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Desaparecimento radical: o mimetismo de Thayer no olhar de Lacan

Radical disappearance: Thayer's mimicry in Lacan’s gaze.

Resumo:

Este artigo buscou investigar o mimetismo em Thayer, articulado a um recorte do conceito de olhar no seminário 11. Visto que, no campo do mimetismo, Lacan só entrou em contato com Thayer indiretamente, exploramos um ponto de encontro teórico entre os autores ainda não discutido na literatura. O ponto de encontro é a lei formulada por Thayer que impele os animais a buscarem mais do que a camuflagem, mas o desaparecimento da cena. Concluímos que o olhar, como a luz em Lacan, é o que produz esse efeito de desaparecimento radical na natureza.

Palavras-chave:
mimetismo; olhar; Lacan; Thayer

Abstract:

This article aims to investigate Thayer’s concept of mimicry and to discuss it together with the concept of the gaze in seminar 11. Since Lacan only knew Thayer indirectly, we explored a theoretical meeting point between the two that has not yet been discussed. The meeting point is a law formulated by Thayer that describes how animals seek more than mimicry, but the disappearance of the scene. We conclude that the gaze, as a point of light in Lacan, is what produces that radical disappearance effect in Nature.

Keywords:
mimicry; gaze; Lacan; Thayer.

Introdução

No ensino de Lacan, o tema do mimetismo surge em diferentes ocasiões, como em O estádio do espelho como formador da função do eu (1949/1998) e em O seminário sobre “A carta roubada” (1955/1998). Tal tema da etologia ressurge no seminário livro 11 como um dos caminhos possíveis para o estudo da dimensão e dos efeitos do olhar:

É isso que se chama o olhar. Para fazer vocês o sentirem, há mais de um caminho. Deveria eu imajá-lo, como em seu extremo, como um dos enigmas que nos apresenta a referência à natureza? Trata-se de nada menos que o fenômeno dito do mimetismo (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 74).

Isso ocorre pois, na natureza manifesta no fenômeno mimético, algo se adianta no sentido de que, a partir dela, o olhar se eleva a um patamar semelhante ao que este alcançaria na dimensão simbólica do homem: “Podemos perceber algo que, já na natureza [mimetismo], apropria o olhar à função à qual ele pode chegar, dentro da relação simbólica, no homem” (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 106, colchetes nossos). Seguindo essa linha, Lacan pede para que nos remetamos às obras especiais sobre o mimetismo, pois são fascinantes e extremamente ricas:

Há fatos que só se podem articular pela dimensão fenomenal do sobrevoo pelo qual eu me situo no quadro como mancha - são os fatos do mimetismo. Não posso aqui me engajar na multitude dos problemas, mais ou menos elaborados, que eles colocam. Remetam-se às obras especiais, que não são simplesmente fascinantes, mas extremamente ricas em matéria para reflexão (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 100).

A despeito deste apelo, o mimetismo não nos parece ter sido um tema extensamente abordado na literatura psicanalítica, sobretudo na sua relação com o objeto olhar. É ouvindo, pois, este apelo de Lacan que iniciamos os estudos sobre o mimetismo na obra do pintor e zoólogo americano Abbott Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.). Optamos por estudar Thayer por três razões principais: (1) o autor é considerado uma das maiores referências nessa área da etologia; (2) Caillois (1962CAILLOIS, R. Medusa y cía.: pintura, camuflaje, disfraz y fascinación en la naturaleza y en el hombre. Barcelona: Seix Barral, 1962.), que é a principal referência de Lacan no seminário 11 no que se refere à etologia, recorre a Thayer e comentadores para pensar o mimetismo; e (3) como Thayer foi uma das influências principais dos estudos de Caillois, Lacan só teve contato com o primeiro de forma indireta. Foi buscando explorar este não encontro teórico entre dois autores (Thayer e Lacan) que a reflexão deste artigo se pautou.

Se, para compreendermos o olhar, temos que ir ao mimetismo, precisamos nos perguntar: o que é essa fascinante coisa chamada mimetismo? No sentido clássico geral, o mimetismo se refere a todo comportamento ou uso de padrões de cores por animais com o objetivo de imitar (mimesis) um ambiente específico (camuflagem) ou imitar outros animais (mimetismo batesiano, por exemplo) (FONT, 2019FONT, E. Mimicry, camouflage and perceptual exploitation: the evolution of deception in nature. Biosemiotics, v. 12, n. 1, p. 7-24, 2019. DOI: 10.1007/s12304-018-9339-6. Acesso em: 20 jan. 2022.
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; SUZUKI, 2019SUZUKI, T. K.; TOMITA, S.; SEZUTSU, H. Multicomponent structures in camouflage and mimicry in butterfly wing patterns. Journal of Morphology, v. 280, n. 1, p. 149-166, 2019. DOI: 10.1002/jmor.20927. Acesso em:13 jan. 2022.
https://doi.org/10.1002/jmor.20927...
; HOGAN; SCOTT; CUTHILL, 2016HOGAN, B. G.; SCOTT-SAMUEL, N. E.; CUTHILL, I. C. Contrast, contours and the confusion effect in dazzle camouflage. Royal Society Open Science, v. 3, n. 7, p. 160-180, 2016. DOI: 10.1098/rsos.160180. Acesso em:11 fev. 2022.
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). Para Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.), o que está em jogo para o animal mimético não é parecer com algo ao seu redor, mas sim desaparecer de um modo radical: parecer não existir. Para o animal, tal desaparecimento pode ter consequências paradoxais: quando aves como os flamingos vermelhos (Phoenicopterus ruber) empregam suas cores em conjunto com a luz para desaparecer em um momento fugaz do entardecer, tornam-se completamente presentes em todos os outros momentos do dia, isto é, expõem-se ironicamente a todos os predadores fora do entardecer (sua janela para o desaparecimento ilusório)1 1 Fazendo ressonância com a asserção de Lacan: “em minha existência sou olhado de toda parte” (LACAN, 1964/1988, p. 73). (ROOSEVELT, 1911ROOSEVELT, T. Revealing and concealing coloration in birds and mammals. Bulletin of the AMNH, v. 30, art. 8, 1911. DOI: 10.2307/4071167. Acesso em: 4 jan. 2022.
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). Nesta peripécia perigosa, abre-se um precedente para um mal-encontro onde o animal, que pretende desaparecer (de jure), torna-se exposto a todos os olhares da cena, isto é, pode desaparecer (de facto) na goela do outro.

No tema escópico aplicado ao mimetismo, o olhar no seminário 11 é pensado sobretudo a partir da figura da luz: “o olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna” (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 104). Em relação a isso, quando Lacan menciona a inoperância e a contra-adaptação2 2 “Alguns só querem ver, no registro das colorações [mimética], fatos de adaptação diversamente conseguida. Mas os fatos demonstram que quase nada da ordem da adaptação - tal como ela é vista ordinariamente como ligada às necessidades de sobrevivência - quase nada disso está implicado no mimetismo o qual, na maioria dos casos, se mostra seja inoperante, seja operando estritamente em sentido contrário do que quereria o resultado presumidamente adaptativo” (LACAN, 1964/1988, p. 101, colchetes nossos). no mimetismo nos parece que ele quer colocar em relevo que algo falha na relação do animal com a luz/olhar. Para além de sua potência formativa, garantindo e validando o corpo como imagem (MILLER, 2008MILLER, J. A. A imagem do corpo em psicanálise. Opção Lacaniana, n. 52, p. 5-220, 2008.), o objeto olhar possui um fator disruptivo manifesto, por exemplo, no apólogo da lata de sardinha. Nessa história, pintar-se como pescador e sumir na cena funciona até um certo ponto, pois, quando a luz como olhar se desvela, Lacan é capturado. Nossa hipótese é a de que o psicanalista indica, pela referência ao mimetismo, o olhar como sendo este elemento que, como luz, é capaz de expor e capturar. As consequências dessa atividade de sumiço e apreensão seriam drásticas no plano da natureza: implicariam na inserção do animal em uma função antivida de desaparecimento, próprio das potências nocivas do olhar como pensado no seminário 11.

Com esta chave de leitura, onde exploramos um diálogo entre Thayer e Lacan, descobrimos que os conceitos suplementares relacionados ao campo escópico (mancha, tela, quadro, anteparo, inscrição no quadro) se tornam mais claros e o mimetismo poderia operar novamente como báscula de entendimento sobre o olhar.

As composições que obliteram

Seguindo nossa proposta, vamos primeiramente adentrar a etologia para podermos posteriormente discutir o mimetismo sob a luz do olhar em Lacan. Por que é tão difícil ver os animais em seu ambiente natural? O segredo da camuflagem, para Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.), está na relação das cores com a luz e seu efeito na forma do animal. Esta relação entre as cores e a luz é expressa em dois princípios óticos fundamentais: (1) o contra-sombreamento obliterativo e (2) as cores obliterativas (THAYER, 1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.). O contra-sombreamento obliterativo pode ser compreendido através de uma constatação simples: animais possuem uma coloração mais escura em suas partes que tendem a ser mais iluminadas pela luz do céu (normalmente o topo do corpo, suas costas) e cores mais claras nas partes do corpo onde são menos iluminadas pela luz do céu (normalmente a parte inferior, a barriga e as patas). Esse padrão de sombreamento pode ser visto, de fato, em todos os animais, salvo raras exceções (animais subterrâneos e peixes de regiões abissais). Mas como isso operaria para ocultá-los? A resposta está na seguinte constatação dada por Thayer (1896THAYER, A. H. The law which underlies protective coloration. The Auk, v. 13, n. 2, p. 124-129, 1896. DOI: 10.2307/4068693. Acesso em:21 jan. 2022.
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):

Figura 1
Esquema de contra-sombreamento, presente em Thayer (1896THAYER, A. H. The law which underlies protective coloration. The Auk, v. 13, n. 2, p. 124-129, 1896. DOI: 10.2307/4068693. Acesso em:21 jan. 2022.
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)

Como mostrado na figura 1, os animais possuem a coloração sombreada como a ilustração A; a luz do céu os ilumina como em B; e os dois efeitos se cancelam como em C. A união entre a luz e a cor mais escura projetada contra esta luz faz o animal perder sua tridimensionalidade, dando a ilusão de que é perfeitamente plano. Para provar isso, Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.) fazia demonstrações em público; ele pegava objetos do cotidiano e os contra-sombreava em um ambiente específico, tornando-os literalmente invisíveis (SHELL, 2009SHELL, H. R. The crucial moment of deception. Cabinet 33, p. 53-60, 2009.). O que ocorre quando algo perde a sua forma? Ao perder sua silhueta, enxergamos como que através dela, como se não estivéssemos diante de nada (THAYER, 1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.). O animal trabalha com essa ilusão de ótica; ele faz o predador ou a presa acreditar, através do contra-sombreamento obliterativo, que ele não possui contorno algum, que ele é plano. Esse é um dos fatores que faz com que o predador ou presa acredite que esteja vendo algo do pano de fundo da cena, quando o animal, de fato, está a sua frente. Considere o exemplo da figura 2:

Figura 2
Modelo de pássaros presente no capítulo 2 de Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.)

Este experimento conduzido por Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.) trata de modelos artificiais iluminados por um ponto de luz acima dos mesmos. O modelo B possui apenas uma cor, e a sua cor é exatamente igual ao fundo; ele é feito do mesmo material que o material do fundo. Percebemos o modelo B, mesmo possuindo a mesma cor e sendo feito do mesmo material que o fundo. A sua forma, a sua silhueta, nos é sensível; podemos ter até a impressão de que é sólido, mesmo se fosse inteiramente plano (o que prova, para Thayer, que o desaparecimento não está vinculado à imitação de um ambiente de fundo). A questão intrigante do exemplo acima é que existe um modelo A nessa figura, contudo, este modelo está contra-sombreado. É tão difícil notar o modelo A que muitos leitores de Thayer duvidaram de que realmente ali, no canto esquerdo, havia um modelo; pensaram que Thayer só havia fotografado o modelo B para assim provar suas assertivas (SHELL, 2009SHELL, H. R. The crucial moment of deception. Cabinet 33, p. 53-60, 2009.). Thayer colocou tons mais escuros onde a luz toca com mais intensidade o modelo A e colocou tons mais claros onde a luz toca com menos intensidade o mesmo modelo; com isso, há a invisibilidade pura do modelo A. Para Thayer, a natureza opera como no modelo A e não como no modelo B.

O contra-sombreamento sozinho, em muitos casos, é suficiente, mas os animais ainda possuem um truque suplementar: as cores obliterativas. A cor obliterativa é um conceito de Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.) que opera como suplemento do contra-sombreamento obliterativo. Em relação a isso, surge um problema específico, como Thayer nos aponta, quando este animal está em um ambiente que possua um padrão de coloração. Nesta condição, o animal se torna quase invisível, mas algo o mostra. Por não ser dotado do mesmo padrão ou de um padrão de cor semelhante, ele entrega a sua localização e com isso, sua forma (THAYER, 1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.).

Figura 3
- Modelo artificial de pássaro contra-sombreado, sob fundo com padrão. Presente em Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.)

Na figura 3, o modelo é de um pássaro artificial contra-sombreado no centro da imagem (THAYER, 1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.). É possível notá-lo, pois, apesar de ter sido absorvido pelo fundo por meio do contra-sombreado, é como se este tivesse preenchido pelo vazio, como uma garrafa PET vazia. Como Thayer nos demonstra, o modelo se torna discernível, pois se torna uma interrupção do padrão de fundo. O que ocorreria se fosse colocado um padrão de manchas no modelo acima?

Figura 4
Modelo contra-sombreado com cores obliterativas. Presente em Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.)

Na figura 4, reencontramos o invisível, a partir da aplicação de um padrão de manchas no modelo contra-sombreado anterior. Em suma, para Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.), é a união dos dois princípios (contra-sombreamento e cores obliterativas) que torna os animais invisíveis em seu ambiente. Mas tais truques óticos dependem de outro aspecto visual para se manterem efetivos: a imobilidade (THAYER, 1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.). No mundo natural, qualquer animal sai de sua invisibilidade no momento em que se move. O crocodilo-do-Nilo (Crocodylus niloticus) ataca o bisão (Bison bison) na margem do rio ao perceber o seu movimento. Ao chegarem na margem do rio, os bisões se tornam imóveis; eles se tornam imóveis para perder suas silhuetas. Eles se tornam opacos para que a visão do crocodilo possa atravessá-los, sem que ele os note. O crocodilo faz o mesmo; ele abole sua forma (contra-sombreamento obliterativo) e emprega seus padrões de cores (cores obliterativas) em conjunto com a luz para não ser notado. O que deflagra o ataque é o movimento de um bisão específico, o ganhar uma silhueta, contrapor-se ao fundo, sair da ilusão obliterativa. Perde a vida ou perde a presa aquele que primeiro sair da invisibilidade por conta de um movimento.

O engajamento no logro efetuado pelos animais é encarnado no mundo natural segundo a seguinte fórmula: “O mimetismo faz com que o animal pareça outra coisa, essa nova lei descoberta faz com que ele cesse de parecer que existe em absoluto”3 3 No original: “Mimicry makes an animal appear to be some other thing, whereas this newly discovered law makes him cease to appear to exist at all”. (THAYER, 1896THAYER, A. H. The law which underlies protective coloration. The Auk, v. 13, n. 2, p. 124-129, 1896. DOI: 10.2307/4068693. Acesso em:21 jan. 2022.
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, p. 125, tradução nossa, colchetes nossos). O que está em jogo para o animal não é se fundir com o pano de fundo do ambiente, ou qualquer peripécia semelhante; a questão para ele é parecer deixar de existir no todo. Caillois (1962CAILLOIS, R. Medusa y cía.: pintura, camuflaje, disfraz y fascinación en la naturaleza y en el hombre. Barcelona: Seix Barral, 1962.) inferiu que os animais pretenderiam a invisibilidade pela invisibilidade, isto é, a suposta orientação adaptativa da vida é superada em nome do mimetismo, o que é uma aproximação com Thayer. Entretanto, parece haver algo de mais severo na lei do último, pois a própria invisibilidade estaria sob a função de um desaparecimento mais radical. Na língua inglesa (língua materna de Thayer), a expressão “at all” presente em sua lei (terceira nota de rodapé, com referência ao original em inglês) possui um sentido de ênfase quase metafísico (ênfase esta não presente em outras línguas, como em português ou espanhol), denotando algo definitivo que pode ser traduzido por “em absoluto”.

Esses fatores parecem evidentes no modo como, por exemplo, Thayer compreende a atividade mimética nos flamingos (Phoenicopterus):

Figura 5
Red flamingos and the sky they simulate, por Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.)

Para Roosevelt (1911ROOSEVELT, T. Revealing and concealing coloration in birds and mammals. Bulletin of the AMNH, v. 30, art. 8, 1911. DOI: 10.2307/4071167. Acesso em: 4 jan. 2022.
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) e Cott (1940COTT, H. B. Adaptive coloration in animals. London: Methuen, 1940.), se a lei de Thayer for verdadeira, o desaparecimento no horizonte em um ponto específico do entardecer (no caso dos flamingos) sairá caro do ponto de vista evolutivo, pois fará com que o animal se torne altamente visível a maior parte do tempo (fora do entardecer). Deste modo, se considerarmos que este empenho dos flamingos, em desaparecer no horizonte ao entardecer, age mais em um sentido contra-adaptativo, como Caillois (1962CAILLOIS, R. Medusa y cía.: pintura, camuflaje, disfraz y fascinación en la naturaleza y en el hombre. Barcelona: Seix Barral, 1962.) e Lacan (1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11)) leem no mimetismo animal, podemos compreender que, no mimetismo, comparece um abdicar não só da forma do corpo, mas da vida do animal como um todo. Se estamos de acordo com o nervo reflexivo de Thayer (1856), ouvindo tanto Caillois (1962CAILLOIS, R. Medusa y cía.: pintura, camuflaje, disfraz y fascinación en la naturaleza y en el hombre. Barcelona: Seix Barral, 1962.) como Lacan (1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11)), surge a seguinte questão: o que impele o animal em direção dessa exigência perigosa e contra-adaptativa?

O olhar como ponto de luz em Lacan

Como se desenvolve a interrelação entre o olhar e todas essas artimanhas do registro mimético em Lacan? No seminário livro 11, Lacan (1964/1988) pensa o mimetismo refletido por Caillois (1962CAILLOIS, R. Medusa y cía.: pintura, camuflaje, disfraz y fascinación en la naturaleza y en el hombre. Barcelona: Seix Barral, 1962.) na primeira lição, onde se propõe a apresentar o olhar como objeto a. Entretanto, é na terceira sessão, “linha e luz”, que os termos do mimetismo são expostos de modo sistemático. O olhar é identificado por Lacan como o instrumento encarnado da própria luz: “o olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna” (1964/1988, p. 104). No esquema óptico final de Lacan, por exemplo, o lugar do ponto de luz será ocupado pelo olhar. Para pensar o olhar, Lacan se utiliza dos seguintes conceitos: (1) o anteparo, (2) a mancha, (4) o quadro e (5) a inscrição no quadro. Todos estes termos, no modo como operam no mundo natural, possuem uma relação direta com a luz. A luz é aquilo que é particular ao campo escópico e o que é particular da luz não é, como na modernidade se pensou, a sua propagação retilínea. Se a reta ou linha, como dimensão sensível, fosse algo particular à luz, cegos de nascença seriam incapazes de apreender qualquer coisa no campo do espaço temporal. Lacan nos aponta que a dimensão própria ao campo escópico não deve ser também buscada no âmbito do conhecimento, debate efetuado pela tradição filosófica desde Platão com o mundo das ideias. Embora haja luz no mito da república de Platão, a luz de que se trata em Lacan é diversa. A luz de Lacan não é aquela que fornece apoio sensível ao conhecer verdadeiramente os entes, ela está vinculada a um tipo de excesso: “ela inunda, preenche [...] transborda” (1964/1988, p. 93). Esta face da luz, dada a sua intensidade\capacidade irruptiva, é de uma natureza que solicita um tipo de obstáculo, solicita uma proteção. É neste ponto que incide o anteparo, primeiro conceito de Lacan com o qual temos que lidar para entendermos os efeitos e as propriedades da luz como olhar.

O que é o anteparo? No campo geometral, concebido por Lacan (1964/1988) a partir de Durer, a representação desenhada de uma perspectiva realista só pode ocorrer através de um aparato, cujas linhas guias auxiliam a encontrar os contornos e formas de um objeto (ANJOS; FERREIRA, 2021ANJOS, P. W; FERREIRA, N. P. O ato fotográfico a partir do olhar. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, n. 23, p. 857-876, 2021.). Segundo nos aponta Lacan, a máquina ou tela para desenhar (como ficou conhecida) opera no campo da ótica da seguinte forma: cada ponto daquilo que se pretende desenhar atravessa, através de linhas, a máquina ou tela, atingindo assim, ponto por ponto, os olhos daquele que pretende desenhá-la (ROSA, 2008ROSA, M. O savoir-y-faire e os auto-retratos do artista Andy Warholl. Enlaces: Psicanálise e Conexões, Vitória, v. 1, p. 163-173, 2008.). Desta forma, há uma correspondência ponto a ponto de dois elementos espaciais. Trata-se de representar a perspectiva de algo (seja anamórfico ou realista) e, para isso acontecer, é necessário que haja uma tela atravessável, isto é, o aparelho de desenhar de Durer. Neste exemplo, o que é definido como imagem para Lacan é aquilo que está sob o contorno do aparato de Durer, isto é, o que está entre o objeto que se quer representar e de onde partem as linhas que tocam este objeto à frente, atravessando a tela. Veja que é necessário que a tela - na estrutura de Durer - seja atravessável para que se possa ver o objeto do outro lado. Segundo Lacan, o conceito de anteparo seria oposto ao da tela, ou seja, é aquilo que permanece entre a luz e o fundo e que opera justamente por não ser atravessável:

É algo de natureza diversa da do espaço ótico geometral, algo que representa um papel exatamente inverso, que opera, não por ser atravessável, mas, ao contrário, por ser opaco - é o anteparo. (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 95).

Em Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.), vimos que um dos efeitos da ilusão da perda de forma através do contra-sombreamento obliterativo é o de que a visão atravessa o ser vivo, a vista o atravessa e encontra um fundo, fundo sobre o qual o ser vivo está obliterado. O animal está invisível porque a visão supõe estar vendo algo através dele, sem que o enxergue. As cores do animal permitem uma ilusão de atravessamento, como se a luz as atravessasse, quando, na verdade, o animal é opaco, isto é, a luz não o atravessa. O anteparo, como padrão de cor no mimetismo, é aquilo que, mesmo opaco, provoca a ilusão da passagem da luz: o contra-sombreamento obliterativo provoca uma ilusão na qual “o espectador parece ver através do espaço ocupado por um animal opaco” (THAYER, 1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909., p. 15). Eis um bom exemplo de confluência de leitura entre dois autores que não tiveram contato com as obras um do outro. O anteparo dissimula o olhar, ele engana através da ilusão: “o logro do anteparo” (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 103). Nesse plano de artimanha própria do imaginário, o engodo mimético é aquilo que coloca o animal em uma relação tipicamente dual, imaginária, onde, por ver-se não sendo visto, se desconhece uma situação real onde se é visto não vendo:

Logo o vemos capturado numa relação dual em que encontramos todos os traços do engodo mimético ou do animal que se faz de morto, apanhado na armadilha da situação tipicamente imaginária: por ver que não é visto, desconhecer a situação real em que ele é visto não vendo. (LACAN, 1956/1998LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 34).

No engodo do anteparo, quando o sujeito se apresenta como aquilo que não é, na relação entre o olhar e o querer ver, o que se dá a ver é algo do qual não se quer ver:

De maneira geral, a relação do olhar com o que queremos ver é uma relação de logro. O sujeito se apresenta como o que ele não é e o que se dá para ver não é o que ele quer ver. (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 102).

Mas o engodo não é o efeito principal do esquema óptico, pois, neste esquema, o que está em jogo é a luz que olha e captura, colocando o sujeito em contato com aquilo que não se quer ver. A luz como momento de reflexão sobre o olhar, exercendo esta atividade de captura, atinge o ápice no apólogo de Lacan (1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11)) sobre a lata de sardinha. Lacan menciona que, naquela circunstância da narrativa, ele se pintava de um modo específico (caçador, pescador, marinheiro), inscrevia-se como mancha no quadro até o momento que se vê apreendido por uma luz. Passemos agora para este conceito de mancha. No seminário livro 11, bem como em outros seminários, como o livro 16, Lacan emprega o termo mancha em diferentes sentidos. Na linguagem da zoologia, ao se tratar de mimetismo, especificamente tal como Caillois o reflete, mancha é aquilo que um animal possui como um elemento de seu sistema tegumentar, uma ranhura, desenho ou coloração como pintura corporal. Ao mencionar as asas das borboletas, o intelectual francês afirma serem “justaposições de manchas coloridas, brilhantes ou apagadas, que formam um conjunto” (CAILLOIS, 1962CAILLOIS, R. Medusa y cía.: pintura, camuflaje, disfraz y fascinación en la naturaleza y en el hombre. Barcelona: Seix Barral, 1962., p. 35). Na arte, especialmente na linguagem geral da pintura, mancha é aquilo pincelado no quadro, como um traço específico ou um toque de cor (CHILVERS; OSBORNE, 1988CHILVERS, I.; HOSBORNE, H. The Oxford Dictionary of Art. Oxford: Oxford University Press, 1988.). No tachismo, movimento artístico francês de 1950 (provavelmente conhecido por Lacan), que provém da palavra francesa tache (mancha), temos um estilo em que elementos não geométricos e abstratos ganham corpo através das manchas deixadas de forma espontânea pelo artista (CHILVERS; OSBORNE, 1988CHILVERS, I.; HOSBORNE, H. The Oxford Dictionary of Art. Oxford: Oxford University Press, 1988.). Em muitos casos, estas manchas não possuem forma definida ou se destacam do fundo; elas são o próprio fundo que formam. O tachismo também é usado como sinônimo do movimento do informalismo ou arte sem forma (art informel).

Nos exemplos dados por Lacan (1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11)) para localizar o conceito de mancha, ele nos informa que este conceito não se liga, por exemplo, ao modo de funcionamento das cores no reino animal tal como Cuenót (1891) o concebe. Para Lacan, tal biólogo francês compreendia que, em certos animais, as cores operam como elementos adaptativos da natureza contra a luz, isto é, o animal carrega uma cor semelhante ou igual em relação ao ambiente para se proteger da luz. Lacan assevera não ser por este mecanismo que opera o mimetismo. É a Caillois (1962CAILLOIS, R. Medusa y cía.: pintura, camuflaje, disfraz y fascinación en la naturaleza y en el hombre. Barcelona: Seix Barral, 1962.) que ele recorre para dizer que a Crapella Acanthifera é invisível não porque se coloca de acordo com um fundo, mas porque se malha, assim como a forma manchada do briozoário: “é aí que está o móvel original do mimetismo” (LACAN, 1964/1988, p. 97). Para Lacan, assim como para Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.), as manchas, como conceito no mimetismo, seriam estes elementos que fazem com que o animal desapareça. O ser vivo, no mimetismo, faz sua impressão no mundo, inscreve-se nele. É isso que Lacan (1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11)) chama de inscrição, inserção no quadro. O quadro, no plano natural, é o fundo manchado, sarapintado, sobre o qual o animal, ao desaparecer, faz sua inscrição: “é neste domínio [do mimetismo], com efeito, que se apresenta a dimensão pela qual o sujeito tem como inserir-se no quadro” (1964/1988, p. 98, colchetes nossos).

O animal buscaria uma inscrição, inscrição esta que, em Lacan (1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11)), o insere no quadro. O que lhe permitiria fazer isso? A inscrição se faz por meio dos seguintes elementos: o uso das manchas (sarapintar-se, em Lacan; cores obliterativas, em Thayer), o anteparo (opacidade, em Lacan; contra-sombreamento obliterativo, em Thayer) e por meio daquilo que torna tudo isso possível: “o olhar é aquilo que introduz o anteparo e a necessidade do sujeito se inscrever no quadro”4 4 No original: “Dans ce champ de l’Autre le regard est ce qui introduit l’écran et la necessite que le sujet s’inscrive dans le tableau”. (LACAN, 1965, p. 255, tradução nossa). A inscrição no quadro seria, portanto, entrar no espetáculo do mundo, tornar-se espetáculo com o mundo, não como espectador separado (que somente observa), mas como criatura olhada, capturada pela luz como olhar (MILLER, 2005MILLER, J. A. Silet: os paradoxos da pulsão. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.). Dito de outro modo, um efeito do mimetismo que só ocorre por haver algo que olha:

É a vivência desta mudança de agente da visão em objeto do olhar que se trata no mimetismo. É vivida como estranha disseminação do corpo no campo da percepção. Mistura o corpo próprio à cena do mundo para ressurgir como um olhar externo. “O que determina fundamentalmente o visível é o olhar que está do lado de fora”, diz Lacan. (BECKER, 2015BECKER, A. L. Corpo (en) cena: o risco de cada um. Appoa, n. 48, 2015.).

Como vimos anteriormente, a luz é o que garante ao animal a possibilidade do engodo, isto é, desaparecer ilusoriamente através de suas cores. Ao nosso ver, o que Lacan mostra via mimetismo é que a luz fornece tanto a possibilidade de ocultamento (da Crapella que se sarapinta e desaparece em ambiente natural), como a possibilidade de captura (a luz no apólogo da sardinha). Esse segundo fator se alinha com as formulações de Lacan sobre a presença de algo no quadro que nos insere nele, nos representando como capturados: “enquanto sujeito, estamos para dentro do quadro literalmente chamados, e aqui representados como pegos” (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 91).

O desaparecimento radical no olhar: reverberações ou cintilações analíticas

No mundo animal, o ato de malhar-se pode ser considerado adaptativo e não adaptativo, Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.) deixa em aberto aos seus leitores esta decisão. A mancha como aspecto que permite uma inscrição adaptativa poderia ser lida da seguinte forma: o sucesso evolutivo de um animal como o tigre (Panthera tigres) repousa não só em sua astúcia como felino, mas no fato de que, por conta de suas manchas, sua presa não é capaz de vê-lo. Nesta leitura, que se apoia em Thayer sem se comprometer com o nervo de sua questão, entendemos que algo de importante se perde. O que se perde é o fato de que, nas cores do animal, o que pode estar sendo buscado é o desaparecimento para além do logro, como no caso dos flamingos vermelhos que se expõem aos olhares dos predadores fora de sua janela ilusória. O que seria esse além do logro, impelido pela inscrição, impelido pelo tornar-se mancha? Ao nosso ver, a lógica do tornar-se mancha (através das cores) não é simplesmente imitar qualquer coisa ou sobreviver mais um dia, mas sim perder a forma, fixar-se como captura no mundo, representar-se como apreendido:

Cada vez que se trata da imitação [mimética], guardemo-nos de pensar depressa demais no outro que seria assim dito imitado. Imitar é sem dúvida reproduzir uma imagem. Mas fundamentalmente é, para o sujeito, inserir-se numa função cujo exercício o apreende. (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 98, colchetes nossos).

Entendemos que Lacan (1964/1988) se aproxima de Thayer (1909THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.) enquanto pensa um recorte do olhar como este elemento que torna possível a inscrição no quadro, isto é, como função de um princípio de captura, um princípio fixador. A luz como olhar e o olhar como luz, captura de um modo que petrifica, fotografa: “O olhar, em si, não apenas termina o movimento, mas o cristaliza” (LACAN, 1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 117). Este terminar do movimento não possuiria ressonância com aquilo que Thayer menciona como a necessidade de que haja, em um momento ou em outro, a imobilidade para acentuar a invisibilidade? É como no quadro Os embaixadores, de Holbein, a partir de um movimento específico, a saída de um ponto a outro, podemos ver e ser capturados pelo olhar na caveira: “A caveira é o olhar do quadro olhando para o espectador. Este, de observador, torna-se visto. É o quadro quem o olha” (QUINET, 2002QUINET, A. Olhar a Mais, Um. Rio de Janeiro: Zahar , 2002., p. 181). Sobre um dos modos de potência do olhar, Lacan afirma: “é o que tem por efeito parar o movimento e literalmente matar a vida” (1964/1988LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964).Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988, (O Seminário, 11), p. 117). O olhar, em uma de suas funções, poderia realizar esse modo de desaparecimento radical, próprio de sua “função antivida, antimovimento” (ibidem, p. 114). Essa função antivida parece um dos pontos críticos do entendimento de olhar concebido por Lacan, ao menos no seminário livro 11. No espetáculo do mundo, existe algo no olhar como luz que parece operar em um nível que, no modo como Lacan e Thayer nos fazem sentir, pretende em sua captura obliterar.

Dito isso, para nós, todo o jogo de mimetismo só ganha sentido - se é que ele tem algum - ao se introduzir um recorte do olhar tal como Lacan (1964/1988) o concebe, isto é, como antivida, antimovimento: desaparecimento radical.

Figura 6
Contra-sombreamento obliterativo experimental no estúdio de Thayer

Do mesmo modo, parece-nos razoável supor que, ao homem, também é dada esta capacidade de desaparecer. Não será sem razão que, no final de sua vida, Thayer se engajará na aplicação sistemática da camuflagem na guerra (Primeira Guerra Mundial), isto é, conforme a antivida por excelência5 5 Em 1915, Thayer propõe o emprego da coloração disruptiva ao governo americano em sua frota naval, algo que mais tarde se tornou comum em navios militares e comerciais durante a Primeira Guerra. .

No que se refere a Lacan, sobretudo a partir desses recortes do seminário 11, o olhar se desenvolverá e ganhará o alcance de objeto (a ponto de Miller o conceber como o objeto por excelência) (MILLER, 1995MILLER, J. A. A lógica na direção da cura. Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano. Belo Horizonte: EBP, 1995.). Do ponto de vista clínico, a temática abre espaço para as reflexões clínicas de como o olhar comparece para o sujeito: como edificador da imagem do corpo, mas também como disruptor possível do mesmo (o olhar como aquilo que encarna o furo real da imagem), pois integrado na dinâmica do mau encontro (tiquê) e do traumático. Outro alcance retroativo possível desta temática do engodo e da captura do olhar é pensá-la integrada à dinâmica do seminário 4, isto é, onde a criança, em seu engodo de ocupar o lugar de falo para a mãe6 6 “Esta é a etapa em que a criança se engaja na dialética intersubjetiva do engodo! Para satisfazer o que não pode ser satisfeito, a saber, esse desejo da mãe que, em seu fundamento, é insaciável, a criança, por qualquer caminho que siga, engaja-se na via de se fazer a si mesma de objeto enganador. Este desejo que não pode ser saciado, trata-se de enganá-lo” (LACAN, 1957/1995, p. 198). , pode se ver capturada pelo enigma do desejo do Outro (descrito em diferentes momentos do ensino lacaniano como o olhar opaco do louva-a-deus). A temática do olhar como objeto nocivo capaz de interromper o movimento do corpo e sobretudo da palavra pode permitir paralelos clínicos elucidadores na dinâmica da psicose, como Didier-Weill busca articular em Os três tempos da lei (1997).

Uma articulação sistemática de como a atividade do engodo (a busca por enganar o Outro) se articula ao mau encontro do olhar, seja na perspectiva etológica, clínica ou cultural, poderia abrir espaço para a reflexão do peso dos dois elementos (engodo e captura) na formação do sujeito: tal como Perseu surge a partir de Medusa.

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  • THAYER, G. H. Concealing-coloration in the animal kingdom: an exposition of the laws of disguise through color and pattern: being a summary of Abbott H. Thayer's discoveries. Nova York: Macmillan Company, 1909.
  • 1
    Fazendo ressonância com a asserção de Lacan: “em minha existência sou olhado de toda parte” (LACAN, 1964/1988, p. 73).
  • 2
    “Alguns só querem ver, no registro das colorações [mimética], fatos de adaptação diversamente conseguida. Mas os fatos demonstram que quase nada da ordem da adaptação - tal como ela é vista ordinariamente como ligada às necessidades de sobrevivência - quase nada disso está implicado no mimetismo o qual, na maioria dos casos, se mostra seja inoperante, seja operando estritamente em sentido contrário do que quereria o resultado presumidamente adaptativo” (LACAN, 1964/1988, p. 101, colchetes nossos).
  • 3
    No original: “Mimicry makes an animal appear to be some other thing, whereas this newly discovered law makes him cease to appear to exist at all”.
  • 4
    No original: “Dans ce champ de l’Autre le regard est ce qui introduit l’écran et la necessite que le sujet s’inscrive dans le tableau”.
  • 5
    Em 1915, Thayer propõe o emprego da coloração disruptiva ao governo americano em sua frota naval, algo que mais tarde se tornou comum em navios militares e comerciais durante a Primeira Guerra.
  • 6
    “Esta é a etapa em que a criança se engaja na dialética intersubjetiva do engodo! Para satisfazer o que não pode ser satisfeito, a saber, esse desejo da mãe que, em seu fundamento, é insaciável, a criança, por qualquer caminho que siga, engaja-se na via de se fazer a si mesma de objeto enganador. Este desejo que não pode ser saciado, trata-se de enganá-lo” (LACAN, 1957/1995, p. 198).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2022
  • Aceito
    09 Nov 2023
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