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A ABORDAGEM PÓS-METAFÍSICA E CONVERSACIONAL DO SELF EM RICHARD RORTY

The post-metaphysical and conversational perspective of the self in Richard Rorty

RESUMO:

O artigo enfoca a relevância de uma dimensão política no psíquico. Em nossa hermenêutica sobre o tema, em um primeiro momento, abordaremos as linhas gerais de uma ruptura com modelos filosóficos metafísicos do self, tendo como exemplo as críticas de Rorty e Heidegger à “intencionalidade de consciência” de Jean-Paul Sartre; bem como o contraponto rortiano à leitura epistemológica da psicanálise de Paul Ricoeur. Em uma segunda etapa, discutiremos a concepção rortiana de self por mostrar, ao final, seus possíveis limites com a abordagem antipredicativa de self.

Palavras-chave:
self; pós-metafísica; conversação; hermenêutica; Rorty

Abstract:

The article focuses the relevance of a political dimension in the psychic. In our hermeneutics on the theme, at first, we will approach the broad lines of a break with metaphysical philosophical models of the self, taking Rorty and Heidegger’s criticisms of Jean-Paul Sartre’s “intentionality of conscience” as an example; as well as the Rortian counterpoint to the epistemological reading of psychoanalysis by Paul Ricoeur. In a second step, we will debate the Rortian conception of the self for showing, in the end, its possible limits with the antipredicative approach to the self.

Keywords:
self; post-metaphysics; conversation; hermeneutics; Rorty

INTRODUÇÃO

Mesmo sem pretensão de sistematicidade na leitura da obra freudiana, o artigo Freud e a reflexão moral (1999, p. 193-219), de Richard Rorty, ressalta o impacto cultural da inovadora linguagem freudiana. Linguagem que atraiu intelectuais ocidentais pela utilidade, tanto moral quanto cultural, de sua redescrição do universo psíquico como “conjunto de crenças e desejos” e “quase-pessoas”, estimulando-nos a um questionamento da centralização do self em sua impostação metafísica e, para além desse questionamento, ajudando-nos a ponderar sobre o sentido possível de uma hierarquização pós-metafísica entre o consciente e o inconsciente.

Dessa forma, este artigo elabora hermeneuticamente alguns elementos de reflexão sobre algumas implicações filosóficas do plano político-cultural no campo psíquico. Tal apropriação da psicanálise freudiana, porém, aponta coerentemente, talvez, para um possível limite do elemento predicativo subjacente à proposta rortiana.

O paradigma metafísico do self

O senso comum carrega uma ambiguidade em torno do self, pois, conjuntamente, reforça a compreensão metafísica de centralidade do self - construída filosófica e teologicamente desde o conceito de “alma” - e incorpora a influência midiática da linguagem psicanalítica no ambiente urbano. A retomada patrística e medieval da filosofia clássica grega afirma uma natureza humana cuja definição inclui, por sua vez, o conceito de “alma” em referência ao domínio psíquico. A herança ascético-mística de um fundo da alma se lastreia na mística do êntase. Esse tipo de mística, de origem neoplatônica, é bem representada pela dialética agostiniana da interioridade nas Confissões, onde Agostinho afirma a presença de Deus no fundo da alma; lugar central e imóvel onde a alma finalmente repousa de sua irrequietação (LIMA VAZ, 2000LIMA VAZ, H. C. de. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000. (Coleção “CES”, 6), p. 18-19; 26). O legado místico-metafísico de influência neoplatônica associa as paixões à exigência de purificação, associando-as à parte afetiva, irracional e pré-linguística da alma.

Com bastante inflexão e diferenças, tal centralidade metafísica do self se manteve, na modernidade, com o cogito cartesiano. Rorty aponta em Descartes uma reificação do si-mesmo por meio de uma autoidentificação reflexiva. Porém, um ponto mais controverso da posição de Rorty em sua breve retomada histórica é sua declaração de que, no pensamento sartriano, constatam-se elementos de centralização do self - visão também presente na ótica heideggeriana acerca do existencialismo de Sartre.

O diferencial entre o pensamento de Descartes e o de Sartre é a terrível liberdade da consciência capaz de romper com a determinação maquínica do primeiro. O rompimento - como se fosse uma autodestruição da máquina humana - acontece porque se acha algo de não-mecânico nessa máquina: o nada enquanto fissura no âmago do ser. Em Sartre, não se encontra uma causalidade mecânica para o self, pois o self apresenta uma fissura, uma fissura enquanto enclave não-mecânico e vazio na consciência porquanto a consciência não tem uma significação prévia de mundo, incluindo a si mesma - em sintonia com o conceito husserliano de “intencionalidade da consciência”. Em outras palavras, o “ser para-si” da absoluta liberdade humana só é possível pela abertura da consciência intencional, em seu vazio, a novas percepções e concepções de mundo; sem que haja, por definição, uma percepção ou conteúdo prévio na consciência intencional (SARTRE, 2000SARTRE, J.-P. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis; Vozes, 2000.).

Sobre a ontologia sartriana, analisemos o ataque feito por Heidegger (2005) na Carta sobre o Humanismo, escrita em 1947 com o propósito de esclarecer algumas discordâncias quanto a certas interpretações equivocadas, para Heidegger, sobre seu pensamento na obra O Ser e o Nada, publicada em 1943. Ressalte-se que nos interessa aqui a crítica à impostação metafísica do livro de Sartre porque ela nos preparará à crítica de Rorty, que era leitor de Heidegger e de Sartre. Em seu texto, Heidegger examina o humanismo preconizado como “ateu” pelo existencialismo de Sartre; que estaria em linha com o “existencialismo ateu” de Heidegger. Contudo, ao qualificar seu existencialismo e o de Heidegger como “ateus”, Sartre mantém uma impostação metafísica para o pensador alemão.

Ao converter Deus em um Ente supremo, a teologia escolástica concebe a existência divina a modo de coisa e não a modo de liberdade. Na teologia negativa, em uma pretensa contestação aos predicados divinos desse modelo teológico, persiste uma compreensão entitativa do ser divino. Ao não colocar (positum) atributos em Deus, o apofatismo infere o mais forte predicado metafísico quanto ao divino; qual seja: o atributo de sua existentia - por sinal, tal atributo consta dos célebres argumentos cosmológico e ontológico da existência divina. O Ente divino “existe” e dele analogicamente dependem a existência de outros entes. Ousaríamos até supor, por comparação, que, caso teísta, Sartre defenderia a posição tomasiana de que a essência (ratio essendi) precederia a existência; em consonância com a aguda observação de Josef Pieper:

Se quiséssemos dar aos pensamentos de Sartre e de Tomás uma forma silogística, tornar-se-ia patente o fato de ambos partirem exatamente da mesma “premissa”, a saber: “Há uma essência das coisas, na medida em que esta é pensada. É porque existe o homem e sua inteligência capaz de projetar, planejar (design), capaz, por exemplo, de ‘conceber’ um abridor de cartas, como de fato concebeu - é por esta razão, e só por ela, que existe uma ‘essência’ de abridor de cartas. E assim, continua Sartre, já que não há uma inteligência criadora, que pudesse - aos seres humanos e a todas as coisas naturais - assim conceber, projetar, planejar, dando-lhes previamente um conteúdo de significado, então não há essência alguma nas coisas não-fabricadas, nas coisas não-artificiais. Citarei literalmente: “Não há essência do homem, porque não há Deus para concebê-la ‘il n’y a pas de nature humaine, puisqu’il n’y a pas de Dieu pour la concevoir’. (PIEPER, 2000PIEPER, J. Luz inabarcável: o elemento negativo na filosofia de Tomás de Aquino. Convenit Internacional, v. 1, n. 1, p. 21-32, 2000. Disponível em: Disponível em: http://www.hottopos.com/convenit/jp1.htm . Acesso em: 21 mar. 2021.
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).

Daí a necessidade teórica de se proclamar ateu, em consonância com a frase de Dostoievski, por ele citada: “[...] tudo é permitido se Deus não existe e, por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dela nada a que se agarrar” (SARTRE, 1984TAYLOR, C. Self-interpreting Animals. In: TAYLOR, C. Human Agency and Language. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p. 45-76., p. 18). Sartre celebra esta frase para mostrar a liberdade absoluta de escolha diante da existência, em que pese o próprio filósofo ressaltar no fim de seu texto Existencialismo é um humanismo (1984) que o foco do existencialismo não é seu ateísmo mas a liberdade absoluta de escolha:

O existencialismo não é tanto um ateísmo no sentido em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele declara, mais exatamente: mesmo que Deus existisse, nada mudaria; eis nosso ponto de vista. Não que acreditemos que Deus exista, mas pensamos que o problema não é o de sua existência; é preciso que o homem se reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus. (SARTRE, 1984TAYLOR, C. Self-interpreting Animals. In: TAYLOR, C. Human Agency and Language. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p. 45-76., p. 48).

Todavia, sem se aprofundar nos meandros conceituais da Carta sobre o Humanismo, Heidegger acaba por questionar a polarização metafísica entre ateísmo e teísmo da perspectiva sartriana.

Outro ponto, mais relevante, de análise no texto sartriano em tela é o questionamento heideggeriano da nomenclatura metafísica persistente na mera inversão dos termos da fórmula “a existência precede a essência” (SARTRE, 1984TAYLOR, C. Self-interpreting Animals. In: TAYLOR, C. Human Agency and Language. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p. 45-76., p. 8). De acordo com o pensador alemão, nessa frase, “Ele [Sartre] toma aqui existentia e essentia no sentido da metafísica, que desde Platão diz: a essentia antecede a existentia. Sartre inverte os termos dessa frase. Ora, a inversão de uma frase metafísica continua sendo uma frase metafísica” (HEIDEGGER, 1967HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. (Biblioteca Tempo Universitário, 5), p. 47-48). Conforme o autor alemão, o pressuposto sartriano da “existência”, central para o exercício da liberdade, mantém a confusão metafísica entre o ser com o ente, ou seja, a mera inversão na ordem das palavras não fez o existencialismo sartriano romper com certo viés metafísico. Apesar do não-maquínico da fissura do ser da intencionalidade da consciência, nesse existencialismo, ainda não se efetiva uma ek-sistencialidade projetual do humano, preconizada por Heidegger (2012HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Campinas/Petrópolis: Editora da Unicamp/Vozes, 2012., p. 381). Posto que, apesar do caráter “negativo” da fissura do ser, a intencionalidade da consciência depreende uma noção tradicional de sua existentia e essentia; com a essentia sendo a humanitas como fundamento da representação metafísica do ente humano em sua totalidade:

Se, no entanto, por humanismo em sentido geral, se entende o esforço tendente a tornar o homem livre para a sua humanidade e levá-lo a encontrar nessa liberdade sua dignidade, então o humanismo se diferenciará segundo a concepção de ‘liberdade’ e de ‘natureza’ do homem. Do mesmo modo, serão diferentes as vias de sua realização. O humanismo de Marx não necessita de uma volta à Antiguidade nem tampouco o humanismo, concebido, por Sartre, como existencialismo. Nesse sentido amplo, também o Cristianismo é um humanismo de vez que, na doutrina cristã, tudo se dirige à salvação (sahis aeterna) do homem, e a história da humanidade aparece dentro da história da salvação. Por mais diversas que sejam, segundo suas finalidades e seus fundamentos, quanto aos modos e meios de suas realizações específicas ou consoantes a forma de suas doutrinas, essas espécies de humanismo, na realidade, coincidem no fato de todas elas determinarem a humanitas do homo humanus a partir de uma interpretação já assente da natureza da história, do mundo, do fundamento do mundo, isto é, a partir de uma interpretação já assente do ente em sua totalidade. (HEIDEGGER, 1967HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. (Biblioteca Tempo Universitário, 5), p. 36-37).

Na Carta sobre o Humanismo, ao invés de se buscar a essentia, e a humanitas do homo humanus, o Dasein-humano pastoreia e cuida do ser na linguagem originária, sua morada, como celebração abissal do ser e distinta da lógica proposicional da metafísica. Rorty acompanha a posição pós-metafísica de Heidegger; entretanto, em antagonismo a essa busca da linguagem originária, ele visa a linguagem ordinária do senso comum, própria de uma cultura democrática em sua recepção a múltiplas e acepções políticas de “mundo”, incluindo aí o self. Desde esse específico ponto-de-vista, advém uma crítica de Rorty a Sartre em seu livro Ensaios sobre Heidegger e outros (1999), semelhante, por sinal, à de Heidegger: “Metafísicos como Sartre prefeririam ter, parafraseando Nietzsche, uma metafísica do nada do que nenhuma metafísica” (RORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 218, n. 29).

A proposta de Rorty, a nosso ver, vai além daquela de Heidegger por outro importante aspecto. Reconhecendo, como este, a obsolescência da discussão teórica a respeito da existência ou não de Deus, distintamente do pensador alemão, porém, proclama-se “anticlerical” em um diálogo com Vattimo (Rorty; Vattimo, 2006RORTY, R.; VATTIMO, G. O Futuro da Religião: solidariedade, caridade e ironia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006., p. 37). Essa contraposição à interferência política da institucionalidade religiosa, através de clérigos, enriquece e oportuniza o tema em um patamar mais alvissareiro ao se aproximar dele em um viés político-cultural. Essa inflexão rortiana de sua filosofia como política-cultural se originou como um segundo passo após seu ajuste de contas com a Filosofia Analítica e sua guinada anti-epistemológica, registrada na obra A Filosofia e o Espelho da Natureza, de 1978, guinada que culmina com a publicação, em 1989, do livro Contingência, Ironia e Solidariedade (2007RORTY, R. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.). Nesta obra, em uma formulação mais propositiva, Rorty se concentra em uma discussão acerca da política cultural pelo esvaziamento dos vocabulários finais da metafísica e pela valorização irônica da criação de novos vocabulários em vista da construção político-cultural de um senso comum socialmente mais emancipado.

Ilustremos o alcance dessa abordagem da filosofia como política-cultural no tocante a uma hermenêutica da psicanálise, o foco deste artigo. A descrição variada do pulsional enseja conflitos de interpretação quanto à sua natureza. Ao associá-lo ao inconsciente, a epistemologia de Ricoeur explica o pulsional a partir da interface entre corpo e mente; pela mútua interferência do voluntário e do involuntário na unidade da pessoa (RICOEUR, 1977RICOEUR, P. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977., p. 64-65). Para Ricoeur, a pulsão se localiza entre o somático e o psíquico - diferentemente de uma sua naturalização biologicista ou como seu extremo oposto: algo etéreo, diáfano e sublime -, em um impulso energético de forças e afetos concretizáveis em variados objetos (FRANCO, 1995FRANCO, S. de G. Hermenêutica e psicanálise na obra de Ricoeur. São Paulo: Loyola, 1995., p. 149).

O campo hermenêutico ricoeuriano acerca da psicanálise reforça uma restrição epistemológica da psicanálise em uma teoria da causalidade “natural” do desejo ou das pulsões; assim, as excitações produzem relações causais na dimensão psíquica, ocasionando representações mentais (FRANCO, 1995FRANCO, S. de G. Hermenêutica e psicanálise na obra de Ricoeur. São Paulo: Loyola, 1995., p. 122). Essa hermenêutica aparentemente converge com a de Rorty quando ele diz que o inconsciente, como pulsão, seria “uma massa efervescente de energias instintivas desarticuladas, um ‘reservatório de libido’ para o qual a inconsistência é irrelevante” (RORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 197). A crítica de Rorty à leitura ricoeuriana da psicanálise freudiana consiste na incapacidade de a teoria ricoeuriana entender que as pulsões, embora sejam forças precariamente controláveis pela cultura (RICOEUR, 1977RICOEUR, P. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977., p. 16), não são, contudo, um fenômeno extralinguístico ou marcadamente causal.

Embora admita o limite de seu conhecimento da psicanálise freudiana, o autor americano dialoga com ela com o fito de ressaltar suas úteis inspirações para a política-cultural, isto é: a psicanálise é útil ao estimular uma ambiência sociocultural que abra espaço para cada membro de uma coletividade tenha a opção de múltiplas possibilidades de significação existencial. Por não reforçar princípios de fundamentação moral, a psicanálise paradoxalmente democratizou a figura moderna e kantiana do gênio: “Freud democratizou o gênio ao dar a todos um inconsciente criativo” (RIEFF apudRORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 199) Em contraposição à aristocrática forma de se redescrever pela via ascético-mística, a ampliação de si pela nova apropriação psicanalítica do inconsciente ampliou o vocabulário do senso comum, permitindo a nossos contemporâneos serem mais “irônicos, jocosos, livres e inventivos em nossas escolhas de autodescrições” (RORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 205), universalizando essa capacidade estética de autocriação e autojustificação de novos comportamentos.

Mesmo se a psiquiatria analítica tiver de algum dia ser abandonada em favor de formas de tratamento química e microcirúrgicos, as conexões que Freud esboçou entre emoções tais como os anseios sexuais e a hostilidade, por um lado, e entre os sonhos e as parapraxias, por outro, permaneceriam como parte do senso comum de nossa cultura. (RORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 215, n. 8).

A universalização da linguagem psicanalítica pelos meios de comunicação social contribuiu fortemente com o estímulo à criatividade de nossos contemporâneos (RORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 199). O vocabulário e os conceitos psicanalíticos servem como ferramentas úteis para sermos mais sensíveis e sofisticados de quando éramos mais jovens, e para contarmos estórias (stories) tecidas por desejos e esperanças, redescrevendo e nos reconciliando com as novas formas e os novos padrões comportamentais tecidos ao longo da vida.

Diante das considerações acima, Rorty nos exorta a que substituamos questões do tipo: “Há algo profundo no interior de meu torturador - sua racionalidade -, para o qual eu possa apelar?” (RORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 212); pois outras perguntas são mais úteis socialmente, por exemplo: “Se eu fizer isso agora ao invés daquilo, que estória eu contarei para mim mesmo depois?” (RORTY, 1999, p. 212). Então, a psicanálise nos ajuda nessa autodescrição, reconstruindo a autoimagem, mais próxima da literatura do que da ciência. Por meio de narrativas e stories, transformamos a vida em obra de arte; nas palavras de Rorty: “better versions of oburselves” (RORTY, 1998RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 43-63).

Essa autotransformação estética como ampliação redescritiva de si se dá em uma conversação entre o consciente e o inconsciente como se fossem “quase-pessoas” no self. Ressaltemos que o termo “conversação”, para Rorty, tem um enorme peso em sua noção de democracia liberal. Desta forma, uma conversação sem fim entre o consciente e o inconsciente no mundo intrapsíquico funcionaria, por analogia, como uma linguagem sobre si aberta continuamente em um democrático simpósio entre essas “quase-pessoas”, sem a determinação de um centro fixo por meio de uma relação de causalidade entre fatores biológicos ou psíquicos:

O psicanalista serve como um tipo de moderador em um simpósio: o analista apresenta, por exemplo, uma consciência que pensa que a Mãe é um objeto resignado de piedade a um inconsciente que pensa nela como uma sedutora voraz, deixando os dois debaterem os prós e os contras. É claro que é verdadeiro que os fatos da resistência proíbem o analista de pensar em termos conversacionais. O analista precisa, ao contrário, pensar em termos de vários modelos topográfico-hidráulicos de fluxo libidinal, esperando encontrar nesses modelos sugestões sobre como superar a resistência, que significado associar a novos sintomas, e assim por diante. Mas também é verdadeiro que o paciente não tem nenhuma alternativa a não ser a de pensar em termos conversacionais. (É por isso que a autoanálise usualmente não funciona, e é também por isso que o tratamento pode fazer frequentemente o que a reflexão não pode). Para o propósito da tentativa consciente do paciente de reconfigurar seu caráter, ele não pode usar uma autodescrição em termos de catexia, fluxo libidinal e coisas do gênero; modelos topográfico-hidráulicos não podem formar uma parte da autoimagem de alguém não mais do que uma descrição de seu sistema endócrino faz parte de sua autoimagem. Quando o paciente pensa sobre descrições concorrentes de sua mãe, o paciente tem de pensar dialeticamente, pensar que há muito a ser dito em ambos os lados. Pensar, como oposto a reagir a um novo estímulo, é simplesmente comparar e contrastar candidatos à admissão em seu conjunto de crenças e desejos. Desse modo, enquanto o analista está ocupado pensando causalmente em termos das reações do paciente a estímulos (e em particular a estímulos que ocorrem enquanto o paciente está no divã), o paciente tem de pensar em seu inconsciente como, ao menos potencialmente, um parceiro conversacional. Esses dois modos de pensar parecem-me instrumentos alternativos, úteis para diferentes propósitos, ao invés de afirmações contraditórias. (RORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 216, n. 11).

Rorty propõe uma via distinta da centralidade do self de tradição metafísica. Não se sustenta psiquicamente a obsessão metafísica pela centralidade de uma consciência translúcida a si. Com a ajuda da psicanálise freudiana, caberia repensar uma hierarquia fixa dentre as faculdades da alma, como veremos a seguir.

A conversação no self

Rorty (1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2)) articula a psicanálise freudiana com a perspectiva de Donald Davison sobre o self no livro Paradoxes of Irrationality. de 1982. Davison compreende o self como uma rede composta por conjuntos coerentes e plausíveis de crenças e desejos; com cada um deles sendo caracterizado como “quase-pessoa”. Com as “quase-pessoas”, vemos a amplitude do self se estruturando em um ambiente “social”. Freud foi impressionantemente revolucionário porque a psicanálise “procura provar ao self que ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente” (FREUD, 1987FREUD, S. Conferência XVIII: fixação em traumas: o Inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 16), p. 336). Em que pese reforçar o peso do inconsciente no psiquismo, Rorty lê essa citação como se indicasse uma relação entre “quase-pessoas” no mundo psíquico, formando uma sociabilidade entre elas; sendo a esquizofrenia, a falta de conversa com os outros pequenos eus.

Com essa conversa entre pequenos eus, surge uma subjetivação política. Desse modo, apesar de a subjetividade cindir-se entre “quase-pessoas”, em que uma é o “consciente” e outra, o “inconsciente”, há uma conversação entre elas em que se desponta um conjunto ou “quase-pessoa” disponível a nós pela introspeção. Na conversação, apenas uma dessas “quase-pessoas” ou conjunto de crenças e desejos é acessível introspectivamente; nesse caso, esse conjunto passa a ser o consciente, convertendo-se em identidade do self, embora tal identidade não seja fixa ou substantiva.

A equivalência dentre essas “quase-pessoas” no mundo político-linguístico intrapsíquico não impede a unidade do self. Para mostrar essa unidade, Rorty cita Strenger quando comenta a unidade do self como a “criação estética na qual os vários vetores da personalidade integram-se numa direção geral. [...] O sentido da direção e a luta em direção à coerência nos torna indivíduo” (STRENGER apudRORTY, 1998RORTY, R. Truth and Progress. Cambridge: Cambridge University Press, 1998., p. 234). Nesse horizonte interpretativo, a identidade subjetiva se plasma em uma conversação do self para não se esfacelar esquizofrenicamente. Conversação esta que permite criar esteticamente uma metaestabilidade psíquica pela coerência existencial de uma rede harmoniosa de crenças e desejos.

Cada conjunto de crenças e desejos se articula com os demais em uma cadeia não-causal de equivalência no peso e valor de cada um deles. A conversação entre esses conjuntos se baseia nessa equivalência; contudo, aflora entre eles um dos conjuntos, distinguindo-se dos demais e hegemonizando o mundo político-linguístico intrapsíquico. Assim, o conteúdo particular de um conjunto de crenças e desejos, qualificado então como o “consciente”, plasma precariamente a identidade transitiva do self. Esta identidade se configura como sua representação em uma totalidade harmoniosa de histórias eventuais e suas “idiossincrasias acidentais” (RORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2), p. 199), abrindo caminho para uma salutar ampliação enriquecedora do self.

O inconsciente funciona no self como uma “quase-pessoa” estranha e parceira da conversação por sua capacidade de ampliar a redescrição do self enquanto tal. Notemos, portanto, que não se sustentaria, em Rorty, a persistência metafísica de qualificar afetos como partes pré-linguísticas e “baixas da alma”. Associados ao “inconsciente”, eles se caracterizam como “quase-pessoas”; admitindo, então, uma “racionalidade” dos afetos como condição de conversação. Por conseguinte, o inconsciente é estruturado linguisticamente e, por definição, não competiria uma sua hipotética condição pré-linguística. Essa conversação pressupõe, por isso, uma equivalência entre essas “quase-pessoas”, em uma horizontalidade sem os extremos de uma arquetípica pré-racionalidade ou de uma suprarracionalidade mística.

Logo, mesmo não hegemonizando o self e agindo nele como uma espécie de hospedeiro, o “inconsciente” participa dessa conversação; daí sua “racionalidade”, ainda que alternativa à “racionalidade” da representatividade “consciente” nessa conversação - sob a condição de “quase-pessoa” hegemônica. Em que pese essa distinção entre o consciente e o inconsciente, ambos são imprescindíveis em uma conversação acolhedora e estimuladora de narrativas mais úteis à redescrição do self. Assim, Rorty instaura uma “racionalidade” onde antes não havia: na figura do “inconsciente”.

Sonhos, atos falhos e demais sintomas são indícios do inconsciente a serem decifrados; em conformidade móvel com as mudanças no laço social pela ampliação a crenças e desejos alternativos e estranhos. Uma abordagem neopragmática - e hermenêutica - da moral amplia os horizontes de significação do humano e, por decorrência, do psíquico. Entretanto, a diversidade de crenças e desejos no mundo psíquico não impede uma autonomia e autenticidade em cada um deles; pelo contrário. Essa singularidade individual de cada conjunto como “quase-pessoa”, contudo, favorece a conversação entre si sem que haja uma orientação prévia nessa conversação.

Essa ausência de orientação prévia, todavia, não exclui uma orientação ou responsabilização moral do self, ao inverso. Ora, a opção por um dos conjuntos como forma de autoidentificação se configura em uma exigência para o agir moral. Uma responsabilização moral do self se estabelece pela hegemonização do self por um conjunto de crenças e desejos perante outro e alternativo conjunto; por isso, “minoritário” na representação psíquica: o inconsciente. Diante, porém, da ausência de uma hierarquização apriorística e fixa entre conjuntos de crenças e desejos, o simpósio psíquico do self articula crenças e desejos em múltiplas combinações possíveis por meio de provisórias escolhas morais. Nessa abertura a novas redescrições do self, no entanto, os dilemas morais não se resolvem epistemológica ou teleologicamente, mas pela conversação familiar entre autônomas, alternativas e estranhas “quase-pessoas”, instaurando provisoriamente uma hierarquização dentre as opções de conjuntos de crenças e desejos no self, estabelecendo provisoriamente um “consciente” e um “inconsciente”.

O jogo hegemônico se dá em uma conversação e negociação claudicante e não nos extremos antagônicos na univocidade ou na equivocidade entre tais conjuntos. Adicionar “quase-pessoas” impede uma fixidez e fechamento do self em uma subjacente e apriorística essência como condição indispensável de comportamento moral; pois, contra tal essencialismo, lembra Jurandir Freire Costa: “nossa realidade psíquica é contingente e somos uma pluralidade identificatória sem centro ordenador metafísico, dada a vicariância, a variabilidade e a imprevisibilidade de nossos desejos” (COSTA, 1995COSTA, J. F. Resposta a Zeljko Loparic. Percurso, v. 7, n. 14, p. 86-96, 1995., p. 96). A singularidade existencial e qualidade moral do self demanda uma “série de descrições contextuais” (COSTA, 1995COSTA, J. F. Resposta a Zeljko Loparic. Percurso, v. 7, n. 14, p. 86-96, 1995., p. 96) do self; em ruptura com uma visão metafísica do self: “Freud desarticula todas as distinções tradicionais entre o superior e o inferior, o essencial e o acidental, o central e o periférico. Deixa-nos um eu que é uma trama de contingências, e não um sistema ao menos potencialmente bem ordenado de faculdades” (RORTY, 2007RORTY, R. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 71).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem negar o valor da ótica rortiana no tocante ao self como conversação entre o consciente e o inconsciente, nesta seção ressaltaremos o limite desse modelo de conversação entre “quase-pessoas”. Para tanto, embora não trate diretamente da proposta rortiana aqui explanada, ajudar-nos-á nessa análise final a crítica de Safatle à política liberal do reconhecimento, incidindo indiretamente na proposta de ampla conversação entre indivíduos preconizada por Rorty para uma democracia liberal; com aplicação, como vimos, na esfera psíquica.

Safatle julga a tradição liberal do reconhecimento como sendo pautada por uma simetria dialógica. Dialogicidade que motiva uma relação de troca; cuja troca de qualidades e atributos são, a princípio, equivalentes entre si. Assim, o que nos é próprio e cambiável subjaz à filosofia (macro)política de matriz liberal, em específico no que concerne à questão contemporânea da luta por reconhecimento de grupos minoritários. Por extensão ao psíquico, o pressuposto da interação entre “quase-pessoas”, para Rorty, é uma reciprocidade transitiva e simétrica entre elas, partindo da admissão do próprio a cada uma das partes dessa interação. A identidade do self surge quando um conjunto de crenças e desejos, sob a égide do que lhe é próprio como “individualidade”, é erigido como o “consciente” e a representação do self; desdobrando-se, no universo (micro)político do psíquico em Rorty, a exigência de reconhecimento do “inconsciente” como uma quase-pessoa estranha - e, por comparação, “minoritária” na esfera psíquica - diante da relevância de uma conversação intrapsíquica. Eis o maior desafio para uma versão do self continuamente disponível à sua efetiva autocriação e ampliação estética de si.

Outros autores liberais, como Ricoeur e Taylor, similarmente apresentam uma relação dialógica no interior da socialidade do self. Para exemplificarmos isso, abramos um pequeno parêntese para tratar sobre o caráter representacional da mente em Charles Taylor, que questiona a representação monológica do self, na ausência de espaço interno da mente e em uma autoconsciência nua e sem engajamento valorativo. Em As Fontes do self, Taylor aponta para uma dimensão valorativa do self pela introjeção subjetiva do aspecto cultural do senso comum em diálogo com o indivíduo. O indivíduo se engaja na cultura, tendo no self o lugar ou espaço moral de autointerpretação de sentimentos e desejos como sendo “our direct, intuitive experiente of imports through feeling. And thus feeling is our mode of access to the entire domain of subject-referring imports, of what matters to us qua subjects or of what it is to be human” (TAYLOR, 1985TAYLOR, C. Self-interpreting Animals. In: TAYLOR, C. Human Agency and Language. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p. 45-76., p. 62). Ou seja: a experiência afetiva de uma situação transmite o que se torna significativo ao self, sem restringi-lo ao naturalismo da fisiologia. Também a complexidade hermenêutica ricoeuriana, mesmo ao subjugar o desejo inconsciente às representações psíquicas numa fundamentação teórica da pulsão, não enclausura a subjetividade em uma psique monológica, entendendo-a, em contraposição, como uma relação “social” entre as “pessoas” do consciente e do inconsciente (FRANCO, 1995FRANCO, S. de G. Hermenêutica e psicanálise na obra de Ricoeur. São Paulo: Loyola, 1995., p. 164). Nesse aspecto da socialidade intrapsíquica, apesar do contraponto rortiano à epistemologia de Taylor e Ricoeur, encontramos certa semelhança entre esses pensadores.

Nesses autores liberais, embora com matizes entre si, o próprio da pessoa individual configura relações políticas de reconhecimento de tipo contratual ou normativo, implicando em uma noção mercantil, com desdobramento no mundo intrapsíquico. Taylor, por exemplo, pontua que o afeto “experiencing our situation as being of a certain kind or having a certain property” (TAYLOR, 1985TAYLOR, C. Self-interpreting Animals. In: TAYLOR, C. Human Agency and Language. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p. 45-76., p. 48); por isso, escreve Safatle que é imprescindível aceitar dois aspectos da política liberal do reconhecimento:

[...] aceitar que a experiência do reconhecimento estaria estruturalmente comprometida ou pensar que ela exige a superação de certa dimensão antropológica que fundamenta a institucionalização do conceito de pessoa. A segunda alternativa poderia nos levar, entre outras coisas, a procurar fundar a experiência do político para além da afirmação e do reconhecimento da individualidade organizada como personalidade. (SAFATLE, 2015SAFATLE, V. Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo, fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 148).

Implícita à ideia de pessoa, de acordo com a origem jurídica do termo persona no direito romano, subentende-se a propriedade como dominus, que, para Hegel e depois para Marx (MARX apudSAFATLE, 2015SAFATLE, V. Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo, fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 172), leitor do primeiro, aponta para relações abstratas e formais de propriedade. Assim, na sociedade liberal, o engajamento mútuo entre pessoas pelo amor exige protocolos de estabilidade e prolongamento no tempo em relações contratuais que se vinculam à noção de posse e propriedade. Ora, o reconhecimento é motivado pela expectativa consciente de que se é ou no que se tem como atributo e vice-versa, por outrem, no que, por sua vez, é reputado como importante para a “própria” autocompreensão e auto-redescrição como pessoa.

Dessa maneira, a tradição liberal tem como elemento-chave para uma política do reconhecimento uma relação predicativa entre pessoas e da pessoa consigo mesma, quando se vê o sujeito numa relação de si como possessão, como Hegel assinala na Fenomenologia do Espírito: em “uma propriedade em sua própria pessoa” (HEGEL apudSAFATLE, 2015SAFATLE, V. Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo, fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 13). Portanto, ao assumir acrítica e aprioristicamente condições de identidade de uma pessoa individual, a leitura liberal do humano parte de uma antropologia filosófica, a nosso ver, ainda relevante, embora passível de uma conexão paradoxal com uma perspectiva do impróprio no universo do psíquico.

Ademais, a associação entre identidade pessoal e propriedade, ao afirmar que há algum próprio em mim que se diferencia de outrem e que esse próprio constitui minha identidade, faz a autonomia e autenticidade dos indivíduos serem fonte de sofrimento, de acordo com Safatle: “Isso pode levar nossos ideais atuais de normalidade social, normalmente assentados na crença da força emancipadora dos conceitos de autonomia, unidade e autenticidade, a serem vistos, em larga medida, como matrizes de produção de sofrimento” (SAFATLE, 2015SAFATLE, V. Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo, fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p.147). Por produzir sofrimento, torna-se mister superar o assujeitamento à “demanda fantasmática dos indivíduos” (SAFATLE, 2015, p. 27) como normatividade ético-política.

Por conseguinte, impõe-se o esvaziamento da ênfase na predicabilidade da pessoa para nos livrarmos “das amarras das formas de determinação atuais da consciência, de seus modos de apropriação, que não seja uma universalização de um modelo de identidade individual” (SAFATLE, 2015SAFATLE, V. Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo, fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 128). Para tanto, o melhor caminho, continua Safatle, “tem de ser a universalização do improprio, como algo que se dá como estranhamento num afeto ‘de relação do sujeito a si’” (SAFATLE, 2015SAFATLE, V. Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo, fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 128). Por isso, o self necessita apresentar, para não se enclausurar, traços de uma relação com o impossível como efetiva abertura a novas configurações do psíquico. A “identidade” do self, mais propriamente, deveria ser a impropriedade da propriedade, o que significa, então, não a diferença perante outrem, mas uma indiferença como reconhecimento, mas um reconhecimento, agora, de matiz antipredicativa, pois

[...] o comum não é característica do próprio, mas do impróprio ou, mais drasticamente, do outro; de um esvaziamento - parcial ou integral - da propriedade em seu negativo; de uma desapropriação que investe e descentra o sujeito proprietário, forçando-o a sair de si mesmo. (SAFATLE, 2015SAFATLE, V. Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo, fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 386).

Nessa saída de si não há possessão e, com isso, a indiferença, como a caracterização do comum enquanto “zona objetiva de indiscernibilidade” (DELEUZE apudSAFATLE, 2015SAFATLE, V. Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo, fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 14). Logo, a liberdade é uma paradoxal propriedade imprópria; pois, como diria Safatle sobre os pobres, os sem reconhecimento, eles são “a união distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é realmente comum”. Nesse igual horizonte aproximativo, embora tratando do pensamento político de Rancière em articulação ao de Ricoeur acerca de identidades coletivas sob risco, dizem Blanco e Martín, “[...] la subjetivación implica un movimiento en dos sentidos: desidentificación y (re)identificación” (BLANCO; MARTÍN, 2003BLANCO, J.; MARTIN, L. Notas sobre identidad y política en las obras de Jacques Rancière y de Paul Ricœur. Comunicação apresentada no VI Congreso Nacional de Ciencia Política. Universidad Nacional de Rosario, 2003. Disponível em:Disponível em:https://drive.google.com/file/d/0B4bI4D8u6LTjUlpPLXp3ZmpLQmc/view . Acesso em: 06 abr, 2021.
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, p. 9); sendo a desidentificação, o novo que irrompe desestruturando uma identificação que, por sua vez, retroalimenta-se nessa desidentificação. Então, há um campo do que nos é próprio a ser destruído diante do acontecimento; com a estranheza do desamparo - subvertendo a lógica predicativa de perda ou ganho. Blanco e Martín, ao articularem a desidentificação de Rancière com a identidade narrativa de Ricoeur, movimentam-se em um sentido alvissareiro de articulação conceitual de uma abertura paradoxal no campo da filosofia política acerca do reconhecimento flexível e histórico de identidades.

Essa mesma abertura, no campo do self, enfim, foi-nos oportunizada pelo desdobramento da visão político-cultural do psíquico de Rorty; desse modo, na coerência do estímulo às contínuas redescrições, caberia uma última redescrição, imprescindível e ainda não feita: a redescrição de um paradigma individual, predicativo e liberal de conversação. O contraponto a um self centralizado fixamente advém, reconhecendo-se o valor conversacional de “quase-pessoas” na redescrição do self, com uma redescrição a mais: a redescrição para além do paradigma antropológico individual do acontecimento impossível e impessoal como persistente oportunidade de constituição dinâmica do self, mas incluindo agora um modo paradoxal de ampliação redescritiva de si.

REFERÊNCIAS

  • BLANCO, J.; MARTIN, L. Notas sobre identidad y política en las obras de Jacques Rancière y de Paul Ricœur Comunicação apresentada no VI Congreso Nacional de Ciencia Política Universidad Nacional de Rosario, 2003. Disponível em:Disponível em:https://drive.google.com/file/d/0B4bI4D8u6LTjUlpPLXp3ZmpLQmc/view Acesso em: 06 abr, 2021.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2021
  • Aceito
    03 Fev 2023
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