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P.-L. ASSOUN E A IRONIA INERENTE AO INCONSCIENTE

P.-L Assoun and the irony inherent in the unconscious

RESUMO:

Figura polissêmica e polimorfa, de expressiva abrangência, a ironia é objeto de sucessivas análises de múltiplas áreas de estudos, o que contrasta com a quantidade de estudos psicanalíticos dedicados a ela. Este trabalho busca circunscrever e discutir a ideia de uma ironia inerente ao inconsciente proposta por Assoun e mostrar que comentários temáticos e críticos de textos elementares podem fornecer subsídios para a abordagem da ironia pela psicanálise, mesmo se comportarem um viés retrospectivo e comparativo.

Palavras-chave:
ironia; psicanálise; Freud; inconsciente; linguagem e retórica

ABSTRACT:

A polysemic and polymorphic figure, of expressive scope, irony is the subject of successive analyses of multiple study areas, which contrasts with the amount of psychoanalytical studies dedicated to it. This work seeks to circumscribe and discuss the idea of an irony inherent to the unconscious proposed by Assoun and to show that thematic and critical comments of elementary texts can provide subsidies to the approach of irony by psychoanalysis, even if they have a retrospective and comparative bias.

Keywords:
irony; psychoanalysis; Freud; unconscious; language and rethoric

NTRODUÇÃO

A ironia é um termo móbil entre a conceituação filosófica e a instrumentação retórica, entre os aspectos linguísticos e éticos, os recursos literários e os seus estudos, entre os horizontes psicanalíticos e o elogio antropológico etc. Oriundo de um trabalho de pesquisa que explora as fronteiras desse conceito, o presente ensaio se configura como um comentário temático e crítico de textos fundamentais que encaram a ironia como tributária para qualquer consideração de si e de toda alteridade, inclusive a partir do saber do inconsciente. Uma abordagem da ironia consequente para a Psicanálise é possível, por menos que permaneça aberta às rupturas de sentido contemporâneas, por onde quer que o real exista para pensar.

No limiar dos trabalhos de Freud sobre a ironia e o inconsciente (FREUD, 1905FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente(1905). São Paulo: Cia. das Letras, 2017. (Obras completas, 7)/2017), Paul-Laurent Assoun apresenta dois textos sobre a ironia: L’Ironie comme réthorique de l’Inconscient e Ironie, Langage, Humanisme, ambos publicados como capítulos subsequentes na obra Analyses et réflexions sur ‘De L’Art de conférer’ de Michel de Montaigne - L’Ironie (MARTIN, 1980MARTIN, J. (org.). Analyses et réflexions sur ‘‘De l’art de conférer”. Paris: Marketing, 1980. (Essais, 3, chapitre 8, de Michel de Montaigne: l’ironie)), publicação que trata da “conférence1 1 ¹ De l’art de conferer é o título de um famoso capítulo dos Essais (III, 8). Sobre a significação e os usos do verbo francês conferer [conferir] na Renascença, cf. em especial o artigo Pesty (2000). Na Renascença, o substantivo conferência, tão familiar a Montaigne e aos dialogistas da época, significa ao mesmo tempo comparação e conversação. Segundo o TLFi: “S’entretenir avec quelqu’un sur un sujet d’importance et en discuter”; acepção abonada pelo Houaiss: “(sXVII) conversa particular ou discussão entre duas ou mais pessoas sobre um tema considerado importante”. , assinalada por Montaigne como uma verdadeira arte da conversação. Este artigo busca um exame atento do primeiro capítulo supracitado, no que diz respeito à problematização da ironia como base para a discussão da conversação irônica de Montaigne, teoria de vivo interesse para a Psicanálise.

PARA INTRODUZIR A QUESTÃO: UMA LÓGICA IRÔNICA DO INCONSCIENTE?

Assoun desenvolve em três seções a questão da ironia como figura retórica e como trabalho do inconsciente (ironia inerente aos sonhos, à língua, ao Witz e ao sintoma) para introduzi-la como preterição do inconsciente (sob a forma da denegação). Este capítulo antecede - e prepara para - o seguinte, Ironia, linguagem, humanismo, que trata diretamente de Montaigne e dos sucessores de sua teoria da conferência, objeto/tema de análise do livro.

O capítulo concernente a A arte de conferir apresenta a tese maior de Assoun: o segredo da ironia alude à busca de se ausentar de sua fala para lhe dar pleno efeito, no caso, à procura da fala plena na ausência de suas próprias palavras, o que teria sido atingido por Baltazar de Gracian (ASSOUN, 1980aASSOUN, P-L. Ironie, langage et humanisme. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980a. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 185-186). Para Assoun, o pregador e escritor espanhol representaria o auge da evolução das concepções montaignianas da ironia na conversação, por seus escritos sugerirem que a ironia suprema nasce não da palavra plena, mas do silêncio, tornando-se a arte da máscara, indissociável do uso da aparência e das palavras: a arte de dissimular é a arte suprema, e a arte de jogar com as aparências, um dos maiores subterfúgios.

Esse conjunto de teses baseia-se na ideia de que algo teria mudado (i) quanto ao estatuto da linguagem antes de Montaigne, com o presumível surgimento de uma função antropológica da linguagem que deslocou a sua função ontológica princeps; (ii) entre Montaigne e alguns sucessores; e (iii) quanto ao lugar da ironia: apesar de ainda permanecer talhada a servir de linguagem para a ambiguidade ideológica da nobreza, ela deixou de estar vinculada à busca da verdade, presente em Montaigne e na tradição socrática. Isso foi chancelado pela divisão da linguagem em dois usos da palavra: o mundano, destinado ao prazer, e o cortês ou formal, da disputa de coisas sérias. Tal divisão resumiria a ironia à medida da distância da verdade fática das palavras, ideias e sentimentos. Assim, limitada e limitante, a ironia perde a função de reivindicação gozosa e arrogante de expansão do Eu, demonstrada em A arte de conferir, de Montaigne.

Por outro lado, o gênero muito peculiar de que esta teoria da conversação faz parte, e que Assoun buscou especificar a partir de suas raízes italianas e alguns de seus sucessores - La Rochefoucauld, Méré, Balthasar Gracian -, permite ler A arte de conferir como proposta de uma conversação irônica que envolve um uso específico da fala em uma dialética do confronto. Nesse caso, o ironista se experimenta ao mesmo tempo como Si singular insubstituível e como alteridade, como um ponto em que se cruzam o natural e o artifício, a liberdade individual e a coerção cultural.

Qualificada de humanista, essa ironia espelha a crise da função antropológica da linguagem desencadeada nos séculos XV e XVI, mas deixando de se restringir a um recurso retórico e passando a ser experiência da humanidade pelo sujeito, do mesmo através do outro. Tal ponto fundamental é desenvolvido no capítulo que agora será apresentado, A ironia como retórica do inconsciente, pois a sua hipótese basilar é a da existência de uma ironia imanente ao inconsciente que, localizada sobre a fronteira deste e do pré-consciente, trabalha envolvendo o inconsciente do interlocutor, em uma específica comunicação entre inconscientes.

UM PONTO DE VISTA: PROBLEMATIZAÇÃO E HIPÓTESES CONCERNENTES À IRONIA E AO INCONSCIENTE

Já nas primeiras páginas, Assoun sustenta que “a ironia exprimiria uma lógica da inversão característica do inconsciente” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 157, tradução nossa [t.n.]) graças a um conjunto de teses baseadas na constatação de Quintiliano em sua Instituição Oratória, tomo IV, de que a ironia seria, ao mesmo tempo, figura de linguagem e de pensamento. Entretanto, tais teses extrapolam o quadro retórico por implicar a relação do sujeito com a verdade e com o seu desejo, interessando à Psicanálise por sua peculiar remissão aos fenômenos inconscientes.

Esse pressuposto adviria da exigência que pesa a todo sujeito: articular a verdade e a linguagem de seu desejo, sendo que essa articulação implica uma retórica. Se a ironia é a figura retórica que pressupõe uma posição invertida do sujeito face à verdade, ela “revela o funcionamento do inconsciente como retórica na medida em que a verdade, do ponto de vista inconsciente, não pode se dizer senão às avessas” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 157, t.n., grifo do autor). Mais do que isso, Assoun insiste na homologia da ironia literária e retórica com uma “ironia inerente ao inconsciente” (ASSOUN, 1980b, p. 157, t.n.), acreditando revelar o que estaria em jogo em qualquer reflexão sobre ironia, linguagem e verdade.

A primeira seção do capítulo localiza a questão da ironia a partir dos trabalhos de Quintiliano e de Fontanier, que diferenciam as figuras de palavras (tropos) e as de pensamentos para melhor aproximá-las: ambas “têm uma meta idêntica: ‘dar força ou graça aos pensamentos’[...]” (QUINTILIANO, 1829-1835QUINTILIANO. Institution oratoire de Quintilien, nova tradução francesa de C. V. Uoizille. Paris: Panckoucke, 6v., t. IV, cap. IX, p. 169, 1832., p. 169 apudASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 158, t.n.), mas não alcançam isso pela mesma forma. Citando Quintiliano, Assoun especifica que as figuras bem organizam “as palavras próprias e colocadas em uma ordem natural”, enquanto, “nos tropos, são palavras que se colocam no lugar de outras palavras” (QUINTILIANO, 1829-1835QUINTILIANO. Institution oratoire de Quintilien, nova tradução francesa de C. V. Uoizille. Paris: Panckoucke, 6v., t. IV, cap. IX, p. 169, 1832., p. 173 e 177, respectivamente, apud ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 158, t.n.).

Compreender o complexo trabalho retórico da ironia seria a aposta de Quintiliano, de acordo com Assoun: “como ocorre que a ironia seja às vezes tropo, às vezes figura do pensamento” (QUINTILIANO, 1829-1835QUINTILIANO. Institution oratoire de Quintilien, nova tradução francesa de C. V. Uoizille. Paris: Panckoucke, 6v., t. IV, cap. IX, p. 169, 1832., p. 173, apudASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 158, t.n.). Como tropo, a ironia leva a entender o contrário do que o ironista diz, pois ela visa “apresentar um sentido outro que aquele que resulta das palavras” (QUINTILIANO, 1829-1835QUINTILIANO. Institution oratoire de Quintilien, nova tradução francesa de C. V. Uoizille. Paris: Panckoucke, 6v., t. IV, cap. IX, p. 169, 1832., p.151 apud ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p.158, t.n.). Já pela figura, visa-se fingir que não se confessa, mas só aparentemente: nela, substitui-se algumas palavras por outras, mas sobretudo um sentido contínuo por um outro sentido.

Deixando a questão em aberto, Assoun passa a Fontanier e suas Figuras do Discurso, referência clássica que, ao relacionar a ironia entre os tropos de expressão por oposição, enfatiza o ápice do artifício do discurso em sua definição: “A ironia consiste em dizer por uma zombaria, ou por brincadeira ou por seriedade, o contrário do que se pensa ou do que se quer fazer pensar” (FONTANIER, 1821-1827FONTANIER, P. Les figures du discours (1827). Ed. Gérard Genette. Paris: Flammarion, 1977., p. 145-146 apudASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 159, t.n.). Essa passagem é necessária para fundamentar a fonte em que se alimenta a ironia própria ao inconsciente: a “função retórica de expressão da oposição” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 159, t.n.), a qual se realiza também pela preterição.

ASPECTOS DA IRONIA: PRINCIPAIS DESENVOLVIMENTOS DA NOÇÃO

Na seção II, Assoun desenvolve a tese de que a chave do ápice do artifício do discurso se encontra no trabalho do inconsciente, que, como Freud o demonstrou, escapa ao duplo princípio lógico aristotélico da identidade de pensamento e da não-contradição, ignorando não apenas as categorias da oposição e da contradição, mas a própria negação. As descrições do trabalho do sonho em A interpretação dos sonhos revelam o quanto Freud apreendeu a função retórica do inconsciente: “a maneira como o sonho exprime as categorias da oposição e da contradição é particularmente significativa… [nele] uma coisa pode significar o seu contrário” (FREUD, 1900, cap. VI apudASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 159, t.n.)2 2 ² À p. 339 do v. IV, da edição Imago de 1974, consta: “A forma pela qual os sonhos tratam a categoria das antíteses e contradições é altamente notável. [...] mostram uma preferência particular por combinar contrários numa unidade [...] se sentem em liberdade para representarem qualquer elemento pelo desejo contrário a ele”. , até porque, no inconsciente, é possível que eventualmente “o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo tempo, ao mesmo assunto, e sobre a mesma relação” (ARISTÓTELES, Metafísica, livro I, 3 apud ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 159, t.n.). Contudo, se o inconsciente parece funcionar segundo essa retórica da ironia, é por ele produzir este efeito necessário à expressão de sua verdade: a de somente poder se dizer ao inverso.

Ora, este mesmo comportamento, batizado por Assoun (1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 160) de enantiológico - de enantios (contrário) e logos (discurso) -, Freud o reconheceu a seu modo nas “línguas mais antigas que conhecemos” (1910, p. 142), quando recorreu a Karl Abel, linguista que localizou, no egípcio arcaico, termos que servem para exprimir um sentido e o seu contrário, ignorando o princípio lógico da não-contradição. É a esse aspecto que Assoun recorre para afirmar que a ironia estaria contida na própria estrutura da língua primitiva, tornando-a expressão de racionalidade e mola secreta da linguagem em sua função mais elementar (seção II b), além de reafirmar que “uma mesma ironia estrutural parece, então, atravessar a linguagem e o inconsciente, estabelecendo um nexo profundo entre essas duas esferas” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 161, t.n., grifo do autor).

Na seção IIc, Assoun trata da definição freudiana da ironia por sua diferenciação do Witz (FREUD, 1905FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente(1905). São Paulo: Cia. das Letras, 2017. (Obras completas, 7)/2017): este ultrapassa a técnica à qual a ironia se reduz, a saber, à “representação pelo contrário”. Assoun retoma então a determinação freudiana das condições de obtenção do prazer pela ironia: a de poupar a contradição na intenção de comunicar ao outro ao se emitir o contrário desta intenção comunicativa. Em outras palavras, Freud reafirma que a mensagem comunicada pela fala irônica tem por efeito, senão por finalidade, realizar a economia da contradição para o outro. A ironia inspira no outro “um esforço de contradição cuja inutilidade aparece imediatamente” (FREUD, 1905 apudASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 162, tradução nossa). São exatamente esses argumentos que servem para Assoun expandir a comunicação entre inconscientes até a ironia, espécie de diálogo e interlocução de inconscientes (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne)). Por conseguinte, não deixa de ser evocada a ironia no registro dos lapsus e dos atos falhos, que significariam a verdade do inconsciente lançando mão de todas as possibilidades de inversão da mensagem para se tornarem bem-sucedidos (FREUD, 1901FREUD, S. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901). Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 6)).

Na seção IId, Assoun observa “uma ironia constitucional das pulsões” (1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 162), fundada sobre uma lógica da contrariedade a reger as pulsões. Esse aspecto seria evidenciado pela localização de uma ironia na construção do sintoma neurótico, seja pela “formação de compromisso” que ele constitui - expressão do sentido contraditório de um conflito, de um sentido e a sua negação, o seu contrário -, seja pelo mecanismo que engendra o sintoma neurótico lançar mão da reversão. Isso leva Assoun a revisitar os dois destinos pulsionais que entende ser os que mais tomam parte na construção do sintoma: a “reversão no contrário” e o “retorno sobre a própria pessoa”; o primeiro referente à transformação da meta de uma pulsão em seu contrário, o segundo, à substituição de um objeto pulsional exterior pela própria pessoa. De fato, a gramática do inconsciente possui o atributo de poder inverter tanto o conteúdo de uma asserção como o seu modo, o que permite, por diversos meios, a simultânea afirmação do conteúdo recalcado e a sua negação.

A seção III desenvolve ainda mais a ideia de uma ironia imanente ao inconsciente que, apesar de localizada sobre a fronteira deste e do pré-consciente, trabalha envolvendo o inconsciente do interlocutor (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne)). Apoiado na consideração de que o sistema inconsciente se caracteriza pela ausência de negação ou de contradição (Widerspruchlosigkeit), Assoun propõe, em primeiro lugar, que a ironia está centrada na experiência arcaica inconsciente em que o mesmo é também o outro, sem traço de contradição. Se é problemática a tese de uma ironia intrínseca ao inconsciente, a despeito das diversas expressões que assume - sonho, chiste, sintoma -, uma dificuldade maior se apresenta na hipótese de Assoun de que “o prazer próprio à ironia emanaria desta ‘regressão’ a uma posição de objeto anterior à consciência da oposição, em um tempo e um lugar nos quais o objeto foi, sem contradição, experimentado ser e não ser” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 163, t.n.).

Parece-nos insuficiente assentar a sua hipótese tão somente na proposição freudiana de que o inconsciente contém apenas graus de intensidade de afirmações, “sem que varie o que se poderia chamar a forma posicional de objeto” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 162, t.n.). Nada obstante, esta concepção serve para Assoun afirmar a existência de uma lógica irônica peculiar à linguagem do inconsciente, cuja melhor referência seria a denegação (Verneinung), a negação no sentido lógico que, em Psicanálise, assume a acepção de um tipo de enunciação da verdade, no plano do desejo do falante ou locutor, o qual a recusa simultaneamente à enunciação.

Reafirmando que a negação não é articulada pelo inconsciente, mas pelo consciente que literalmente “expulsa a verdade a fim de perpetuar seu desconhecimento” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 164, t.n.), Assoun faz a denegação equivaler à preterição retórica, ou seja, à figura por meio da qual se finge não querer dizer o que, no entanto, se diz. A preterição inclui uma estratégia: mencionar algo negando querer falar deste algo ou, de outra perspectiva, de não querer falar de algo sobre o que já se está falando, porém indiretamente, e muitas vezes com força3 3 ³ Ver TLFi, prétérition, 2019. Disponível em: https://www.cnrtl.fr/definition. Acesso em: mar. 2019. .

Ora, ocorre que a preterição é uma forma de obliteração que reforça o sentimento de dever de obediência às palavras de quem fala, pois sua formulação, mesmo que usada de forma simples, demanda a conivência d’outrem pela mera evidenciação do que não se falará4 4 ⁴ Ver LITTRÉ, 2019. Disponível em: https://www.littre.org/definition/prétérition. Acesso em: mar. 2019. . Sua existência pressupõe, portanto, que o ouvinte ou leitor identifique e reconheça o artifício das negações, dúvidas ou questões que a introduzem, o que coloca em questão a noção de uma ironia centrada na experiência arcaica inconsciente onde inexiste contradição ou diferenciação mesmo/outro. Esses aspectos já parecem comprometer a proposição de que a Verneinung proposta por Freud tenha a função de chave da lógica irônica do inconsciente, a despeito de a Verneinung realmente posicionar o sujeito em presença de si mesmo ao emitir ao outro a sua verdade e uma formulação de seu desejo - mas seria a Verneinung complementada por uma negação, como o quer Assoun?

Fenômeno que revela a sua profunda importância no tratamento analítico - situação regida pela suspensão do julgamento como recurso para emersão do segredo do desejo e do gozo -, a Verneinung assumiu um lugar de destaque na Psicanálise freudiana. Nada obstante, a questão que importa a Assoun (1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne)) é a da conciliação da noção de que o inconsciente ignora a negação e da denegação como expressão da verdade do inconsciente; questão que condiciona a compreensão da função da ironia na economia do inconsciente.

Retornando à observação de Quintiliano, Assoun compreende que a denegação funciona como a ironia retórica, ou seja, como tropo e figura de pensamento capaz de exprimir a linguagem contraditória do inconsciente, mostrando “a verdade sob disfarce da não-verdade” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 165, t.n.), meio o mais seguro de atingir a verdade.

Assoun apoia-se ainda na perspectiva freudiana de que a denegação, em resposta a uma interpretação, é a confirmação de conquista da verdade inconsciente, genuína aprovação com a linguagem de seu inconsciente. Entretanto, a ironia do inconsciente se endereça a quem? Ao próprio falante, mas necessariamente passando por um “interlocutor”, por meio do qual se mede a verdade que “se mostra e se esconde ao mesmo tempo” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 165, t.n.).

No entanto, eis a tese de Assoun: a ironia repousa na “alusividade de uma mensagem que é ao mesmo tempo codificada e decifrável pelo inconsciente do outro” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 165, t.n.), o interlocutor. Tal tese pressupõe outra: a ironia “opera pela linguagem o levantamento de um recalque” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 165, t.n.), do qual ambos se beneficiam, mas sem excluir o privilégio do ironista: exibir-se demandando - “eis o que eu não sou”, “compreenda que eu o sou” - e cedendo à relação paradoxal do sujeito com a sua verdade uma linguagem bem apropriada.

CONCLUIR E DISCUTIR

A tese da existência de uma ironia imanente ao inconsciente, situada sobre a fronteira com o pré-consciente e que atua envolvendo o inconsciente do interlocutor em uma comunicação entre inconscientes, baseia-se nesta alusividade de uma mensagem codificada e decifrável pelo inconsciente do outro, o interlocutor, e sobre este levantamento do recalque guindado pela ironia. A argumentação de Assoun pressupõe a retomada de uma tese freudiana, a saber, que a ironia estabelece um nexo entre inconsciente e linguagem, generalizando-a, no entanto, para além de sua função na economia do inconsciente exercida pelo Witz. Assoun propõe a existência de uma ironia própria ao inconsciente - que se alimentaria da função retórica de expressão da oposição, com privilégio à preterição - e “constitucional das pulsões”, amparada na lógica da contrariedade que as rege.

Por essa argumentação, vê-se alguns aspectos importantes: Assoun restringiu a ironia a uma questão de retórica, sem considerar que, desde a Antiguidade, ela se apresenta como a atitude do Eirôn que remete a uma questão de ética, razão do interesse filosófico pela noção. Todavia, ainda assim, a atitude irônica se mantém inelutavelmente fundada sobre a linguagem, repousando por vezes sobre todo um acervo retórico, logo, convém reter a importância da ideia de dissimulação do ironista. Por quê?

Porque esse aspecto de fingimento, de dissimulação ou encobrimento aparece como uma constante definidora da noção, o que faz com que a ironia repouse de início sobre uma não coincidência, uma diferença, uma distância do ironista em relação a si próprio, quase como em um desvio. Isso interessa à Psicanálise por outros aspectos, deixados de lado por Assoun que, ademais, também ignorou as origens retóricas da ironia, pautando sua análise em Quintiliano, Fontanier e Du Marsais.

Nada obstante, observa-se que a passagem da ironia para o campo da retórica se efetua com Cícero, que, em Da oratória, aproxima a figura retórica da antífrase e a ironia, justamente para opô-las. Se a antífrase consiste em uma inversão semântica - dizer o contrário do que se quer fazer entender -, a ironia repousa sobre atitude de dissimulação do enunciador (LE GUERN, 1976LE GUERN, M. Éléments pour une histoire de la notion d’ironie. Linguistique et sémiologie, n. 2, 1976. Lyon: Presses Universitaires de Lyon.).

Pois bem, Cícero delimita o problema circunscrevendo o essencial justamente ao enfatizar a clivagem do enunciador e a diferença - no sentido de uma abertura, de um desvio que estabelece uma distância -, as quais nunca se limitam à inversão da antífrase (LE GUERN, 1976LE GUERN, M. Éléments pour une histoire de la notion d’ironie. Linguistique et sémiologie, n. 2, 1976. Lyon: Presses Universitaires de Lyon.). Ocorre, porém, que essa argumentação e conceituação não influenciaram tanto a retórica francesa, que restringiu consideravelmente o alcance da ironia. Um levantamento bibliográfico realizado anteriormente (GELLIS; JUNTA, 2020GELLIS, A.; JUNTA, A.C. A psicanálise vis-à-vis à ironia: revisão das principais abordagens e concepções de ironia. Ágora - Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 71-80, 2020.) mostra que os estudos retóricos franceses se apoiam sobre uma definição de Quintiliano (1832QUINTILIANO. Institution oratoire de Quintilien, nova tradução francesa de C. V. Uoizille. Paris: Panckoucke, 6v., t. IV, cap. IX, p. 169, 1832.), que permitiria não reduzir a noção, muito embora tenha sido usada de maneira relativamente parcial. Segundo M. Le Guern (1976), Quintiliano limita a ironia à figura retórica da antífrase e enuncia certo número de condições para sua decodificação, com ênfase para a deslocação. Trata-se aqui de um desvio, de uma diferença ou discrepância, um contraste que marca uma defasagem ou inadequação entre o enunciado e a situação de enunciação. Sem dúvida, trata-se de uma clivagem, que, por sua própria especificação, interessa à discussão da Spaltung localizada tardiamente por Freud. E esta última pode se realizar no ironista, deslocação entre a enunciação e o sujeito, ou entre as palavras e o referente, a natureza da coisa de que se fala.

Outro ponto crucial é que as definições retóricas elaboradas no período clássico influenciaram durante muito tempo a representação das noções. A literatura especializada afirma que este período clássico dá lugar tanto à corrente que recusa limitar a ironia à antífrase, quanto à que restringe a ironia aos casos de inversão semântica, ou seja, à figura da antífrase (DU MARSAIS, 1730DU MARSAIS, C. C. Des tropes ou des différents sens (1730). Ed. Françoise Douay-Soublin. Paris: Flammarion, 1988.), na qual Assoun baseia parte considerável de sua argumentação, juntamente com Fontanier (1827) que, um século depois, restringiu ainda mais tal definição ao deixar de lado a dimensão pragmática, absolutamente essencial, que bem sublinhou Du Marsais ao falar das “ideias acessórias”. Além disso, Fontanier é o autor que melhor evocou a finalidade da ironia, aspecto fundamental para a argumentação de Assoun: gozação, no sentido de escárnio, zombaria: “dizer por uma zombaria, ou por brincadeira ou por seriedade, o contrário do que se quer fazer pensar” (FONTANIER, 1977FONTANIER, P. Les figures du discours (1827). Ed. Gérard Genette. Paris: Flammarion, 1977., p. 145)5 5 ⁵ O trecho completo diz: “L’Ironie consiste à dire par une raillerie, ou plaisante ou sérieuse, le contraire de ce qu’on pense, ou de ce qu’on veut faire penser. Elle semblerait appartenir plus particulièrement à la gaieté; mais la colère et le mépris l’emploient aussi quelquefois, même avec avantage; par conséquent, elle peut entrer dans le style noble et dans les sujets les plus graves.” (FONTANIER, 1977, p. 145-146). .

Para finalizar este ponto, não se pode deixar de sublinhar: ainda que restrita ao ponto de vista da descrição retórica, essa definição e as imediatamente acima expostas são claramente parciais, uma vez que não dão conta de certo tipo de enunciados simples (“Bela nota”, diante de uma avaliação sofrível, p. ex.), tampouco permitem abordar as complexas ironias literárias de ontem (Shakespeare, p. ex.) ou de hoje (Samuel Beckett, Paul Auster), ou enunciados simples em que se destaca a ausência do contrário de alguma coisa (dizer “obrigado” a quem, andando à sua frente, não segura a porta para você), ou a ausência de um funcionamento sobre uma relação de contrariedade. Enfim, há inúmeras formas de ironia que não passam pela contrariedade e que a definição de Fontanier não contempla.

Se, na França, a ironia permaneceu como uma simples figura de retórica até meados dos anos 1960, em outros países, ela não foi encarada de maneira tão estreita. Note-se, p. ex., a sua abordagem filosófica no romantismo alemão, quando, mesmo sem negligenciar a tradição retórica, alguns autores pensaram-na a partir de Sócrates, aliás. Se o sintagma “ironia romântica” designa uma atitude mental específica face à criação, subtendida por certa visão do mundo, a referida atitude pode ser aplicada a diferentes épocas da história, p. ex., como uma atitude crítica face ao real (LACOUE-LABARTHE, 1978LACOUE-LABARTHE, P.; NANCY, J.-L. L’Absolu littéraire. Paris: Seuil, 1978.). A proposição de uma ironia como consciência do caos do Universo deu lugar à de uma atitude específica diante da criação artística: o estabelecimento de uma distância crítica em relação ao que está posto pela criação artística, como forma de não se enganar quanto a essa criação e corrigir qualquer adesão a ela - o que parece faltar às épocas em que tanto se perde de vista o caráter fictício das coisas, os artifícios da ficção e as presunções humanas.

A retomada discordante e trivializada da análise freudiana da ironia (1905/2017) impôs a Assoun propor uma função da ironia na economia geral do inconsciente e articular outras duas noções freudianas bem localizadas: a de que o inconsciente ignora a negação e a da denegação como expressão de uma verdade inconsciente. Assim, é preciso referir-se uma a uma - a ironia do sonho, do Witz, do sintoma e da língua, além da denegação - e argumentar que a ironia em geral exprime a lógica da inversão característica do inconsciente, reveladora de que o inconsciente funciona como retórica em virtude de sua linguagem contraditória. Ainda, Assoun recorre à hipótese de que a ironia já estaria contida na estrutura da língua primitiva e que, sendo “estrutural”, atravessaria a linguagem e o inconsciente encetando o “nexo profundo” entre ambos.

Por um lado, esse expediente evidencia a inconsistência da generalização de Assoun e acentua ainda mais a generalização da noção freudiana de comunicação entre inconscientes para a ironia como um todo. A proposta de um diálogo ou interlocução irônica entre inconscientes levou Assoun a aprofundar a conjectura da presença da ironia nas línguas primitivas até a proposição de que ela estaria centrada na experiência arcaica inconsciente, na qual o mesmo é também o outro, sem traço de contradição, colocando em xeque a própria definição da ironia com que trabalha. Malgrado tais improcedências, acrescentou que “o prazer próprio à ironia emanaria desta ‘regressão’ a uma posição de objeto anterior à consciência da oposição [...]” (ASSOUN, 1980bASSOUN, P-L. L’ironie comme rhétorique de l’inconscient. In: ASSOUN, P-L. L’ironie: analyses et réflexions sur “De l’art de conférer”. Paris: Paris Marketing, 1980b. (Essais, 3, Chapitre 8, Michel de Montaigne), p. 163, t.n.). Por outro lado, tal passo argumentativo não apenas se choca com sua proposição de uma ironia imanente ao inconsciente restrita à retórica e à antífrase (FONTANIER, 1977FONTANIER, P. Les figures du discours (1827). Ed. Gérard Genette. Paris: Flammarion, 1977.), mas também com a tentativa de equivaler a lógica irônica da linguagem do inconsciente à preterição retórica, assentando-a na denegação (Verneinung).

Para relançar a análise crítica da leitura de Assoun adiante, é preciso lembrar que tomar a ironia como simulação ou dissimulação pressupõe mais a convocação a um complexo jogo de reconstrução de intenções do que o apelo a uma inversão direta e imediata de significado, inclusive por exigir a apreensão da assimetria entre o sentido explícito e o implícito (GELLIS; JUNTA, 2020GELLIS, A.; JUNTA, A.C. A psicanálise vis-à-vis à ironia: revisão das principais abordagens e concepções de ironia. Ágora - Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 71-80, 2020.). No mais, a ironia excede a qualquer tomada de consciência de si ou do mundo, mesmo que restrita à sua forma de expressão intencional de pretender fazer compreender o oposto do que se diz e não o contrário do que se pensa - o que insinua as dificuldades de sua apreensão.

Se é certo que um objeto textual é apreendido “melhor pela comparação e oposição do que pela simples descrição” (SMITH, 2009SMITH, Paul J. Réécrire la Renaissance: de Proust à Michel Tournier. Exercices de lecture rapprochée. Amsterdam-New York: Rodopi, col. Faux Titre, 2009. EAN: 9789042025462., p. 155)6 6 ⁶ Sobre a abordagem de Bom em La Folie Rabelais: “Tout se passe comme si l’objet d’étude, le Pantagruel, ressortait mieux par comparaison et opposition que par simple description.” (SMITH, 2009, p. 155, grifo nosso). Tradução livre sugerida: “É como se o objeto de estudo, o Pantagruel, se destacasse melhor pela comparação e oposição do que pela simples descrição”. , a análise crítica faz da prática da comparação, mais do que um fim em si, a matéria de uma discussão infinita, móvel, a ser continuada pelo leitor: enfim, uma “art de conferer”, bem nos termos de Montaigne, de seus Essais e dos dialogistas de sua época.

De fato, na Renascença, o substantivo conferência remete simultaneamente à comparação e à conversação (ver nota de rodapé 1). Nos limites deste trabalho, a análise crítica aqui esboçada se valeu do peso do significante para introduzir as discussões ensejadas pelo capítulo seguinte de Assoun.

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    » https://www.atilf.fr/ressources/tlfi/
  • 1
    ¹ De l’art de conferer é o título de um famoso capítulo dos Essais (III, 8). Sobre a significação e os usos do verbo francês conferer [conferir] na Renascença, cf. em especial o artigo Pesty (2000). Na Renascença, o substantivo conferência, tão familiar a Montaigne e aos dialogistas da época, significa ao mesmo tempo comparação e conversação. Segundo o TLFi: “S’entretenir avec quelqu’un sur un sujet d’importance et en discuter”; acepção abonada pelo Houaiss: “(sXVII) conversa particular ou discussão entre duas ou mais pessoas sobre um tema considerado importante”.
  • 2
    ² À p. 339 do v. IV, da edição Imago de 1974, consta: “A forma pela qual os sonhos tratam a categoria das antíteses e contradições é altamente notável. [...] mostram uma preferência particular por combinar contrários numa unidade [...] se sentem em liberdade para representarem qualquer elemento pelo desejo contrário a ele”.
  • 3
    ³ Ver TLFi, prétérition, 2019. Disponível em: https://www.cnrtl.fr/definition. Acesso em: mar. 2019.
  • 4
    ⁴ Ver LITTRÉ, 2019. Disponível em: https://www.littre.org/definition/prétérition. Acesso em: mar. 2019.
  • 5
    ⁵ O trecho completo diz: “L’Ironie consiste à dire par une raillerie, ou plaisante ou sérieuse, le contraire de ce qu’on pense, ou de ce qu’on veut faire penser. Elle semblerait appartenir plus particulièrement à la gaieté; mais la colère et le mépris l’emploient aussi quelquefois, même avec avantage; par conséquent, elle peut entrer dans le style noble et dans les sujets les plus graves.” (FONTANIER, 1977, p. 145-146).
  • 6
    ⁶ Sobre a abordagem de Bom em La Folie Rabelais: “Tout se passe comme si l’objet d’étude, le Pantagruel, ressortait mieux par comparaison et opposition que par simple description.” (SMITH, 2009, p. 155, grifo nosso). Tradução livre sugerida: “É como se o objeto de estudo, o Pantagruel, se destacasse melhor pela comparação e oposição do que pela simples descrição”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2021
  • Aceito
    05 Nov 2023
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