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Não somos “negros/as”, não somos “índios/as”: da descolonização africana à literatura indígena brasileira

We are not “Blacks”, we are not “Indians”: from African decolonization to Brazilian Indian Literature

Resumo

Correlacionaremos descolonização africana e literatura indígena brasileira, enfatizando três ideias: o colonialismo é o eixo estruturante da produção do/a negro/a e do/a índio/a enquanto menoridade racialmente justificada, levando à sua invisibilização, ao seu silenciamento e ao seu privatismo, de modo que passam a ser representados/as pelo/a branco/a como seu/sua tutor/a, mestre e senhor/a; a descolonização, que somente pode ser feita pelo grupo-sujeito colonizado, confere todo protagonismo a esse mesmo grupo-sujeito menor que, desde essa condição como chaga e estigma racialmente fundado, publiciza sua voz e dinamiza sua práxis crítico-emancipatória; e a produção estético-literária passa a ser o lugar de autoconstituição normativa e de tematização das condições epistêmico-políticas que produzem-reproduzem as minorias político-culturais, tornando-se instrumento político basilar de enfrentamento do eurocentrismo-colonialismo-racismo. A descolonização, ao enfatizar a voz e o protagonismo do e pelo grupo-sujeito menor, desconstrói a ideia naturalizada de negro/a, índio/a, branco/a etc., mostrando-as como politicidade, relacionalidade, normatividade, historicidade.

Palavras-chave:
descolonização; negro/a; índio/a; desconstrução; engajamento

Abstract

We will correlate African decolonization and Brazilian Indian literature, emphasizing three ideas: colonialism is the structuring axis of production of the Black and Indian as minorities racially justified, leading to their invisibilization, silencing and privatism, so they become represented by Whites as their tutor, master and proprietary; decolonization, which only can be made by the colonized group-subject, confers all protagonism to this same minor group-subject that, from this condition as sore and stigma racially-based, publicizes his voice and streamlines his critical-emancipatory praxis; and the aesthetical-literary construction becomes the place for normative self-constitution and thematization of the epistemological-political conditions that produce-reproduce political-cultural minorities, constituting itself as a key political instrument of facing eurocentrism-colonialism-racism. Decolonization, by promoting the voice and protagonism of and for minor group-subject, deconstructs the naturalized idea of Black, Indian, White etc., explicating them as politicity, relationality, normativity, and historicity.

Keywords:
decolonization; black; indian; deconstruction; engagement

Resumen

Correlacionaremos la descolonización africana y la literatura indígena brasileña, enfatizando tres ideas: el colonialismo es el eje estructurador de la producción del negro y del indio como minoría racialmente justificada, lo que lleva a su invisibilidad, su silenciamiento y su privatismo, de forma que son representados por el blanco como su tutor, maestro y señor; la descolonización, que solo puede ser realizada por el grupo-sujeto colonizado, confiere todo el protagonismo a este mismo grupo-sujeto menor que, desde esta condición como un estigma racialmente fundado, publicita su voz y dinamiza su praxis crítico-emancipatoria; y la producción estético-literaria se convierte en el lugar de la autoconstitución normativa y la tematización de las condiciones político-epistémicas que producen-reproducen a las minorías político-culturales, convirtiéndose en un instrumento político básico del enfrentamiento al eurocentrismo-colonialismo-racismo. La descolonización, al enfatizar la voz y el protagonismo de y por el grupo-sujeto menor, deconstruye la idea naturalizada de negro, indio, blanco, etc., mostrándolos como politicidad, relacionalidad, normatividad, historicidad.

Palabras clave:
descolonización; negro; indio; desconstrucción; compromiso social

Sentimento de inferioridade? Não, sentimento de inexistência. O preto é preto como a virtude é branca. Todos estes brancos reunidos, revólver nas mãos, não podem estar errados. Eu sou culpado. Não sei de quê, mas sinto que sou um miserável. (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da UFBA, 2008., p. 125).

Então, seria bom que as escolas não mais usassem a palavra “índio”. Comemorar o dia do índio é cair no mesmo erro que tem se repetido nos últimos 500 anos. Porque esse índio que se comemora no dia 19 de abril não existe. Ele é pura ficção. É uma abstração. Ele não é uma afirmação, é uma negação. Não é positivo, é negativo. (MUNDURUKU, 2018MUNDURUKU, Daniel. Daniel Munduruku. Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2018., p. 29).

Neste artigo, queremos correlacionar a descolonização africana e a literatura indígena brasileira enquanto perspectivas descolonizadoras mutuamente relacionadas que têm no enfrentamento do colonialismo e do racismo e, portanto, na crítica da modernidade ocidental seus eixos mais básicos em termos de constituição, dinamização e ativismo. Trata-se, nelas e por meio delas, de se forjar e implantar uma posição de descolonização da cultura e de descatequização da mente cujo foco é tanto a libertação nacional e a constituição de uma sociedade emancipada (no caso da descolonização africana) quanto a promoção de uma crítica radical do racismo produtor de menoridade ainda vigente como a condição e a característica mais pungentes e mais distintivas das sociedades colonizadas e de modernização periférica (descolonização africana e literatura indígena). Ora, a descolonização da cultura e da descatequização da mente exigem exatamente o protagonismo do e pelo sujeito colonizado, a constituição e a dinamização de sua voz-práxis que lhe foi negada, silenciada e deslegitimada enquanto menoridade, isto é, enquanto negro/a, enquanto índio/a.

Com isso, também podemos perceber que a arte de um modo geral e a literatura em particular assumem, para essas minorias político-culturais, uma perspectiva política e politizante, carnal e vinculada, de cunho radicalmente militante, engajado e ativista - a arte está a serviço da descolonização da cultura e da descatequização da mente. O sujeito de minorias, produzido pelo eurocentrismo-colonialismo-racismo como menoridade, invisibilizado, silenciado e privatizado como inessencialidade que é (uma vez que, como menor, não pode falar, ser e agir de modo maduro, devendo ser representado), esse sujeito menor, ao assumir e publicizar a palavra, ao sair da esfera privada e politizar-se como sujeito, não mais como objeto, só pode ser um sujeito político, e isso por dois motivos: primeiramente, porque o/a negro/a e o/a índio/a são construções políticas, são conceitos normativos, são relacionalidade que, assim como a brancura, dependem do próprio eurocentrismo-colonialismo-racismo - eles não estão inscritos na natureza (biologia), mas na política e como politicidade, relacionalidade histórico-normativa; segundo, porque sua manifestação pública, política e cultural, ao tornar-se visibilidade, voz e práxis (voz-práxis), manifesta o sentido político, normativo e histórico tanto dessa menoridade que agora fala e age, que não permanece mais em silêncio no fundo do mato, da favela, do armário ou da cozinha, quanto do contexto social e dos sujeitos políticos que produzem e reproduzem a marginalização.

Ora, esse trânsito da descolonização africana para a literatura indígena brasileira nos possibilita perceber: (a) o enfrentamento do eurocentrismo-colonialismo-racismo pelos sujeitos periféricos, menores, produzidos pela modernidade; (b) uma perspectiva de descolonização da cultura e de descatequização da mente formulada e publicizada pelas próprias minorias político-culturais, levando a uma desconstrução de nossa modernidade-modernização periférica que, sob o argumento do mito da fusão racial, denega o enfrentamento efetivo do racismo estrutural à nossa sociedade e à nossa cultura; (c) a constituição de uma voz-práxis carnal e vinculada, política e politizante dos e pelos próprios sujeitos subalternos, que assumem uma perspectiva militante, engajada e ativista na esfera pública, como sujeitos radicalmente políticos; (d) a utilização da arte de um modo geral e da literatura em particular como instrumento político garantidor da crítica social e da hegemonia cultural; e, como fecho de abóboda de tudo isso, (e) a profunda correlação de teoria e prática, isto é, de uma teoria produzida pelos grupos subalternos (no caso, os/as “negros/as”, os/as “índios/as”, os/as trans, os gays, as mulheres etc.) e de uma sua ação direta, sem mediações e representações, e de uma ação direta a partir de sua condição como minorias.

Duas lições da descolonização africana: colonialismo, racismo e menoridade

Não há uma identidade ou uma essência negra de caráter intrínseco; no mesmo diapasão, também não existe um ser indígena, uma essência que defina e diferencie de modo absoluto o/a indígena em relação a qualquer outra forma humana, a qualquer outra raça humana. O/a indígena não está dado na e pela natureza, o/a negro/a não está dado na e pela natureza; não somos biologia - temos corpos biológicos, mas nossas autocompreensões normativas, nossas identidades são apenas ficções estético-culturais, práticas sociopolíticas tornadas corriqueiras, quiçá normalizadas, muitas delas construídas a partir de uma diferenciação imagética frente aos/às outros/as, ao que eles/as são e nós não somos, ao que eles/as não são e nós somos. Somos política, cultura, história, relacionalidade. Por que dizemos isso? Porque, para entendermos as perspectivas teórico-práticas negras e indígenas (ou mesmo feministas e queer), temos de compreender - e situar - a negritude e a indianidade como produções normativas historicamente localizadas, politicamente produzidas, esteticamente imaginadas-delineadas e impostas por meio da colonização. Como dissemos de passagem nas considerações iniciais deste texto, é pela colonização e somente por ela que podemos entender o lugar e o sentido do/a negro/a e do índio/a no contexto da modernização ocidental enquanto sistema-mundo de um modo geral e nas nossas sociedades de modernização periférica em particular. Para começo de conversa, portanto, isso que entendemos por negritude-negro/a e por indianidade-índio/a é construído pela colonização, como colonização, isto é, enquanto relação de violência simbólico-material produtora de menoridade. Esta é a primeira lição dos/as pensadores/as da descolonização africana que se torna fundamental para entendermos não apenas a própria luta anticolonial e antirracista, mas também a própria ideia mais geral - assumida em cheio, por exemplo, pelos grupos LGBTQ+ - das identidades grupais-subjetivas como ficções estético-políticas, como relacionalidade e politicidade básicas. Como nos diz Frantz Fanon, especificamente no que diz respeito à questão negra: “A civilização branca, a cultura europeia, impuseram ao negro um desvio existencial. [...] aquilo que se chama alma negra é frequentemente uma construção do branco.” (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da UFBA, 2008., p. 30; cf., ainda: DUSSEL, 1993DUSSEL, Enrique. 1492, o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993., p. 13-70).

Note-se, na passagem, a ideia de que a colonização e, portanto, o/a colonizador/a constroem exatamente a alma do/a colonizado/a, isto é, definem a sua autocompreensão normativa como substrato básico a partir do qual ele/a vê, afirma e, em consequência, se relaciona com esse/a mesmo/a colonizado/a enquanto figura inessencial, enquanto não-ser ou anormal. Não é mero acaso, nesse diapasão, que há uma imbricação fundamental e estruturante entre colonialismo e racismo no que tange à construção da negritude-negro/a e da indianidade-índio/a, de uma essência apolítica-despolitizada e a-histórica do que significa ser negro/a, índio/a e branco/a (ou qualquer outra cor, qualquer outro gênero, qualquer outro sexo, qualquer outra perspectiva étnico-cultural-religiosa etc.). Essa essência, aqui, cai fora da política, da história, da relacionalidade, tornando-se meramente um fato biológico, uma base fisiológica, hereditária, genética, que é constatável seja por uma pesquisa científica sobre a psique coletiva-individual ou de uma observação corriqueira sobre práticas sexuais e morais e sobre costumes culturais, assim como acerca de modelos criminais, ou até de modelos estéticos bizarros, como Charles Darwin via nos indígenas da América Central e nos negros africanos. No caso da descolonização africana, essa luta contra um mundo maniqueísta e dualista estruturado racialmente, uma luta anticolonial e antirracista que tem por objetivo a destruição do colonialismo, traz novamente para o horizonte da política, da relacionalidade e da história a identidade negra, a alma negra, mostrando, assim, que ela é construção e, de modo mais específico, violência simbólico-material. Fanon nos fala novamente:

A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas que extraem sua originalidade precisamente dessa espécie de substantificação que segrega e alimenta a situação colonial. Sua primeira confrontação se desenrolou sob o signo da violência, e sua coabitação - ou melhor, a exploração do colonizado pelo colono - foi levada a cabo com grande reforço de baionetas e canhões. O colono e o colonizado são velhos conhecidos. E, de fato, o colono tem razão quando diz que “os” conhece. É o colono que fez e continua a fazer o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial. (FANON, 1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968., p. 26; os destaques são de Fanon).

Ora, este/a negro/a produzido/a, esta alma inessencial, a-histórica e apolítica imposta de fora, e em termos de violência simbólico-material, inscreve-se, como uma exigência fundamental, no próprio movimento de consecução do colonialismo, o qual implica, conforme pudemos ver na passagem acima, na construção de um mundo dividido em dois e apenas em dois estratos (um sujeito e um objeto, um humano e um animal), hierarquizado e tornado recíproco como relação de desigualdade originária e essencial entre a branquitude e a negritude. Por outras palavras, o colonialismo é um mundo dualista e maniqueísta porque se funda no racismo estrutural, na construção de identidades humanas calcadas na biologia, as quais, exatamente por estarem fundadas na biologia (um princípio aparentemente apolítico, a-histórico e pré-cultural), perdem qualquer sentido propriamente político, histórico e relacional. No colonialismo e na perspectiva do/a colonizador/a, o/a negro/a não é produzido/a, senão que está lá como natureza (in)essencial e imutável, isto é, como biologia. A colonização, enquanto violência simbólico-material e maniqueísmo absoluto, nutre-se do racismo (como biologia) e o utiliza enquanto base normativo-paradigmática garantidora da justificação da ordem colonial; sem o racismo, ou seja, sem a explicação biológica da desigualdade, ela não resistiria, senão que seria politizada e historicizada como aquilo que de fato ela é, ou seja, violência (MEMMI, 1967MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 68-69, p. 71-72; CÉSAIRE, 1978CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978., p. 18; FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da UFBA, 2008., p. 90).

É por isso que, com a colonização, e a partir do racismo, vemos emergir dois pressupostos-chave seja para a compreensão da sociedade colonial e, depois, da modernização conservadora dessas sociedades coloniais em seu “imobilismo em movimento”, seja para a construção e o entendimento da figura do/a negro/a e do/a índio/a que justifica a colonização e que se mantém depois dela e em termos de modernização conservadora. Primeiramente, temos uma inversão da lógica da colonização: de invasão, usurpação, roubo e assassinato, ela se torna uma vocação civilizacional e uma empreitada progressista; e o/a colonizador/a se vê e se afirma como um desbravador, como um civilizador, um humanista que traz a boa nova da cultura à selva e aos selvagens, correlatamente ao fato de que o sujeito colonizado é visto como um empecilho ao desenvolvimento, como a antítese da civilização, como um elemento arcaico, do passado. E, com isso, em segundo lugar, vemos emergir uma terminologia de caráter biológico e naturalista no que tange ao discurso sobre o sujeito colonizado: o/a negro/a e o/a índio/a como o animal, o meio de campo entre o macaco e o homem. Segundo Fanon, a utilização da biologia como chave interpretativa da cultura e, no caso, para a justificação (e despolitização) do racismo é o que subjaz à corriqueira e usual recorrência de uma linguagem zoológica sobre o/a negro/a. Ele diz:

Por vezes, este maniqueísmo vai até o fim da sua lógica e desumaniza o colonizado. A rigor, animaliza-o. E, de fato, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem zoológica. Faz alusão aos movimentos reptílicos do amarelo, às emanações da cidade indígena, às hordas, ao fedor, à pululação, ao bulício, à gesticulação. O colono, quando quer descrever bem e encontrar a palavra exata, recorre constantemente ao bestiário. O europeu raramente acerta nos termos “figurados”. Mas o colonizado, que apreende o projeto do colono, o processo preciso que se instaura, sabe imediatamente o que o outro pensa. (FANON, 1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968., p. 31-32).

A animalização e anormalidade dos/as subalternos/as, ou seja, sua diminuição normativo-moral travestida na aparência de interpretação biológica das diferenças antropológicas, que está na base do racismo, têm por objetivo, como estamos argumentando, despolitizar a colonização e humanizar-normalizar o “trabalho” do colonizador. Ela é o passo fundamental garantidor da “idoneidade” da colonização. Aqui emerge a segunda lição fundamental dos/as pensadores/as da descolonização africana, a saber, o fato de que o colonialismo não é e não realiza apenas roubo e assassinato planificados, senão que ele é e realiza também - talvez até fundamentalmente - uma falsificação da história, um apagamento da memória (dos/as outros/as, os/as colonizados/as), uma supressão dos discursos alienígenas e uma estilização-reescrita dos textos fundadores. O colonialismo, portanto, impõe uma versão apolítica-despolitizada e idílica tanto do contato quanto da história nacional, seja por meio da supressão das vozes dos/as colonizados/as, seja, a partir daqui, pela imposição de um discurso e de uma história unidimensionais, massificados e totalizantes em que todo protagonismo é assumido por esses/as mesmos/as colonizadores/as. Sobre isso, nos diz Albert Memmi:

Aceitar-se como colonizador seria essencialmente, como dissemos, aceitar-se como privilegiado não-legítimo, quer dizer, como usurpador. O usurpador, sem dúvida, reivindica o seu lugar e, se for necessário, o defenderá por todos os meios. Admite, porém, que reivindica um lugar usurpado. Isto é, no momento mesmo em que triunfa, admite que triunfa dele mesmo uma imagem que condena. Sua vitória de fato, portanto, jamais o satisfará: resta inscrevê-la nas leis e na moral. Ser-lhe-ia necessário, para isso, convencer os outros, senão ele mesmo. Tem necessidade, em suma, para desfrutá-la completamente, de lavar-se de sua vitória e das condições nas quais foi alcançada. Daí seu encarniçamento, surpreendente por parte de um vencedor, em aparentes futilidades: esforça-se por falsificar a história, faz reescrever os textos, apagar as memórias. Não importa o quê, a fim de conseguir transformar sua usurpação em legitimidade (MEMMI, 1967MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., p. 56; o destaque é de Memmi. Cf., ainda: FANON, 1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968., p. 175).

A recusa da voz ao/à colonizado/a e a estilização-falsificação da história do contato e da formação da sociedade colonial é, portanto, o fecho de abóboda da justificação apolítica-despolitizada da colonização e ela se alia ao racismo biológico como mais uma camada no grande edifício do colonialismo e em termos de escravidão-anulação-objetificação dos povos-sujeitos subalternizados. Ora, o ponto importante aqui é que, nessa correlação de racismo biológico, de falsificação da história e de negação do protagonismo e da voz aos sujeitos colonizados, nós vemos consolidar-se exatamente essa ideia de menoridade política, cultural e antropológica que demarca, para o/a colonizador/a, a constituição, o lugar e o sentido da atuação do/a negro/a e do/a índio/a quando comparados/as com o/a branco/a. O sujeito colonizado é um incapaz para a civilização, não tem condições de assumir um discurso e uma ação próprios, conscientemente formulados e dinamizados. O sujeito colonizado, enquanto sujeito menor, não é um sujeito público, mas privado; não é um sujeito audível e visível, nem deve ou pode sê-lo. Ele precisa ser invisibilizado, silenciado e privatizado: seu lugar é o mato, a fazenda, o armário ou a cozinha; sua função é trabalhar (ou consumir). Nesse sentido, enquanto sujeitos menores, o/a negro/a e o índio/a não têm história e nem politicidade, eles/as estão fora da história e da política, praticamente como animalidade. Com isso, o racismo permite a legitimação como um todo do mundo colonial: (a) ele justifica o maniqueísmo, o dualismo e a cisão absolutos do mundo colonial, o/a branco/a e o/a negro/a como lugares-sujeitos-valores absolutamente definidos e cindidos (mas paradoxalmente dependentes e reciprocamente definidos, sem o que não existiria colonialismo); (b) ele sustenta a imutabilidade dessa relação e a impossibilidade de transgressão de fronteiras; (c) ele, ao conceber o sujeito colonizado como menor, o invisibiliza, silencia e privatiza como sujeito não-público e não-político, definindo ao/à branco/a como o único sujeito maior, público e político; (d) ele leva à representação extemporânea e caricata do sujeito colonizado pelo/a colonizador/a, que fala, age e dirige por eles/as e em nome deles/as.

Literatura indígena brasileira: voz-práxis autoral, descolonização da cultura e descatequização da mente

A descolonização exige, por conseguinte, a voz-práxis autoral do sujeito colonizado por si mesmo e desde si mesmo. Por muito tempo, a colonização o fez, dele falou, sobre ele agiu, o representou como caricatura, como animalidade, como não-sujeito - instrumentalizou-o e matou-o sempre; agora - exigência fundamental da descolonização - é ele/a quem deve falar e agir, ou, por outras palavras, é ele/a quem deve fazer a descolonização, afinal ele/a é a descolonização. Como nos diz Césaire, os/as escravizados/as “se erigem em juízes” (CÉSAIRE, 1978CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978., p. 14. Cf., ainda: KRENAK, 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras , 2019., p. 09-41; MBEMBE, 2014MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014., p. 25-74). E, como também nos diz Fanon, o sujeito colonizado se torna “história em ato” (FANON, 1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968., p. 30). Esse, aliás, é um dos pontos fundamentais para se entender e para se levar a cabo o processo de descolonização da cultura e de descatequização da mente, ou seja, percebermos que a descolonização somente pode ser realizada de modo pleno e último pelas suas próprias vítimas como um lugar de fala epistemológico-político e uma perspectiva normativo-histórica inultrapassáveis. Como consequência, podemos falar de um corpo político, de um gênero político, de uma cor política, por assim dizer. O que queremos significar com isso? Exatamente o fato de que o aparecer público das minorias político-culturais - ou seja, a visibilização de seu corpo-gênero-raça e de suas formas de autoexpressão e a audição em comum de suas vozes, ritos e histórias constituem-se na política mais básica dessa descolonização das e pelas minorias político-culturais. Sua voz-práxis desde sempre é política porque, quando em comum (e não haveria senão o em comum), explicita exatamente essa história e esse presente políticos, normativos do corpo-gênero-raça como lugar e relacionalidade construídos socialmente e, na verdade, construídos por meio da violência simbólico-material, a companheira permanente dessas mesmas minorias político-culturais. A descolonização é detonada e levada a efeito pela assunção da própria voz-práxis, pelo compartilhamento autobiográfico das experiências do eu-nós dessas e por meio dessas minorias político-culturais na esfera pública, e como sujeito político-cultural que luta a partir da reestilização política da própria condição. De estigma e chaga, a negritude, a indianidade, o travestismo e a feminilidade - os corpos-gêneros-raças políticos - se tornam a base da reinvenção e da afirmação desses grupos-sujeitos subalternos e o aguilhão crítico e emancipatório frente ao contexto social, cultural, político, institucional e epistêmico no qual estão situados.

É muito interessante, nesse sentido, que o Movimento Indígena brasileiro que emerge na sociedade brasileira a partir de meados dos anos 1970 e, a partir dele, a constituição da literatura indígena brasileira enraíza-se em nossa esfera pública e dinamiza uma voz-práxis estético-literária autoral, autobiográfica, testemunhal e mnemônica que parte de uma constatação quase óbvia, mas muito pungente: a sociedade nacional não conhece e nem reconhece os/as indígenas brasileiros/as, no máximo, tem uma ideia vaga herdada nos primórdios da colonização e ponto final. O/a índio/a que vemos representado na cultura nacional, o/a índio/a que imitamos quando nos fantasiamos para o carnaval ou para alguma peça teatral na escola é, na verdade, uma ficção, uma caricatura que sequer conhecemos, que, na verdade, nunca vimos de fato. Como diz Kaká Werá, um dos escritores indígenas mais importantes da literatura indígena brasileira hodierna: “O índio que se conhece até hoje, nestes últimos 500 anos, é o índio teatralizado. Infelizmente, para a maior parte da população brasileira, o índio é um personagem, não existe de fato.” (WERÁ, 2017WERÁ, Kaká. Kaká Werá. Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2017., p. 101. Cf., ainda: MUNDURUKU, 2012MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1980). São Paulo: Paulinas, 2012., p. 222). É um personagem, diga-se de passagem, dos jesuítas que acompanharam a implantação do processo colonizatório, dos viajantes europeus e do indianismo do século XIX, em particular José de Alencar, que construíram uma imagem normativo-simbólica da sociedade nacional - em todos esses casos, o que Fanon chamou a atenção relativamente à colonização dos povos africanos vale também para a compreensão da colonização luso-espanhola das Américas: a sustentação de um maniqueísmo e de um dualismo absolutos entre o homem (o/a branco/a) e o animal (o/a índio/a, o/a negro/a), racial e religiosamente fundados.

Por isso mesmo, tanto o Movimento Indígena quanto seu pilar estético-normativo, ou seja, a literatura indígena têm por objetivo descatequizar as mentes brasileiras no que tange à imagem, ao lugar e ao protagonismo dos e pelos povos indígenas brasileiros. Note-se que acabamos de mencionar povos indígenas brasileiros, no sentido de enfatizar, como querem os/as próprios/as teóricos/as indígenas, de que não existe um/a índio/a genérico/a de cunho essencial e naturalizado, mas povos indígenas com suas identidades específicas e com suas singularidades étnico-antropológicas. Os/as indígenas não são índios/as, mas povos e subjetividades próprios, com particularidades, historicidades e relacionalidade muito específicas. O/a índio/a, como já sabemos da história, foi uma imposição do colonizador que toma posse da terra e de seu povo e que, de modo equivocado, acredita estar nas Índias! Sobre isso, nos diz Daniel Munduruku:

[...] eu gostaria de lembrar que eu não sou índio de fato, eu pertenço a um povo. Porque o índio não é absolutamente nada. Ele é o que as pessoas acham que ele é, seja a visão romântica ou ideológica. Mas o grande problema da sociedade brasileira é que ela não nos olha como gente, como pessoa, ela nos olha como um apelido. E é claro que esse apelido nos rejeita, nos diminui, nos desqualifica. Então é fácil a pessoa dizer que eu tenho cara de índio, tenho cabelo de índio, então eu sou um índio. Mas calma lá, eu sou um munduruku. Eu pertenço a um povo. E ser munduruku é ser diferente de ser índio. Porque ser índio é não ser nada, ser munduruku é pertencer a um povo, e esse povo tem história, tem tradição, tem ritual, tem crença, tem uma relação com a natureza toda própria, tem uma educação, tem uma economia. Que o difere inclusive dos outros “índios”. [...] essa palavra “índio” limita a nossa humanidade. O ser munduruku é um ser humano. Plenamente. É ter o espírito humano (MUNDURUKU, 2018MUNDURUKU, Daniel. Daniel Munduruku. Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2018., p. 27-28. Cf., ainda: ESBELL, 2018ESBELL, Jaider. Jaider Esbell. Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2018., p. 47; KOPENAWA; ALBERT, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 63-65; POTIGUARA, 2018POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Lorena: DM Projetos Especiais, 2018., p. 13-18; JEKUPÉ, 2002JEKUPÉ, Olívio. Xerekó arandu: a morte de Kretã. São Paulo: Peirópolis, 2002., p. 36).

O termo “índio” limita a humanidade indígena e as singularidades grupais-individuais dos sujeitos indígenas exatamente porque reproduz a mistificação e a falsificação da história colonial pelos/as colonizadores/as. O termo “índio” se enquadra de modo direto nisso que Aníbal Quijano chamou de “colonialidade epistemológica” ou “colonialidade do saber”, na medida em que ele reproduz uma noção caricata, genérica e extemporânea construída pelos/as colonizadores, carregada de um sentido normativo de cunho negativo e, principalmente, fazendo menção a nenhum grupo-sujeito real (QUIJANO, 1992QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidade. Perú Indígena, v. 13, n. 29, 1992, p. 11-20., p. 11-20; SPIVAK, 2014SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014., p. 23-45; DALCASTAGNÈ, 2012DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012., p. 07-16). É uma noção a-histórica e inessencial, apolítica-despolitizada e, como dissemos, genérica ao ponto de não ter nenhuma escora factual e nenhuma base político-normativa capaz de objetivar um conhecimento e um reconhecimento efetivos do que são os povos-sujeitos indígenas. É por isso, aliás, que um dos grandes núcleos de atuação do Movimento Indígena brasileiro e, desde ele, da literatura produzida por intelectuais indígenas consiste exatamente em enunciar aos quatro ventos e em termos de esfera pública: não somos índios/as. Sobre isso, Ailton Krenak nos diz:

E o outro desconforto era me identificar como índio, porque índio é um erro de português, plagiando o Oswald, que disse que, quando o português chegou no Brasil, estava uma baita chuva, aí ele vestiu o índio, mas se estivessem em um dia de sol, o índio teria vestido o português, e estaria todo mundo andando pelado por aí. Isso continua valendo até hoje, e eu atualizei dizendo que o índio é um equívoco do português, não um erro, porque o português saiu para ir para a Índia. Mas ele perdeu a pista e veio bater aqui nas terras tropicais de Pindorama, viu os transeuntes da praia e acabou carimbando de índios. Aquele carimbo errado, equívoco, ficou valendo para o resto das nossas relações até hoje, e a resposta para uma pergunta tão direta e simples poderia ser tão direta e simples quanto. Quando foi que eu atinei que tinha que fazer essas coisas que eu ando fazendo nos últimos 50 anos da minha vida, que é quase que repetir o mesmo mantra, dizendo para esse outro: “ô, cara, essa figura que você está vendo no espelho não sou eu não, é você, esse espelhinho que você está me vendendo não sou eu, isso é um equívoco”? E saí do sentimento para a prática na pista dos meus parentes mais velhos do que eu, que estavam sendo despachados da zona rural para as periferias miseráveis do Brasil, o que acontece em qualquer canto, no Norte, no Sul, em qualquer lugar (KRENAK, 2015KRENAK, Ailton. Encontros. Organização de Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2015., p. 239. Cf., ainda: MUNDURUKU, 2016MUNDURUKU, Daniel. Memórias de índio: uma quase autobiografia. Porto Alegre: EDELBRA, 2016., p. 20-56; KRENAK, 2017KRENAK, Ailton. Ailton Krenak. Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2017., p. 43-44; JEKUPÉ, 2009JEKUPÉ, Olívio. Literatura escrita pelos povos da floresta. São Paulo: Scortecci, 2009., p. 11-22).

Note-se, na passagem, a justificação, por Ailton Krenak, de que seu engajamento, sua militância e seu ativismo em torno à questão indígena brasileira se justificam pela continuidade da violência simbólico-material produzida em termos de sociedade colonial e reproduzida ainda no contexto de nossa modernização conservadora - uma situação intensificada a partir dos governos militares até hoje devido à abertura de fronteiras agrícolas, da pecuária, da mineração, do desmatamento e da geração de energia no contexto das regiões centro-oeste e norte do Brasil. O importante aqui é exatamente o problema político do “índio” genérico e o seu não-lugar e a sua ausência de papel dentro do horizonte mais amplo de nossa sociedade, um não-lugar e uma inexistência de papel sociopolítico que se devem a essa falsificação, mistificação e desubstantificação produzidas e legitimadas desde nossa perspectiva colonial, racista e autoritária. Foi, portanto, uma motivação política que deu origem e que dinamizou tanto o Movimento Indígena brasileiro quanto o enraizamento público e a produção intelectual dos/as escritores/as indígenas brasileiros. Falar por si mesmos/as e desde si mesmos/as, assumir, desde sua condição e por meio de suas experiências como singularidades e como minorias, uma perspectiva de protagonismo estético-político-cultural-epistemológico foi e é, para estes/as intelectuais indígenas, o passo - um passo político, uma segunda descoberta do Brasil, nas palavras de Ailton Krenak - considerado fundamental para a descolonização cultural e a descatequização da mente no que se refere a esse lugar, a essa imagem e a esse protagonismo do/a indígena dentro de nossa modernização conservadora. Estética e política, política como estética, estética como política, tornam-se os eixos estruturantes e profundamente imbricados e mutuamente dependentes da voz-práxis indígena. Corpo-gênero-raça político, assim podemos definir seu aparecimento e seu ativismo públicos, sua produção estético-literária engajada e militante.

Para nós, a literatura indígena é uma maneira de usar a arte, a caneta, como estratégia de luta política. É uma ferramenta de luta. E por que uma luta política? Porque, à medida que a gente chega na sociedade e a sociedade nos reconhece como fazedores de cultura, como portadores de saberes ancestrais e intelectuais, ela vai reconhecendo também que existe uma cidadania indígena (WERÁ, 2017WERÁ, Kaká. Kaká Werá. Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2017., p. 29; os destaques são de Werá. Cf., ainda: TUKANO, 2017TUKANO, Álvaro. Álvaro Tukano. Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2017., p. 26-28; WERÁ JECUPÉ, 2002WERÁ JECUPÉ, Kaká. Oré Awé Roiru’a Ma: todas as vezes que dissemos adeus. São Paulo: TRIOM, 2002., p. 10; MUNDURUKU, 2016MUNDURUKU, Daniel. Memórias de índio: uma quase autobiografia. Porto Alegre: EDELBRA, 2016., p. 177-193).

A cidadania indígena é autoria, perspectiva autônoma, criativa e autoral relativamente ao que se é e a como se percebe, se interpreta e se compreende o Brasil em que estamos, o Brasil que somos enquanto pluralidade e heterogeneidade - e é uma cidadania conquistada, afirmada e legitimada estético-politicamente. Por isso, mais uma vez, as minorias político-culturais são e dinamizam uma práxis política substantiva e radical, uma vez que com seu sexo-corpo-gênero-raça político, sempre político, fazem saltar as contradições existentes em nossa sociedade, em nossas práticas e valores, em nossas instituições. Sua expressão estético-política e seus fundamentos epistemológico-culturais ajudam e ajudarão a entender nosso passado e a reconstruir nossa história; e sua presença na esfera pública, como sujeitos político-culturais ativos e militantes, nos permitirão, ao pluralizar os sujeitos, as histórias, as experiências, as práticas, os valores e os símbolos, enfrentar de modo consistente ao eurocentrismo-colonialismo-racismo, estabelecendo as bases de uma sociedade colorida, inclusiva, participativa e justa (cf.: GUAJAJARA, 2018GUAJAJARA, Sônia. Sônia Guajajara. Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2018., p. 18-19; ESBELL, 2018ESBELL, Jaider. Jaider Esbell. Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2018., p. 29-30). E, no caso específico da literatura indígena brasileira, uma de suas intenções mais básicas já começou a ser posta em ação, ou seja, a desconstrução do “índio” genérico e caricato como passo inicial da reconfiguração da imagem, do papel e das relações estabelecidas pelos/as indígenas com nossa sociedade nacional de modo mais amplo e desta para com eles/as. Surge um novo nome, que é também uma nova condição política, uma nova configuração epistemológica, uma nova relacionalidade histórico-normativa: o/a indígena, os/as indígenas. “De hoje em diante, que fique combinado que não haverá mais ‘índio’ no Brasil. Fica acertado que os chamaremos ‘indígenas’, que significa ‘nativo, originário de um lugar’.” (MUNDURUKU, 2017MUNDURUKU, Daniel. Mundurukando 2: sobre vivências, piolhos e afetos - roda de conversa com educadores. Lorena: UK’A Editorial, 2017., p. 18).

No fim do caminho, ainda topamos com o colonialismo-racismo: a propósito das considerações finais

Nas sociedades de modernização periférica, herdeiras de um processo longo de eurocentrismo-colonialismo-racismo, ainda topamos com uma dinâmica de produção de menoridade racial, de gênero e de sexualidade que dinamiza uma evolução violenta, desigual e segregacionista (significada muito exemplarmente pelo “liberal na economia e conservador nos costumes”!), justificada pela correlação de: (a) naturalização da cor, do corpo e das capacidades; (b) pela meritocracia individual descontextualizada das condições familiares, sociais e de raça-gênero-sexo; bem como (c) pela deturpação, unidimensionalização e massificação da história. Juntas, essas três condições levam à despolitização da história nacional, ao conservadorismo e ao imobilismo relativamente ao presente político-cultural e ao travamento do futuro social por meio da deslegitimação do pluralismo, da crítica e da participação amplos, com suas perspectivas heterogêneas, diversificadas e alternativas de socialização, de ser, estar e pensar no e sobre o mundo. É nesse sentido que a descolonização não acabou e nem deixou de ser obsoleta, muito pelo contrário; em uma época em que o pensamento crítico e a participação social são desestimulados seja pelo consumismo privatista, seja pelo conservadorismo cultural-religioso tecnocrático, seja mesmo pelo medo da repressão institucional, descolonizar e descatequizar são a base política, normativa e epistemológica das ciências humanas e sociais, da própria democracia. Desse modo, entre ouras coisas, as minorias precisam continuar falando e agindo publicamente, afinal, somente publicização e politização podem minimizar as situações de violência que sofrem e educar a sociedade. Para isso, a voz-práxis estético-literária, de cunho não-tecnocrático, anticientificista e antiparadigmático, democratizada desde as bases sociais e aberta aos múltiplos sujeitos sociopolíticos, continua servindo como o meio político de expressão mais fundamental, intimamente correlacionado à práxis, arte como práxis política, política como arte.

Referências:

  • CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.
  • DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012.
  • DUSSEL, Enrique. 1492, o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.
  • ESBELL, Jaider. Jaider Esbell Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2018.
  • FANON, Frantz. Os condenados da terra Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas Salvador: Editora da UFBA, 2008.
  • GUAJAJARA, Sônia. Sônia Guajajara Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2018.
  • JEKUPÉ, Olívio. Literatura escrita pelos povos da floresta São Paulo: Scortecci, 2009.
  • JEKUPÉ, Olívio. Xerekó arandu: a morte de Kretã. São Paulo: Peirópolis, 2002.
  • KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • KRENAK, Ailton. Encontros Organização de Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2015.
  • KRENAK, Ailton. Ailton Krenak Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2017.
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo: Companhia das Letras , 2019.
  • MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra Lisboa: Antígona, 2014.
  • MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
  • MUNDURUKU, Daniel. Memórias de índio: uma quase autobiografia. Porto Alegre: EDELBRA, 2016.
  • MUNDURUKU, Daniel. Daniel Munduruku Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2018.
  • MUNDURUKU, Daniel. Mundurukando 2: sobre vivências, piolhos e afetos - roda de conversa com educadores. Lorena: UK’A Editorial, 2017.
  • MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1980) São Paulo: Paulinas, 2012.
  • POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara Lorena: DM Projetos Especiais, 2018.
  • QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidade. Perú Indígena, v. 13, n. 29, 1992, p. 11-20.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014.
  • TUKANO, Álvaro. Álvaro Tukano Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2017.
  • WERÁ, Kaká. Kaká Werá Organização de Sérgio Cohn e Idjahure Kadiwel. Rio de Janeiro: Azougue Editorial , 2017.
  • WERÁ JECUPÉ, Kaká. Oré Awé Roiru’a Ma: todas as vezes que dissemos adeus. São Paulo: TRIOM, 2002.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2021
  • Aceito
    16 Nov 2021
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