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Oito poemas de Jaime Gil de Biedma: A invenção de um personagem

Eight poems by Jaime Gil de Biedma: The invention of a character

Resumo

Ao entender que sua obra poética estava terminada, o poeta espanhol Jaime Gil de Biedma titulou seu último livro como Poemas póstumos, em 1968. Entre outros motivos, o personagem poético reflete sobre a profunda crise de identidade que lhe provoca o final da juventude. Neste trabalho apresento minha versão ao português de oito poemas deste poemário.

Palavras-chave:
Jaime Gil de Biedma; Poemas póstumos; poesia espanhola

Resumen

Al entender que su obra poética estaba terminada, el poeta español Jaime Gil de Biedma tituló su último libro como Poemas póstumos, en 1968. Entre otros motivos, el personaje poético reflexiona sobre la profunda crisis de identidad que le provoca el final de la juventud. En este trabajo presento mi versión al portugués de ocho poemas de este poemario.

Palabras clave:
Jaime Gil de Biedma; Poemas póstumos; poesía española

Abstract

On understanding that his poetic work was finished, the Spanish poet Jaime Gil de Biedma titled his last book Poemas póstumos, in 1968. Among other reasons, the poetic character reflects on the deep identity crisis that causes him to end his youth. In this work I present my Portuguese version of eight poems of this book.

Keywords:
Jaime Gil de Biedma; Poemas póstumos; Spanish poetry

Suspeito que escrever poesia, para mim, foi uma tentativa de invenção, ou seja, de invenção de um personagem.

Jaime Gil de Biedma

Poeta, ensaísta e autor de um diário, Jaime Gil de Biedma (Barcelona, 1929 - Barcelona, 1990) publicou seu último livro independente com o título de Poemas póstumos, em 1968, ao entender que sua obra estava terminada. Nasceu no seio de uma família burguesa, estudou Direito e, desde os 25 anos, trabalhou na Companhia Geral de Tabacos das Filipinas, onde viria a ser secretário geral. Esta circunstância provocou que se transladasse a Manila em 1956 - experiência narrada em Retrato do artista em 1956, espécie de diário escrito com o propósito de adestrar-se na prosa - e que viajasse ao arquipélago em numerosas ocasiões. Comungou com os pensamentos políticos de esquerda e participou na luta antifranquista, embora lhe foi negado o ingresso ao Partido Comunista por ser homossexual.

Sua obra poética completa, publicada pela primeira vez em 1975 e intitulada As pessoas do verbo, é composta pelos livros: Segundo sentença do tempo (1953), Companheiros de viagem (1959), Moralidades (1966) e Poemas póstumos (1968). Posteriormente, foi reeditada várias vezes com alguns poemas novos. A última e mais completa é a edição utilizada nesta tradução, Obras: poesia e prosa (GIL DE BIEDMA, 2010GIL DE BIEDMA, Jaime. Obras: poesia e prosa. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2010.), que reúne, além de As pessoas do verbo, o diário Retrato do artista em 1956, seus ensaios, sob o título de O pé da letra, e um extenso apêndice que reúne diversos textos e traduções realizadas por Gil de Biedma.

Os temas fundamentais de sua poesia são a passagem do tempo e a experiência amorosa. Etiquetado como “poeta da experiência”, Gil de Biedma preferia considerar-se “da vivência”, pois “o que acontece em um poema jamais aconteceu a um”. Em sua poesia convivem o coloquial, o lírico e a ironia, e confluem os dados pessoais e as circunstâncias históricas, muitas vezes em forma de conversação. Em abril de 1965, o autor escreve uma poesia para uma antologia de poesia social, na qual afirma que seus versos:

não aspiram a ser a expressão incondicionada de uma subjetividade, mas a expressar a relação em que esta se encontra com respeito ao mundo da experiência comum. É a interação entre esses dois fatores - experiência comum e subjetividade - o que poeticamente me interessa: ambos devem ficar expressos em uma relação particular que constitui o tema do poema. (DE LUIS, 1965DE LUIS, Leopoldo. Antología de la poesía social. Madrid: Alfaguara, 1965., p. 105).

Em relação à poesia social da época, os poetas barceloneses Jaime Gil de Biedma, José Agustín Goytisolo e Carlos Barral, junto ao antólogo Josep Maria Castellet e o crítico Jaime Salinas, promoveram as iniciais estratégias promocionais do grupo poético dos anos 50. A ideia foi criada nos dias 21, 22 e 23 de fevereiro de 1959, enquanto se celebrava o 20° aniversário da morte de Antonio Machado na localidade francesa de Collioure, lugar onde o poeta tinha falecido pouco depois de se exilar. Entre outros intelectuais, nesta homenagem participaram os poetas espanhóis Jaime Gil de Biedma, Carlos Barral, José Agustín Goytisolo, José Ángel Valente, Alfonso Costafreda, Ángel González, Ángel Crespo, Jesús López Pacheco e José Manuel Caballero Bonald. Na sequência desse encontro e convencidos de que estava nas suas mãos

a possibilidade de fazer respeitar a poesia que precisamente nós que estávamos ali e uns poucos mais tentamos fazer e sobretudo predicávamos como proposta de substituição da poesia oficializada pelas antologias dos últimos tempos - que nos ignoravam - ou as revistas literárias - que nos tinham por forasteiros - ou a inércia dos professores e dos bebedores de café com leite na capital (BARRAL, 1982BARRAL, Carlos. Los años sin excusa. Madrid: Alianza, 1982., p. 76),

os poetas de Barcelona iniciam uma operação que comporta dois movimentos independentes: a redação de uma antologia de seu grupo promocional e uma lenta e duradoura gestão editorial, que defenda os novos pressupostos da poesia do realismo social que desejavam estabelecer. Nos seus melhores exemplos, esta desmitifica e questiona a história que os franquistas transmitiram, e concebe-se como parte fundamental da memória coletiva que deve ser recuperada. Portanto, a biografia pessoal é fundida com a vivência coletiva, e observa-se com desconfiança a concepção oficial da pátria durante a pós-guerra.

Na casa de Josep Maria Castellet, Jaime Gil de Biedma, José Agustín Goytisolo e Carlos Barral realizam as “manobras de oficina” que conduzirão à redação da antologia Vinte anos de poesia (1939-1959) e, um lustro depois, em versão ampliada, a Um quarto de século de poesia espanhola (1939-1964). Além desta antologia, a homenagem machadiana sugeriu também o nome Colliure para a nova coleção de poesia crítica que publicaria a editora Literaturasa, dirigida por Jaime Salinas, em Barcelona, com a qual pretenderam provar a vigência de um “realismo histórico” de suposta ascendência machadiana, publicando aos poetas da promoção anterior - Gabriel Celaya, Eugenio de Nora, Blas de Otero e Gloria Fuertes - e aos da promoção dos 50 - Jaime Gil de Biedma, Carlos Barral, José Ángel Valente, José Manuel Caballero Bonald, José Agustín Goytisolo, Ángel González e Jesús López Pacheco.

Portanto, embora sua obra, depois de Companheiros de viagem, afaste-se dos pressupostos da poesia social, convém recordar que Jaime Gil de Biedma foi um dos criadores desta suposta geração com o propósito de promover sua poesia. A esse respeito, é interessante a carta que, em 30 de novembro de 1959, Jaime Gil de Biedma escreve a José Ángel Valente, pois reflete sobre a lírica que está desenvolvendo nesses anos, a qual participa do denominado “realismo social” e expõe o rumo poético que decidiu empreender:

A ideia me veio relendo os poemas irônico-morais da segunda parte de Companheiros de viagem. Acredito que o seu sucesso reside em ter tido mais ou menos consciência de que este tipo de poesia requer a conversão do eu que fala em personagem: o que neles está é Jaime Gil de Biedma impersonating Jaime Gil de Biedma. (VALLADARES, 2017VALLADARES, Saturnino. Retrato de grupo con figura ausente. Edición y análisis de la correspondencia entre José Ángel Valente y los poetas españoles de su edad. Ourense: Deputación de Ourense, 2017., p. 166).

Os poemas a que se refere são “Idílio no café” ou “Infância e confissões”. Nestes tem origem o personagem poético que se desenvolverá em Moralidades e se concluirá em Poemas póstumos. Este tem uma dívida iniludível com a literatura inglesa, que tantas conexões apresenta com sua poesia e seus ensaios, não só estilística, mas também temática: “Jaime Gil de Biedma impersonating Jaime Gil de Biedma”. Do mesmo modo, a má consciência de classe que aparece em “O nome de hoje”, poema que abre Moralidades - “que me envergonho / da porrada que não me deram, / filhos de boas famílias / por má consciência escritores / de poesia social” - é um tema que Gil de Biedma aprende em Auden, Spender, Day-Lewis e Mac-Neice. A presença da literatura inglesa também se registra em Poemas póstumos, pois se abre com uma epígrafe do Don Juan do poeta romântico Lord Byron, e fecha o poema “De vita beata” em sua primeira edição - não na definitiva - com outra citação do mesmo poema narrativo: “He was a Greek, and on his isle had built / (one of the wild and smaller Cyclades) / A very handsome house from out his guilt”.

Escrito entre 1965 e 1967, Poemas póstumos se afasta da poesia social que Gil de Biedma tinha praticado em seus começos, e um desencanto vital percorre a maioria dos textos que, com o passar dos anos, refletem a perda da fé “na grande história”. Embora já se registre em Moralidades, a profunda crise de identidade que lhe provoca o final da juventude estimula a escrita de alguns dos Poemas póstumos mais bem-sucedidos, como “Contra Jaime Gil de Biedma”, “Depois da morte de Jaime Gil de Biedma” ou “Não voltarei a ser jovem”: “Mas passou o tempo / e a verdade desagradável assoma: / envelhecer, morrer, / é o único argumento da obra”. A consciência da idade e a depressão, provocadas pela morte de familiares e amigos, dão lugar a poemas como “Do ano ruim”, “Através do espelho”, “Últimos meses” ou “São conversas de família”, em que dialoga com seu pai, morto recentemente.

Em “Um corpo é o melhor amigo do homem” e “Para Gustavo, em seus sessenta anos”, atravessada a fronteira da juventude, o personagem Jaime Gil de Biedma tenta convencer-se de que ainda pode ser feliz. Às vezes, consciente das limitações da idade, pensa alcançar este estado aceitando uma nova ordem de viver. Isso acontece em “Pios desejos para começar o ano”, “Resolução” ou o monólogo dramático “Artes de ser maduro”. Porém, o desejo pelos corpos jovens não o abandona e lhe provoca um íntimo conflito, de modo exemplar no autocrítico “Contra Jaime Gil de Biedma”. Na opinião de seu autor, este poema “vem representar a assunção e a rejeição do personagem, metaforicamente levantado através de uma briga entre amantes; só que, neste caso, os amantes são duas dimensões da mesma identidade”. Gil de Biedma considerava que este poema era a melhor ideia de poeta que tinha concebido.

Em outros poemas, como “Príncipe de Aquitânia, em sua torre abolida”, “Ultramort”, “De senectute” e “De vita beata”, o autor de 40 anos vestiu sua personagem com o pessimismo e as dores da velhice, “uma segunda infância prolongada”. “Depois da morte de Jaime Gil de Biedma” justifica o título deste livro: Poemas póstumos. James Valender considera que o medo que lhe provocava a depressão e a ideia do suicídio motivou este nostálgico texto, que termina com a trajetória do jovem boêmio de sua poesia anterior e, em consequência, com o personagem criado e com a própria obra poética. A este respeito, Jordi Doce considera que Gil de Biedma:

não destruiu a palavra, mas se destruiu a si mesmo nela, representando seu suicídio e também uma espécie de pós-vida, de idealizada morte-em-vida, que tornava impossível toda continuação; só desde uma suprema incoerência ideológica e até vital teria podido alcançá-la. (DOCE, 2013DOCE, Jordi. Las formas disconformes. Madrid: Libros de la resistencia, 2013., p. 53).

No Retrato do artista em 1956, o jovem Gil de Biedma tinha afirmado que a poesia “é a única coisa que realmente me importa”, que durante anos "Eu aspiro a ser um grande poeta”, e que sua vida “tem sido e está determinada desde os dezenove anos pela ideia fixa de que eu era, de que eu devo ser poeta [...], estou igualmente convencido de que no dia em que eu deixar de me considerar poeta, será muito difícil considerar que existo”. No entanto, passados os anos, na nota preliminar a O pé da letra, o escritor maduro reflete desencantado sobre a verdade ontológica com a qual tinha entendido a poesia:

Estar convencido de que escrever um punhado de bons poemas é a única coisa que realmente importa na vida, certamente continua me parecendo maravilhoso, embora seja uma convicção que a partir de certa idade, e salvo admiráveis exceções, só se pode manter a força de se fazer, com excessiva frequência, o idiota. (GIL DE BIEDMA, 2010GIL DE BIEDMA, Jaime. Obras: poesia e prosa. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2010., p. 491).

Ao entender que sua obra terminou, Gil de Biedma contempla o personagem inventado e medita com amargura e ceticismo sobre suas intenções poéticas:

A minha poesia consistiu - sem eu o saber - numa tentativa de inventar para mim uma identidade; depois de inventada, e assumida, não me ocorre já aquele apostar-me inteiro em cada poema que me levava a escrever, que era o que me apaixonava. Outra, que tudo foi um equívoco: eu supunha que queria ser poeta, mas no fundo queria ser poema. (GIL DE BIEDMA, 2010GIL DE BIEDMA, Jaime. Obras: poesia e prosa. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2010., p. 82).

Em relação com o título de sua obra poética completa, As pessoas do verbo, acho conveniente distribuir os diferentes papéis: o eu para a evocação, o tu - que é um eu desdobrado - para conversar, discutir e refletir desde a distância, e o nós, referencial e comprometido socialmente com seu tempo e espaço. As três pessoas do verbo constituem o poema Jaime Gil de Biedma, a invenção de um personagem que existe, póstumo e vivo, nas entrelinhas destes versos.

Tradução

Contra Jaime Gil de Biedma Que adianta, gostaria de saber, mudar de apartamento, deixar para trás um sótão mais negro que a minha reputação - e já é dizer -, por cortinas brancas e contratar criada, renunciar à vida de boêmio, se vens tu depois, babaca, embaraçoso hóspede, bobo vestido com meus ternos, zangão de colmeia, inútil, néscio, com tuas mãos lavadas, a comer em meu prato e a sujar a casa? Te acompanham os balcões dos bares últimos da noite, os chulos, as floristas, as ruas mortas da madrugada e os elevadores de luz amarela quando chegas, bêbado, e paras para te ver no espelho a cara destruída, com olhos ainda violentos que não queres fechar. E se te increpo, ris, me lembras o passado e falas que envelheço. Poderia te lembrar que já não tens graça. Que teu estilo casual e que teu desenfado resultam truculentos quando se tem mais de trinta anos, e o teu encantador sorriso de menino sonolento - certo de agradar - é um resto penoso, uma tentativa patética. Enquanto tu me fitas com teus olhos de verdadeiro órfão, e me choras e me prometes já não fazê-lo. Se não fosses tão puta! E se eu não soubesse, há tempo, que tu és forte quando eu sou fraco e que és fraco quando me enfureço... De teus regressos guardo uma impressão confusa de pânico, de pena e descontentamento, e a desesperança e a impaciência e o ressentimento de voltar a sofrer, mais uma vez, a humilhação imperdoável da excessiva intimidade. Com grande esforço, te levarei para a cama, como quem vai ao inferno para dormir contigo. Morrendo a cada passo de impotência, tropeçando nos móveis, às apalpadelas, atravessaremos o piso torpemente abraçados, vacilando de álcool e de soluços reprimidos. Oh ignóbil servidão de amar seres humanos, e a mais ignóbil que é amar a si próprio! Contra Jaime Gil de Biedma De qué sirve, quisiera yo saber, cambiar de piso, dejar atrás un sótano más negro que mi reputación -y ya es decir-, poner visillos blancos y tomar criada, renunciar a la vida de bohemio, si vienes luego tú, pelmazo, embarazoso huésped, memo vestido con mis trajes, zángano de colmena, inútil, cacaseno, con tus manos lavadas, a comer en mi plato y a ensuciar la casa? Te acompañan las barras de los bares últimos de la noche, los chulos, las floristas, las calles muertas de la madrugada y los ascensores de luz amarilla cuando llegas, borracho, y te paras a verte en el espejo la cara destruida, con ojos todavía violentos que no quieres cerrar. Y si te increpo, te ríes, me recuerdas el pasado y dices que envejezco. Podría recordarte que ya no tienes gracia. Que tu estilo casual y que tu desenfado resultan truculentos cuando se tienen más de treinta años, y que tu encantadora sonrisa de muchacho soñoliento -seguro de gustar- es un resto penoso, un intento patético. Mientras que tú me miras con tus ojos de verdadero huérfano, y me lloras y me prometes ya no hacerlo. Si no fueses tan puta! Y si yo no supiese, hace ya tiempo, que tú eres fuerte cuando yo soy débil y que eres débil cuando me enfurezco... De tus regresos guardo una impresión confusa de pánico, de pena y descontento, y la desesperanza y la impaciencia y el resentimiento de volver a sufrir, otra vez más, la humillación imperdonable de la excesiva intimidad. A duras penas te llevaré a la cama, como quien va al infierno para dormir contigo. Muriendo a cada paso de impotencia, tropezando con muebles a tientas, cruzaremos el piso torpemente abrazados, vacilando de alcohol y de sollozos reprimidos. Oh innoble servidumbre de amar seres humanos, y la más innoble que es amarse a sí mismo! Não voltarei a ser jovem Que a vida era para ser levada a sério um começa a compreendê-lo mais tarde - como todos os jovens, eu vim a levar a vida por diante. Deixar marca queria e partir entre aplausos - envelhecer, morrer, eram somente as dimensões do teatro. Mas passou o tempo e a verdade desagradável assoma: envelhecer, morrer, é o único argumento da obra. No volveré a ser joven Que la vida iba en serio uno lo empieza a comprender más tarde -como todos los jóvenes, yo vine a llevarme la vida por delante. Dejar huella quería y marcharme entre aplausos -envejecer, morir, eran tan sólo las dimensiones del teatro. Pero ha pasado el tiempo y la verdad desagradable asoma: envejecer, morir, es el único argumento de la obra. Príncipe de Aquitânia, em sua torre abolida Uma clara consciência do que perdeu é o que o consola. Levanta-se todas as manhãs a falecer, percorre os cômodos onde surdamente dói o tempo que se deteve, a ferida mal fechada. Dura em lugar nenhum este outro mundo, e retorna pela noite nas paragens do sono cansativo... Reino seu dourado, quantas vezes por ele pergunta na metade do dia, com o temor de esquecer algo! As horas, longa viagem desabrida. A história é um instante preferido, um tesouro em imagens, que ele guarda para sua necessária consulta com a morte. E o fim da história é esta pausa. Príncipe de Aquitania, en su torre abolida Una clara conciencia de lo que ha perdido, es lo que le consuela. Se levanta cada mañana a fallecer, discurre por estancias en donde sordamente duele el tiempo que se detuvo, la herida mal cerrada. Dura en ningún lugar este otro mundo, y vuelve por la noche en las paradas del sueño fatigoso... Reino suyo dorado, cuántas veces por él pregunta en la mitad del día, con el temor de olvidar algo! Las horas, largo viaje desabrido. La historia es un instante preferido, un tesoro en imágenes, que él guarda para su necesaria consulta con la muerte. Y el final de la historia es esta pausa. Depois da morte de Jaime Gil de Biedma No jardim, lendo, a sombra da casa me escurece as páginas e o frio repentino do final de agosto faz que pense em ti. O jardim e a casa próxima onde piam os pássaros nas trepadeiras, uma tarde de agosto, quando vai escurecer e se tem ainda o livro na mão, eram, lembro, símbolo teu da morte. Tomara que no inferno de teus últimos dias esta visão te desse um pouco de doçura, embora não acredito. Em paz ao fim comigo, posso já te recordar não nas horas horríveis, mas aqui no verão do ano passado, quando atropeladamente - tantos meses apagadas - regressam as imagens felizes trazidas por tua imagem da morte… Agosto no jardim, em pleno dia. Copos de vinho branco deixados na grama, perto da piscina, calor sob as árvores. E vozes que gritam nomes. Ángel, Juan, Maria Rosa, Marcelino, Joaquina - Joaquina dos peitinhos de maçã. Tu voltavas rindo do telefone anunciando mais gente que vinha: lembro-te correndo, a amortecida explosão de teu corpo na água. E as noites também de liberdade completa na casa espaçosa, toda para nós o mesmo que um convento abandonado, e a nostalgia de portas secretas, aquele correr pelos quartos, procurar nos armários e se divertir na alternância da nudez e a fantasia, desempoeirando batas, botas altas e calções, arbitrárias cenas, velhos sonhos eróticos de nossa adolescência, menino solitário. Lembras-te de Carmina, da gorda Carmina subindo a escada com a bunda empinada e levando na mão um candelabro? Foi um verão feliz. … “O último verão da nossa juventude”, disseste a Juan em Barcelona ao regressar nostálgicos, e tinhas razão. Depois veio o inverno, o inferno de meses e meses de agonia e a noite final de comprimidos e álcool e vômito no tapete. Eu me salvei escrevendo depois da morte de Jaime Gil de Biedma. Dos dois, eras tu quem melhor escrevia. Agora sei até que ponto eram teus o desejo sonhador e a ironia, a surdina romântica que pulsa nos poemas meus que prefiro, por exemplo em “Pandémica…”. Às vezes me pergunto como será sem ti minha poesia. Embora talvez fui eu quem te ensinou. Quem ensinou a vingar-te de meus sonhos, por covardia, corrompendo-os. Después de la muerte de Jaime Gil de Biedma En el jardín, leyendo, la sombra de la casa me oscurece las páginas y el frío repentino de final de agosto hace que piense en ti. El jardín y la casa cercana donde pían los pájaros en las enredaderas, una tarde de agosto, cuando va a oscurecer y se tiene aún el libro en la mano, eran, me acuerdo, símbolo tuyo de la muerte. Ojalá en el infierno de tus últimos días te diera esta visión un poco de dulzura, aunque no lo creo. En paz al fin conmigo, puedo ya recordarte no en las horas horribles, sino aquí en el verano del año pasado, cuando agolpadamente -tantos meses borradas- regresan las imágenes felices traídas por tu imagen de la muerte… Agosto en el jardín, a pleno día. Vasos de vino blanco dejados en la hierba, cerca de la piscina, calor bajo los árboles. Y voces que gritan nombres. Ángel, Juan, Maria Rosa, Marcelino, Joaquina -Joaquina de pechitos de manzana. Tú volvías riendo del teléfono anunciando más gente que venía: te recuerdo correr, la apagada explosión de tu cuerpo en el agua. Y las noches también de libertad completa en la casa espaciosa, toda para nosotros lo mismo que un convento abandonado, y la nostalgia de puertas secretas, aquel correr por las habitaciones, buscar en los armarios y divertirse en la alternancia de desnudo y disfraz, desempolvando batines, botas altas y calzones, arbitrarias escenas, viejos sueños eróticos de nuestra adolescencia, muchacho solitario. Te acuerdas de Carmina, de la gorda Carmina subiendo la escalera con el culo en pompa y llevando en la mano un candelabro? Fue un verano feliz. … “El último verano de nuestra juventud”, dijiste a Juan en Barcelona al regresar nostálgicos, y tenías razón. Luego vino el invierno, el infierno de meses y meses de agonía y la noche final de pastillas y alcohol y vómito en la alfombra. Yo me salvé escribiendo después de la muerte de Jaime Gil de Biedma. De los dos, eras tú quien mejor escribía. Ahora sé hasta qué punto tuyos eran el deseo de ensueño y la ironía, la sordina romántica que late en los poemas míos que yo prefiero, por ejemplo en “Pandémica…”. A veces me pregunto cómo será sin ti mi poesía. Aunque acaso fui yo quien te enseñó. Quien te enseñó a vengarte de mis sueños, por cobardía, corrompiéndolos. Ultramort Uma casa deserta que eu amo, a duas horas daqui me serve de consolo. Em suas telhas roídas pela erva a lua se extenua, dorme o sol do tempo. Entre seus muros o silêncio existe que agora eu imagino - sonhando com viver uma segunda infância prolongada até o esgotamento de ser carnal, feliz. Me assomarei calado a ver o dia, contente de estar sozinho com a vida bastante. Encontrar na cama outro corpo, não mais que algumas noites, será como banhar-me. Ultramort Una casa desierta que yo amo, a dos horas de aquí me sirve de consuelo. En sus tejas roídas por la hierba la luna se extenúa, se duerme el sol del tiempo. Entre sus muros el silencio existe que ahora yo imagino -soñando con vivir una segunda infancia prolongada hasta el agotamiento de ser carnal, feliz. Me asomaré callado a ver el día, contento de estar solo con la vida bastante. Encontrar en la cama otro cuerpo, no más que algunas noches, será como bañarme. Artes de ser maduro A José Antonio Ainda a velha tentação dos corpos felizes e da juventude tem atrativo para mim, não me deixa dormir e esta noite me excita. Porque alguém contou histórias de pescadores na praia, quando voltam: a linha do amanhecer marcando, lívida, o limite do mar, e assam sardinhas frescas em espetos, sobre a areia. Imagino-o num instante. E pega-me um desejo de viver e ver amanhecer, me deitando tarde, que não está em proporção com a idade que já tenho. Embora talvez alivie acordar a outro ritmo, amanhã. Liberado das exaltações desta noite, de seus fantasmas em blue jeans. Como livros lidos passaram os anos que vão ficando longe, já sem razão de ser - obras de outro momento. E a ânsia de chorar e o toque do lençol, que me tinha inquieto nas odiosas noites de verão, o luxo de impaciência e o dom da elegia e o dom de disciplina aplicada aos devaneios, a minha fé na grande história... Soldado da guerra perdida da vida, mataram meu cavalo, quase não o lembro. Até que me arrepia um flagelo de sensualidade. Envelhecer tem a sua graça. É como quando jovem aprender a dançar, dobrar-se a um ritmo mais insistente que a nossa inexperiência. E procura também certo instintivo prazer curioso, uma segunda natureza. Artes de ser maduro A José Antonio Todavía la vieja tentación de los cuerpos felices y de la juventud tiene atractivo para mí, no me deja dormir y esta noche me excita. Porque alguien contó historias de pescadores en la playa, cuando vuelven: la raya del amanecer marcando, lívida, el límite del mar, y asan sardinas frescas en espetones, sobre la arena. Lo imagino en seguida. Y me coge un deseo de vivir y ver amanecer, acostándome tarde, que no está en proporción con la edad que ya tengo. Aunque quizás alivie despertarse a otro ritmo, mañana. Liberado de las exaltaciones de esta noche, de sus fantasmas en blue jeans. Como libros leídos han pasado los años que van quedando lejos, ya sin razón de ser -obras de otro momento. Y el ansia de llorar y el roce de la sábana, que me tenía inquieto en las odiosas noches de verano, el lujo de impaciencia y el don de la elegía y el don de disciplina aplicada al ensueño, mi fe en la gran historia... Soldado de la guerra perdida de la vida, mataron mi caballo, casi no lo recuerdo. Hasta que me estremece un ramalazo de sensualidad. Envejecer tiene su gracia. Es igual que de joven aprender a bailar, plegarse a un ritmo más insistente que nuestra inexperiencia. Y procura también cierto instintivo placer curioso, una segunda naturaleza. De senectute Y nada temí más que mis cuidados. Góngora Não é o meu, este tempo. E embora tão meu seja esse bater de pássaros lá fora no jardim, sua profusão em folhas pequenas, me removendo igual a intimações, não diz já o mesmo. Acordo como quem ouve uma respiração obscena. É que amanhece. Amanhece outro dia em que não serei convidado nem a um momento feliz. Nem a um arrependimento que, por não ser antigo, “- Ah, Seigneur, donnez-moi la force et le courage ! -” convide de verdade a me arrepender com um resto de sinceridade. Já nada temo mais que meus cuidados. Da vida me lembro, mas onde está. De senectute Y nada temí más que mis cuidados. Góngora No es el mío, este tiempo. Y aunque tan mío sea ese latir de pájaros afuera en el jardín, su profusión en hojas pequeñas, removiéndome igual que intimaciones, no dice ya lo mismo. Me despierto como quien oye una respiración obscena. Es que amanece. Amanece otro día en que no estaré invitado ni a un momento feliz. Ni a un arrepentimiento que, por no ser antiguo, “- Ah, Seigneur, donnez-moi la force et le courage ! -” invite de verdad a arrepentirme con algún resto de sinceridad. Ya nada temo más que mis cuidados. De la vida me acuerdo, pero dónde está. De vita beata Em um velho país ineficiente, algo assim como Espanha entre duas guerras civis, num povo junto ao mar, possuir uma casa e pouca fazenda e memória nenhuma. Não ler, não sofrer, não escrever, não pagar contas, e viver como um nobre arruinado entre as ruínas da minha inteligência. De vita beata En un viejo país ineficiente, algo así como España entre dos guerras civiles, en un pueblo junto al mar, poseer una casa y poca hacienda y memoria ninguna. No leer, no sufrir, no escribir, no pagar cuentas, y vivir como un noble arruinado entre las ruinas de mi inteligencia.

Referências

  • BARRAL, Carlos. Los años sin excusa Madrid: Alianza, 1982.
  • DE LUIS, Leopoldo. Antología de la poesía social Madrid: Alfaguara, 1965.
  • DOCE, Jordi. Las formas disconformes Madrid: Libros de la resistencia, 2013.
  • GIL DE BIEDMA, Jaime. Obras: poesia e prosa. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2010.
  • VALLADARES, Saturnino. Retrato de grupo con figura ausente Edición y análisis de la correspondencia entre José Ángel Valente y los poetas españoles de su edad. Ourense: Deputación de Ourense, 2017.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2021
  • Aceito
    16 Nov 2021
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