a realidade do escritor de comédias. Em La Niña de Plata, a protagonista é Dorotea, quem exporá a relação entre dom Pedro I de Castela e seu meio-irmão, dom Enrique, personagens históricos tratados por Lope nesta comédia. Interessa-nos observar como Lope reconstrói essa história e como ele pode ter deixado pistas indiretas da presença de Maria de Padilha em sua fábula. Nesse sentido, a partir de La Niña de Plata, procuramos relacionar o paradoxo da mujer ingeniosa com o paradoxo da própria personagem histórica Maria de Padilha, cuja presença na comédia se dá tacitamente através do ambiente nobre de cortesania.

Dom Pedro I era o único filho legítimo de Afonso XI de Castela e Maria de Portugal. Assim como seu pai, que teve filhos com a amante Leonor de Gusmão, dom Pedro I de Castela teve filhos com a amante Maria de Padilha, nobre de Palência, e não se sabe se ele chegou a consumar o matrimônio com dona Blanca de Bourbon, da França. Dentro das tradições mais antigas sobre Maria de Padilha, encontramo-la na Coleccion de las cronicas y memorias de los reyes de Castilla. Rey Don Pedro (Ayala, 1779AYALA, D. Pedro Lopez de. Coleccion de las cronicas y memorias de los reyes de Castilla. Rey Don Pedro. Madrid: Don Antonio de Sancha, 1779.); no Romancero General, o coleccion de romances castellanos, anteriores al siglo XVIII (Duran, 1851DURAN, Don Agustin. Romancero General, o coleccion de romances castellanos, anteriores al siglo XVIII. Madrid: D. M. Rivadeneyra, 1851.); e em registros da Inquisição em Portugal e na Espanha, de onde viria a se transformar na entidade dos cultos afro-brasileiros (Meyer, 1991MEYER, Marlyse. Caminhos do imaginário no Brasil: Maria Padilha e toda a sua quadrilha. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 1, p. 127-166, 1991., p. 127-166; Augras, 2001AUGRAS, Monique. María Padilla, reina de la magia. Revista Española de Antropología Americana, n. 31, p. 293-319, 2001., p. 293-319; Bião, 2008BIÃO, Armindo. A Padilla: História, mito e teatro. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 5., 2008, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: UFMG, v. 9, n. 1, 5 p., 2008., p. 5; Bião, 2009BIÃO, Armindo. A comunicação nas encruzilhadas da Esfinge, de Hermes, Mercúrio, Exu e Maria Padilha: ditos, não-ditos, interditos e mal-entendidos. Revista Famecos, n. 40, p. 91-96, 2009., p. 91-96; Soares, 2020SOARES, Mailson de Moraes. Entre o barulho e o silêncio se faz a sabedoria... Salve D. Maria Padilha: na barra de sua saia o saber girante de uma educação que canta. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Pará, Belém, 2020. ; Vianna, 2022VIANNA, Alexander Martins. Os sagrados femininos da pombagira nas encruzilhadas morfológicas de Maria Padilha. Afro-Ásia, n. 66, p. 391-450, 2022., p. 391-450). Momentos diferentes em que Maria de Padilha permanece como paradoxo, aquela que é amante, esposa legítima e feiticeira, rainha e cortesã.

Nas Cronicas, Dom Pedro Lopez de Ayala, chanceler maior de Castela, propunha escrever os acontecimentos de seu tempo, quando já se tinha iniciado a dinastia de Trastâmara. Através dele sabemos que dom Pedro I já havia tido dona Beatriz em Córdoba, sua primeira filha com dona Maria de Padilha, antes de se casar com dona Blanca de Bourbon, em Valladolid. Dom Pedro I e dona Maria de Padilha tiveram dom Afonso, dona Beatriz, dona Constança e dona Isabel. Após a morte de Padilha, Dom Pedro a reconhece como rainha de Castela e Leão, tornando dom Afonso infante. Como este morre, dom Pedro torna suas filhas herdeiras do trono. Dom Pedro é morto em Montiel por um dos filhos ilegítimos de seu pai, seu meio-irmão, Enrique II, fundador da dinastia de Trastâmara.

No Romancero se conta que a rainha, dona Blanca de Bourbon, esposa de dom Pedro I, teve um filho com seu cunhado, dom Fadrique. Dom Pedro, que abandona dona Blanca após a boda em Valladolid, é tido como O Cruel, mata dom Fadrique no alcázar de Sevilha e manda prender a esposa em Sidonia. A cabeça de dom Fadrique é enviada para Maria de Padilha em um prato. Dona Blanca atribui o rigor de seu marido dom Pedro aos feitiços de Maria de Padilha, que teria entregado a um feiticeiro de sangue hebreu a cinta de diamantes que dona Blanca deu a dom Pedro. A cinta foi transformada em cobra no momento em que dom Pedro ia usá-la. A cobra faz com que dom Pedro I acreditasse que sua esposa dona Blanca queria matá-lo. Dom Pedro I mata sua esposa a pedido de Maria de Padilha.

Dona Maria de Padilha aparece, portanto, como Salomé, que recebeu a cabeça de São João Batista. Podemos entender essa relação pelo que nos lembrou Marlyse, segundo a qual o dia de São João, o 24 de junho, está associado à bruxaria (Meyer, 1991MEYER, Marlyse. Caminhos do imaginário no Brasil: Maria Padilha e toda a sua quadrilha. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 1, p. 127-166, 1991., p. 149). No Romancero, Maria de Padilha é associada à bruxaria, provocando a morte de dona Blanca. Quando não o próprio demônio, a cobra na tradição judeu-cristã é um animal demoníaco. Nos cultos ctónicos, estava relacionada à fertilidade feminina (Augras, 2001AUGRAS, Monique. María Padilla, reina de la magia. Revista Española de Antropología Americana, n. 31, p. 293-319, 2001., p. 308).

Nesse contexto do Romancero, diferentemente das Cronicas, vemos dona Blanca sendo injustiçada pelo desumano dom Pedro, enquanto Maria de Padilha aparece como a amante que recorre ao feitiço de um judeu para separar dom Pedro de sua esposa, adequando-se ao perfil das mulheres acusadas de feitiçaria pela Inquisição nos séculos XVI e XVII. Lembramos que o personagem histórico dom Pedro I se aliou a mouros e judeus, confiando, por exemplo, o cargo de tesoureiro maior ao judeu Simuel Levi, parece que por influência de Padilha. Na época de dom Pedro, havia o intercâmbio entre os espanhóis e judeus sefarditas, árabes, turcos, mouros. No Romancero, Maria de Padilha aparece com os judeus de forma negativa. A cultura letrada de corte da época é impactada pela propaganda de corte, construindo uma leitura demonológica póstuma contra a Padilha histórica. Os judeus passaram a ser perseguidos por Enrique II e seus descendentes até Isabel, a Católica, expulsá-los da Espanha, assim como fez com os muçulmanos, depois de oito séculos de sua ocupação na Península Ibérica.

Na época de Lope de Vega, já se tinha selado a paz entre os descendentes dos meios-irmãos Pedro I e Enrique II, tataravôs de Isabel de Castela, descendente de Enrique II com os netos de Pedro I, o qual deixou de ser epitetado O Cruel para se tornar O Justiceiro. A filha de dona Maria de Padilha e dom Pedro I, dona Constança, teve Catalina de Lancaster, que se casou com Enrique III de Castela, neto de Enrique II de Trastâmara, o meio-irmão de dom Pedro I que tomou seu trono. Catalina e Enrique III tiveram João II de Castela, que, junto a Isabel de Portugal, tiveram como filha, Isabel I, a Católica. Joana, a Louca, filha de Isabel de Castela, iniciou o domínio da Casa de Habsburgo na Espanha, casando-se com Filipe de Habsburgo. Joana e Felipe tiveram Carlos V, elevado a Sacro-Imperador Romano-Germano em 1519. Carlos V e Isabel de Portugal tiveram Felipe II da Espanha. Com Ana da Áustria, Felipe II teve Felipe III, que governou a Espanha até 1621.

Lope de Vega vive a dinastia dos Habsburgos, dentro da qual estavam os descendentes de dom Pedro I e dona Maria de Padilha. Assim, não é de se espantar que, estando esses descendentes vivos, Lope se preocupe em legitimar a descendência que vem de Pedro. É o que fará em La Niña de Plata. Lope de Vega apaga as rivalidades entre os meios-irmãos Pedro e Enrique e constrói uma visão mais favorável de Pedro, desconstruindo a ideia de rei diabólico.

Lope de Vega traz para a comédia La Niña de Plata o reinado de dom Pedro I, mas o meio-irmão de Pedro, o infante dom Enrique de Trastâmara, filho de Afonso XI com sua amante Leonor de Guzmão, não disputa o trono com seu irmão. Dom Pedro não mata a mãe de dom Enrique, nem o outro meio-irmão, Fadrique Afonso de Castela, Haro e Mestre da Ordem de Santiago, também referido na peça como Mestre de Santiago. Este tem um papel coadjuvante na comédia. Por outro lado, dom Enrique não mata dom Pedro. Lope mostra uma relação de parceria entre os meios-irmãos. A inimizade é apagada. No entanto, os acontecimentos históricos aparecem por meio da profecia do mouro Zulema, que veio ao palácio em nome do seu rei para confirmar a trégua de Granada.

O rei dom Pedro assegura a trégua e aproveita para pedir os serviços de Zulema para curar seu irmão Enrique, que estava melancólico por causa do amor que sentia por Dorotea, a mujer ingeniosa presente no título La Niña de Plata. Ali, outro mouro fala que Zulema fez curas notáveis em Granada, adivinhando coisas através da leitura dos traços da mão. O rei manifesta sua vontade de que Zulema cure a senhora Dorotea da dureza de seu peito, já que ela não corresponde ao amor do infante. Quando se encontra com Enrique, Zulema tem algo mais importante para lhe dizer do que falar sobre a mulher por quem ele está apaixonado. Zulema prevê que Enrique fará duas jornadas perigosas na França, fugindo do rei, seu irmão, pois ele matará sua mãe, dona Leonor. Dom Enrique mataria o rei e regeria Castela.

Por meio dessa profecia, ou o que podemos entender como uma ressonância literária cortesã do antigo enredo sobre Maria de Padilha, Lope de Vega se conecta com a tradição do Romancero, substituindo o judeu pelo mouro Zulema. Na peça, dom Enrique se mostra virtuoso ao não acreditar nos complôs de Zulema, mandando-o ir embora e tratando-o como “astrólogo falso”. O infante não foi suscetível à bruxaria, embora Pedro tenha confiado a cura a um feiticeiro.

Dom Enrique se apaixona por Dorotea, mas esta é a pretendida de dom Iuan, filho do Ventiquatro. Este é contra o casamento de seu filho porque Dorotea, apesar de ser nobre e igual em posição estamental, é pobre. Quem ajudará o casal a resolver os conflitos será dom Enrique, depois de passar pelo aprendizado que lhe oferecerá a mujer ingeniosa. O infante tenta estuprar Dorotea, nobre de posição social inferior à dele, mas desiste ao ser convencido por ela a ouvi-la. Depois de ser movido por paixões, ele passa a querer provar sua própria virtude, ajudando Dorotea a se casar com dom Iuan. A jornada provará a virtude e a honra de Dorotea frente às dúvidas de dom Iuan e à opinião do Ventiquatro, ensinando que as virtudes são mais importantes do que a riqueza. Ao mesmo tempo, sutilmente, à moda ciceroniana, Lope sugere que virtude independe do nascimento, linhagem e condição socioeconômica, podendo-se perdê-la, acrescentá-la ou testá-la ao longo da vida, condição escatológica da jornada do católico na terra, cuja razão pode ou não cooperar com a graça conforme seu livre-arbítrio.

No início da comédia, sabemos que Dorotea mora com sua tia Teodora em Sevilha perto do palácio do rei, na rua das armas. Teodora especula com Dorotea sobre a possibilidade dos irmãos de dom Pedro serem tiranos das honras e estados que ganharam, pois são filhos apenas de seu pai, e não da mãe. Nessa murmuração, Lope de Vega coloca dom Pedro em posição favorável, único filho legítimo de Afonso XI de Castela e Maria de Portugal. Quando o infante passeia pelas ruas de Sevilha, ele passa pela rua de Dorotea, dama que lhe chama a atenção. O Mestre de Santiago conta a seu irmão que Dorotea tem fama pelo seu engenho, discrição e beleza, mesmas características de Maria de Padilha apresentadas pelas Cronicas (Ayala, 1779AYALA, D. Pedro Lopez de. Coleccion de las cronicas y memorias de los reyes de Castilla. Rey Don Pedro. Madrid: Don Antonio de Sancha, 1779., p. 332-333), e pela entidade mediúnica da soberana espanhola nos terreiros de sagrado mediúnico ibero-afro-indígena do século XX no Rio de Janeiro e São Paulo (Soares, 2020SOARES, Mailson de Moraes. Entre o barulho e o silêncio se faz a sabedoria... Salve D. Maria Padilha: na barra de sua saia o saber girante de uma educação que canta. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Pará, Belém, 2020. ).

Teodora tenta proteger sua sobrinha de dom Iuan, que insiste que se casará com Dorotea mesmo contra a vontade do pai. Teodora critica o Ventiquatro, pai de dom Iuan, por ser um velho avaro e cobiçoso, que dá mais importância à fazenda do que à honra, e tenta afastar dom Iuan de Dorotea. Esta concorda com sua tia em proteger sua honra. Dom Iuan percebe que Dorotea é celebrada por cortesãos. Não à toa ela irá ser cortejada pelo infante, o que deixará dom Iuan com ciúmes. Passeando pela rua, dom Enrique se coloca a procura das damas mais formosas de Sevilha. Dom Arias, um cavaleiro nobre de Sevilha, fala de Dorotea, a “Sibila de Sevilha”, cujo apelido La Niña de Plata se refere a uma peça belíssima de prata. Ela é erudita, sabe as burlas e o estilo grave, canta, compõe a cinco vozes, pinta, dança e escreve versos, mas não seria como Homero ou Horácio, pois escreve para o uso da corte e do palácio, algo parecido, portanto, com a arte de escrever do próprio Lope de Vega, que usa o mesmo argumento de elevação de sua escrita para o uso da Espanha no Arte nuevo de hazer comedias en este tiempo (Fernandez, 1605FERNANDEZ, Domingos. Rimas de Lope de Vega Carpio. Primeira Parte. Và al fin el nuevo Arte de hazer Comedias. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1605., p. 129).

Nessa conversa, em que estão presentes os cavaleiros dom Enrique, o infante, o Mestre de Santiago e dom Arias, fica clara a possibilidade de prostituição de damas da nobreza, que servem a cavaleiros de posição estamental superior a delas. Se, por um lado, Lope de Vega ausenta Maria de Padilha, por outro, ele reforça a possível presença de cortesãs na corte. Afinal, não era incomum um rei manter relação com mulheres nobres e as compensarem posteriormente, agenciando casamentos legítimos com outros nobres. Elas estariam sendo entregues pelas mãos do rei, não sendo um problema se não fossem mais virgens ou tivessem de criar um filho do rei. A personagem histórica dona Maria de Padilha é uma mulher nobre que foi amante do rei antes de virar rainha depois da morte deste.

Nesse sentido, a prostituição no mundo cortesão não era tão dual ao casamento como parece ser hoje, com a profissionalização da prostituição, embora as próprias esposas pudessem barganhar seus corpos com os maridos dentro da divisão social (desigual) do trabalho. Talvez seja pela forma como vemos a prostituição hoje que a entidade Maria de Padilha se afirme como a pombogira que não foi prostituta, pois seria incompatível com uma rainha, como podemos notar na dissertação de Mailson Soares, que aborda, em seu terreiro de Belém, uma entidade que se apresenta como a própria Maria Padilha, rainha e não prostituta (Soares, 2020SOARES, Mailson de Moraes. Entre o barulho e o silêncio se faz a sabedoria... Salve D. Maria Padilha: na barra de sua saia o saber girante de uma educação que canta. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Pará, Belém, 2020. ).

Na comédia de Lope de Vega, os cavaleiros estão no jardim do alcázar quando falam das damas de Sevilha e acabam encontrando Dorotea e sua tia Teodora. Enrique e Dorotea travam uma conversa entre engenhos, em que Enrique se surpreende pelo engenho da dama, dizendo que ela deveria ser chamada de ouro e não de prata. Dorotea responde o galanteio do cavaleiro relacionando seu nome ao século de prata, que vem após o século de ouro, segundo a tradição de Hesíodo. Ela deixa antever sua jovem idade, das rosas, da primavera, da fertilidade, tendo consciência de ser cobiçada por muitos olhos, inclusive por Enrique, o qual chama a atenção das senhoras de Sevilha. Antes de ser transformada em cobre, Dorotea e sua tia se vão. Enrique aproveita para subornar o escudeiro. Em troca de visitar Dorotea à noite, Enrique dá ao escudeiro alguns dobrões.

A pedido de dom Enrique, o irmão de Dorotea, Felis, chega ao palácio. Ele não entende por que um príncipe tão alto e generoso poderia pedir o serviço de um homem tão humilde. Enrique o elogia por ser o homem reconhecido como quem mais conhece cavalos em Sevilha e lhe pede para buscá-los, pois quer levá-los a Castela. Felis lhe informa do engano, pois não conhece cavalos e é pobre. Seus pais morreram deixando apenas uma égua quase no pelo e, além da égua, possui apenas 20 ou 30 livros onde acha sua riqueza. É a deixa para Enrique chamá-lo para servi-lo, em razão da erudição de Felis, e aproveitar o artifício criado para perguntá-lo sobre sua irmã. Segundo Felis, Dorotea não se casou porque a virtude não é mais um dote e tudo se reduziu a prata e dinheiro. Enrique, que está na companhia de Arias, argumenta que são as coisas justas que devem importar a um príncipe justo, demonstrando ter pena de ver pobre um fidalgo tão honrado. Enrique só elabora essa questão porque se trata do irmão de Dorotea e, portanto, é uma observação interessada visando a aparentar ser justo. Felis o agradece e Arias não deixa de comentar que, naquele momento, Enrique ganha a seu favor o escudeiro e o irmão de Dorotea.

O personagem histórico dom Pedro destituiu seu privado Juan Afonso de Albuquerque e tornou seu favorito o irmão da amante Maria de Padilha, Diego Garcia de Padilha. Lope transfere a pecha para Enrique, que se aproxima do irmão de Dorotea para satisfazer sua lasciva. A honra de Dorotea é posta em dúvida pelo seu pretendente, dom Iuan, na mesma noite em que Enrique vai visitá-la, momento em que dom Iuan descobre que Enrique favoreceu o irmão de Dorotea e quer ajudar a remediar sua situação de solteira. Antes de sair de casa, dom Iuan informa ao seu pai, o Ventiquatro, que está saindo para a noite de encamisada. O Ventiquatro sabe para onde seu filho vai e insiste que ele não se casará com Dorotea por ela ser pobre e bachillera, ao contrário de Iuan, que tem dois mil ducados de renda. Seu pai manda-lhe ver a encamisada pela sacada. Dom Iuan finge obedecê-lo e acaba saindo.

Dorotea recebe a visita de dom Iuan e seu lacaio Chacon contra sua vontade. Ela acusa dom Iuan de estar colocando sua honra em risco, enquanto ele insiste que será seu marido. No meio da discussão, chega Felis. Dom Iuan e Chacon se escondem e ouvem Felis contando a sua irmã que virou criado do infante devido a um mal-entendido e que o infante quer ajudá-la. Quando Felis sai de cena repentinamente, sem dar muitas explicações, dom Iuan e Chacon saem do esconderijo. Dom Iuan acusa Dorotea de estar sendo servida por Enrique, embora ela diga que não sabe de nada, mas a opinião de dom Iuan é confirmada quando chega à casa de Dorotea o rei dom Pedro, o Mestre de Santiago e dom Enrique com vestidos de festa, pedindo água, o que obriga dom Iuan e Chacon se esconderem novamente. Era noite de encamisada.

Dom Pedro exalta a beleza e discrição de Dorotea. Percebendo o interesse de seu irmão dom Enrique por ela, o rei sugere a Enrique levá-la para a próxima festa. O rei percebe a humildade de Dorotea quando o escudeiro traz água em um barro. Dorotea confirma sua pobreza ao dizer que apenas ela é de prata na sua casa. Quando os príncipes saem, dom Iuan sai do esconderijo mais uma vez e, com ciúmes, acusa Dorotea de servir a Reis e Mestres, chora e ameaça morrer. Chacon burla do estado emocional de dom Iuan e acusa as mulheres de ser vidro fútil. Para Dom Iuan, a Niña de Plata passou a ser de pedra. Ele a compara com Anaxarete,1 1 Na narrativa mítica, a princesa Anaxarete vai ser punida por Vênus, que a transforma em pedra por desprezar o amor autêntico de Ifis. Inclusive Anaxarete o ironiza em seu próprio funeral, porque ele morreu pelo amor não correspondido. Iuan faz uso desse motivo mitológico devido ao senso de ser injustiçado, embora ele, não ela, esteja cometendo injustiça. Ele acha que seu amor verdadeiro está sendo preterido por ser mais baixo do que o amor de um príncipe, que não vai fazer de Dorotea uma princesa, mas apenas sua ocasional prostituta. que desprezou Ifis.

Tanto dom Iuan como Chacon vão buscar explicação da suposta atitude vil de Dorotea no gênero feminino, dentro da concepção providencialista do sexo feminino. Dorotea não consegue convencê-lo do contrário. No dia seguinte, dom Pedro sabe pelo Mestre de Santiago que o irmão Enrique sofre de amores por Dorotea. O rei propõe buscá-la naquela noite para remediar a tristeza do irmão. Arias percebe a resistência de Dorotea, como se ela quisesse ganhar fama por sua casta honra. Dom Pedro, que se mostra preocupado com seu irmão Enrique, defende que as casadas devem imitar Lucrécia2 2 Lucrécia é o emblema de nobre casada que se imola para manter sua honra depois que é estuprada por Tarquínio, epitetado como o Soberbo, emblema de Tirano. O clamor público em torno disso, segundo as lendas antigas romanas de fundação da república, é o marco divisor entre monarquia e república na história da Roma Antiga. A imolação da bela Lucrécia levou ao fim da monarquia e à construção de Tarquínio como emblema de tirano cruel. O tema de Lucrécia, morrer pela adaga/falo de Tarquínio, não é entendido como suicídio, mas como imolação na cultura letrada dos séculos XVI e XVII. O topos do sacrifício de Lucrécia seria visto como autoimolação virtuosa que leva à derrubada da tirania. em sua resistência, mas não em sua morte, a qual todos dizem que foi néscia.

Quando dom Pedro cria uma doxa própria sobre o topos erudito de Lucrécia favorável a Enrique, está indo em direção à tirania de Tarquínio, pois desqualificar o sacrifício de Lucrécia, como se fosse idiotice, é uma forma de desqualificar as consequências políticas que atingiram Tarquínio: a derrubada de um tirano. Dom Pedro queria violar a virtude de uma dama em condição vulnerável, cuja fama pública na corte como virtuosa e engenhosa lhe garantia algum respaldo social, embora também a tornasse visada por tudo isso destacar sua beleza. Dorotea é criada por uma tia não casada e subornável, que poderia ter sido ex-cortesã; não tem pais vivos e seu irmão, um néscio, é subornável como sua tia, não garantindo sua honra. O marido de Lucrécia foi promovido por Tarquínio para que se afastasse de sua casa, sendo mandado para as fronteiras de Roma como general. Ignorava as intenções de Tarquínio. A mesma inocência não se pode atribuir ao irmão de Dorotea, que, como alguém próximo da corte e com uma tia não casada, sabia perfeitamente o que significava um príncipe se interessar por uma jovem nobre de menor condição e não casada.

Um soberano não deveria usar a desigualdade de sua potência para forçar a virtude, a pretexto de testá-la, porque a própria condição régia já criaria dificuldade de um(a) súdito(a) justificar qualquer negativa à demanda régia. É o que Montaigne (1533-1592) escreve no ensaio “Dos inconvenientes das Grandezas” sobre o constante risco de a posição régia afetar seu caráter por conta da bajulação aos príncipes, podendo potencialmente transformá-los em monstros lascivos sem escuta (Montaigne, 1972MONTAIGNE, Michel. Dos Inconvenientes das Grandezas. In: MONTAIGNE, Michel. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972. Livro III, Cap.VII, p. 419-421., p. 419-421). A obrigação do Estado e da Igreja seria proteger a órfã Dorotea, e não alimentar o caminho para a infração de sua honra.

O que vemos é um rei cênico (mas também histórico), dom Pedro, atuando como gigolô para desafogos momentâneos de seu irmão, Enrique, um príncipe cênico, mas também rei histórico. São paradoxos que levam a peça a atuar também como espelho de príncipe, com uma possível crítica moral à cortesania de damas e ao problema dos dotes, algo que tratadistas católicos, particularmente doutos do clero na Espanha, já questionavam no mesmo tom de exposição de paradoxos da peça de Lope: colocar o dote e a posição de nascimento acima da virtude e compatibilidade manifestas entre noivos, gerando casamentos incompatíveis entre nobres e, por conseguinte, a banalização do amasiamento, de casamentos escondidos (por exemplo, dom Pedro e Maria de Padilha) e geração de filhos ilegítimos, algo ambíguo nas consequências públicas na escala da alta política dinástica régia.

Lope de Vega figura Enrique, das Mercês, como mais lascivo, o que não se controla, enquanto dom Pedro é figurado como menos lascivo, embora o personagem histórico tenha se apaixonado por Maria de Padilha. Na comédia de Lope, dom Pedro é mais virtuoso, está sempre preocupado com o irmão Enrique, que percebe a preocupação. Dom Pedro atua como proxeneta para seu irmão, ajudando-o a ter acesso a Dorotea. Nesse sentido, Lope o coloca como o das Mercês. Tentando apaziguar o coração de seu irmão, dom Pedro pede para Arias dar ouro e presentes para Dorotea, opinando que as damas querem ouro. Só que ele se esqueceu de que La Niña é de prata.

O rei dom Pedro, o Mestre de Santiago e dom Arias vão buscar Dorotea para levá-la até o infante, mas acontece um mal-entendido. Quem está na casa de Dorotea é Marcela, uma dama que quis se mudar porque estava tendo problemas com a dama com quem morava, uma francesa chamada Leonora. Marcela reclamou com Felis, irmão de Dorotea, o qual não se surpreendeu que duas damas formosas se invejassem, além de serem de nações diferentes. Lope parece fazer referência à dona Blanca de Bourbon, da França, com quem dom Pedro se casou e cuja nação iria lhe dar problemas. Dorotea troca de casa com Marcela. As casas ficam na mesma rua. Os cavaleiros e o rei, portanto, vão à casa de Dorotea, mas encontram Marcela. O rei a chama para dar vida a seu irmão, pensando ser Dorotea. Marcela vai até o palácio e Enrique identifica que se trata de outra mulher. Ele fica irritado pensando que queriam fazê-lo esquecer de sua amada com outra mulher, embora reconheça a preocupação de seus irmãos.

Dom Iuan também ia à casa de Dorotea depois de ter recebido uma carta dela com um soneto, cujo estilo elevado a faz se elevar ante a postura injusta de dom Iuan. Dorotea o criticava por tratá-la com desdém sem antes tê-la ouvido, e o entregava os presentes que o rei e o infante lhe haviam dado. Além de prova de virtude, os presentes valem como dote, algo exigido pelo pai de Iuan, o Ventiquatro. Dom Iuan, convencido pelo seu criado Leonelo, decide ir vê-la, reconhecendo suas desculpas, mas volta atrás quando Chacon conta que viu objetos preciosos na porta de Dorotea. Eram objetos da mudança de Marcela, e não presentes do infante, como acharam. Leonelo e Chacon aconselham dom Iuan a cortejar Marcela, dama que moraria na mesma rua de Dorotea. Leonelo recomenda pegar o ouro enviado por Dorotea e dar a Marcela. Na ocasião em que Dorotea comenta sua irritação pelo sumiço de dom Iuan para sua tia Teodora, que o critica por querer a desonra da sobrinha e dever estar já com outra dama, Leonelo mostra a casa de Marcela para dom Iuan, a casa onde mora agora Dorotea e sua tia.

Dom Iuan pensa estar cortejando Marcela. Dorotea percebe que dom Iuan não sabe que ela se mudou de casa e resolve se fingir de Marcela. O disfarce de Dorotea serve para ela informá-lo que Marcela é néscia e feia, tentando impedi-lo de se vingar da Niña de Plata. Dom Iuan conta que Dorotea lhe deu um papel com as joias que ganhou do rei e do infante e oferece as joias para “Marcela” como prova de ter esquecido a Niña. Dorotea acaba aceitando as joias. Ela joga uma fita da sacada para dom Iuan amarrar a caixa de joias e ela poder puxá-la. Quando Felis chega, dom Iuan, Leonelo e Chacon se afastam, sem reconhecer Felis. Dom Iuan vê o homem entrar na casa de Marcela, arrependendo-se de ter dado as joias para ela. Dom Iuan, Leonelo e Chacon se encaminham para a casa de Dorotea, onde Marcela está morando, mas veem pessoas na rua. Ao reconhecer o rei, quando este foi buscar Dorotea, mas na verdade buscou Marcela, dom Iuan decide voltar para a casa de Marcela.

Ele conta a Dorotea, que continua disfarçada de Marcela, que viu a Niña indo com o rei para o alcázar e que ela não o merece. Ele oferece a “Marcela” sua fazenda e dois mil escudos, que irá roubar do Ventiquatro. Dorotea perde a paciência e desvela seu disfarce. Ela o acusa de ser tão cego que sequer reconheceu a voz dela, e explica que vive na casa de Marcela para fugir do infante e que não tem pessoa mais honrada que ela. Ele ainda a questiona de ver um homem entrar em sua casa com as chaves. Ela responde ser seu irmão e o convida para entrar em sua casa para falar com ele, fazendo uma ironia com a covardia de dom Iuan, que lhe pede perdão. Dorotea prossegue com ironia, sugerindo que ele dê sua fazenda e presentes para Marcela, além de ameaçar escrever para o Ventiquatro contando sobre as maldades do filho. Dom Iuan quase perde o senso, pede para ser escutado ou se mataria. Leonelo chama a atenção de dom Iuan de estar despertando as pessoas que moram na rua e lhe pergunta se não foi melhor ele ter encontrado Dorotea, tão honrada, em vez de Marcela. Dom Iuan concorda e finalmente chama Leonelo e Chacon para ir embora.

No dia seguinte, dom Pedro sabe por Arias que a dama que trouxeram para Enrique não era quem ele queria. Foi um engano. Mas Arias tem um plano para remediar o sofrimento do infante: subornar Teodora, a tia de Dorotea. Ambos acham que as mulheres são movidas pelo leilão estratégico de suas virtudes. Teodora chega ao palácio com seu escudeiro. Ela está desacreditada com a conquista de sua sobrinha pelo ouro entre desiguais, mas aceita que Dorotea seja prostituída para servir a um nobre de origem social mais elevada. Ela deixa Dorotea vulnerável ao infante, mas não a dom Iuan, de igual posição estamental em relação à sua sobrinha. Teodora se revela no estereótipo cênico de velha, solteira e alcoviteira. Ao encontrar Enrique, ele lhe oferece seis mil ducados para se casar com Dorotea em troca de poder entrar em seu quarto.

Teodora dá as chaves da casa para Enrique e arremata: “Siempre fue/ muger quien rinde mugeres3 3 Tradução: “Sempre foi/ mulher quem rende mulheres”. (Balboa, 1617BALBOA, viuda de Alonso Martin de. Doze comedias de Lope de Vega, sacadas de sus originales por el mismo, Novena Parte. Madrid: Alonso Perez, 1617., p. 123). Enrique vai seguir as orientações de Teodora, mandando um recado falso para Felis a fim de mantê-lo fora de casa. Dom Enrique planeja sua invasão para a noite, mesmo momento em que dom Iuan, Leonelo e Chacon rondam a casa. Dom Iuan se sente culpado por ter sido ciumento com Dorotea, mas recua desiludido quando vê Enrique, o Mestre de Santiago e Arias tentando abrir a porta da casa de Dorotea. Dom Iuan vai embora, jurando não voltar mais para aquela rua. Sua desconfiança o fez negligente. Arias e o Mestre de Santiago deixam Enrique sozinho e vão para o rio.

Dorotea aparece apenas com uma capa e a roupa debaixo do braço. Ela foge de Enrique, que a persegue com a luz da lanterna e lhe conta que entrou na casa dela com a ajuda de sua tia Teodora, explicando que o amor o converteu em Júpiter:4 4 Nas narrativas míticas sobre o deus, como no caso de Danae, Júpiter invade casas e quartos de virgens e casadas, à noite, para consumar seus desejos, tendo depois que lidar com as consequências, quase sempre desfavoráveis a mulheres e às descendências geradas com elas, porque ele mesmo estaria rompendo com uma regra cosmológica criada por ele: nenhuma divindade deve se envolver com mortais. Amor me cõvierte,/ como a Iupiter en lluvia5 5 Tradução: “Amor me converte/ como a Júpiter em chuva”. (Balboa, 1617BALBOA, viuda de Alonso Martin de. Doze comedias de Lope de Vega, sacadas de sus originales por el mismo, Novena Parte. Madrid: Alonso Perez, 1617., p. 125). Dorotea usa seu engenho para insistir que o infante a escute e apague a lanterna, resistindo também à agência de seu corpo por parte de sua tia. Ela conta de seu pretendente, filho do Ventiquatro, que queria se casar com ela contra a vontade do pai, e ameaça se matar, assim como aconteceu em Roma com Lucrécia. Enrique a ouve e, em vez de se vingar dos seus desdéns, diz que não o fará com alguém que chora por outra pessoa. Ele promete casá-la com seu pretendente e sai, encenando neste momento o epíteto das mercês. Dorotea elogia o valor de um filho do rei de Espanha. No entanto, antes de querer mostrar seu valor, o infante já havia ferido o código de cavalheirismo. O cavaleiro poderia testar a virtude da dama, mas não forçá-la.

Felis, o irmão de Dorotea, entra na casa de dom Iuan como criado do infante. Felis avisa ao Ventiquatro que dom Enrique quer falar com ele no palácio. O infante oferece 20 mil ducados como dote para Dorotea se casar com o filho do Ventiquatro e oferece a este o hábito de Santiago. Ou seja, oferece muito mais do que ofereceu no suborno de Teodora. O Ventiquatro aceita o título, mostrando ser um homem interesseiro. Felis agradece dom Enrique por casar sua irmã. Quando o Ventiquatro fala com seu filho dom Iuan sobre o casamento, este reclama que seu pai aceitou seu casamento quando ele descobriu que, em vez de pobre e virtuosa, Dorotea é infame e rica. Dom Iuan conta que viu Enrique entrar na casa de Dorotea. O Ventiquatro resolve ir ao palácio novamente falar que seu filho já estava casado sem que ele soubesse.

O rei, o Mestre de Santiago e dom Arias criticam a atitude de dom Enrique, que defende seu próprio valor. Dorotea chega ao palácio com sua tia para se casar. Em seguida, chegam dom Iuan, seu pai Ventiquatro, Leonelo, Chacon e Marcela. O Ventiquatro aconselha seu filho a dizer que se casará com Marcela e diz ao infante que dom Iuan já havia se casado. Marcela desmente o Ventiquatro, dizendo estar prometida a Felis. O Ventiquatro é obrigado a dizer a verdade, que seu filho viu Enrique entrar na casa de Dorotea. Se em outro momento Enrique tentou violá-la, agora ele defende a honra de Dorotea, como a mulher mais honrada de Sevilha e Espanha. O infante conta o que aconteceu e como Dorotea resistiu a ele, se esforçando para ele deixá-la falar sobre dom Iuan. Considerando que a firmeza merece prêmio, ele promete casar Dorotea e quer ganhar fama de homem que soube vencer o apetite. Depois de ser movido por uma paixão descontrolada, ele passa a querer provar sua própria virtude.

Embora Dorotea tenha sua virtude reconhecida, dom Iuan acabou se mostrando a pessoa mais desinteressante para se insistir em casar. Ele é concebido de tal forma para ser o enamorado cômico que podemos pensar o quanto Dorotea faz um casamento moral e intelectualmente desigual, porque tem de fazer várias concessões para preservar socialmente o que seria a masculinidade aceitável para um jovem néscio e inconstante como seu noivo: se deixa levar pelas primeiras aparências das coisas e, como piolho, vive da cabeça dos outros.

O Ventiquatro finalmente é ensinado também, pela engenhosidade de Dorotea, que as virtudes são mais importantes que a riqueza. Ele não aceita o dote de Dorotea, nem o hábito, ressaltando que sua virtude e graça são maiores que seu dote. O rei dom Pedro o questiona, insistindo que quer dar o dinheiro para o dote de Dorotea, e torná-lo alcaide do alcázar. O Mestre, apesar de pobre, também dá duas vilas de dote para Dorotea, além do hábito de Santiago ao Ventiquatro. Felis responde a Marcela que será seu marido. O rei diz que quando dona Blanca chegar, ele será padrinho com ela. É a primeira e última vez que dona Blanca é mencionada, como quem estava ainda com o casamento combinado. Ela não parece estar em Castela.

A comédia acaba com os casamentos em suspenso, ainda não consumados, tanto o das personagens da peça quanto o do rei dom Pedro I com dona Blanca, o qual possivelmente não se consumou, ou se se consumou, não gerou descendente. Dom Iuan anuncia o fim da comédia, chamada “O Cortês Galã”, que pode ser ele próprio ou o lascivo infante dom Enrique. Dorotea o faz completar com “e a Niña de Plata”, situando seu protagonismo. Lope de Vega parece ter criado um espelho de príncipe para o infante, gênero o qual Lope articula tematicamente com a forma terenciana de comédia como espelho dos costumes. Trata-se de uma mulher douta ensinando a um príncipe, que irá ser convencido por ela a solucionar o conflito sobre seu casamento com outro galã.

Nas comédias impressas em vida de Lope, tivemos acesso a dois impressos de docena em que Lope aborda a história de dom Pedro I em duas comédias: Lo cierto por lo dudoso, que está na Parte Veinte das docenas (Balboa, 1625BALBOA, viuda de Alonso Martin de. Doze comedias de Lope de Vega, sacadas de sus originales por el mismo, Novena Parte. Madrid: Alonso Perez, 1617.), a qual faz parte das docenas que passaram pelo crivo de Lope; e La Carbonera, que está na Parte Veinte y dos (Verges, 1630VERGES, Pedro. Parte Veinte y dos de las comedias del Fenix de España Lope de Vega Carpio y las mejores que hasta aora han salido. Zaragoza: Jusepe Ginobert, 1630.), cuja edição não passou pelo crivo de Lope e está apresentada de forma avulsa no site da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, embora dê para ver os paratextos introdutórios com o índice de comédias. Em Lo cierto por lo dudoso, assim como em La Niña de Plata, Enrique aparece de forma mais lasciva que dom Pedro, conhecendo melhor os ambientes das casas de encontros. Os dois disputam uma dama chamada dona Iuana, que se casa com Enrique, uma possível referência a Juana Manuel de Villena. Em La Carbonera, aparecem ameaças ao reino de dom Pedro I por seus meios-irmãos, mas ele receia mais que sua meia-irmã dona Leonor se case com algum vassalo desleal. Ironicamente, ele se apaixona pela irmã, disfarçada de carbonera, algo que expõe a volúpia do rei. A comédia que passou pelo controle de Lope, portanto, a Lo cierto por lo dudoso, é mais parecida com La Niña de Plata.

Assim, embora dona Maria de Padilha não esteja presente de forma direta nessas comédias, e especificamente em La Niña de Plata, podemos inferir sua presença através do ambiente de cortesania que a peça apresenta. Além disso, não podemos esquecer que Maria de Padilha reverbera até hoje em terreiros como uma mulher sábia, tão ingeniosa quanto a dama letrada criada por Lope em La Niña de Plata. Enquanto dona Maria de Padilha é amante e depois se torna rainha, Dorotea resiste ao infante e à tentativa de agenciamento de sua tia Teodora para se casar com quem deseja, negociando sua independência além de seu nível e rompendo barreiras sociais, temas caros às Marias Padilhas de terreiros.

Referências

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  • MONTAIGNE, Michel. Dos Inconvenientes das Grandezas. In: MONTAIGNE, Michel. Ensaios São Paulo: Abril Cultural, 1972. Livro III, Cap.VII, p. 419-421.
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  • VERGES, Pedro. Parte Veinte y dos de las comedias del Fenix de España Lope de Vega Carpio y las mejores que hasta aora han salido Zaragoza: Jusepe Ginobert, 1630.
  • VIANNA, Alexander Martins. Os sagrados femininos da pombagira nas encruzilhadas morfológicas de Maria Padilha. Afro-Ásia, n. 66, p. 391-450, 2022.
  • 1
    Na narrativa mítica, a princesa Anaxarete vai ser punida por Vênus, que a transforma em pedra por desprezar o amor autêntico de Ifis. Inclusive Anaxarete o ironiza em seu próprio funeral, porque ele morreu pelo amor não correspondido. Iuan faz uso desse motivo mitológico devido ao senso de ser injustiçado, embora ele, não ela, esteja cometendo injustiça. Ele acha que seu amor verdadeiro está sendo preterido por ser mais baixo do que o amor de um príncipe, que não vai fazer de Dorotea uma princesa, mas apenas sua ocasional prostituta.
  • 2
    Lucrécia é o emblema de nobre casada que se imola para manter sua honra depois que é estuprada por Tarquínio, epitetado como o Soberbo, emblema de Tirano. O clamor público em torno disso, segundo as lendas antigas romanas de fundação da república, é o marco divisor entre monarquia e república na história da Roma Antiga. A imolação da bela Lucrécia levou ao fim da monarquia e à construção de Tarquínio como emblema de tirano cruel. O tema de Lucrécia, morrer pela adaga/falo de Tarquínio, não é entendido como suicídio, mas como imolação na cultura letrada dos séculos XVI e XVII. O topos do sacrifício de Lucrécia seria visto como autoimolação virtuosa que leva à derrubada da tirania.
  • 3
    Tradução: “Sempre foi/ mulher quem rende mulheres”.
  • 4
    Nas narrativas míticas sobre o deus, como no caso de Danae, Júpiter invade casas e quartos de virgens e casadas, à noite, para consumar seus desejos, tendo depois que lidar com as consequências, quase sempre desfavoráveis a mulheres e às descendências geradas com elas, porque ele mesmo estaria rompendo com uma regra cosmológica criada por ele: nenhuma divindade deve se envolver com mortais.
  • 5
    Tradução: “Amor me converte/ como a Júpiter em chuva”.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2023
  • Aceito
    14 Nov 2023
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