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Maiakóvski em Cuba: a visão dos trópicos em Minha descoberta da América, Sou Cuba, Tristes Trópicos e Hitler, Terceiro Mundo

Mayakovsky in Cuba: a vision of the tropics in My discovery of America, I am Cuba, Tristes Tropiques and Hitler, Third World

Resumo

Este artigo explora a ideia do “exótico” como um entre-lugar entre o novo e o familiar. É através desse lugar intermediário que Vladímir Maiakóvski, em um poema da Minha Descoberta da América, chega ao âmago dos problemas socioeconômicos de Cuba, que Fernando Ortiz analisará quinze anos mais tarde no seu Contraponto cubano do tabaco e do açúcar. Serguei Urussévski, o diretor de fotografia de Sou Cuba, assim como Claude Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos, têm que recorrer à ressaltada artificialidade das imagens para expressar “o exótico” dos trópicos. Analisando a obra do escritor e diretor brasileiro, José Agrippino de Paula, o artigo examina como tais maneiras de representar “o exótico” obriga os “habitantes” dos trópicos a duplamente exotizar e marginalizar sua autorrepresentação, para poder re-criar sua arte e identidade por meio da antropofagia, ou tropicalismo, marginal.

Palavras-chave
o exótico; transculturação; entre-lugar; cinema russo; cinema marginal

Abstract

This article explores the idea of “the exotic” as the space in-between the new and the familiar. It is through such an intermediate place that Vladimir Mayakovsky, in one his poems in My Discovery of America, is able to arrive at the core of the socio-economic problems in Cuba, which Fernando Ortiz would analyze fifteen years later in his Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Sergei Urusevsky, I am Cuba’s cinematographer, as well as Claude Lévi-Strauss in Tristes Tropiques, both resorted to the exalted artificiality of the images to express the “exotic” of the tropics. Turning to the work of the Brazilian writer and film director, José Agrippino de Paula, the article examines how such ways of representing “the exotic” force the “inhabitants” of the tropics to doubly exoticize and, thus, marginalize, their self- representation to be able to re-create their art and identity through marginal anthropophagy or tropicalism.

Keywords
the exotic; transculturation; space in-between; Russian cinema; marginal cinema

Resumen

Este artículo explora la idea de “lo exótico” como un “entre-lugar” entre lo nuevo y lo familiar. Es a través de tal espacio intermedio que Vladímir Mayakovsky puede, en un poema corto de Mi descubrimiento de América, llegar al meollo de los problemas socioeconómicos de Cuba, que Fernando Ortiz analizará quince años más tarde en su Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Sergei Urusevsky, el camarógrafo de Soy Cuba, así como Claude Lévi- Strauss en Tristes trópicos, tienen que recorrer a la exaltada artificialidad de las imágenes para expresar “lo exótico” de los trópicos. Analizando la obra del escritor y cineasta brasileño José Agrippino de Paula, el artículo examina cómo tales maneras de representar “lo exótico” obligan a los “habitantes” de los trópicos a doblemente exotizar y consecuentemente, marginalizar, su auto-representación para poder re-crear su arte e identidad por medio de la antropofagia, o tropicalismo, marginal.

Palabras claves
lo exótico; transculturación, entre-lugar; cine ruso; cine marginal

O calor estava horrível.

Bebíamos a água, mas à toa: ela imediatamente se evaporava no suor. [...] Pela manhã, fritos, assados, e cozidos, chegamos a Havana, branca tanto pelos edifícios quanto pelos seus penhascos. Se grudou uma lancha alfandegária e logo apareceram dezenas de barcos e barquinhos cheios de batata havaneira - o abacaxi.

(MAIAKÓVSKI, 1973MAIAKÓVSKI, Vladímir. Sobranie sochinenii v shesti tomach. Vol. 3. Ed. L.V. Mayakovskaya, V.V. Voroncov, V.V. Makarov. Moskva: Pravda, 1973.: 186)1 1 As traduções do russo são minhas.

Assim descreve Vladímir Maiakóvski a sua chegada a Cuba durante uma viagem ao México, no barco “Espagne”, no verão de 1925. O primeiro olhar que o poeta russo lança a Havana, sai do corpo suado, esgotado pelo calor e os longos dias de viagem, mas logo se depara com uma cidade branca e em seguida encontra analogias com o ambiente do seu próprio país: o abacaxi é para o poeta a batata de Havana. É uma metáfora lógica: pois a batata é a maior frequentadora da mesa russa, o que assombra o olhar eslávico, já que o abacaxi era fruta exótica e cara na União Soviética. Mas o seu ouvido tem menos sorte - não consegue encontrar analogias nem desfrutar da música de uma língua estrangeira porque o que ouve é o som mais quotidiano para ele - um xingamento em russo: “Nos dois barcos concorrentes dois havaneses brigavam em puro russo: ‘Para onde você acha que está indo com esse abacaxizão, seu filho da...’” (MAIAKÓVSKI, 1973MAIAKÓVSKI, Vladímir. Sobranie sochinenii v shesti tomach. Vol. 3. Ed. L.V. Mayakovskaya, V.V. Voroncov, V.V. Makarov. Moskva: Pravda, 1973.: 187). Mas talvez fosse o contrário, talvez o xingamento fosse o exótico: o comum onde se espera o exótico é exótico; o exótico em um lugar exótico além de ser normal, se dissolve naquela analogia com o comum, como para ele o abacaxi desapareceu debaixo da casca da palavra “batata”. Ou talvez não tivesse desaparecido. Talvez, nessa mistura de abacaxi e batata, o sentido se produz num espaço intermédio da união dos dois extremos que não consome nenhum dos elementos, mas exalta cada um deles, e as diferenças só consolidam a união, como nos diz o importante místico russo do século XIX, Nikolai Fiódorov. É uma união que guarda as diferenças, em vez de uma fusão que as oblitera.

No poema “Trópicos”, também se vê que, apesar de Maiakóvski ter que respirar a sua vida inteira de outra maneira depois de ter visto os trópicos, tudo o que o poeta vê é ainda interpretado pelos fenômenos ou objetos do quotidiano de um russo ou até pelos objetos considerados símbolos de seu país. As silhuetas das palmeiras são para ele vassouras, ou a mesma palavra pode significar o conjunto de galhos de uma árvore que se usa no banho tradicional russo. O cacto no poema se levanta em forma de samovar, uma chaleira enorme que se considera um dos símbolos da Rússia. Mas isso é o que o poeta diz que viu, e antes que pudesse entender a selva, a loucura, o calor e o dia, já desaparece tudo na noite que chega sem aviso. O incessante processo de procurar analogias entre o conhecido e o novo para a vista, em combinação com os “acidentes do viajar”, como os chama Claude Lévi-Strauss nos Tristes Trópicos, produz relações ambíguas entre os objetos do mundo. Por exemplo, depois de passar as suas primeiras duas semanas no território dos Estados Unidos, em Porto Rico, Lévi-Strauss achou a América na Espanha. Ou ainda, os prédios neogóticos em Bengala confundiram a sua vista que depois viu a própria Oxford como uma espécie de Índia que tivesse controlado a sua lama e seus fungos. Assim, o próprio ambiente, de repente, adquire pedaços estranhos. Ou seriam pedaços exóticos?

O que é exótico para um francês, que depois de ter penetrado em tais lugares no Brasil dos quais poucos brasileiros ouviram falar, se lembra que no escritório do seu professor George Dumas, que tem uma das paredes totalmente coberta com quadros de loucos: “Todos já se sentiam ali expostos a uma espécie particular de exotismo” (LÉVI-STRAUSS, 1957LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.: 11). Depois, Lévi-Strauss fala das coisas “dum exotismo muito mais clássico” (1957: 27LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.), tais como um passeio no Monte Pelée, na Martinica. Para Maiakóvski, os índios deveriam corresponder a sua expectativa do “exotismo clássico”, criada por suas leituras de Cooper e Mayne Reid. Por essa razão, ele fica zangado quando aqueles índios que vê no México não cumprem com essa expectativa:

Onde estão os índios? - eu perguntei ao vizinho. Esses são os índios, - disse o vizinho. Eu, até meus doze anos, era louco pelos índios de Cooper e de Mayne Reid. E agora estou aqui pasmo, como se diante de mim os pavões tivessem se tornado galinhas

(MAIAKÓVSKI, 1973MAIAKÓVSKI, Vladímir. Sobranie sochinenii v shesti tomach. Vol. 3. Ed. L.V. Mayakovskaya, V.V. Voroncov, V.V. Makarov. Moskva: Pravda, 1973.: 189)

Em Cuba, quando pela primeira vez ele realmente está diante da grandeza dos trópicos, seu assombro não deixa espaço à ironia. Depois do inicial ofuscamento pela brancura de Havana, de repente Maiakóvski enxerga o preto também. O mundo se divide em dois: o porto, onde tudo está preto devido à sujeira das tavernas, bordéis e frutas podres, e o “detrás do porto”, onde fica a cidade limpa e mais rica do mundo.

Assim, Maiakóvski, o poeta predileto de Serguei Urussévski, o diretor de fotografia do filme Soy Cuba (1964)SOY CUBA. Dir. Mikhail Kalatozov. Script Ievguênii Ievtuchenko and Enrique Pineda Barnet, 1964. Film., fez aquela primeira “descoberta da América” através de Cuba, quase quarenta anos antes da chegada da equipe de filmagem do Mosfilm em Havana. Mas como essa equipe descobriu a mesma América tantos anos depois? Como Maiakóvski, eles também veem uma Havana branca, o que pode ser o efeito do sol tropical tão chocante para os olhos de um russo. Talvez, por isso, eles precisem usar um tipo especial de filme, o infravermelho, que ajuda a passar a mesma sensação da brancura cegante que experimentam os olhos virgens frente ao excesso dos trópicos. Na tela, o espectador vê não só o branco, mas o branco que brilha. Mas esse mesmo contraste, salientado pela escolha do infravermelho por Urussévski em Soy Cuba, foi antes apreendido por Maiakóvski para traçar aquela linha invisível entre a pureza da cidade e a sujeira das suas margens que se enxergam depois do primeiro choque. Não é por casualidade que foi em Havana que ele escreveu o seu famoso poema “Black and White”, ao qual, desde o início, dá um título em inglês escrito em alfabeto cirílico, para denunciar a cumplicidade dos Estados Unidos com os problemas sociais de Cuba. Nesse poema, a experiência do contraste visual passa ao contraste socioeconômico:

Em Havana tudo está claramente delimitado: os brancos têm dólares, e os negros - não. [...] “O branco come o abacaxi maduro, O negro come do abacaxi podridão, O branco faz o trabalho branco, o negro - o trabalho preto” [...] O negro se aproxima ao branco gordo: “Ai beg er pardon, senhor Bregg! Por que o negro que é tão preto Faz o açúcar tão branco? E nem se senta bem o charuto preto no seu bigode ele é para o negro com o bigode preto. E se o senhor gosta do café com açúcar, Faça o açúcar por sua conta.

(MAIAKÓVSKI, 1926____. Blek end Uait. Krasnaia Nov’. n.1, 1926, p. 115-118.: 115-118)

É assombroso que Maiakóvski durante uma estada de poucos dias em Cuba, sentisse uma profunda conexão entre os problemas econômico-sociais e a produção de tabaco e açúcar - os personagens mais importantes da história de Cuba - confronto que, quinze anos depois, Fernando Ortiz colocará como base de seu livro Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Maiakóvski contrapõe o branco e o negro em forma de um poema, Ortiz, por sua vez, cria uma “disputa musical” (ORTIZ, 2002ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.: 27): o contrapunteo entre o açúcar e o tabaco. Embora o livro de Ortiz seja um estudo histórico, socioeconômico e etnográfico, embora o autor mesmo já na primeira página lamente não ser poeta, o que une esse livro ao poema de Maiakóvski não é só conteúdo, mas também poesia, pois “no Contrapunteo se misturam um saber científico e um conhecer poético, mas a envoltura (para usar a terminologia do tabaco) é a segunda, a poética” (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, apud ORTIZ, 2002: 95ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.)2 2 Tradução da minha autoria. . Além disso, no livro que defende o tabaco, a poesia não é alheia ao tema, já que o autor mesmo diz que há umas belezas esquivas e inspirações poéticas nas espirais de fumaça do tabaco (ORTIZ, 2002: 153ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.), e, em geral, se o trabalho do açúcar é um ofício, aquele do tabaco é arte (ORTIZ, 2002: 183ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.). Assim, Ortiz cria uma fábula com o moreno tabaco e a loira açúcar para revelar contradições econômicas e sociais, ou seja, a “dramática dialética da vida” em Cuba, que tão claramente mostra Maiakóvski no seu poema. Como o poeta russo, Ortiz contrasta os dois objetos orgânicos, começando com a oposição de suas cores que também, de certa maneira, se aproxima da poesia: “Branco é um, moreno é o outro. Doce e sem sabor é o açúcar; amargo e com aroma é o tabaco. Contraste sempre! Alimento e veneno, acordar e adormecer, energia e sonho, prazer da carne e deleite do espírito, sensualidade e ideação, apetite que se satisfaz e ilusão que se esfuma, calorias de vida e fumaceiras de fantasia” (ORTIZ, 2002: 139ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.).

O negro, no poema de Maiakóvski, rejeita o açúcar como um fato alheio ao seu mundo, algo que pertence ao mundo branco e que satisfaz os caprichos dessas pessoas. Ortiz, no seu livro, mostra que o açúcar é verdadeiramente a causa da escravidão, um fator alienante, uma imposição estrangeira. No poema de Maiakóvski, o negro vê o cigarro como mais apropriado para os negros que para os brancos, revelando uma percepção aguda da realidade cubana, já que o tabaco é a planta própria de Cuba e, além disso, o tabaco sempre tem sido relacionado com forças liberadoras. Segundo Ortiz, a nicotina, o tóxico que o tabaco contém, excita a mentalidade e a inspira diabolicamente. Ao contrário, o excesso de glicose, elemento principal do açúcar, “atola o cérebro e até provoca o embrutecimento” (ORTIZ, 2002ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.: 144), razão pela qual o tabaco seria um reformista liberal e o açúcar um conservador retardatário. É o tabaco que “espalhou pelo Velho Mundo o hálito de um novo espírito, meditador, crítico e rebelde” (ORTIZ, 2002: 155ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.). Assim, reivindicando o tabaco como seu, o negro no poema de Maiakóvski se afirma como um ser livre e como um indivíduo, em vez de um elemento da massa negra. Fumar é um ato pessoal de individualização. O consumo do açúcar, por sua vez, é um ato comum de gula. Também, a produção do tabaco gera mais individualização do artesão, com cada tabaqueiro passando por todos os passos da obra. O açúcar é um produto do engenho inteiro, com o processo dividido entre grupos diferentes. Além disso, “o açúcar se faz com ritmo coletivo; o tabaco, com melodia individual” (ORTIZ, 2002: 246ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.).

Lendo o poema de Maiakóvski, junto com o Contrapunteo, de Ortiz, se vê que o negro rejeita o açúcar, porque foi o açúcar que trouxe a escravidão para Cuba por meio dos engenhos que requeriam uma grande quantidade de mão de obra. A plantação não foi relacionada ao negro, mas ao escravo, diz Ortiz: “O açúcar foi escravidão, o tabaco foi liberdade” (ORTIZ, 2002ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.: 209). E se o primeiro criou a classe média e a burguesia livre, o segundo é a causa da divisão de classes extrema: os escravos e os senhores, os trabalhadores rurais e os fazendeiros. Por isso, para Ortiz, Cuba não alcançaria a verdadeira liberdade sem se liberar “dessa retorcida serpe da economia colonial que se nutre de seus campos, mas estrangula sua gente e se enrosca na palma de nosso escudo republicano, convertendo-a em um signo do dólar estrangeiro” (ORTIZ, 2002: 214ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.).

Para Guillermo Cabrera Infante: “Como os filmes, os charutos são o material de que são feitos os sonhos” (apud Ortiz, 2002ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.: 23). E se Maiakóvski e Ortiz, por meio do tabaco, mostram os sonhos dos negros, Urussévski, com o seu filme, mostra os sonhos de Cuba a partir de uma ótica russa. E é o filme infravermelho que ajuda a destacar esse mesmo contraste, tanto na natureza como na estrutura social. O melhor exemplo é o velho que trabalha na plantação de cana-de-açúcar. Como no poema de Maiakóvksi, contrasta-se a brancura do açúcar com a negritude dos trabalhadores. Em Soy Cuba, a mesma cana é branca e brilha como açúcar, e o velho, embora seja branco, se torna negro pelo contraste e pela cinza do fogo que ele mesmo inicia por ter chegado ao máximo de desespero.

Quando Maiakóvski divide Havana em duas partes opostas, só uma lhe parece “muito exótica”; a outra, feita dos mares de tabaco e açúcar, não só por causa dos trabalhadores russos, mas porque a realidade de um camponês na Rússia não era tão diferente. Mas o que era absolutamente desconhecido para ele eram as cores que a vegetação exibia diante dos olhos cândidos de um viajante estupefato. Num jardim no México, o poeta russo nem tenta descrever a abundância das flores e das cores que atacam os seus olhos. Simplesmente, ele a chama de “tropicalidade floral”. Lévi-Strauss é mais generoso ao fornecer ao leitor detalhes, também destacando variações de tons do verde: “o verde mais jovem e mais delicado que se possa conceber”, “o verde dos campos de juta no delta Bramaputra”, “suas tonalidades de verde evocam o mineral mais do que o vegetal” (LÉVI-STRAUSS, 1957LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.: 91). Esse efeito quase embriagante da vegetação dos trópicos é chamado, por Lévi-Strauss, de choque dos trópicos, o qual ele também sentiu indo do Rio a São Paulo: “sinto aqui o primeiro choque dos trópicos. Um canal verdejante nos circunda” (LÉVI-STRAUSS, 1957: 91LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.).

Quanto a Serguei Urussévski, para se falar de sua percepção dos trópicos, é importante notar que ele também era pintor. Não só operando a câmera, mas também em frente ao cavalete. E, como lembram os seus amigos, não era tímido com relação às cores: “[v]erdes brilhantes, azuis profundos, estalidos de vermelho” (PINEDA BARNET, 1963BARNET, Enrique Pineda. Después de pasar un charco. Cine Cubano, Habana, n. 9, 1963.: 59). Ele gostava de pintar durante o verão, por causa das cores saturadas das flores e do verdor, talvez pela influência de Henri Matisse, o pintor que ele mais admirava. Diz-se que um cinegrafista é, antes de tudo, um pintor, não só porque sabe ver, não apenas olhar, mas também porque deve inventar as maneiras de mostrar o que ele vê. Pergunto-me por que um admirador de um quadro como Sorrow of the King, um pintor que “via na cor e nos tons a estrutura principal da imagem pictórica” (GONCHAROV, 1976GONCHAROV, A. Prólogo del catálogo de la exposición de su obra pictórica presentada en Moscu. In: Pinturas y dibujos de Serguei Pavlovich Urusevski (1908-1974). La Habana: Museo Nacional, Palacio de Bellas Artes, 1976.), e que pintou o quadro Os telhados vermelhos em Cuba (Fig. 1), escolheria filmar em branco e preto depois de ver a rica paleta com a qual os trópicos o provocavam? Segundo as próprias palavras de Urussévski, eles tinham medo de que as cores os levariam à exotização: “o céu azul, as palmeiras intoleravelmente verdes” (MERKEL, 1980MERKEL, Maia. Ugol zreniia (dialog s Urusevskim). Moskva: Iskusstvo, 1980.: 76). Será essa a outra razão de recorrer ao tipo de filme infravermelho, para mostrar que o verde dos trópicos é outro verde mas, ao mesmo tempo, sem querer exotizar a paisagem? Em vez de tentar mostrar a infinidade de seus detalhes, o diretor de fotografia também prefere unir essa abundância numa “tropicalidade floral”, envolvendo toda a vegetação com uma brilhante cobertura de açúcar. Ou talvez, essa mesma sensação de ausência, produzida por um filme em preto e branco num lugar de explosão de cores, instigasse a Urussévksi a poetizar a paisagem. Por isso também o chamam de poeta cinematográfico. Mikhail Kalatozov, o diretor de Soy Cuba também dizia que o tipo de cinema que fazia era o cinema do imaginário poético. Além disso, o propósito do filme para os criadores russos era “[d]ifundir, através da cinematografia mundial, toda a poesia e transcendência histórica da Revolução Cubana [como a] [...] melhor resposta às agressões do imperialismo norteamericano contra Cuba” (“Filmarán en enero la película Soy Cuba”, 1962____. Filmarán en enero la película “Soy Cuba”. Noticias de Hoy, 23 Nov. 1962.). Para os dois, e para Ievtuchenko também, a única maneira certa de expressar adequadamente a realidade de Cuba, era por meio da poesia. Urussévski disse que já que a equipe russa era de estrangeiros em Cuba, não poderia criar um cine-romance por não possuir um conhecimento profundo da vida em Cuba e por isso decidiram fazer um cine-poema sobre Cuba, seu povo e sua revolução:

decidimos que a solução artística do filme residia em realizar um roteiro que fosse como um poema dedicado a esse país. Nos poemas, não se requerem esses detalhes sociológicos e de hábitos necessários num romance. O poema requer imagens muito claras, muito definidas que penetram rapidamente na imaginação. (MANET, 1964MANET, Eduardo. 80 minutos con Serguei Urusevski. Cine Cubano, Habana , n. 20, 1964, p. 5.: 5)3 3 Tradução da minha autoria.

Figura 1
Serguei Urussévski, Os telhados vermelhos. Crédito: Arquivos do ICAIC (Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos)).

Assim, não é casualidade que poetas foram convidados para fazer o roteiro. Mas Soy Cuba é um poema não só pelo seu roteiro, mas também pela poesia inscrita na imaginação dos criadores. Por exemplo, Urussévski, numa palestra sobre o filme, citava os poemas de Maiakóvski e Iessiênin - devido ao desejo do cinegrafista de usar a imagem até o limite, como o fazia Maiakóvski com a palavra. Também uns dias antes da sua segunda viagem a Cuba, Kalatozov, Urussévski e Svidetelev, o pintor do filme, em uma entrevista a Iugov, disseram que o filme ia começar com os versos do poema de Nicolás Guillén, “Un lagarto verde”.

Assim, esse filme se torna a poesia construída de imagens filmadas com ajuda do negativo e lentes especiais. “Utilizamos o filme infravermelho e uma lente especial de foco muito curto, que distorce as imagens porque assim cremos dar uma visão poética e epopeica da gesta revolucionária e do povo cubano”4 4 Tradução da minha autoria. , explica Urussévski na revista Revolución, de 4 de agosto de 1964. Além disso, utilizando a câmera, Urussévski preenche o filme de recursos poéticos: metáforas, epítetos, metonímias etc. Por exemplo, a água que se verte sobre o objetivo, na cena do flashback do velho (Fig. 2), distorce e borra as imagens criando uma presença física das lembranças do passado no presente. Pode-se dizer que é uma metáfora quando a chuva do exterior penetra nas recordações, recurso que, segundo o diretor, em consonância com Eisenstein, seria a única maneira de criar uma representação verdadeira, que atinge com imagens metafóricas em vez de literais.

Figura 2
Fotograma de Soy Cuba. A câmera com a água no objetivo. Crédito: Enrico Dragoni, “Slat-Inc - Soy Cuba”. <http://www.youtube.com/watch?v=4HZr2xaS1Pg>

Mas também a maneira de filmar a cena pode ter a ver com a primeira experiência da chuva tropical que descreve Maiakóvski:

O que é chuva? É o ar com uma camada de água. A chuva tropical é mera água com uma camada do ar. (MAIAKÓVSKI, 1973MAIAKÓVSKI, Vladímir. Sobranie sochinenii v shesti tomach. Vol. 3. Ed. L.V. Mayakovskaya, V.V. Voroncov, V.V. Makarov. Moskva: Pravda, 1973.: 187)

Por isso, a chuva penetra até dentro da câmera para, ao mesmo tempo, criar uma sensação de conquista total do espaço pela chuva tropical e uma atmosfera de tristeza. Junto com a água na lente da câmera, o espectador percebe a própria câmera também, e “fazer a câmera ser sentida”, segundo Pasolini (apud Deleuze, 1986DELEUZE, Gilles. Cinema 1. The Movement-Image. Translated by Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam. Minneapolis: University of Minnesota, 1986.: 74), é parte da poesia do cinema.

Continuando o tema da água, o único oceano que existe na Rússia é o Oceano Glacial Ártico, que, claramente, não atrai muitos visitantes, nem russos, nem estrangeiros. Uma viagem pelo ou sobre o Atlântico, tanto para Maiakóvski como para a equipe da Mosfilm, deveria ser o primeiro encontro com uma quantidade de água tão enorme, que produz uma sensação de onipotência, perceptível no primeiro corte do filme de Kalatozov (Fig. 3) e nas palavras de Maiakóvski: “O oceano é uma questão da imaginação. [...] Só a imaginação de que à direita não há terra até o polo e que à esquerda não há terra até o polo, adiante - uma luz completamente nova, secundária, e debaixo de você, talvez, Atlântida -, só essa imaginação é o Oceano Atlântico” (MAIAKÓVSKI, 1973MAIAKÓVSKI, Vladímir. Sobranie sochinenii v shesti tomach. Vol. 3. Ed. L.V. Mayakovskaya, V.V. Voroncov, V.V. Makarov. Moskva: Pravda, 1973.: 183). No seu poema, “O Oceano Atlântico”, o poeta o denomina pela expressão “da minha revolução o irmão mais velho”, pela imensidade, o labor, o sangue e o espírito que os dois compartem. Assim, se pode dizer que, no filme, a imagem do oceano antecede a revolução. E é com a revolução que o filme termina, dessa maneira fechando o círculo.

Figura 3
Fotograma de Soy Cuba. As primeiras cenas de Soy Cuba. Crédito: Irina Aleksandrovna Ierisanova, “‘Ia - Cuba’ natchalo filma”. <http://www.youtube.com/watch?v=UDF03EpeDkw>.

Por sua vez, o que fascinou Lévi-Strauss no seu encontro com os trópicos não foi tanto o que ele viu, mas o tamanho do que viu, a enormidade da paisagem. Assim, não é a diferença da paisagem, mas são as proporções em relação ao espectador que produzem a sensação do exótico, do desconhecido. Talvez, essa seja outra explicação para o desejo dos russos de procurar outra maneira de mostrar o que lhes surpreendeu tanto, para dar ao espectador uma ideia dessa enormidade desconhecida, que capturou seus olhares. E eram as cores novas, desconhecidas sobre a água que deveriam evocar no espectador a mesma sensação do enorme e do desconhecido.

O que segue a essa imagem é a vista de uma terra virgem que parece ter sido congelada no momento em que era “descoberta” por Cristóvão Colombo. Aliás, Maia Merkel nota que, com esse filme, Urussévski tinha que ser o “Colombo cinematográfico” (MERKEL, 1980MERKEL, Maia. Ugol zreniia (dialog s Urusevskim). Moskva: Iskusstvo, 1980.: 77) para os espectadores russos, para a maioria dos quais Cuba era uma terra desconhecida. A primeira frase da sinopse, inédita, diz: “A ilha se balança entre o contraste da vida miserável e enlanguescente das zonas como aquela pela qual desembarcou Colombo em 1492” (Arquivos do ICAIC)5 5 Com a ajuda do Latin American Studies Program Field Grant (Boston University), realizei a pesquisa no ICAIC em Cuba, onde recolhi os materiais sobre o trabalho da equipe de Kalatozov, no filme Soy Cuba, e as resenhas nas revistas locais sobre a recepção do filme pelos cubanos. . Assim aparece Havana também para Maiakóvski:

Num relance Havana parece um país-paraíso, um país ideal. Em uma patinha sob a palma flamingos imóveis crescem. Vedado coberto com o véu floreal.

(MAIAKÓVSKI, 1973MAIAKÓVSKI, Vladímir. Sobranie sochinenii v shesti tomach. Vol. 3. Ed. L.V. Mayakovskaya, V.V. Voroncov, V.V. Makarov. Moskva: Pravda, 1973.: 47)

Do mesmo jeito, aparece o interior do porto de Santos para Lévi-Strauss: “O interior de Santos, planície inundada, crivada de lagunas e de pântanos [...] parece a própria Terra emergindo do início da criação” (LÉVI-STRAUSS, 1957LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.: 91). Para Eisenstein, por sua vez, México é um país “onde tudo tem o espírito da criação primordial e elementar e ao mesmo tempo - eterna. Como se o mundo orgânico viesse assim nos primeiros dias da gênese” (EISENSTEIN, 1995EISENSTEIN, S.M. Beyond the Stars: The Memoirs of Sergei Eisenstein. Calcutta: Seagull Books, 1995.: 380).6 6 Tais comparações dos países tropicais com o paraíso não são completamente arbitrárias. Ortiz fala de várias tentativas de mostrar que o Éden esteve no Novo Mundo.

No seu poema “Cristóvão Colombo”, Maiakóvski confessa que a única coisa que lhe agradava ao aproximar-se do México era a ideia de que as mesmas ondas tocaram Colombo, nas mesmas águas estavam caindo as cansadas gotas de suor colombino, e o mesmo céu viu o enlouquecido marinheiro gritando “Olhem, terra!”. O poeta se imagina um novo Colombo, já que até o seu livro é chamado Minha descoberta da América. Mas se em Soy Cuba a narradora de Cuba se queixa da descoberta, Maiakóvski não só chama Colombo de idiota, mas também de uma maneira jocosa propõe uma solução ao problema. Diz que se ele próprio fosse Colombo, cobriria a América (criando um jogo com a palavra “descobrir”), a lavaria e a descobriria novamente.

Ver os trópicos para Maiakóvski é ver abacaxi como batata. Não se pode dizer que Maiakóvski somente os compara, é mais uma superposição, quase uma montagem7 7 O que Silviano Santiago chamaria o “entre-lugar” (SANTIAGO, 2001: 25-38). . Essa alusão cinematográfica é comparável com a descrição de Lévi-Strauss da nossa percepção do passado. Ao trocar a distância temporal entre o objeto mesmo e a nossa memória do objeto pela distância geográfica, podem-se aplicar estas palavras de Lévi-Strauss à nossa maneira de “montar” os pedaços de um mundo sobre o outro:

Entre esses dois penhascos, mantendo à distância meu olhar e o seu objeto, os anos que os arruínam começaram a amontoar os destroços. As arestas diminuem, pedaços inteiros desmoronam; os tempos e os lugares chocam-se, justapõem-se ou invertem-se, como os sedimentos deslocados pelos temores duma crosta envelhecida. (LÉVI-STRAUSS, 1957LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.: 38-39)

Por isso, surgem palmeiras-vassouras, cactos-samovares de Maiakóvski e “sheep tree”, a maneira dos primeiros exploradores de chamar o algodão. Tais analogias inesperadas entre os objetos, são, na verdade, absolutamente previsíveis. Lévi-Strauss diz que, antes da sua viagem ao Brasil e América do Sul, ele imaginava os países exóticos serem totalmente contrários ao seu país e afirma que não teria acreditado, se alguém lhe tivesse dito naquela época, que alguns animais e plantas podiam compartilhar as mesmas características nos dois lados do planeta. Pensava ele que cada animal, cada árvore, cada objeto deveria ser radicalmente diferente. Essa premeditada distância do mundo, ainda não visto, permite ver essas conexões que nunca surgiriam ao ver os objetos de perto, ou seja, permite fazer uma transição descontínua entre duas ordens da qual fala Lévi-Strauss: “para atingir o real, é necessário primeiramente repudiar o vivido, prontos a reintegrá-lo em seguida numa síntese objetiva, despojada de qualquer sentimentalidade” (LÉVI-STRAUSS, 1957LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.: 56). Quanto a Urussévski, a primeira viagem a Cuba produziu nele uma necessidade de procurar uma nova forma de expressão visual, porque cada país tem seu próprio rosto, e Cuba, para Urussévski, era absolutamente única quanto a sua paisagem, seu caráter. Esta é uma das razões pela qual Urussévski usa a lente com distância focal de 9,8, o que “dá a oportunidade de ver uma impressão muito profunda da imagem” (SANTOS, 1964SANTOS, Juan Carlos. Tiene gran futuro el cine cubano”. El mundo, n. 31, Jul. 31, 1964.) e de mostrar os objetos de uma maneira absolutamente nova. Numa entrevista, Urussévski afirma:

Sim, como me impressionou a lente de 9,8! No início, quando apenas ajustei pela primeira vez, não podia entender nada. Estava no barquinho, imóvel, no mesmo lugar. Me inclino um pouco para atrás e no quadro aparece o plano geral. Me inclino um pouco para a frente e no quadro - só as pernas. Sublime! Isso produzia um efeito completamente novo! (apud MERKEL, 1980: 77-78MERKEL, Maia. Ugol zreniia (dialog s Urusevskim). Moskva: Iskusstvo, 1980.)

Uma sensação de artificialidade da paisagem parece estar sempre presente na percepção de Lévi-Strauss. Mesmo na sua primeira observação da chegada ao Rio, compara a cidade a um salão - “Minha observação inicial é fútil: estou num salão” (LÉVI-STRAUSS, 1957LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.: 81) - e com uma reconstrução “ao ar livre [d]as Gallerias de Milão, [d]a Galerij de Amsterdam, [d]a passagem dos Panoramas ou a sala de espera da estação de Saint-Lazare” (LÉVI-STRAUSS, 1957: 84LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.). E, para explicar a diferença da floresta tropical, ele vai ao museu, para apontar nos quadros de Douanier Rousseau, em cujas paisagens exóticas os seres vivos logram a dignidade dos objetos. Corumbá também, por sua vez, lhe parece ser imaginada para fazer parte dos romances de Jules Verne. Mas parece que é só através das artes que Lévi-Strauss é capaz de organizar, para um europeu, o desconcertante mundo dos trópicos, que, no seu livro adquire uma dualidade de ser uma selva virgem e, ao mesmo tempo, ser descrita por meio do artifício. Procurando as possíveis explicações dessa dualidade, pensa-se que, desde que o mundo começa a ser explicado para uma criança, se estabelecem bases antagônicas: o mundo da natureza e o mundo do artifício. Uma dicotomia que não aceita híbridos. Mas quando essa natureza é diferente daquela a qual estamos acostumados, como, por meio dessas duas categorias, expressar o quanto é diferente essa outra natureza? Isso se faz possível só por meio do artificial, ou, seja, indo ao museu como Lévi-Strauss, ou convertendo o verde em dourado, como o fazem Urussévksi e Kalatozov.

Os trópicos amaldiçoados vistos por Lévi-Strauss são levados ao limite no filme Hitler, Terceiro Mundo, de José Agrippino de Paula. Nele, aparece um Hitler produzido nos trópicos pelos próprios habitantes dos trópicos, é um Hitler tropicalizado. Aqui, José Agrippino não procura decidir se abacaxi é como batata ou batata é como abacaxi, mas, pelo contrário, mistura os dois como partes integrantes dos trópicos, da mesma maneira que nas suas escritas - romance Lugar Público, epopeia PanAmérica e peça de teatro Nações Unidas - Agrippino “propõe o texto multinacional, que assume a perspectiva industrial, tecnológica e hiperbólica do universo das multinacionais” (HOISEL, 1980HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.: 152).

Se, à primeira vista, Lévi-Strauss, Eisenstein, Maiakóvski, Kalatozov e Urussévski veem os trópicos como uma terra virgem, parada no dia da gênese, o filme mostra a sua própria versão de Adão e Eva, que aparecem numa paisagem cheia de lixo. Adão e Eva que quase não são capazes de caminhar (Fig. 4). Eva sem a tentação da serpente, já tendo vergonha da sua nudez, tenta cobrir os seios e, no final da cena, se esconde atrás da pedra.

Figura 4
Fotograma de Hitler, Terceiro Mundo. Homem e mulher que parecem representar o dia da criação. Crédito: Fredson Clayton, “Filme - Hitler 3º Mundo (1968)”. <http://www.youtube.com/watch?v=Re8D0LD7U-0&t=1s>

Trata-se de uma selva onde se sentam juntos Jesus Cristo, Pedro, os fascistas, uma espécie de Hulk tropical que fuma cigarros, e um enorme pênis (Fig. 5) que aparece uma vez mais na sequência de tortura e castração de um homem. Essa concentração de personagens num só lugar no Brasil reflete o fato de que a década de 1960 - o filme foi lançado em 1968 - foi “quando o movimento da história em escala mundial parecia eleger como epicentro de transformações o chamado Terceiro Mundo” (XAVIER, 1993XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1993.: 9).

Figura 5
Fotograma de Hitler, Terceiro Mundo. Jesus Cristo, Pedro, os fascistas, uma espécie de Hulk tropical e um enorme pênis numa reunião. Crédito: Fredson Clayton, “Filme - Hitler 3º Mundo (1968)”. <http://www.youtube.com/watch?v=Re8D0LD7U-0&t=1s>

Esses são os trópicos que não têm língua própria: comunicam-se por meio dos ruídos mecânicos, gemidos dos animais e pessoas torturadas, dos discursos dos políticos espalhados pela televisão e gravações tocadas ao contrário. Se alguém fala, abre a boca mas não se ouve o que diz. É interessante pensar nisso porque, segundo Jean-Claude Bernardet, foi só na década de 1960 que o cinema brasileiro atinge a qualidade de um cinema “essencialmente falado, e também chegava às telas o português falado no Brasil” (BERNARDET, 2009BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: Propostas para uma história. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.: 21). Antes dos anos 1960, os filmes, em sua maioria estrangeiros, não eram dublados e se usavam legendas. Assim, se pode dizer que os filmes eram meio-lidos. Nos filmes brasileiros, para não serem considerados “vulgares”, procurando “um arremedo de dignidade cultural, falavam um português castiço, estilo escrito, não raro com sotaque português devido à presença de atores portugueses no teatro brasileiro” (BERNARDET, 2009: 21BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: Propostas para uma história. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.).

Um dos filmes que marcou o momento de mudança foi A Opinião Pública, de Arnaldo Jabor, no qual, na maioria do tempo, falam as pessoas da rua. Mas, muitas vezes, as palavras perdem sua importância pela trivialidade do assunto da conversa, como, por exemplo, na discussão de três garotas que tratam de decidir se uma relação por simpatia é carnal ou se a verdadeira paixão é espiritual. Há um momento em que o espectador já não presta atenção ao discurso sério de um velho respeitado e aparentemente inteligente, pois um menino fazendo caretas, imitando o velho, dançando e mostrando a bunda, toma o lugar central da sequência. Em outra cena, falam jovens tão bêbados ou drogados que suas palavras se fazem difíceis de entender. De maneira parecida, no primeiro romance de José Agrippino de Paula, Lugar Público, muitos dos diálogos, embora sejam entre César, Napoleão, Cícero, Isaís ou Moisés, tratam de coisas triviais. Em algumas partes, soam absolutamente estranhos, carecendo de qualquer sentido. Mas, se no filme o propósito foi mostrar as cenas e os diálogos típicos, é porque, como a voz narradora explica no início, “fugimos do exótico e do excepcional e procuramos situações, os rostos, as vozes, os gestos habituais. Isto porque refletidas numa tela, as coisas que parecem comuns e eternas, se revelam estranhas e imperfeitas”.

O filme A Opinião Pública saiu em 1967, um ano antes do filme de Agrippino, mas dois anos depois de Lugar Público. É notável a semelhança dos dois títulos. Se hoje há um inexplicável silêncio sobre o romance, no momento da sua publicação recebeu elogios, como do crítico Nogueira Moutinho:

Raros romances nestes últimos anos causaram-me impacto tão poderoso já à primeira leitura. (...) José Agrippino de Paula é romancista nato, desses que trazem na massa mesmo do sangue o chamado irrecusável à criação romanesca. (...) Romance escrito sem luvas, em assepsia, sem desinfecções prévias, criado pela totalidade do ser de seu responsável (palavras na orelha da segunda edição, Lugar Público). Nesta novela, como em PanAmérica e Nações Unidas, a própria linguagem se pulveriza, “através de uma atomização do discursivo” (HOISEL, 1980HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.: 117).

Cada uma dessas obras se constrói de fragmentos desconectados juntando-se em uma colagem. Criando o tecido da sua obra a partir de pedaços da história e da mitologia, Agrippino constrói essa nova imagem da qual fala Deleuze, uma das características da qual é a consciência de clichês. Clichês são as únicas ligaduras que ainda ficam para conectar os fragmentos de nossa realidade que é “dispersiva e lacunária” (DELEUZE, 1986DELEUZE, Gilles. Cinema 1. The Movement-Image. Translated by Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam. Minneapolis: University of Minnesota, 1986.: 208):

Elas são essas imagens flutuantes, esses clichês anônimos, que circulam no mundo externo, mas que também penetram cada um de nós e constitui seu mundo interno, deste jeito todos possuem só os clichês psíquicos através dos quais ele pensa e sente, é pensado e é sentido, sendo ele mesmo um clichê entre os outros no mundo que o rodeia (DELEUZE, 1986DELEUZE, Gilles. Cinema 1. The Movement-Image. Translated by Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam. Minneapolis: University of Minnesota, 1986.: 208-209).

Pode-se acrescentar o nome de Agrippino à lista de Deleuze dos escritores e cineastas cuja obra é um tecido de clichês - Dos Passos, Altman, Lumet, Scorsese.

A parte que parece beirar a loucura no Lugar Público, na verdade, é uma écfrase dos quadros do pintor holandês Hieronymus Bosch. Por exemplo, o narrador diz: “Atravessei a ponte sobre o rio e avancei em direção à margem. O inverno era intenso e fui obrigado a colocar os patins para deslizar sobre a superfície lisa de gelo” (PAULA, 2004PAULA, José Agrippino de. Lugar Público. São Paulo: Papagaio, 2004.: 149). A descrição se parece com o detalhe do rio no quadro O Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch (Fig. 6), em que as pessoas e outras criaturas têm que vestir os patins para atravessar o rio, mesmo que seja a única coisa que vestem. Ou, por exemplo, a seguinte conversa parece descrever o quadro Extração da Pedra da Loucura (Fig. 7):

O velho perguntou: “O senhor é cirurgião?”. Eu respondi: “Entendo um pouco de medicina; mas não finalizei o curso”. O velho continuou: “Eu queria ser submetido a um exame”. Eu respondi em seguida dizendo que o meu funil na cabeça era símbolo de cirurgião especializado em moléstias do cérebro. O velho sorriu alegremente e me entregou dois martelinhos e um prego de dez centímetros. Iniciei o meu exame dando umas batidinhas na orelha do velho” (PAULA, 2004PAULA, José Agrippino de. Lugar Público. São Paulo: Papagaio, 2004.: 149).

Figura 6
Hieronymus Bosch, fragmento de Jardim das Delícias Terrenas.

Figura 7
Hieronymus Bosch, Extração da Pedra da Loucura.

Embora neste quadro o “cirurgião” não bata o prego na orelha, um prego ou uma agulha na orelha é uma imagem muito frequente nas obras de Bosch (Fig. 8).

Figura 8
Hieronymus Bosch, fragmento de Jardim das Delícias Terrenas

Por sua vez, outro fragmento do romance parece écfrase do quadro O Prestigiador (Fig. 9): “Para me distrair resolvi jogar. Um comerciante depositava dois copos sobre a mesa e escondia uma bolinha de ferro sob um deles. A minha probabilidade de ganhar era idêntica à do comerciante. Joguei cinco vezes, mas em nenhuma delas acertei onde estava a bolinha de ferro” (PAULA, 2004PAULA, José Agrippino de. Lugar Público. São Paulo: Papagaio, 2004.: 149-150). Depois, o narrador entra numa barca que parece ser o Navio dos Loucos de Bosch (Fig.10):

Entrei na barca e um padre cedeu-me um lugar ao seu lado. Frente a mim um outro padre tocava alaúde e cantava uma canção. O padre sentado ao meu lado pretendia segurar o meu pênis, mas foi advertido pelo outro que tocava alaúde. Na proa da barca três bêbados lançavam garrafas de vinho para o rio, e estas garrafas eram apanhadas por dez ou quinze miseráveis que nadavam nus acompanhando a barca. Três destes miseráveis levavam tigelas nas mãos e pediam pão para o padre. (PAULA, 2004PAULA, José Agrippino de. Lugar Público. São Paulo: Papagaio, 2004.: 150).

Figura 9
Hieronymus Bosch, O Prestigiador.

Figura 10
Hieronymus Bosch, Navio dos Loucos.

Também aparecem tais detalhes como “um peixe de pernas humanas e botas [que] engolia um homem”, que pode referir-se a uma criatura de O Carro de Feno (Fig. 11).

Figura 11
Hieronymus Bosch, fragmento de O Carro de Feno.

Embora pareçam sem o menor sentido, algumas imagens das pinturas de Bosch são uma representação visual das expressões comuns que usava o povo naquela época. Segundo Beagle, “Bosch constantemente lança mão do material folclórico também, recorrendo aos provérbios, aforismos e superstições; dramatizando qualquer tipo de slogan, quer como elemento central, ou só um comentário à parte, quase subliminal na sua mundanidade” (BEAGLE, 1982BEAGLE, Peter S. The Garden of Earthly Delights. New York: A Studio Book/The Viking Press, 1982: 33-88.: 33). Para ilustrar, na Holanda a frase “o mundo está patinando sobre o gelo” usava-se para dizer que “o mundo se desliza e derrapa descontroladamente em direção à maldade” (BEAGLE, 1982: 88BEAGLE, Peter S. The Garden of Earthly Delights. New York: A Studio Book/The Viking Press, 1982: 33-88.). Em geral toda a pintura de Bosch se converte em uma escritura com imagens: “No inferno de Bosch, tudo é uma gíria visual, uma representação física das crenças populares” (BEAGLE, 1982: 51BEAGLE, Peter S. The Garden of Earthly Delights. New York: A Studio Book/The Viking Press, 1982: 33-88.). Assim, colocando a fala do povo nos trípticos, o pintor trouxe a língua falada ao lugar reservado para a solenidade. Do mesmo jeito, fazem Agrippino e Jabor ao trazerem a trivialidade da vida quotidiana à tela e à literatura. Não é em vão que Agrippino, às vezes, é chamado de “James Joyce brasileiro”. Assim, no romance, a destruição do sentido semântico parece ter o mesmo propósito que têm os quadros de Bosch.

Ao tratar a questão da linguagem, Agrippino compartilha a preocupação dos outros diretores daquela época. Segundo Ismail Xavier, essa questão é uma das duas perguntas centrais que eles tratavam de resolver. A outra era o subdesenvolvimento como uma “condição de incompletude, de falta, que separa a experiência observada de uma experiência-matriz mais plena, situada ‘em outro lugar’” (XAVIER, 1993XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1993.: 10). Tanto no filme quanto em seus escritos, Agrippino desenvolve a sua própria linguagem e logra uma “ruptura em relação aos discursos artísticos anteriores” (HOISEL, 1980HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.: 14). E, a partir da ruptura linguística, “uma desagregação também dos valores culturais” (HOISEL, 1980: 17HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.) e “uma regressão a uma espécie de massa confusa primordial: ao caos” (HOISEL, 1980: 125HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.). É uma antropofagia marginal ou um tropicalismo marginal8 8 Caetano Veloso define o tropicalismo – movimento influenciado por PanAmérica – como um “neo- antropofagismo” (HOISEL, 1980: 37). Para mais informação sobre a influência do livro de Agrippino no Tropicalismo veja Evelina Hoisel, Supercaos. Os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas, (1980: 13-14, 144-147). , que já não tem o otimismo do “Manifesto antropófago”, nem reclama seu lugar no palco internacional, à diferença do tropicalismo, e fica bem longe de se preocupar com o público. Para essa época, o público já se converteu, segundo Bernardet, “numa palavra vazia de sentido ou num mito indefinido em nome do qual se aprova ou desaprova qualquer coisa” (BERNARDET, 2009BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: Propostas para uma história. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.: 219). Como um exemplo dessa atitude, podem servir as instruções de Agrippino para a sua peça de teatro Nações Unidas, na qual diz que várias cenas, tomadas do texto em qualquer ordem, devem transcorrer ao mesmo tempo para que o espectador não entenda nenhum dos diálogos e só capte algumas palavras e fragmentos de cada um deles simultaneamente.

Se Maiakóvski, falando dos trópicos, critica ao mesmo tempo o capitalismo e a divisão classista da sociedade, se Lévi-Strauss, ao tentar entender os trópicos, entende quanto absurdo é a sua própria sociedade europeia e critica a barbárie da civilização, Agrippino de Paula em vez de continuar as dicotomias, coloca juntos, na mesma cama, o capitalismo e o fascismo (Fig. 12).

Figura 12
Fotograma de Hitler, Terceiro Mundo. Um homem coberto com a bandeira estadunidense na cama com Hitler. Crédito: Fredson Clayton, “Filme - Hitler 3º Mundo (1968)”. <http://www.youtube.com/watch?v=Re8D0LD7U-0&t=1s>

Em vez de criticar o fato de que o Terceiro Mundo é visto, pelo Primeiro Mundo, como um mundo de anões, o filme salienta isso na cena em que a câmera passa entre as pernas do mesmo homem da bandeira americana para focar as duas anãs (Fig. 13). Aqui a câmera passando entre as pernas do mesmo homem da bandeira americana. No outro corte, uma delas tem um dólar grande e está sobre um pequeno pódio com as palavras “mais baixa”.

Figura 13
Fotograma de Hitler, Terceiro Mundo. A câmera passando entre as pernas do homem da bandeira americana mostra as duas anãs. Crédito: Fredson Clayton, “Filme - Hitler 3º Mundo (1968)”. <http://www.youtube.com/watch?v=Re8D0LD7U-0&t=1s>

Se antropofagia e o tropicalismo tomavam as ideias que saíam da Europa ou dos Estados Unidos para devorá-las e “vomitar” uma nova mistura, que era própria deles, esse filme toma as ideias que o mundo tem sobre os próprios artistas do Terceiro Mundo, as devoram e produzem uma nova criação. Mas esta nova criação resulta em um caos, ou “supercaos”, nas palavras de Hoisel (1980HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.: 28), que parece carecer de algum sentido. “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”, diz Paulo Emílio Salles Gomes (1997GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.: 90). Começando já com a questão da criação do mundo, as noções de “nada” e de “caos” têm sido estreitamente relacionadas. Mas se o conceito de “nada”, nas palavras de Gomes, pressupõe uma conotação negativa, o caos pode ser visto como um conceito positivo, especialmente se pensarmos naquela famosa frase de Zaratustra, de Nietzsche: “Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante” (NIETZSCHE, 2002NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Translated by José Mendes de Souza. São Paulo: eBooksBrasil, 2002.: 21). Assim, esse caos não é a negação da existência da identidade, mas o material para desenvolvê-la, é, ao mesmo tempo, desagregador e instaurador de uma nova consciência” (HOISEL, 1980HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.: 117) ou “um novo cosmo”, como em PanAmérica e Nações Unidas, em que se instala uma visão “do mito escatológico de regressão ao caos [...] onde o caos se exacerba para que, chegando ao ponto de máxima saturação, possa instaurar um novo cosmo (HOISEL, 1980: 114HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.). Hoisel chama o caos que cria Agrippino “supercaos” porque ele, sendo “uma lente mais possante [...] permite filtrar o caos, para que as coisas apareçam em suas dimensões reais” (HOISEL, 1980: 55HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.).

Deleuze chama esse estado de um mundo originário “feito dos fragmentos, cabeças sem pescoços, olhos sem rostos, braços sem ombros, gestos sem forma. Mas isso é também o conjunto que une tudo, não em uma organização, mas fazendo todas as partes convergirem em uma caçamba enorme ou um pântano, e todos os impulsos em um grande impulso da morte. Assim o mundo originário é ao mesmo tempo um início radical e um fim absoluto; e finalmente ele liga um com o outro, ele coloca um dentro do outro” (DELEUZE, 1986DELEUZE, Gilles. Cinema 1. The Movement-Image. Translated by Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam. Minneapolis: University of Minnesota, 1986., p. 124) ou o que Fellini chamaria procadence, indicando uma inevitável decadência e ao mesmo tempo uma possibilidade da criação que a acompanha. O mundo originário é “um lugar de transbordo” (DELEUZE, 1986: 125DELEUZE, Gilles. Cinema 1. The Movement-Image. Translated by Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam. Minneapolis: University of Minnesota, 1986.) e “só existe e funciona nas profundidades do ambiente real” (DELEUZE, 1986: 125DELEUZE, Gilles. Cinema 1. The Movement-Image. Translated by Hugh Tomlinson and Barbara Habberjam. Minneapolis: University of Minnesota, 1986.). Essas descrições de Deleuze do mundo originário podem ser aplicadas tanto ao filme de Agrippino, quanto a sua obra escrita. Por exemplo, no final de PanAmérica, tudo se funde numa “água quente e escura do lago [...] com a multidão de homens, mulheres, objetos, fragmentos de árvores, caravelas, violinos, santos, bispos, vietcongs, sapos armados” (PAULA, 1988____. PanAmérica. São Paulo: Limonad, 1988.: 254) e aparece “a curvatura da Terra, o mar brilhante e azul, as nuvens brancas e as montanhas. A Terra se elevava velozmente aproximando-se. A cidade imersa na bruma, e os edifícios pontiagudos se elevavam transportando-se rapidamente para onde eu estava” (PAULA, 1988: 259____. PanAmérica. São Paulo: Limonad, 1988.). Assim, o mundo retorna para a sua origem, o que parece ser a sua única salvação, e o que já pressentia Maiakóvski, querendo “cobrir” América, lavá-la e des-cobri-la de novo. Também Deleuze dizia: “O passado antigo ou recente tem que ser julgado, ir para o tribunal [...] Um forte julgamento ético deve condenar a justiça das ‘coisas’, trazer uma compaixão, anunciar a aproximação de uma civilização nova, em suma, constantemente redescobrir a América...” (DELEUZE, 1989: 151____. Cinema 2. The Time-Image. Translated by Hugh Tomlison and Robert Galeta. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989.).

Agrippino de Paula copia as imagens esperadas de uma obra nos trópicos mas levando-o até o extremo absurdo. Por exemplo, se a paisagem deve ser exótica, mas são as mais ordinárias paisagens de São Paulo, o diretor as faz exóticas só girando a câmera 360 graus e tocando uma música flamenca. Já que os grupos marginais são vistos como uma massa negra, separada para, na verdade, ser ignorada, Agrippino de Paula não o denuncia, mas leva a imagem até o limite com um samurai-gueixa dando-lhes folhas de comer como se aqueles fossem animais. Com efeito, a animalização no filme acontece em todos os níveis. No nível visual, há os macacos torturadores que, provavelmente, representam os oficiais do departamento de torturas do qual, no início do filme, fala Hitler. No nível auditivo, muitas vezes aparecem os sons de diferentes animais: cachorros, galinhas, elefantes.

No seu blog, no qual fala e reúne as citações sobre Hitler, Terceiro Mundo, Mário Pazcheco diz que “com este filme Zé conseguiu imortalidade e foi banido para além do 4º Mundo”. Assim se pode dizer que Agrippino “cobriu” a América de novo, como propôs Maiakóvski, para poder limpá-la e descobri-la de novo. Lévi-Strauss diz que o viajante europeu se desconcerta com a paisagem que não corresponde a nenhuma das categorias tradicionais. E se não a transforma, simplesmente não a eleva “à categoria de paisagem” (LÉVI-STRAUSS, 1957: 95LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Translated by Wilson Martins. São Paulo: Anhembi, 1957.), em outras palavras, simplesmente a ignora, como se ela não existisse. O filme, sem nenhuma referência aos trópicos, no entanto, cria essa sensação desconcertante que produz uma selva tropical de não poder conter tudo dentro de um sistema, ou dentro de um sistema geral. Desse jeito, sai dos sistemas para viver nos seus trópicos marginais. Assim, ao criar um filme marginal, José Agrippino de Paula mostra um bom entendimento das necessidades da época. No mesmo ano que sai Hitler, Terceiro Mundo, em 1968, Bernardet escreve em A Gazeta: “Só marginalizando socialmente o Cinema Novo poderá ser criador e expressar, consequentemente, a cultura brasileira. Este é o papel que lhe cabe: marginalizado e criador” (BERNARDET, 2009BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: Propostas para uma história. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.: 140). Mas isso é também o que produz o silêncio da crítica em torno das obras de Agrippino, deixando que o marginal fique verdadeiramente marginal.

As traduções do russo são minhas.

Tradução da minha autoria.

Tradução da minha autoria.

Tradução da minha autoria.

Com a ajuda do Latin American Studies Program Field Grant (Boston University), realizei a pesquisa no ICAIC em Cuba, onde recolhi os materiais sobre o trabalho da equipe de Kalatozov, no filme Soy Cuba, e as resenhas nas revistas locais sobre a recepção do filme pelos cubanos.

Tais comparações dos países tropicais com o paraíso não são completamente arbitrárias. Ortiz fala de várias tentativas de mostrar que o Éden esteve no Novo Mundo.

O que Silviano Santiago chamaria o “entre-lugar” (SANTIAGO, 2001SANTIAGO, Silviano. The Space In-Between. Essays on Latin American Culture. Edited by Ana Lúcia Gazzola. Durham: Duke University Press, 2001.: 25-38).

Caetano Veloso define o tropicalismo - movimento influenciado por PanAmérica - como um “neo- antropofagismo” (HOISEL, 1980HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.: 37). Para mais informação sobre a influência do livro de Agrippino no Tropicalismo veja Evelina Hoisel, Supercaos. Os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas, (1980HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.: 13-14, 144-147).

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  • 1
    As traduções do russo são minhas.
  • 2
    Tradução da minha autoria.
  • 3
    Tradução da minha autoria.
  • 4
    Tradução da minha autoria.
  • 5
    Com a ajuda do Latin American Studies Program Field Grant (Boston University), realizei a pesquisa no ICAIC em Cuba, onde recolhi os materiais sobre o trabalho da equipe de Kalatozov, no filme Soy Cuba, e as resenhas nas revistas locais sobre a recepção do filme pelos cubanos.
  • 6
    Tais comparações dos países tropicais com o paraíso não são completamente arbitrárias. Ortiz fala de várias tentativas de mostrar que o Éden esteve no Novo Mundo.
  • 7
    O que Silviano Santiago chamaria o “entre-lugar” (SANTIAGO, 2001: 25-38SANTIAGO, Silviano. The Space In-Between. Essays on Latin American Culture. Edited by Ana Lúcia Gazzola. Durham: Duke University Press, 2001.).
  • 8
    Caetano Veloso define o tropicalismo – movimento influenciado por PanAmérica – como um “neo- antropofagismo” (HOISEL, 1980: 37HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.). Para mais informação sobre a influência do livro de Agrippino no Tropicalismo veja Evelina Hoisel, Supercaos. Os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas, (1980: 13-14, 144-147HOISEL, Evelina. Supercaos. Os estilhaços da culatura em “PanAmérica” e “Nações Unidas”. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1980: 14-152.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2016
  • Aceito
    15 Mar 2017
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