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TRAUMA, DESEJO E ESCRITA EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Trauma, desire and writing in Grande Sertão: Veredas

RESUMO:

Voltando-se para o romance Grande Sertão: Veredas, o artigo articula as noções de trauma e desejo à figura de Diadorim, propondo pensar a ficção como resposta à emergência do desejo em sua relação com um núcleo traumático e refratário ao simbólico. O trauma é abordado, ainda, em sua relação com a técnica analítica e seu modo particular de operar com o tempo (destacando-se aqui o uso freudiano da expressão Nachtraglichkeit) e em sua relação com a subversão do código linguístico levada ao extremo por Rosa, que assina uma obra reconhecida em todo o mundo pela fisionomia de uma língua singular.

Palavras-chave:
trauma; literatura; psicanálise; João Guimarães Rosa

Abstract:

Focusing on the novel “Grande Sertão: Veredas”, the article articulates the trauma and desire notions to the figure of Diadorim, thinking about fiction as a response to the emergence of desire in its relationship with a traumatic core and refractory to the symbolic. Trauma is also addressed in its relationship with analytical technique, its particular mode of operation with time (emphasizing the Freudian use of the expression Nachtraglichkeit) and in its relation to the subversion of the linguistic code taken to the extreme by Rosa, who signs a work recognized throughout the world for the physiognomy of a unique language.

Keywords:
trauma; literature; psychoanalysis; João Guimarães Rosa

Introdução

Grande expoente da literatura brasileira, lido no mundo inteiro pelo romance Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa instituiu um modo de operar com a língua onde a subversão do código é levada ao extremo, com criações lexicais que assumiram a fisionomia de uma língua singular.

O sertão de Rosa alcançou de tal modo a expressão desse universo que podemos dizer que Grande Sertão: Veredas nomeou o sertão mesmo, constituindo-o como letra por um processo de decantação fabricado na escrita e no próprio ato de nomeação. Do ponto de vista do código regionalista, ele o recebe e subverte. Rosa não sintetiza elementos do código regionalista e da vertente espiritualista, mas os habita de um modo singular, subvertendo esses mesmos códigos. Essa posição de fronteira em relação ao próprio regionalismo é indicada por Rónai:

[...] o autor fez sua aparição na literatura como escritor regionalista. Não adotara, porém, nenhuma das três técnicas à disposição do regionalismo: servir-se da linguagem regional indistintamente em todo o livro, restringi-la à fala das personagens, ou substituí-la integralmente por uma linguagem literária, convencional. A quarta solução, adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e processos da língua popular infiltrarem o estilo expositivo e as da língua elaborada embeberem a linguagem dos figurantes. Disse língua elaborada e não culta: Guimarães Rosa, conhecedor dos mais profundos do idioma, não se satisfaz em explorar-lhe todo o tesouro registrado e codificado, mas submete-o a uma experimentação incessante, para testar-lhe a flexibilidade e a expressividade. (RÓNAI, 1966/2005RÓNAI, P. Os vastos espaços (1966). In: ROSA, J. G. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005., p. 32).

Em uma primeira aproximação das relações que podemos depreender entre o período em que se encontra sua literatura e os temas que comparecem em sua obra,

Rosa é resultado da intersecção do romance regionalista dos anos 30, que buscava resgatar o interior do Brasil e suas mazelas, deslocando o olhar etnocêntrico do litoral para o interior desconhecido e esquecido do país, com a vertente espiritualista, que trazia o sopro da metafísica, da transcendência e da introspecção. Rosa sintetiza as duas linhas de força da literatura da época, transcendendo o mero registro documental do sertão mineiro. (ROSENBAUM, 2008ROSENBAUM, Y. Notas sobre o conto “O espelho”, de Guimarães Rosa. Ide, v. 31, n. 47, p. 84-87, 2008.., p. 84).

TRAUMA, LÍNGUA E ESTILO

Caldas (2007CALDAS, H. Notas preliminares sobre escrita e estilo em Guimarães Rosa. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.). Escrita e Psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud , 2007.) observa a continuidade entre estilo e transmissão na revolução operada pela escrita rosiana na língua com sua singular reinvenção da língua portuguesa. Nesse trabalho, encontra-se a posição no Nome-do-Pai e sua relação com o código e sua transmutação. A proposição é a de que Rosa “se serve” do Nome-do-Pai e da língua que lhe foi transmitida como código, em uma operação que o mantém e, também, o transmuta:

Nesse sentido, parece ser possível destacar, na escrita rosiana, um aspecto que se relaciona ao Nome-do-Pai como tradição. Não se trata da tradição da religião, mas da tradição comum aos sujeitos de linguagem: um corpus de linguagem compartilhado. Ele usa e respeita essa tradição; faz, no entanto, uso dela de forma criativa, singular e impossível de coletivizar. (CALDAS, 2007CALDAS, H. Notas preliminares sobre escrita e estilo em Guimarães Rosa. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.). Escrita e Psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud , 2007., p. 81).

Algo dessa experiência traumática permitiu a criação/transmissão de um estilo, de uma liberdade de jogo com a língua que a subverte sem romper o laço que a transmissão de um código implica. Não há a criação de uma língua própria, fora do laço, mas a introdução de um traço singular no interior das normas da língua, o que o faz ter condições de estar na fronteira entre a comunicação - que visa o universal - e o estilo, que decanta o singular. Assim, Rosa

[...] produziu uma literatura em que a criação lexical inova ao tratar diferencialmente a norma e o sistema da língua portuguesa. Além disso, na sua técnica de composição literária, consoante Lauro Belchior Mendes, há elementos visuais, verdadeiros desenhos textuais, que adquirem a mesma expressividade das palavras escritas, de tal forma que seus livros [...] além de serem lidos, prestam-se, como preciosos objetos, à contemplação. A disposição visual das palavras e de sinais gráficos promove a modificação do sentido e ritmos diferentes para a leitura e para o canto. Além disso, diversos outros traços de sua criação [...] colocam-no à margem do sentido e do sem sentido. (FONTENELE, 2011FONTENELE, L. O despertar e o silêncio: considerações sobre o final de análise em Freud e Lacan. In: MAURANO, D.; NERI, H.; JORGE, M. A. C. (org.). Dimensão do despertar na psicanálise e na cultura. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011., p. 103).

A composição de Guimarães Rosa se coloca como um “desenho textual”, sendo destacada aqui a importância da forma do texto. Sendo assim, ao fazer uso da língua de modo tão singular, Rosa cria uma língua? Rosenbaum, referindo-se ao conto Famigerado, avança na direção das posições discursivas das personagens que se defrontam o tempo inteiro com um enigma que a palavra famigerado produz diante do narrador e de quem a ele chega - o jagunço Damázio - buscando uma definição desta.

Atento ao valor significante expressivo dos vocábulos, o autor constrói seu texto como corpo vivo, fazendo as palavras ganharem densidade e materialidade. O universo de Rosa revela o seu compromisso com a linguagem como modo de religar o signo às coisas, priorizando para tanto o aspecto lírico de sua prosa narrativa. (ROSENBAUM, 2006ROSENBAUM, Y. A palavra como enigma. Aletria, v. 13, n. 1, p. 84-93, 2006. Belo Horizonte, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais., p, 86).

O vocábulo famigerado denota um enigma que vai perpassar todo o conto e que será convertido, posteriormente, em adivinha (ROSENBAUM, 2006ROSENBAUM, Y. A palavra como enigma. Aletria, v. 13, n. 1, p. 84-93, 2006. Belo Horizonte, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.). Esse enigma vai ser montado à medida em que os personagens se encontram em posições diferentes: “Situados ambos os personagens em lugares diferenciados, numa geografia social e cultural diversa - do doutor que sabe e do jagunço que tem a força, mas não tem o saber letrado da cidade - a trama se desvenda após vários parágrafos preparatórios” (ROSENBAUM, 2006, p. 87).

Rosenbaum (2006ROSENBAUM, Y. A palavra como enigma. Aletria, v. 13, n. 1, p. 84-93, 2006. Belo Horizonte, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.) aponta que, ao ser colocado em uma posição de suposto saber pelo jagunço, o narrador do conto - sujeito letrado, antes desarmado e amedrontado diante da chegada daquele que está armado e causa medo - passa a figurar em uma posição ele mesmo de “mais forte”, uma vez que é ele quem sabe o que significa o vocábulo. As posições se invertem diante desta palavra que figura como propulsora de um enigma. De modo análogo ao jagunço, o sujeito chega ao analista com um sofrimento e supondo um saber no analista, fundamental para a transferência. Este, então, leva o sujeito a produzir um enigma, para que seja possível uma análise. A diferença entre o personagem do conto e a experiência de análise, no entanto, é que, na experiência de análise, o analista nada sabe.

Podemos, ainda com Rosenbaum, pensar que o jagunço Damázio faz essa busca de um outro para tentar produzir um saber em torno deste significante (famigerado) que o divide. Uma primeira marca que levará o jagunço a produzir algo diante disto que o toma no presente como a atualização de uma experiência primeira. Segundo a autora, isso se exemplifica no próprio conto, no momento em que o jagunço pergunta ao narrador o significado do termo, movimentando o significante, construindo outros a partir deste primeiro, como forma de tentar dar um sentido frente ao que não tem sentido, mas que se apresenta a ele naquele momento: “- ‘Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmigerado... faz-me gerado... falmisgeraldo... familhas-geraldo...?’” (ROSA, 1962/2008ROSA, J. G. Famigerado (1962). In: ROSA, J. G. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008., p. 16, grifos do autor). Desse modo,

[...] a busca do sentido da palavra oculta/revela a procura da própria identidade do jagunço. Ao indagar-se sobre o mistério de sua “geração familiar” [faz-me gerado] esse homem se indaga a respeito da própria origem: de onde vim? quem sou? quem são meus geradores? A pergunta que interessa, disfarçada na ameaça explícita do sertanejo em crise, é a que atinge o núcleo do seu ser. (ROSENBAUM, 2006ROSENBAUM, Y. A palavra como enigma. Aletria, v. 13, n. 1, p. 84-93, 2006. Belo Horizonte, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais., p. 91).

Conforme aponta a autora, observamos a hipótese de o significante “famigerado” evocar uma experiência originária. No presente, este vocábulo evoca o que ficou como uma primeira marca no passado, sem sentido. Assim, “por meio da linguagem, a pressão pela significação encontra ancoramento: a urgência do sentido tem como corolário a criação de inúmeros sistemas simbólicos, fazendo da linguagem a forma mais humana de apreensão do mundo” (LONGO, 2006LONGO, L. Linguagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 2006., p. 12). É o que vemos por meio do jagunço. A linguagem se sobressai como uma tentativa de uma significação de um desconhecido, pois “desta forma, o homem pode dar corpo às suas fantasias, sonhos e medos, e se aproxima do conhecimento de si mesmo, para o qual é incessantemente convocado” (LONGO, 2006LONGO, L. Linguagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 2006., p. 12).

Machado aponta que “a linguagem literária opera, para Rosa, nessa vertente de um indizível que toca o leitor, convidando a cada um a ouvir a ‘música da língua’ que deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer” (MACHADO, 2011MACHADO, B. F. V. João Guimarães Rosa: a invenção da linguagem. Intinerários, n. 33, p. 233-242, 2011. Araraquara, Universidade Estadual Paulista., p. 234). Aqui, ele parece não trabalhar apenas com o que é contado em suas histórias - apesar de este elemento ser importante -, mas, antes de tudo, a forma como conta e como escreve se sobressai, a musicalidade da escrita se coloca acima daquilo que está sendo narrado: é mais sobre a forma do que sobre o conteúdo em si.

É interessante, nesse modo de operar com a fala, a presença de duas figuras em seus contos: os “loucos” e as crianças. Sobre Primeiras Estórias, livro de contos de Rosa, publicado em 1962, Rónai aponta:

Pois bem, na multidão de figurantes de Primeiras estórias, os “personagentes” quase todos pertencem a duas categorias, a de loucos e a de crianças. Os da primeira são particularmente numerosos. Rodeados da aura de sapiência e santidade de que os cerca o povo, exibem infindáveis esfumaturas e gradações da demência. Impossível traçar, aliás, a linha de demarcação entre esta última e a normalidade, tanto mais quanto por vezes a mais previdente e calculadora sabedoria se disfarça em mania [...], enquanto a loucura pode heroicamente adotar soluções de bom senso que a razão pusilânime não ousa levar em consideração [...] ou recorre a ardis de incrível sagacidade [...]. Desmascarada e refreada quando irrompe num ímpeto [...], a alienação é aceita como parte dolorosa da rotina da vida quando se declara paulatinamente [...]. (RÓNAI, 1966/2005RÓNAI, P. Os vastos espaços (1966). In: ROSA, J. G. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005., p. 26).

Das crianças,

Ao lado dos doidos, as crianças formam grupo menor, mas importante, “estrelando” cinco estórias. Elas “fazem parte de uma curiosa estirpe de personagens, preludiada por Miguilim e Dito, de ‘Campo Geral’, e à qual pertencem infantes de extrema perspicácia e aguda sensibilidade, muitas vezes dotados de poderes extraordinários, quando não possuem origem oculta ou vaga identidade” (Benedito Nunes). Ou ainda tropecem nos pedregulhos da palavra ou já se deslumbrem com a sua cintilação, embrenham-se com olhos virgens nos mistérios do mundo e voltam com excitantes descobertas. (RÓNAI, 1966/2005RÓNAI, P. Os vastos espaços (1966). In: ROSA, J. G. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005., p. 26-27).

Justamente a loucura e a criança remetem a experiências com a linguagem que nos indicam um modo de operar mais além da comunicação cuja antípoda é a criação poética.

Trauma, traço e escrita

Hiato, conto de Rosa do livro Tutameia, publicado em 1967, conta a história de Nhácio e Põe-Põe, uma dupla de vaqueiros que se depara com a imagem de um touro que provoca neles um afeto inexplicável:

Errático, a retrotempo, recordava-se sobre nós o touro, escuro como o futuro, mau objeto para a memória. Põe-Põe fingia o pio de pássaros em gaiola, fino assobio. Nhácio ora desabria sacudidos dizeres, enrolava mais silêncio, ressofrido. O touro, havendo, demais, exorbitante, suas transitações, e no temeroso ponto, praça ao acaso. (ROSA, 1967/2017ROSA, J. G. Hiato (1967). In: ROSA, J. G. Tutameia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017., p. 88).

Edson Santos de Oliveira, ao se referir ao conto, aponta um choque tremendo, um trauma, no encontro com o touro. Segundo o autor, Nhácio, de modo especial,

[...] se encontra com um touro que o traumatiza, fazendo um buraco em sua vida, levando-o a abandonar as atividades de vaqueiro. O touro parece evocar algo que ficou recalcado. Como animal do sertão, é familiar ao sertanejo, mas sua aparição repentina traz também uma pitada de estranho - unheimlich- de irrepresentável e que não se dá a ler. (OLIVEIRA, 2015OLIVEIRA, E. S. Guimarães Rosa e a figuração do trauma: leitura de Hiato, de Tutameia. Reverso, v. 37, n. 69, p. 61-68, 2015. Belo Horizonte, Círculo Psicanalítico de Minas Gerais., p. 63).

Oliveira isola uma criação lexical de Rosa para empreender a discussão daquilo que se lê como traumático no conto: “Empatara-nos, aquêle, em indisfarce, advindamente; perseguia-nos ainda, imóvel, por pavores, no desamparadeiro” (ROSA, 1967/2017ROSA, J. G. Hiato (1967). In: ROSA, J. G. Tutameia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017., p. 89, grifo nosso). Para o autor, o neologismo desamparadeiro alude aos vaqueiros perto de um despenhadeiro e, também, ao desamparo, devido à recordação que tiveram do touro (OLIVEIRA, 2015OLIVEIRA, E. S. Guimarães Rosa e a figuração do trauma: leitura de Hiato, de Tutameia. Reverso, v. 37, n. 69, p. 61-68, 2015. Belo Horizonte, Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.). Aponta, ainda:

Vale notar que o vocábulo “despenhadeiro” vem de des+penhar; ‘penha’ significa pedra e é a raiz da palavra. Relendo o conto, percebemos que o touro é descrito como “preto empedernido”, isto é, preto, duro como pedra. No deslizamento de significantes temos, então, no neologismo “desamparadeiro, associado ao vocábulo “despenhadeiro”, um exemplo de inscrição do trauma via letra, oscilando entre o Real e o Simbólico. Em outros termos, o touro, é comparado a uma pedra negra e dura (“preto empedernido”), que esmaga metaforicamente o vaqueiro Nhácio, levando-o ao ‘desamparo’ como se estivesse à beira de um despenhadeiro. A fusão do real com o traumático se instaura, assim, brilhantemente na condensação do neologismo “desamparadeiro”. (OLIVEIRA, 2015OLIVEIRA, E. S. Guimarães Rosa e a figuração do trauma: leitura de Hiato, de Tutameia. Reverso, v. 37, n. 69, p. 61-68, 2015. Belo Horizonte, Círculo Psicanalítico de Minas Gerais., p. 64).

Ao se deparar com a cena traumática do touro, Nhácio se vê frente a uma cena que o “esmaga” e o deixa completamente desamparado. Da fusão de duas palavras, Rosa cria uma terceira. A figuração do trauma nesse conto se dá quando a escrita se produz a partir de um vazio deixado pela experiência traumática da personagem. A escrita emerge da tentativa de contornar e dar forma ao buraco deixado pelo trauma que se apresenta enquanto sem sentido. Esse sem sentido pode ser apreendido na escrita, ao mesmo tempo em que a escrita é, ela mesma, o efeito dessa emergência do sem-sentido.

Sobre estas marcas que se dão no psiquismo, Freud em Nota sobre o ‘bloco mágico’ explicita de maneira muito precisa como o aparelho psíquico funciona em relação à memória. Afirma que o aparelho psíquico “tem ilimitada capacidade de receber novas percepções e cria duradouros - mas não imutáveis - traços mnemônicos delas” (FREUD, 1925/2011FREUD, S. Nota sobre o ‘bloco mágico’ (1925). In: FREUD, S. O Eu e o Id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 269). Assim,

Nós possuiríamos um sistema Pcp-Cs[Percepção-Consciência], que acolhe as percepções mas não conserva traço duradouro delas, podendo se comportar como uma folha em branco diante de cada nova percepção. Os traços duradouros das excitações recebidas se produziriam em “sistemas mnemônicos” situados por trás dele. Depois [...] acrescentei a observação de que o inexplicável fenômeno da consciência surgiria no sistema perceptivo no lugar dos traços duradouros. (FREUD, 1925/2011FREUD, S. Nota sobre o ‘bloco mágico’ (1925). In: FREUD, S. O Eu e o Id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 269-270, grifo do autor).

Freud aponta para o caráter duradouro do que o aparelho psíquico registra, destacando que este tudo percebe, ou seja, ao entrar em contato com as coisas, registra perceptivamente aquilo, mas nem tudo que é percebido chega à consciência, de modo que esses registros perceptivos ficam como traços mnemônicos, como marcas de algo que atingiu este aparelho. Em outras palavras, tudo é registrado pelo aparelho psíquico, mas nem tudo é inscrito à consciência e lembrado pelo sujeito. Portanto,

Há aqui, desde já, a concepção da emergência de um sujeito e este em uma disjunção com o que seria a concepção de uma realidade pré-existente a ele e uma suposta possibilidade de registrá-la por completo, já que a percepção da consciência captaria determinados traços e não a realidade como um grande bloco. Assim como, ao mesmo tempo, o que é escolhido para ser inscrito não deixa de ficar, de algum modo, em relação com o que é registrado. (VIANA, 2020VIANA, R. A. N. A historicidade da pulsão e a transmissão da cultura. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Ceará. 2020., p. 36-37, grifos da autora).

Essas percepções que ficam como marcas é o que estamos indicando como o que poderá se tornar o trauma em um tempo só-depois, no momento em que aquilo que deixou traço se liga ao que ganhou espaço na consciência e foi lembrado. O sujeito emerge quando passa a falar sobre isso que antes não tinha palavra por se apresentar como uma descontinuidade entre aquilo que do corpo se registra, mas que não encontra registro na consciência: “É a possibilidade de emergência de um sujeito, justamente no ponto em que a descontinuidade entre o corpo e o psíquico o ‘obriga’ a falar e a dar sentido, que o leva a se movimentar em busca de simultaneidade entre os acontecimentos da experiência e as tentativas de encontro com o objeto” (VIANA, 2020VIANA, R. A. N. A historicidade da pulsão e a transmissão da cultura. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Ceará. 2020., p. 40).

Sobre a repetição ocasionada pela marca do trauma, Freud, em Recordar, repetir e elaborar, aponta esses três momentos que uma análise proporciona ao analisando. Ele dá atenção a este problema em torno da técnica analítica e de que modo o tratamento é manejado no momento em que o analisando passa pelo processo. De início, afirma que o analista

[...] renuncia a destacar um fator ou problema determinado e se contenta em estudar a superfície psíquica apresentada pelo analisando, utilizando a arte da interpretação essencialmente para reconhecer as resistências que nela surgem e torná-las conscientes para o doente. Verifica-se então uma nova espécie de divisão de trabalho: o médico [o analista] desencobre as resistências desconhecidas para o doente; sendo essas dominadas, com frequência o doente relata sem qualquer dificuldade as situações e os nexos esquecidos. O objetivo dessas técnicas permaneceu inalterado, sem dúvida. (FREUD, 1914/2010FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. In: FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: (“O caso Schreber”), Artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) (1914). São Paulo: Companhia das Letras , 2010., p. 195).

É interessante esse apontamento porque podemos perceber a técnica envolvida no processo que vai levar o analisando a recordar os elementos de sua vida para que a análise se inicie, sendo a recordação seu primeiro momento. Além disso, é importante destacar o tratamento que Freud confere à fala do paciente e, consequentemente, à escuta do analista, onde o que se sobressai é justamente o que está na superfície, sem que se busque encontrar um fato específico enquanto o analisando fala.

Ao recordar, em determinado momento, o analisando passa a repetir, devido à resistência que a recordação proporciona no curso da análise: “o analisando não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido, mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete, naturalmente sem saber que o faz” (FREUD, 1914/2010FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. In: FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: (“O caso Schreber”), Artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) (1914). São Paulo: Companhia das Letras , 2010., p. 199-200).

Ao ter, só-depois, esse encontro com aquilo que ficou como marca, o sujeito tem a possibilidade de saber fazer algo com esse sem sentido. Sendo assim, “Vestígio da marca de um encontro impossível, o traumático é solidário com o conceito de repetição e nomeia o núcleo do inconsciente como ‘o que não cessa de não se escrever’. Esse núcleo traumático ordena o discurso: faz falar” (BARROS; OLIVEIRA, 2009BARROS, R. M. M.; OLIVEIRA, G. F. T. O que fazer com o real do trauma? In: LIMA, M. M.; JORGE, M. A. C. (org.). Saber fazer com o real: diálogos entre psicanálise e arte. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2009., p. 122, grifo das autoras). O só-depois implica uma operação de subversão no tempo, uma vez que é no presente que o sujeito fala algo sobre o seu passado, tentando elaborar aquilo que se inscreveu de maneira tão abrupta em seu psiquismo e encontrando uma maneira de se posicionar frente a isso que não cessa de causar efeitos. Desse modo, há infindáveis modos de se construir e elaborar em torno dessa experiência, na medida em que “a cada momento, o presente se associa ao passado e transforma sua significação” (RUDGE, 2009RUDGE, A. M. Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 2009., p. 21). Assim, “O après-coup [só-depois] mantém um pé no inconsciente, seu acontecimento traumático só se transforma em abertura - e não simplesmente em recalque - se encontrar alguém para ouvi-lo” (ANDRÉ, 2008ANDRÉ, J. O acontecimento e a temporalidade: O après-coup no tratamento. Ide, v. 31, n. 47, p. 139-167, 2008. São Paulo, Sociedade Brasileira de Psicanálise., p. 142). Sobre este aspecto, Rónai nos chama a atenção para o fato de Riobaldo narrar sua história para um estranho:

Dante Moreira Leite assinalou, em Grande sertão: veredas, a transcendência do modus narrandi adotado: relatório feito pelo protagonista a um estranho que se limita a ouvi-lo como o psicanalista ouve as confidências do paciente. “O romance somente adquire sentido diante do interlocutor quase silencioso que não interfere nas interpretações e nem na fabulação de Riobaldo.” Analisando noutro estudo a novela “Campo geral”, do nosso autor, escrita na terceira pessoa convencional da ficção, mas que apreende apenas a experiência do menino Miguilim, ressalta Dante Moreira Leite que o recurso era necessário, “pois a história não poderia ser narrada pelo herói a não ser como evocação, e isso [...] destruiria o seu núcleo fundamental, que é a perspectiva da criança”. (RÓNAI, 1966/2005RÓNAI, P. Os vastos espaços (1966). In: ROSA, J. G. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005., p. 27-28).

O que antes estava ligado à repetição passa para uma elaboração. Portanto, “o testemunho transmite, sendo assim uma maneira de passar para o discurso um saber fazer sobre o obstáculo, sobre o não domínio do real” (BARROS; OLIVEIRA, 2009BARROS, R. M. M.; OLIVEIRA, G. F. T. O que fazer com o real do trauma? In: LIMA, M. M.; JORGE, M. A. C. (org.). Saber fazer com o real: diálogos entre psicanálise e arte. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2009., p. 126). Com Jorge,

O real é “o que é estritamente impensável”, é o impossível de ser simbolizado; o real é, por excelência, o trauma, o que não é passível de ser assimilado pelo aparelho psíquico, o que não tem qualquer representação possível. Por isso, o real é também aquilo que retorna ao mesmo lugar, já que o simbólico não consegue deslocá-lo, e o ponto de não-senso que ele implica se repete insistentemente enquanto radical falta de sentido. (JORGE, 2010JORGE, M. A. C. A clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 2010. (Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan, 2), p. 11).

Evocando o trabalho do arqueólogo tal como articulado por Freud, em Construções em análise, à posição do inconsciente no tratamento do histórico, temos aqui um trabalho com objetos destruídos, dos quais foram perdidos fragmentos grandes e importantes, por causa de ações diversas do ambiente no decorrer do tempo. Por mais esforçadas que forem as buscas, não há como recompor integralmente tais fragmentos. Resta reunir os escombros, as partes que foram preservadas, e, diante desse material, a única opção é a reconstrução (FREUD, 1937/2018FREUD, S. Construções em análise (1937). In: FREUD, S. Moisés e o monoteísmo, Compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.).

No entanto, “para a arqueologia, a reconstrução é a meta e o fim dos esforços, e, para a análise, a construção é apenas um trabalho prévio” (FREUD, 1937/2018FREUD, S. Construções em análise (1937). In: FREUD, S. Moisés e o monoteísmo, Compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939). São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 332). Este trabalho prévio não deve ser feito antes de começar uma “próxima etapa”, mas um trabalho que vai se articulando em toda a análise: “O analista conclui um pedaço de construção e o transmite ao analisando, para que tenha algum efeito sobre ele; em seguida, constrói mais um pedaço, a partir do novo material que flui, age da mesma forma com esse, e prossegue nessa alternância até o fim” (FREUD, 1937/2018FREUD, S. Construções em análise (1937). In: FREUD, S. Moisés e o monoteísmo, Compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939). São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 332-333).

A construção promove uma abertura no passado, bordejando um núcleo refratário ao símbolo, onde Lacan irá situar o registro do Real. Entre o real e o símbolo, “o après-coup [só-depois] é uma noção em tensão, condensando duas dimensões que só querem afastar-se uma da outra. De um lado, a violência traumática, do outro, a sutileza de uma reinscrição, a complexidade de um significado remodelado” (ANDRÉ, 2008ANDRÉ, J. O acontecimento e a temporalidade: O après-coup no tratamento. Ide, v. 31, n. 47, p. 139-167, 2008. São Paulo, Sociedade Brasileira de Psicanálise., p. 142). Aqui, três termos podem ser tomados como equivalentes: o real, o trauma e a origem. Esta “só pode ser encarada a posteriori [só-depois], num segundo tempo que, buscando defini-la ou contorná-la, produz uma hipótese, uma ficção” (MIELI, 2013MIELI, P. Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In: BASUALDO, C.; BRAUNSTEIN, N. A.; FUKS, B. B. (org.). 100 anos de Totem e tabu. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2013., p. 126, grifo da autora). É por meio da produção de uma ficção, portanto, que o sujeito elabora um sentido em torno daquilo que é sem sentido. Isto que é da ordem da ficção, portanto, “é um modo de conhecimento que mantém uma relação com a possibilidade de que a história seja passível de ser contada e tenha alguma relação com a verdade do sujeito ou do povo que a conta, mas que não exige e não requer que a história contada seja uma verdade última” (VIANA, 2020VIANA, R. A. N. A historicidade da pulsão e a transmissão da cultura. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Ceará. 2020., p. 29).

Tomamos o trauma, então, como parte fundamental da constituição do sujeito, na medida em que é um “trauma necessário, que comparece na própria estruturação de toda subjetividade, que é a entrada na ordem da sexualidade” (RUDGE, 2009RUDGE, A. M. Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 2009., p. 27). Isso diz respeito a uma marca deixada por uma experiência corporal como consequência dessa entrada na sexualidade, em um momento onde o indivíduo não tem palavra para abarcar, mas que incide sobre o seu psiquismo como um “corpo estranho”. Assim, o trauma “é sempre algo da ordem de uma impossibilidade do corpo em dar algum tipo de destino que seria total à experiência acontecida consigo” (VIANA, 2020VIANA, R. A. N. A historicidade da pulsão e a transmissão da cultura. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Ceará. 2020., p. 33). Este se constitui na medida em que um mesmo elemento se apresenta no presente e no passado, relacionado a esta experiência corporal inapreensível da entrada na sexualidade: “para que isso ocorresse, seria preciso um fato atual que, estabelecendo relações associativas com a cena inicial, deslanchasse a libido” (RUDGE, 2009, p. 20). Este é o efeito de só-depois, uma vez que é apenas no presente que este elemento terá condições de encontrar relação associativa no passado, em torno do qual o sujeito construirá sua ficção.

Um aspecto importante relativo a esta verbalização - a partir do que ficou como marca e que constitui a “ficção” - pode ser apreendido na passagem da teoria da sedução para a da fantasia. No início de sua teoria, Freud deu especial importância à sedução sexual, traumática, como causa da histeria. No entanto, “embora nunca tenha desistido da importância da sexualidade na gênese dos transtornos psíquicos, Freud não levou muito tempo para colocar a realidade da sedução traumática em questão” (RUDGE, 2009RUDGE, A. M. Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 2009., p. 22). A teoria do trauma, passa, então, de algum acontecimento específico na vida do sujeito para a forma como este vai falar sobre o seu passado, uma vez “que o inconsciente funciona de forma tal que é impossível distinguir a verdade da ficção investida de afeto” (RUDGE, 2009RUDGE, A. M. Trauma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 2009., p. 24). Portanto, por mais que o fato relatado tenha realmente acontecido, este é recoberto pela fantasia, uma vez que esta experiência comportou algum nível de satisfação: “Freud atribui à fantasia uma função estrutural na cena psíquica. Como conjunto de signos que veiculam a experiência de satisfação [...] do desejo, a fantasia é função primária da satisfação pulsional, motor do aparelho” (MIELI, 2013MIELI, P. Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In: BASUALDO, C.; BRAUNSTEIN, N. A.; FUKS, B. B. (org.). 100 anos de Totem e tabu. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2013., p. 132).

Na medida em que essa experiência de satisfação pulsional acarreta uma divisão, a fantasia aparece como esta ficção que tenta dar conta disso, que é inapreensível e até insuportável para quem fala. A fantasia “articula a relação do sujeito com o objeto de desejo, assim como a relação entre realidade psíquica e a realidade exterior” (MIELI, 2013MIELI, P. Totem e tabu: nota sobre a função do pensamento no aparelho psíquico freudiano. In: BASUALDO, C.; BRAUNSTEIN, N. A.; FUKS, B. B. (org.). 100 anos de Totem e tabu. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2013., p. 132). É daí que o trauma passa a assumir um lugar fundamental na teoria psicanalítica, recolocando o estatuto da realidade na experiência, por meio da fantasia.

Trauma e desejo em Grande Sertão: Veredas

Lemos em Grande Sertão: Veredas a narrativa de Riobaldo, ex-jagunço, que conta sua história para um desconhecido. É no rio São Francisco onde, ainda jovem, tem o seu primeiro encontro com Diadorim, figura em torno da qual todo o seu relato insiste e que se coloca como objeto de amor para o narrador. Ao encontrar pela primeira vez o menino Diadorim - que convida Riobaldo para um passeio de canoa pelo rio São Francisco - há um primeiro lampejo de seu desejo por Diadorim. À primeira descida das águas, Riobaldo fica fascinado com a beleza do menino:

As canoas eram algumas, elas todas compridas, com as de hoje, escavacadas cada qual em tronco de pau de árvore. Uma estava ocupada, apipada passando as sacas de arroz, e nós escolhemos a melhor das outras, quase sem água nem lama nenhuma no fundo. Sentei lá dentro de pinto em ovo. Ele se sentou em minha frente, estávamos virados um para o outro. Notei que a canoa se equilibrava mal, balançando no estado do rio. O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentante receio. (ROSA, 1956/2015ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas (1956)., 2015., p. 94-95).

Sobre o rio, Riobaldo diz: “O São Francisco partiu minha vida em duas partes” (ROSA, 1956/2015ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas (1956)., 2015., p. 257). Antonio Candido dirá que o São Francisco tem a função narrativa, no romance, de traçar uma divisão, em primeiro lugar, no mundo:

[...] o lado direito e o lado esquerdo, carregados do sentido mágico-simbólico que esta divisão representa para a mentalidade primitiva. O direito é o fasto; nefasto o esquerdo. Na margem direita a topografia parece mais nítida; as relações mais normais. [...] Na margem esquerda a topografia parece fugidia, passando a cada instante para o imaginário, em sincronia com os fatos estranhos e desencontrados que lá sucedem. (CANDIDO, 2000CANDIDO, A. O homem dos avessos. In: Tese e antítese: ensaios. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000., p. 124-125).

As águas do São Francisco dão lugar ao primeiro desejo de Riobaldo, que contempla a beleza de Diadorim e se sente bem por estar com ele. Esse encontro é tomado por Candido (2000CANDIDO, A. O homem dos avessos. In: Tese e antítese: ensaios. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.) como uma cena que marca a vida inteira do narrador e assim compreendemos que a divisão implicada pelo rio diz respeito a uma divisão na narrativa que figura também em uma divisão de ordem psíquica diante da emergência do primeiro desejo.

Sobre o rio, o sertão e o amor, diz Benedito Nunes: “é Diadorim menino quem introduz Riobaldo no mundo maravilhoso e áspero do sertão, que o rio simboliza. Menino diferente, tem a estatura de um amor mítico, fabuloso, que parecia igualar-se ao próprio rio em sua força e em seus segredos” (NUNES, 1994NUNES, B. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: ROSA, J. G. Ficção completa, em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 125).

Entre rio e neblina, lembrando de Diadorim, Riobaldo diz: “Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é a minha neblina...” (ROSA, 1956/2015ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas (1956)., 2015., p. 32). Fernanda Machado enlaça neblina e memória:

A neblina que impossibilita a visão plena de uma paisagem é a imagem poética que acreditamos melhor defini-lo. Além de fazer referência ao sentimento ambíguo de Riobaldo pelo companheiro [...] também ilustra como o corpo do personagem se apresenta na memória do narrador: sempre há algo velado, indefinido ao se tentar compor sua imagem. (MACHADO, 2007MACHADO, F. Corpo “Neblim”: a representação do corpo de Diadorim em Grande sertão: veredas. Em Tese, v. 11, p. 47-51, 2007. Belo Horizonte, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais., p. 48).

O termo neblina alude ao modo como Riobaldo se refere a Diadorim, colocando-se em uma posição na qual cria um enigma em torno de sua figura. Enigma e desejo se articulam na escrita mesma - escrita que bordeja sem cessar esse núcleo incandescente que é Diadorim. Machado dirá que o corpo de Diadorim é construído na fala de Riobaldo:

Por pertencer a um universo literário, o corpo de Diadorim é um “corpo de ficção”, construído na e pela fala de Riobaldo. Dessa maneira, sofre grande interferência da linguagem para ser representado, inclusive, muitas vezes imagens poéticas serão utilizadas para a sua simbolização. Ao ser compreendido como um significante, ele escapa à representabilidade plena, pois ocupa o lugar de um saber faltoso na memória de Riobaldo: no caso, o próprio corpo de Diadorim. (MACHADO, 2007MACHADO, F. Corpo “Neblim”: a representação do corpo de Diadorim em Grande sertão: veredas. Em Tese, v. 11, p. 47-51, 2007. Belo Horizonte, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais., p. 47).

Estamos propondo situar em um mesmo nível a fala e a escrita. Diadorim aparece, então, como figura do desejo e propulsor de desejo para Riobaldo, uma vez que coloca para o narrador um problema que vai perpassar a obra como um todo: “Diadorim, ambíguo, menino que também é menina, desperta a alma de Riobaldo, infunde-lhe o desassossego, toque de Eros, que mais tarde, nos longes do sertão, se converterá em amor” (NUNES, 1994NUNES, B. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: ROSA, J. G. Ficção completa, em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 125). Este desassossego é a própria manifestação da divisão que o amor comporta.

Sendo Diadorim uma figura tão ambígua e misteriosa, leva Riobaldo a criar, diante da figura do parceiro, um amor como narrativa em torno dessa divisão. Segundo Nadiá Paulo Ferreira, isso se deve ao fato de que

[...] nada instiga mais a busca pela verdade do que o amor. Jacques Lacan, em seus seminários, referindo-se à relação intrínseca entre amor e verdade, afirma que ambos têm uma estrutura de ficção e, como tais, são artifícios com a função de criar uma tela protetora diante dos enigmas sem decifração. (FERREIRA, 2004FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004., p. 8).

Assim, “As fantasias que cingem o amor quebram o limite entre a verdade e a mentira, conduzindo o homem a esbarrar em alguma coisa da ordem do intransponível” (FERREIRA, 2004FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004., p. 8, grifo nosso). O que seria este intransponível senão aquilo da ordem do sem sentido, a que o sujeito tenta o tempo todo dar palavra? O que leva o sujeito a elaborar sua ficção é justamente isto que, para ele, é intransponível, misterioso. É assim que, “Diante dos enigmas da existência no mundo [...], o amor se articula com o desejo. Desejar implica, em um primeiro momento, o reconhecimento do desejo e, em um segundo momento, o relançamento do que não se realizou em novas aspirações” (FERREIRA, 2004FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004., p. 10). Podemos dizer, então, que o amor direcionado ao parceiro figura com uma estrutura mítica, ficcional (NUNES, 1994NUNES, B. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: ROSA, J. G. Ficção completa, em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.), disso que se coloca enquanto marca fundamental - traumática - para o narrador em torno da experiência com Diadorim, que assim o reconhece como figura de desejo. Mas o que é amar? O que é desejar?

Amar coloca em cena dois lugares: sujeito (amante) e objeto (amado). Aquele sobre o qual se abate a experiência de que alguma coisa falta, mesmo não sabendo o que é, ocupa o lugar de amante. Aquele que, mesmo não sabendo o que tem, sabe que tem alguma coisa que o torna especial, ocupa o lugar de amado. O paradoxo do amor reside no fato de que o que falta ao amante é precisamente o que o amado também não tem. O que falta? O objeto do desejo. (FERREIRA, 2004FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004., p. 10).

Mas este objeto absoluto não existe, portanto, o desejo não pode ser realizado em sua totalidade (FERREIRA, 2004FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.). É, então, que podemos entender que o desejo é fundado em uma falta, o que nos permite situar que “o destino do homem é ser desejante e amar na lógica do não-todo” (FERREIRA, 2004FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004., p. 11), ou seja, desejando calcado em uma falta radical. E é justamente pelas vias dessa falta que o homem inventou o amor, em uma tentativa de supri-la (FERREIRA, 2004FERREIRA, N. P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.). É esta a estrutura do desejo apresentada em Grande Sertão: Veredas, sendo a produção desse amor de Riobaldo por Diadorim a ficção criada pelo narrador como uma tentativa de dar conta disso que se apresenta enquanto marca intransponível e traumática.

CONCLUSÃO

A presença de Guimarães Rosa na literatura brasileira denota uma grande importância devido ao tratamento diferenciado que o autor dá à utilização da língua portuguesa, em busca de uma ruptura com aquilo que antes era considerado formal em sua utilização. Conforme aponta Coutinho, no entanto, este feito de Guimarães Rosa,

[...] longe de constituir mera obsessão formal [...], era antes uma proposta estético-política de cunho mais abrangente, que se traduzia em premissas, como a formulada por ele mesmo em entrevista ao crítico Günter Lorenz, de que ‘somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo’. (COUTINHO, 2013COUTINHO. E. F. Grande Sertão: Veredas: Travessias. São Paulo: Realizações, 2013., p. 21).

Pode-se perceber, desse modo, a importância que tal renovação da língua tinha para o autor, o que evidencia de modo muito preciso a relação que este estabeleceu com a língua e com sua criação.

Rosa, ao escrever, tenta dar nome a algo inominável, um vazio deixado por sua própria experiência, imprescindível para a transmissão e criação de sua linguagem. Ao transmiti-la, podemos dizer que há a atualização de uma experiência estritamente singular testemunhada pelas personagens de sua obra. Essa atualização é importante para que Guimarães Rosa dê um destino a esta experiência traumática que figura a todo o momento em sua obra, denotando o seu estilo, que se faz na medida em que trabalha com o significante, ultrapassando vertiginosamente o uso comunicativo da palavra.

Assim, a escrita de Guimarães Rosa surge como uma tentativa de elaboração frente a isto, que aqui nomeamos de trauma, que se apresenta enquanto um indizível, um intransponível (CALDAS, 2007CALDAS, H. Notas preliminares sobre escrita e estilo em Guimarães Rosa. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.). Escrita e Psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud , 2007.). Ao mesmo tempo que faz referência à tradição, a reinventa ao deslocar a utilização da norma e do sistema linguístico em sua criação literária (CALDAS, 2007CALDAS, H. Notas preliminares sobre escrita e estilo em Guimarães Rosa. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.). Escrita e Psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud , 2007.; FONTENELE, 2011FONTENELE, L. O despertar e o silêncio: considerações sobre o final de análise em Freud e Lacan. In: MAURANO, D.; NERI, H.; JORGE, M. A. C. (org.). Dimensão do despertar na psicanálise e na cultura. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.).

Evocando sempre um tempo ou acontecimento originário, que depreendemos como um núcleo traumático, real, refratário ao simbólico, vimos também, no romance, a ficção erigir-se como uma espécie de tratamento do trauma, de contorno real e imaginário suturado como a própria escrita. Na escrita, encontramos a sutura entre o real do trauma e a ficção que daí vai se ordenar. Nos personagens, encontramos a fala a produzir algo singular - fala causada pelo que insiste o tempo todo em seu discurso e em sua vida e que comparece como uma espécie de falha que ao sujeito não faz sentido:

[...] essa falha exigiu uma suplência: a linguagem, o símbolo. O que nos falta também nos impulsiona: já que falta, inventamos! Inventamos ficções, a ciência, a tecnologia e a arte, construímos e destruímos civilizações, poluímos e despoluímos o meio ambiente, solucionamos e criamos problemas. E nunca estamos satisfeitos, nunca paramos de desejar. (LONGO, 2006LONGO, L. Linguagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed ., 2006., p. 16).

Por fim, podemos pensar na criação dessa marca, evidenciada por Guimarães Rosa, que “se faz de maneira particular em cada sujeito falante e que se presta a um uso singular. As palavras, pois, se prestam a um uso de comunicação e veiculam um sentido, mas igualmente resistem ao próprio sentido” (MACHADO, 2011MACHADO, B. F. V. João Guimarães Rosa: a invenção da linguagem. Intinerários, n. 33, p. 233-242, 2011. Araraquara, Universidade Estadual Paulista., p. 234). Esta marca diz respeito à própria manifestação do inconsciente como estilo, como rastro de algo que não pode ser expresso integralmente, mas que busca sem cessar uma expressão.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2022
  • Aceito
    24 Fev 2023
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