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PESAR AS VIDAS

RESUMO:

Transcrição da conferência de Achille Mbembe, intitulada Pesar as vidas, proferida em 5 de novembro de 2020 na XIX Jornada do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos do Rio de Janeiro. Neste ensaio o pensador camaronês desenvolve suas teses apresentadas em Políticas da inimizade e Brutalismo sobre as políticas do vivente que o tempo presente exige, sobretudo quanto ao direito à respiração e ao pertencimento da Terra relativamente a todos os viventes, humanos e não humanos. Em que medida o projeto psicanalítico, nos seus termos, contribui para a pluralização dos saberes e a refundação deles pela retomada dos arquivos do Todo-Mundo, é uma de suas interrogações à psicanálise. Finalmente, é em torno do incalculável presente em todo vivente que Achille Mbembe defende a ideia de que o vivente é aquilo que não tem preço, nem se pode pesar.

Palavras-chave:
políticas do vivente; pluralização dos saberes; direito à respiração; partilha da Terra

ABSTRACT:

Transcript of Achille Mbembe’s conference, entitled Weighing Lives, given on November 5, 2020, at the XIX Journey of the Brazilian Space for Psychoanalytic Studies in Rio de Janeiro. In this essay, the Cameroonian thinker develops his theses presented in Policies of Enmity and Brutalism about the policies of the living that the present time requires, especially regarding the right to breathe and the belonging of the Earth to all living things, human and non-human. To what extent the psychoanalytic project, in its terms, contributes to the pluralization of knowledge and its refoundation through the resumption of the All-World archives is one of its questions for psychoanalysis. Finally, it is around the incalculable present in every living thing that Achille Mbembe defends the idea that the living thing is that which has no price and cannot be weighed.

Keywords:
policies of the living; pluralization of knowledge; right to breathe; sharing of the Earth.

Eu queria refletir sobre uma temática que me preocupa há algum tempo e que diz respeito ao que chamo de Pesar as vidas.

Em vez de oferecer uma análise pronta, gostaria de partilhar com vocês uma série de observações e comentários. Estas observações e comentários fazem parte de uma investigação mais ampla, cujas principais conclusões foram apresentadas sucessivamente em Políticas da inimizade (2016MBEMBE, A. Politiques de l’inimitié. Paris: La Découverte, 2016.) e Brutalismo (2020MBEMBE, A. Brutalisme. Paris: La Découverte , 2020.).

Para começar, gostaria de dizer uma ou duas palavras sobre o tempo que é o nosso, o tempo de hoje, como é preciso caracterizá-lo, e o que faz dele a marca essencial, ou, se quisermos, a singularidade.

Atualmente, temos de maneira manifesta a experiência de uma série de transformações, grandes e pequenas, uma série de transformações múltiplas. Não se trata apenas de mudanças políticas, como a saída da democracia, por exemplo, a entrada naquilo que se chama fascismo; mas também de mudanças econômicas, na medida em que hoje a economia ou o econômico tende cada vez mais a se identificar com a neurobiologia, pois o econômico não é mais pura e simplesmente uma questão de razão algorítmica ou computacional; mudanças climáticas e ecológicas, não preciso insistir, estamos todos conscientes do fato de que entramos doravante na era do Antropoceno; e mudanças tecnológicas, na medida em que o que vivemos é, no fundo, uma escalada tecnológica, quer dizer, não tivemos nunca na história da humanidade realizado tanta proeza no campo científico e tecnológico, e essas proezas foram feitas em uma velocidade nunca vista antes na história de nossa estadia na Terra. Como os nossos imaginários também estão em ebulição, temos por vezes a impressão de uma grande aceleração e, por vezes, de uma grande contração, como se estivéssemos presos em um enorme remoinho de areia.

Acrescentemos que estas mudanças estão ocorrendo a uma velocidade sem precedentes. Um dos principais efeitos destas múltiplas mudanças é uma espécie de desorientação epistemológica que experimentamos; a impressão de que já não existe qualquer fundamento sobre o qual construir o trabalho de organização e expressão do inteligível ou, se quisermos, da inteligência, por oposição às paixões, às emoções, aos afetos. Por outro lado, estas mudanças colocam profundamente em causa a soma de conhecimentos herdados de um passado longínquo e recente, e expõem cruelmente os seus limites. Quer dizer, temos a impressão de viver em um tesouro de saberes, digamos, que não são mais pertinentes.

Daí, a necessidade não só de uma renovação sem precedentes dos nossos instrumentos de análise, das nossas linguagens e dos nossos discursos, mas também da sua pluralização. E, se faço referência à demanda de decolonização dos saberes, vou ainda mais longe: eu falo de pluralização, para indicar claramente que não se trata de marginalizar alguns saberes, mas de organizar um comércio mais dinâmico entre os diferentes saberes, um descentramento recíproco de todos os saberes e de todos os arquivos, inclusive dos saberes psicanalíticos.

Daí, finalmente, a convicção de que, para fazer face às novas situações e provas que a humanidade enfrenta atualmente, a necessidade de refundar o conhecimento não pode ser alcançada sem recorrer ao que eu chamo dos arquivos do Todo-Mundo, termo de Édouard Glissant, onde, durante muito tempo, nos contentamos com os arquivos de apenas uma das províncias da Terra, no caso, os arquivos ditos europeus.

Falei há pouco da impressão que temos de uma “grande aceleração” acompanhada de contrações súbitas. Gostaria de voltar por um momento ao que chamo de ebulição dos imaginários. É uma das consequências de um fenômeno - diria mesmo de um acontecimento - a que não prestamos suficiente atenção, a saber, o entrelaçamento do tempo. Supondo que ainda podemos falar de História com H maiúsculo, ela já não é apenas a história dos seres humanos. Para ter qualquer significado, o tempo dos humanos ou o tempo das sociedades humanas deve agora ser combinado com o tempo geológico e climático, o tempo das plantas e dos animais, o tempo dos micróbios, das bactérias e dos vírus, o tempo da biosfera e o tempo da tecnosfera. Em suma, são todas as formas do vivente que agora nos interpelam e são reconhecidas como coatores no passado e no futuro da Terra e de todos os seus habitantes.

Isso interroga de maneira totalmente radical o projeto da psicanálise. Se é verdade que o que é preciso localizar na clínica, ou se quisermos, o que é preciso psicanalisar, é, no fundo, o inconsciente, como iremos fazer a análise do inconsciente da biosfera, por exemplo? Ou do inconsciente das plantas, do inconsciente dos animais, do inconsciente que porta nele mesmo a tecnosfera, que envolve nossa existência quotidiana? Eis as questões que são colocadas ao projeto psicanalítico, seja qual for a tradição que se evoque.

Assim, em relação a um tal entrelaçamento do tempo e dos regimes complexos de sedimentação, temos o direito de perguntar se as velhas distinções entre passado, presente e futuro ainda são úteis. O mesmo se passa com as categorias habituais, como a ruptura e a continuidade. A ideia de uma progressão ou de um fluxo linear do tempo foi, desde há muito, posta em causa.

Podemos ver claramente que o fenômeno da reversão ou reversibilidade está em expansão. Mas o que é isso que retorna precisamente? Isso que retorna é exatamente o mesmo daquilo que precedentemente adveio? Deixo de lado o fenômeno dos traços, das marcas e do apagamento. Haverá realmente algo que possa ser apagado? Que dizer do inapagável, daquilo que está adormecido debaixo da toalha ou das cinzas, pronto a ser reativado?

É evidente que estes fenômenos não podem ser simplesmente confundidos com o esquecimento, a recordação ou a reminiscência. A concatenação dos tempos conduz a inevitáveis colisões. Já não se trata da aceleração e da fuga em si, mas do tempo a múltiplas velocidades, do tempo em migração, da transmigração do tempo, para retomar esse termo caro a alguém como Mircea Eliade. Mais do que nunca, isto exige um diagnóstico que tem tanto de psicanalítico como de político.

Mas o que mais impressiona atualmente, sobretudo no Ocidente e nas suas dependências ou vizinhanças imediatas, é a ascensão das teologias da extinção, do envelhecimento da estrela solar. Este é um mundo no auge do seu poder tecnológico, mas que, mais do que nunca, é dominado pelo medo do seu próprio fim.

Por vezes, isso é imaginado em termos de radioatividade generalizada ou de toxicidade desenfreada, e, por vezes, em termos de autocombustão. Mas não é tudo. A isso junta-se o pânico provocado pelo medo da “grande substituição”, a ideia de uma substituição biorracial, a dos brancos (a raça em declínio e moribunda) ameaçados pelos chamados povos de cor. Chamemos isso de eugenia ao inverso, provocada pelos fenômenos de declínio da natalidade, por um lado, e de aparente subrepopulação, por outro.

Com as grandes esperanças de transformações radicais desaparecendo, é como se voltássemos ao elementar, ao retorno das matilhas, aos fenômenos brutos e instintivos, a começar pela luta entre espécies e pela luta pela sobrevivência. A ideia de um final feliz foi afastada. É provável que as coisas acabem mal. Mas o desejo de mitologia persiste. Por isso, proliferam muitas ficções cínicas e todo o tipo de crenças, tendo como pano de fundo um poderoso regresso aos fenômenos de enfeitiçamento, incluindo o enfeitiçamento coletivo.

Ao mesmo tempo, desenvolve-se um pensamento escatoapocalítico, que convida a contemplar o colapso e a preparar-se para o fim. Outras correntes tentam repensar a utopia e o futuro em termos de messianismo tecnológico, ou mesmo de uma possível expatriação para outros planetas. A redenção da humanidade, defendem, passará paradoxalmente pela escalada tecnológica e por um novo ciclo colonial, o colonialismo tecno-molecular e extraterrestre.

As observações que acabo de esboçar abrem uma questão que não podemos continuar a ignorar. A questão é a seguinte: é possível, hoje, imaginar uma nova política do tempo, repolitizar o tempo, ou seja, aprender a habitar a Terra para além do desejo de apocalipse e dos impulsos do niilismo e da tecnolatria? Em caso afirmativo, em que termos, com que objetivo, se não o de virar a realidade do avesso e imaginar outras possibilidades?

Um tal projeto de rehabitação não exigirá um mínimo de reparação desta mesma Terra, ou mesmo a restituição a todos os seus habitantes, humanos e não-humanos, de uma espécie de direito fundamental, quase natal, o direito à respiração? E temos de perceber que imaginar outras possibilidades nas condições contemporâneas exige, mais do que nunca, abrir espaço para o imprevisível, para a incerteza, para a possibilidade de um número infinito de devires, de novas cadeias de relações. Em outras palavras, reconciliarmo-nos de uma vez por todas com a ideia de um futuro sem garantias nem promessas.

Passemos ao que está em jogo, ou seja, o projeto de abolição do mistério que representa o vivente. E eu diria que tal é a maior ameaça que pesa sobre nós. A esse projeto, demos vários nomes, o neoliberalismo, o fascismo e assim por diante. Digamos que não há uma maneira simples de colocar essa questão, mas acho que ganhamos revisitando uma parte dos arquivos do passado, arquivos de um momento ou outro de nossa história na Terra.

O que é a natureza humana e, para além dela, o vivente? O que faz de nós sujeitos morais? Qual é o nosso destino na Terra? Durante muito tempo, estas questões pareciam preocupar apenas os teólogos, os metafísicos e os filósofos da existência.

Por estranho que pareça, hoje estão de volta, inclusive e sobretudo entre os cientistas. Além disso, com o confinamento em vigor em razão do coronavírus e o número de mortos aumentando, a meditação sobre o fim dos tempos só tem aumentado de intensidade. Mas, enquanto ontem se tratava de determinar se o humano é, antes de mais nada, corpo ou espírito, hoje o debate incide sobre o ponto de saber se é matéria e apenas matéria, ou se, em última análise, é apenas um conjunto de processos físicos e químicos. A discussão é também sobre onde terminam os viventes, o que o futuro reserva para a vida na era dos extremos, e em que condições a vida termina?

O corpo, a matéria e o ser vivo são três conceitos muito distintos. Não precisa ser cristão para compreender que há algo mais do que matéria na unidade orgânica de cada corpo humano. Diferentes culturas e épocas deram nomes diferentes a esse algo. Mas sejam quais forem as diferenças culturais, a verdade sobre o corpo humano é que ele resiste a qualquer redução. O mesmo se aplica àquilo a que poderíamos chamar, de acordo com autores da minha tradição, como Frantz Fanon, o corpo do mundo, ou mesmo a sua carne. Este corpo do mundo pode ser reconhecido pela sua profusão. Típico disto é o alvoroço viral em que estamos vivendo atualmente à escala planetária.

Muitas pessoas veem este vírus como uma demonstração do poder quase infinito da natureza. Para outros, é um acontecimento cósmico, um prenúncio de catástrofes futuras. Para outros ainda, é o resultado lógico do projeto de um mundo sem Deus, que acusam a modernidade de ter criado. Este mundo, supostamente livre, mas na realidade autossuficiente e sem recurso, só teria subjugado os humanos sob o constrangimento de uma natureza agora convertida em um poder arbitrário.

De fato, a ausência de Deus não é a caraterística que define o mundo de hoje. Nem é a sua presença virulenta e vingativa, sob a forma da violência de um vírus ou de outras calamidades naturais, que define a nossa época. A marca essencial do início do século XXI é a passagem para o animismo. Associadas à escalada da tecnologia, as transformações do capitalismo terão conduzido a um duplo excesso: um excesso de pneuma (respiração) e um excesso de artefatos, a transformação dos artefatos em pneuma, no sentido teológico deste termo. Nada exprime melhor este excesso do que o universo tecnodigital, que se tornou o duplo do nosso mundo, a encarnação objetal do pneuma.

A tecnolatria, a idolatria da tecnologia, o ódio à razão e o desejo de uma mitologia podem coexistir alegremente. Quando, como agora, a história se contrai e o narcisismo de massa se difunde, a imagem torna-se quase inevitavelmente a linguagem privilegiada do sujeito. Adquire uma dimensão simultaneamente ecumênica e sacramental. Toma o lugar do ato eucarístico, que sabemos estar centrado no corpo e no sangue divinos oferecidos para serem tomados, bebidos e comidos em memória do sacrificado. Como podemos, então, surpreender-nos com o fato de a relação entre o político, por um lado, e o impulsivo e visceral, por outro, ser estreitamente reforçada? Com efeito, os novos meios tecnológicos conduzirão à abolição do inconsciente.

O animismo, o que é? O animismo contemporâneo? Animismo é o nome que deve ser dado ao acontecimento que é o reaparecimento do humano sob a forma de virulência. O animismo contemporâneo é o resultado de uma vasta reformulação do humano e da sua relação com os viventes. Começou assim a era da segunda criação. Trata-se agora de captar tecnicamente a energia dos viventes e de toda a espécie de objetos inertes ou animados e de a descarregar no humano, em um processo que faz lembrar a própria primeira criação.

Desta vez, porém, os materiais essenciais já não se limitam à argila. São os átomos, os organismos, os elétrons e todos os tipos de partículas. Não se pretende reacomodar todas as competências do vivente em compostos orgânico-artificiais dotados, na sua maioria, das características tanto da pessoa humana como dos outros seres e coisas? Estes compostos são chamados a atuar como duplos do humano. E, através destes compostos, o humano é finalmente chamado a afirmar a sua multiplicidade essencial.

Esse projeto obriga-nos a retornar à Terra. A Terra entendida não mais como um pedaço de terra que é apropriado e em torno do qual se erguem recintos segundo a lógica da partilha, mas como um acontecimento que, in fine, desafia fundamentalmente qualquer ideia de fronteirização.

Entendida desta forma, a Terra pertence a todos os seus habitantes, sem distinção de raças e de espécies. Ela zomba tanto do particular cego quanto da singularidade nua. Lembra-nos como cada corpo, humano ou não, por mais singular que seja, traz em si e dentro de si, na sua porosidade essencial, as marcas não do universal diáfano, mas os traços do em-comum. Consequentemente, qualquer política do vivente se assenta, por definição, na ideia de que o vivente é aquilo que não tem preço. E, porque não tem preço, pertence fundamentalmente àquilo que está para além de qualquer medida. Como tal, não pode ser contado nem pesado. Ele tem a ver simplesmente com o incalculável.

REFERÊNCIAS

  • MBEMBE, A. Politiques de l’inimitié Paris: La Découverte, 2016.
  • MBEMBE, A. Brutalisme Paris: La Découverte , 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2023
  • Aceito
    30 Out 2023
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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