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O OLHAR EM PSICANÁLISE NO CONTEXTO DA OFICINA DE FOTOGRAFIA NA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

THE GAZE IN PSYCHOANALYSIS IN THE PHOTOGRAPHY’S WORKSHOP CONTEXT AT PSYCHOSOCIAL CARE

RESUMO:

Problematiza a questão do olhar na oficina de fotografia no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), situada na interface entre psicanálise, fotografia e atenção psicossocial. Buscou-se articular a experiência neste dispositivo sustentada pelos conceitos da teoria psicanalítica freudo-lacaniana, particularmente o conceito de estádio do espelho de Lacan. Formulamos a noção de analista-inventariante a partir do conceito de inventário como tática, proposto por Pimentel (2014), demarcando as especificidades que a oficina opera a partir do trabalho com imagens.

Palavras-chave:
psicanálise; saúde mental; fotografia; analista-inventariante

Abstract:.

It problematizes the issue of gaze at the photography workshop at the Psychosocial Care Center (CAPS), located at the interface between psychoanalysis, photography and psychosocial care. We sought to articulate the experience in this device supported by the concepts of Freudo-Lacanian psychoanalytic theory, particularly the concept of Lacan’s mirror stage. We formulated the notion of analyst-inventory from the concept of inventory as a tactic, proposed by Pimentel (2014), demarcating the specificities that the workshop operates from working with images.

Keywords:
psychoanalysis; mental health; photography; analyst-inventory

INTRODUÇÃO

Neste artigo, discutimos as interlocuções entre fotografia, psicanálise e atenção psicossocial, que surgem a partir do trabalho numa oficina de fotografia em um CAPS. As problematizações advindas desta experiência são discutidas sob a ótica da teoria psicanalítica freudo-lacaniana e de teóricos da comunicação.

O usuário acompanhado nos serviços de saúde mental frequentemente ocupa uma posição discursiva de incapacidade, muitas vezes reforçada pela família e pelo meio social. O trabalho no contexto das oficinas terapêuticas pressupõe horizontalidade nas relações de poder, o que contribui para evitar que o analista ocupe um lugar de tutela. Tal posição provoca o apagamento do sujeito e reforça o atravessamento assistencialista nas instituições de saúde.

Ginzburg (1989)AGAMBEN, G. Signatura rerum: sobre o método. São Paulo: Boitempo, 2019. afirma que, nas ciências humanas, se configura o paradigma indiciário, baseado na semiótica, que tem seu nascimento localizado ao final do século XIX, contrariando a ciência galileana, detentora do status social neste período. Este conceito também é problematizado por Agamben (2019)AGAMBEN, G. Signatura rerum: sobre o método. São Paulo: Boitempo, 2019., que estabelece que, nas ciências humanas, ele é paradoxal, uma vez que seu movimento vai do particular para o particular, diferente da indução e da dedução que regem a lógica cartesiana. Ambas as definições estão em consonância com a teoria psicanalítica, auxiliando a demarcar as peculiaridades deste campo. Pela sua natureza, a pesquisa psicanalítica sempre é conduzida sob transferência entre analista-pesquisador e sujeito(s) no campo do inconsciente, do mesmo modo que o tratamento psicanalítico (ELIA, 1999AGAMBEN, G. Signatura rerum: sobre o método. São Paulo: Boitempo, 2019.). Este último, é um exercício constante para proporcionar aberturas a fim de que o sujeito do inconsciente possa emergir e seu desejo consiga ser vislumbrado. Dessa maneira, o pesquisador ocupa a posição de analisante, segundo o autor.

A experiência da oficina de fotografia teve lugar em uma cidade da região metropolitana da capital de um estado do Brasil. Neste pequeno município, os serviços de saúde mental que compõem a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) são: um ambulatório adulto, um CAPS i e um CAPS II. A atividade acontece no CAPS II desde 2019, a partir da implantação do projeto de oficinas terapêuticas no local. Atualmente, segue em funcionamento, de acordo com as medidas sanitárias relativas à pandemia de covid-19.

Embora o serviço esteja formalmente habilitado junto ao Ministério da Saúde há alguns anos, permanece em processo de constituição, buscando alinhar-se às premissas da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica, mesmo em tempos de contrarreforma (PITTA; GULJOR, 2019AGAMBEN, G. Signatura rerum: sobre o método. São Paulo: Boitempo, 2019.). O risco de reproduzir a lógica manicomial nos serviços substitutivos está sempre à espreita e os processos de trabalho precisam ser constantemente repensados, buscando evitar as capturas do modelo asilar (NICÁCIO, 2003AGAMBEN, G. Signatura rerum: sobre o método. São Paulo: Boitempo, 2019.). Demanda tempo desenvolver ações nas brechas institucionais, construindo um projeto de cuidado compartilhado em saúde mental.

O significante “habilitado” foi expressivo das dificuldades da equipe em repensar os processos de trabalho a partir dessa nova lógica, como se uma autorização externa automaticamente configurasse um novo modelo de cuidado em saúde mental. A desconstrução de práticas tradicionais não ocorre sem resistências.

CAPS, OFICINAS TERAPÊUTICAS E A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

A reformulação da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) prevê a substituição progressiva dos leitos de internação psiquiátrica nos manicômios por uma rede ambulatorial de atenção à saúde mental, na qual o usuário também é cidadão e tem direito a um cuidado integral, articulado aos seus contextos social e histórico. Dentre as ofertas de atendimento dos CAPS, podemos citar algumas: oficinas terapêuticas, oficinas de geração de renda, consultas psiquiátricas, atendimentos individuais, grupos, assembleias, atividades sociais, atividades culturais, articulações no território e com a rede, entre outras. Busca também desenvolver ações de promoção em saúde mental no território e matriciamento das equipes na Atenção Básica. Esse último, é apontado por Figueiredo (2010)FIGUEIREDO, A. C.; NOBRE, L.; VIEIRA, M. A. Pesquisa clínica em psicanálise: a elaboração de um método. In: FIGUEIREDO, A. C. (org.) Psicanálise: pesquisa e clínica. Rio de Janeiro: Edições IPUB/CUCA, 2001. como função social e política do serviço substitutivo, articulando o cuidado compartilhado na rede. As intervenções buscam articular a função social paralelamente à função clínica.

Em 2011, foi publicada a Portaria nº 3.088 de 23 de dezembro, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), delimitando os atores institucionais da rede de saúde mental. Especifica inclusive qual seria a função de cada serviço dentro da política pública de saúde mental. Entretanto, a problemática do sofrimento psíquico grave e persistente envolve o tensionamento de diferentes pontos da rede em um sentido mais amplo - como a assistência, a educação, a justiça, a cultura e a própria comunidade -, de forma que demanda uma oferta de tratamento contextualizada no laço social, potencializadora da autonomia e da singularidade do sujeito, visando a concretização de sua circulação no território. Figueiredo (2010)FIGUEIREDO, A. C.; NOBRE, L.; VIEIRA, M. A. Pesquisa clínica em psicanálise: a elaboração de um método. In: FIGUEIREDO, A. C. (org.) Psicanálise: pesquisa e clínica. Rio de Janeiro: Edições IPUB/CUCA, 2001. aponta três tempos da clínica na saúde mental, em que o terceiro tempo consiste na atuação intersetorial das equipes, isto é, precisam ampliar seu campo de ação para além da área da saúde, permitindo a circulação do caso.

No campo da atenção psicossocial, há uma disputa incessante entre clínica e política (GUERRA, 2008; RINALDI, 2005), proveniente da dificuldade em situar a clínica no contexto da reforma psiquiátrica - pois já não se trata da clínica psiquiátrica tradicional, tampouco da clínica psicanalítica stricto sensu. A clínica em questão se situa entre os direitos do cidadão e o sujeito do inconsciente, caracterizando a negação da clínica em detrimento da cidadania (FIGUEIREDO, 2004; ONOCKO-CAMPOS, 2014), como se a primeira fosse responsável pela cronificação no campo da saúde mental e pudéssemos substituí-la exclusivamente pela conquista de direitos, excluindo a dimensão da escuta do sujeito do inconsciente. Guerra (2008) afirma que as oficinas são sustentadas por diferentes feixes discursivos, que se entrelaçam, como o discurso da cidadania e o discurso do inconsciente.

A ênfase na oficina terapêutica se encontra no processo de trabalho, cujo produto é uma consequência dispensável, segundo Gryschek e Neubarth (2018), pautado em um ambiente cordial e com liberdade de expressão, no qual o oficineiro é um catalisador. Retomando a dimensão da produção de um objeto concreto no âmbito das oficinas, existem diferentes posições teóricas acerca do que deve ser feito com essas produções. Moschen (1990) afirma que o compartilhamento das produções com o exterior não deve ser a regra no espaço da oficina. No caso dos psicóticos, elas precisariam ser resguardadas, evitando sua exposição ao exterior, uma vez que, ao serem publicizadas, expõem o sujeito psicótico em seu maior impasse. Contudo, reconhece que muitos participantes buscam essa inscrição social através de suas produções. Guerra (2008)AGAMBEN, G. Signatura rerum: sobre o método. São Paulo: Boitempo, 2019. defende que elas devem ser compartilhadas, expostas aos demais fora da oficina, aventando inclusive a possibilidade de geração de renda. Esse aspecto é marcante no trabalho na atenção psicossocial devido à exclusão social e econômica às quais os portadores de sofrimento psíquico estão submetidos, o que se manifesta também na oficina de fotografia.

Revisitando algumas pesquisas realizadas na área da psicologia social (TITTONI, 2009AGAMBEN, G. Signatura rerum: sobre o método. São Paulo: Boitempo, 2019.), encontramos o uso da fotografia nas intervenções pontuando os efeitos que produzem nos sujeitos: seja autorizando simbolicamente a circulação nos territórios, seja reafirmando a autonomia e a autoria dos participantes. Diehl e Maraschin (2009) discutem os aspectos constitutivos de uma oficina de fotografia realizada com jovens em internação psiquiátrica na capital, indicando a potência do ato de fotografar, salientando os efeitos que produz nos usuários e na equipe de saúde mental. No trabalho de Freitas (2012), discutem-se as possibilidades que emergem ao operar com uma oficina de fotografia em um CAPS, na qual surgiram conteúdos inconscientes expressos nas imagens e efeitos na relação entre os usuários.

A PRODUÇÃO DE IMAGENS E SEU CONTEXTO NO DISPOSITIVO DA OFICINA DE FOTOGRAFIA

Vivemos entre cenários extremos, que vão desde a enxurrada de imagens captadas/ armazenadas em dispositivos virtuais diariamente até a falta de acesso a qualquer tipo de registro fotográfico, tamanho o grau de exclusão a que uma parcela da população está submetida. Diante disso, entendemos que o uso da câmera fotográfica pode subverter esta relação do sujeito com a imagem, pelo fato de ele poder acessá-la e interrogar-se sobre suas produções. O conceito de imagem em Aumont (2012)AUMONT, J. A imagem. Campinas: Papirus, 2012. diz que, quando ela é amplamente socializada através de determinado dispositivo, como o fotográfico, a imagem representativa exerce seu efeito no duplo registro de presença e ausência. Isso faz com que a imagem acione redes identificadoras e a identificação do espectador: com quem o olha e consigo mesmo.

Tendo em vista que nenhum dos integrantes dispunha de equipamento fotográfico em casa (exceto um usuário), após algum tempo de funcionamento da oficina combinamos que cada um poderia levar uma máquina fotográfica para casa, com a finalidade de fazer os registros que achassem pertinentes. A maioria dos participantes aceitava a oferta, porém, José (nome fictício) sempre recusava. Na oficina, fazia poucas fotografias, tímidas, como se não se sentisse autorizado a manipular a máquina. Demonstrava receio de levar o equipamento e ter que se responsabilizar por ele, trazendo diversas justificativas.

Certo dia, esqueci de oferecer as máquinas ao término da oficina e José pediu para falar comigo na saída. Perguntou diretamente se eu emprestaria a câmera fotográfica para que a levasse consigo; respondi que sim. Peço que escolha a máquina, enquanto separo os acessórios do aparelho. Na semana seguinte, a primeira coisa que faz ao chegar para a oficina é me devolver a câmera, como se precisasse mostrar que cumpriu com sua tarefa. Perguntei o que achou de utilizar a câmera em casa; ele relata que foi muito bom porque fez duas fotos. Ao transferir as fotografias da máquina para o computador, aparecem dois retratos de José. No primeiro, ele aparece sorrindo para o fotógrafo, na sala de sua moradia. Ao fundo, notamos uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, junto à camisa de seu time de futebol favorito, além do retrato de um garoto e uma tapeçaria antiga desbotada. O segundo é semelhante, porém desfocado, e ele se encontra mais distante. Seus olhos brilham de alegria ao visualizar o resultado, e José comenta sobre as fotografias com orgulho entre os colegas. Pergunto quem fez os registros, já que ele é o tema da foto, ao que responde que o pai tirou seu retrato e que isso era muito importante, pois o mesmo nunca estava em casa. O grupo comenta que as fotos ficaram muito boas, embora demonstrem uma perplexidade disfarçada, como se um gesto tão singelo não pudesse gerar comoção. Aqui entram em cena a singularidade de cada sujeito e os limites entre alteridade e reconhecimento em uma experiência coletiva heterogênea. Alteridade que sinaliza que adquirimos a linguagem através do Outro, por intermédio dos campos dos significantes ou da herança cultural (FIGUEIREDO; NOBRE; VIEIRA, 2001FIGUEIREDO, A. C.; NOBRE, L.; VIEIRA, M. A. Pesquisa clínica em psicanálise: a elaboração de um método. In: FIGUEIREDO, A. C. (org.) Psicanálise: pesquisa e clínica. Rio de Janeiro: Edições IPUB/CUCA, 2001.). Subjetividade e alteridade estão imiscuídas na questão da produção da fotografia: “E eis o pior: a máquina fotográfica, no fundo, é apenas um aparelho subjetivo, um aparelho da subjetividade” (DIDI-HUBERMANN, 2015DIDI-HUBERMAN, G. Invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015., p. 93). É preciso um percurso temporal entre o primeiro contato com esse “aparelho da subjetividade” no espaço protegido da oficina até se permitir levá-lo para sua moradia e fazer um registro próprio, que pudesse ser compartilhado no grupo da oficina. Opera nessa cena uma demanda por reconhecimento e pertencimento do sujeito ao grupo.

É inegável que a psicanálise vem contribuindo há muito tempo com o delicado trabalho de construção de uma clínica na atenção psicossocial, marcada pelo encontro diário com a psicose, como nos casos de José e Joana. Bulhões (2007) sinaliza que é preciso estar atento ao risco, sem perder de vista a aposta na construção de recursos do sujeito. Ramalho (2007) também indica que, na clínica das psicoses, o trabalho consistiria em uma aposta no paciente, permitindo a construção de uma narrativa que o leve à condição de sujeito, na qual o analista poderia testemunhar esta construção-constituição.

Durante visita a uma praça da cidade, Joana (nome fictício), usuária que pouco verbaliza suas impressões devido a alucinações auditivas e visuais constantes, relembra que seu tio chamava a máquina fotográfica de “fotadeira” e sorri. Conta que, nas reuniões de família em sua infância, quando o tio se referia à máquina por esse nome e chamava a todos para o retrato, ela achava a palavra engraçada e isso a fazia rir. A narrativa dessa memória no grupo a faz sorrir novamente com a espontaneidade que remete ao infantil do sujeito, algo raramente presenciado nas atividades em que participa no serviço. Todavia, saliento a noção de Freud (1899/2020FREUD, S. O inquietante(1919). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 328-376. (Obras completas, 14)) sobre as lembranças encobridoras, nas quais um detalhe, um fragmento trivial particularmente nítido, colorido, reluzente, na verdade esconde algo de ordem traumática. Leader (2005)AGAMBEN, G. Signatura rerum: sobre o método. São Paulo: Boitempo, 2019. lembra que as fotografias de família, tão corriqueiras, também podem representar momentos de dor e sofrimento por detrás de tantas faces sorridentes.

Ao pesquisar o termo “fotadeira” no buscador Google, a fim de investigar sua existência na língua portuguesa, o resultado que retorna é a palavra furadeira. Não teriam os algoritmos do Google alguma razão para me corrigir devolvendo essa palavra? Furadeira significa ferramenta, máquina que faz furo, esburaca diferentes materiais concretos. O significante “fotadeira” evoca uma máquina de fazer furos a partir da luz, de esburacar o real a partir de imagens - no que se assemelha à função da furadeira. O prefixo “fota” vem do grego photo, que significa luz. Já o sufixo “eira” indica a ideia de relação, agente, ofício. Logo, a ideia de uma máquina que faz furo através da luz conecta-se com o ofício do fotógrafo: aquele que escreve com a luz. O sentido da oficina de fotografia para essa usuária passa por esse significante. A despeito da gravidade do caso, Joana demonstra que se sente acolhida no CAPS, verbalizando no grupo que gosta de fazer parte do mesmo, embora, em momentos de maior desorganização, não consiga comparecer às atividades.

Ainda na praça, sob a sombra das árvores em um dia quente de verão, comentávamos sobre os diferentes tipos de máquinas fotográficas quando Joana lembrou que tinha uma máquina fotográfica analógica, que pertencia à família, guardada em casa. Se prontificou a procurá-la e trazê-la para a oficina para que os demais participantes pudessem conhecê-la, embora não tivesse certeza se ainda funcionava. Esses dois momentos mostram a possibilidade de compartilhar uma lembrança afetiva e um objeto familiar com o grupo, permitindo um enlace com o Outro. No encontro seguinte, trouxe a máquina para a atividade da oficina, conforme havia combinado. A câmera ainda funcionava e o grupo pôde experimentá-la, sendo que sua proprietária insistiu para que a máquina permanecesse no CAPS após o término da atividade.

Em outro momento, João é o porta-voz do questionamento que nos acompanha na trajetória da oficina: qual é o tema? Pergunta que ele proferia invariavelmente, em diferentes circunstâncias, indagando sobre a homogeneidade dos objetos fotografados. João apontava que “o fotógrafo sempre tem um tema” e delimitá-lo era importante. Em muitas ocasiões, era identificado um tema a posteriori - a partir dos elementos fotografados, realizávamos a costura dessas imagens em uma trama-tema, pois nisso consiste também o trabalho. Podemos salientar o caráter totalizante que as abordagens em saúde usualmente adotam, nas quais os indivíduos estão habituados a obedecer (cega e passivamente) às recomendações dos especialistas da área. A proposta da oficina busca desacomodar os participantes dessa posição, convocando-os a expressar suas necessidades e angústias de acordo com suas possibilidades, em um fazer partilhado com o grupo.

REVISITANDO A FOTOGRAFIA E A QUESTÃO DA IMAGEM

Desde a invenção do daguerreótipo por Daguerre e Niepce, em 1839 (BENJAMIN, 1987), até hoje, nos ocupamos em criar formas de utilizar o registro fotográfico, como podemos acompanhar no documentário Visage Villages (2017), de Agnes Varda, ou no filme Bokeh, de Geoffrey Orthwein e Andrew Sullivan (2017). O trabalho de fotógrafos, como o brasileiro Sebastião Salgado e o esloveno Evgen Bavcar - esse último também filósofo -, apresentam diferentes facetas do debate sobre a fotografia em seu estatuto artístico nos dias atuais. Salgado faz o registro fotográfico de desastres naturais e catástrofes que acometem povos isolados. Seu trabalho adquire um caráter testemunhal e de resistência, embora tenha recebido críticas por uma suposta falta de ética devido à exploração do belo através de seus registros em preto e branco (NEVES, 2017NEVES, V. Théodore Géricault e Sebastião Salgado: conectados pelo olhar do romantismo. Revista Interdisciplinar Internacional de Artes Visuais, v. 4, n. 2, 2017. Disponível em:Disponível em:http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/sensorium/article/view/1811/1293 . Acesso em05 out. 2019.
http://periodicos.unespar.edu.br/index.p...
). Bavcar e suas criações de imagens fotográficas poéticas surpreendentes apontam com delicadeza o funcionamento do olhar a partir da percepção visual (TESSLER; CARON, 2001TESSLER, E.; CARON, M. Uma câmera escura atrás de outra câmera escura: entrevista com Evgen Bavcar. In: SOUSA, E. L. A.; TESSLER, E.; SLAVUTZKY, A. (orgs.). A invenção da vida: arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001.), que também é de ordem mental - ou seja, é evocada através da representação do objeto produzindo uma visão (QUINET, 2002QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar , 2002.).

Com o surgimento da fotografia, parecia que sua única função era capturar a realidade e fixá-la em uma imagem, operando como uma prótese de memória, uma tentativa desesperada de imortalização e suspensão do tempo. Ao longo do processo de desenvolvimento tecnológico que facilitou a reprodutibilidade técnica da imagem fotográfica, Benjamin (1987)BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.afirmou o status científico e artístico da mesma. A fotografia conquistou seu espaço nos museus e galerias de arte, subvertendo seu uso tradicional, demonstrando sua potencialidade e problematizando as relações que se estabelecem entre imagem, espaço, tempo e memória.

Benjamin foi responsável por formular o conceito de inconsciente ótico que aparece em sua obra Pequena história da fotografia (1987), na qual infere que o registro fotográfico capta algo do retratado perceptível apenas quando se olha a fotografia, imperceptível ao olho sem a mediação da câmera. E que esse inconsciente ótico se assemelharia ao inconsciente pulsional freudiano, cuja presença pode ser evidenciada apenas através da psicanálise. Rosalind Krauss, em seu livro The optical unconscious (1993), propôs o conceito de inconsciente óptico - que difere do conceito benjaminiano, pois concebe o campo fotográfico estruturado como uma linguagem, semelhante à formulação do conceito de inconsciente na teoria lacaniana. Ela argumenta que seria o instante em que, simultaneamente a essa descoberta, o sujeito é capturado pelo olhar enquanto objeto a, como propõe Quinet (2002)QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar , 2002.; um sujeito enquanto efeito do inconsciente, ocupando a posição de mancha no quadro. Entretanto, ambos concordam que a única forma de revelar o inconsciente óptico é através da fotografia:

Assim como existe um inconsciente que só a psicanálise pode revelar, também existiria um inconsciente óptico acessível somente pela fotografia: a vista aérea de uma cidade - ou do planeta Terra -, microorganismos vistos em detalhes, as quatro patas do cavalo suspensas no ar ou o misterioso movimento pelo qual o gato sempre cai em pé. (SOUSA, 2012SOUSA, R. A fotografia como paradoxo da superfície. Revista-Valise, ano 2, v. 2, n. 3, 2012. Disponível em:Disponível em:https://seer.ufrgs.br/RevistaValise/article/view/23298/18956 . Acesso em:12 maio 2019.
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, p. 29).

Barthes (2015BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.), em sua obra, se ocupa do resgate do estatuto da fotografia na produção científica, afirmando que a imagem fotográfica escapa à classificação e à generalização, instituindo a desordem nos objetos do mundo. Embora se reproduza mecanicamente tentando capturar a realidade, sofre a aderência do referente e somente pode ser vista através dele. Isso impediria que o reducionismo da lógica científica opere sobre esse campo. Essa ideia de desordem em Barthes está conectada ao caráter político do uso do inventário como um recurso cotidiano de invenção por meio da fotografia, como assinala Pimentel (2014PIMENTEL, L. O inventário como tática: a fotografia e a poética das coleções. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014.), que discute ainda o uso da fotografia como resistência.

A noção de punctum criada por Barthes (2015BARTHES, R. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.) faz referência àquilo que, na fotografia, nos punge e também mortifica, fere. A palavra é derivada do latim e significa ferida, picada, marca feita por um instrumento pontiagudo. Através desse conceito, ele denota o ponto que, na fotografia, fisga nosso olhar, que pode variar de uma imagem para outra, assim como de pessoa para pessoa. Entler (2006ENTLER, R. Testemunhos silenciosos: uma nova concepção de realismo na fotografia contemporânea. ARS, v. 4, n. 8, 2006. Disponível em:Disponível em:https://www.scielo.br/pdf/ars/v4n8/04.pdf . Acesso em: 15 abr. 2019.
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) escreve que a fotografia marca uma ausência, à semelhança da ideia de falta estruturante presente na psicanálise lacaniana (LEADER, 2005LEADER, D. O roubo da Monalisa: o que a arte nos impede de ver. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.). Aqui, percebemos o caráter de incompletude da imagem, de algo que sempre escapa. Além disso, a imagem fotográfica condensa dimensões temporais distintas, pois remete a referências no passado; é interpretada no presente e aponta para o futuro.

A PSICANÁLISE E A QUESTÃO DO OLHAR

A questão do olhar em psicanálise está presente desde seus primórdios. Lacan (1964/1998b) enfatiza esse olhar que vem de fora, que captura e submete o indivíduo a toda potência da pulsão escópica - que é parcial, assim como as demais pulsões. Demarca a cisão existente entre ver e olhar, sendo que ver consistiria no funcionamento do aparelho ótico que culmina com a visão, enquanto o olhar é constituído por algo que sempre escapa, que está oculto e que organiza nossa curiosidade visual (LEADER, 2005LEADER, D. O roubo da Monalisa: o que a arte nos impede de ver. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.). As câmeras dos circuitos de monitoramento utilizados na área da segurança usam esse recurso, assim como a sensação de que um quadro ou fotografia nos retribui o olhar também são evidências desse funcionamento pulsional escópico.

O conceito de olhar como objeto a, apresentado por Quinet em seu livro Um olhar a mais - ver e ser visto na psicanálise (2002), demonstra como o sujeito do inconsciente pode ser capturado pelo olhar e ocupar o lugar de objeto a, de resto, de apagar-se diante da evocação da impossibilidade de completude pela imagem; algo que é da ordem de uma promessa que nunca poderá ser cumprida. A questão do olhar contempla a dimensão do belo, como algo que proporciona a pacificação do sujeito, mas também a dimensão do horror, que fascina e aterroriza. A imagem, seja na pintura, no cinema ou na fotografia, também tem o poder de fisgar o desejo do sujeito justamente pela proximidade com o horror, o irrepresentável, o inominável.

O olhar está no cerne do processo de constituição do sujeito, como Lacan (1949/1998aLACAN, J. Estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a.) demonstrou em suas formulações sobre o estádio do espelho. Nas crianças pequenas, percebemos o quanto um olhar materno sustenta o desenvolvimento do infante, e como falhas ao longo deste processo causam perturbações na constituição psíquica do sujeito. O estádio do espelho se desenvolve em três tempos distintos, e, ao seu término, testemunhamos a formação de uma estrutura psíquica - neurótica, se tudo correr como esperado. Ele engloba sempre três instâncias: quem olha, quem é olhado e um terceiro que testemunha essa troca de olhares, proporcionando reconhecimento que auxilia na integração do eu. A questão do reconhecimento está colocada ao pensarmos que, para sermos capturados por uma imagem, ela precisa assumir um valor simbólico a fim de que encontre um lugar (LEADER, 2005LEADER, D. O roubo da Monalisa: o que a arte nos impede de ver. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.). Neste caso, presumimos que ela também exercerá esse valor simbólico para mais alguém, o que nos leva à noção de reconhecimento.

Essa constatação abarca ainda a dimensão do duplo nesse olhar que vem de fora, que provoca sofrimento psíquico, como mostra o autor nesta passagem:

Mas ser encaixado numa imagem é alienante. Confere-nos unidade corpórea ao preço de uma cisão, de uma discordância em nossas identidades. Não somos idênticos às imagens do espelho e nunca poderemos nos situar inteiramente em seu lugar, da mesma forma que nunca poderemos entrar inteiramente no lugar de outra pessoa. Isto poderia parecer um ponto trivial, mas constitui um dos aspectos do sofrimento humano. (LEADER, 2005LEADER, D. O roubo da Monalisa: o que a arte nos impede de ver. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005., p. 20).

Freud, em seu texto O inquietante (1919/2010), desenvolve a ideia de que o estranho, o inquietante, é algo assustador ao mesmo tempo em que também nos é familiar. Ele resgata, no termo alemão unheimlich, um sentido de algo que deveria ser secreto, mas foi revelado. O autor nos diz ainda que, em sua prática analítica, o temor de ficar cego remete ao medo da castração. Inicialmente, o duplo emerge como uma garantia contra o desaparecimento do eu, no processo de narcisismo primário - esse, ao ser superado, toma o sentido de mensageiro da morte. Sublinha ainda que o uso da palavra inquietante, quando nos referimos a algo/alguém, denota uma dimensão que contém algo mau.

A crença no mau-olhado está presente em diferentes sociedades, como na lenda amazônica sobre a origem do guaraná. Em uma de suas versões, ela conta que um casal indígena da tribo Maués ansiava por um filho, até que Tupã atendeu seu pedido. Tiveram um menino bom, bonito e generoso, que cresceu estimado por todos na aldeia. Um dia, Jurupari (deus da escuridão), tomado por inveja do curumim, se transformou em serpente na floresta e picou a criança, matando-a. Enquanto todos na aldeia lamentavam a morte do menino, receberam um recado de Tupã para plantar os olhos da criança, que foram regados com as lágrimas da tribo. Ali nasceu um arbusto cuja fruta imita os olhos humanos e fornece energia ao ser consumida. Aqui, o mau-olhado (QUINET, 2002QUINET, A. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar , 2002.; LEADER, 2005LEADER, D. O roubo da Monalisa: o que a arte nos impede de ver. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.), olhar que vem de fora, fonte de inveja e causador do mal, é transformado em vida, que se perpetua no tempo e devolve vitalidade ao coletivo.

Os conceitos de esquema ótico (LACAN, 1953-1954/1981LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1981. (O seminário, 1)) e do estádio do espelho (LACAN, 1949/1998aLACAN, J. Estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a.) nos auxiliam a pensar a relação que o sujeito estabelece com a imagem, bem como as inscrições que se produzem nesse processo, sobretudo na dimensão do imaginário e do simbólico. No texto do Seminário 11 sobre A esquize do olho e o olhar (1964/1998bLACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998b. (O seminário, 11)), Lacan nos diz que a pulsão escópica é a que melhor se disfarça em relação à castração, pois enxergamos através de uma perspectiva, mas somos olhados por toda parte.

Quinet (2002) nos alerta para o fato de que esse olhar externo atribuído ao Outro desempenha diferentes papéis, de acordo com a estrutura psíquica do sujeito. Na neurose, tal olhar causa desejo ou angústia; na perversão, o sujeito faz um esforço para devolver ao Outro esse olhar no intuito de fazê-lo gozar; já, na psicose, esse olhar não é um objeto separado, pois ele ocupa o lugar de atributo do Outro, concedendo o poder de ser usado para vigiar e punir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da vivência no dispositivo da oficina de fotografia no CAPS, foi construída a posição da pesquisadora como analista-inventariante (SONEGO; GAGEIRO, 2021SONEGO, V. M.; GAGEIRO, A. M. Oficina de fotografia como dispositivo em saúde mental: psicanálise e a analista-inventariante. Cadernos de Psicanálise (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 43, n. 45, p. 263-279, jul./dez. 2021. Disponível em:Disponível em:http://cprj.com.br/ojs_cprj/index.php/cprj/article/view/244/223 . Acesso em:22 ago. 2022.
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). Para desenvolver essa ideia, tomamos emprestado o conceito de inventário como tática formulado por Pimentel em seu livro O inventário como tática: a poética das coleções (2014). Nele, o autor analisa o trabalho realizado pelo casal Bercher, fotógrafos alemães que realizaram séries de fotografias de caixas d’água industriais abandonadas, no interior da Alemanha na década de 50, lançando mão de alguns recursos específicos, como enquadramento idêntico nas fotografias e escala ampliada das imagens nas exposições.

A ideia do inventário como tática, proposta por Pimentel (2014PIMENTEL, L. O inventário como tática: a fotografia e a poética das coleções. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014.), baseia-se no conceito de tática desenvolvido por Michel de Certeau - referindo-se a um conjunto de meios para atingir um fim, caracterizado pela multiplicidade de ações possíveis devido às circunstâncias. Alia esse último à definição de inventário, que consiste em três tempos distintos: recolher, classificar e apresentar, sublinhando o caráter da invenção, inspirado no filósofo Gilbert Simondon. De forma semelhante, Didi-Huberman (2015)DIDI-HUBERMAN, G. Invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. afirma que a invenção também pode ser compreendida a partir de três acepções diferentes: imaginar, fabricar e desmentir. O inventário difere da simples acumulação e catalogação de objetos, as quais podem remeter o termo à sua concepção burocrática, tradicional do Direito. Aqui, sua intenção não é abarcar a totalidade dos fatores relacionados ao tema pesquisado, mas reunir esses fragmentos em um determinado conjunto, sempre incompleto, que pode ser permanentemente alterado, problematizando as relações estabelecidas entre eles. Nesse sentido, tem a potência de subverter a relação do arquivo como estratégia de dominação e de manutenção de poder (PIMENTEL, 2014PIMENTEL, L. O inventário como tática: a fotografia e a poética das coleções. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014.). Lacan (1969/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O seminário, 17)) nos adverte que o saber é não-todo, sempre incompleto. Ocupar esse lugar totalizante nos impede de perceber outros aspectos fundamentais imbricados na trama relacional, objetalizando o sujeito e simplificando a complexidade do fenômeno do padecimento psíquico.

No âmbito da oficina de fotografia, a analista-inventariante tem a função de localizar fragmentos e de recolhê-los ao longo do processo de produção da imagem, embora não se resuma ao processo em si mesmo ou ao seu produto. É necessário atentar a uma diversidade de elementos, que vão desde imagens, documentos, lembranças, afetos e falas, aos gestos (do usuário, do analista ou da própria equipe), classificando estes elementos para apresentá-los. Os efeitos provocados (ou não) a partir disso possibilitam novos arranjos que contêm algo da ordem da criação, potencializando a produção de novos efeitos nos sujeitos implicados/atravessados pelo dispositivo.

O inventário, enquanto processo, faz falar o inconsciente, como podemos acompanhar no relato do caso de Verinha, usuária da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP):

De qualquer maneira, estaria contido ali, nas séries de Verinha, o inventário de toda uma existência silenciada - canecas, pratos, colares, bolsas, flores e tantas outras séries - que questiona, antes de tudo, os signos mundanos (DELEUZE, 2006) das significações. É tentado, portanto, a acreditar que cada série é constituída de uma narrativa evidenciada pela íntima relação entre ordem e desordem, entre pontos e vírgulas, que indicam a sutil materialidade de uma história. (SIEGMANN; FRANCESCHINI; NEUBARTH, 2018SIEGMANN, C.; FRANCESCHINI, E.; NEUBARTH, L. O inventário de Verinha: esboços de um cotidiano a contrapelo. In: FONSECA, T. M.; CAIMI, C. L.; COSTA, L. A.; SOUSA, E. L. A. (orgs.) Imagens do fora: um arquivo da loucura. Porto Alegre: Sulina, 2018., p. 193-194).

O dispositivo da oficina, presente no cotidiano de grande parte dos serviços substitutivos, abarca propostas de trabalho e temáticas diversificadas, passíveis de aberturas para o território em diferentes graus. Os elementos elencados nessa pesquisa deixam transparecer a potência criativa do método utilizado, engendrando outra forma de cuidado possível no CAPS. Pimentel afirma que não se trata de ver o inventário como uma utopia, mas que o fato dele ser utilizado em seu caráter inventivo como uma tática cotidiana faz dele uma ação política. Logo, ele entende a imagem fotográfica como instrumento de resistência, que tem potencial de subverter as dualidades (PIMENTEL, 2014PIMENTEL, L. O inventário como tática: a fotografia e a poética das coleções. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014., p.13).

Este método é potente porque, a cada vez que é realizado/atualizado, produz novos arranjos, efeitos e sentidos. Esse espaço de experimentação/criação a partir do dispositivo fotográfico dá lugar a produções sensíveis - que apontam as dificuldades e potencialidades de cada usuário e do próprio serviço de saúde mental - e dá passagem ao sem lugar, sem nome, sem sentido, constituindo uma nova vivência e fazendo operar a imaginação, a invenção e a subversão. Nesse processo, há um deslocamento da posição do usuário, do próprio analista e da equipe, dando visibilidade às interrogações e adquirindo também um caráter testemunhal.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2020
  • Aceito
    15 Set 2022
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