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A INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA COMO ATO CRIATIVO

The psychoanalytic’s interpretation as a creative act.

RESUMO:

Este trabalho pretende demonstrar que, em Freud, a interpretação se configura como um ato criador de realidades. Em nosso percurso, partimos do exame das políticas da representação no mundo antigo para, em seguida, apontarmos as divergências entre o estatuto da interpretação em Freud e em Artemidoro. Ao final, nos interessa destacar que a interpretação analítica não descortina, mas funda, retroativamente, o passado.

Palavras-chave:
Freud; interpretação; psicanálise

Abstract:

This paper intends to demonstrate that, on the psychoanalytic field, the interpretation is itself an act of creation. Starting from the analysis of the Ancient World’s representation politiques, latter on we highlight some of the differences between the use of the interpretation in Freud and in Artemidorus. As we demonstrate in the end of this paper, the psychoanalytic interpretation doesn’t reveal the past but establishes it retroactively.

Keywords:
Freud; interpretation; psychoanalysis

[…] mas o que você acaba lembrando nem sempre é

a coisa que viu.

Julian Barnes, O sentido de um fim

INTRODUÇÃO

Entre os anos letivos de 1915-1916 e 1916-1917, na Universidade de Viena, Freud proferiu suas Conferências introdutórias (FREUD, 1916FREUD, S. Conferências introdutórias à psicanalise (1916-1917) (1917). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014./2014). Havendo começado pela exposição de suas descobertas relativas aos atos-falhos, ele passaria, em seguida, ao exame dos sonhos. Mas a transição para o tema seguinte não se daria sem que antes ele houvesse definido a psicanálise como uma prática clínica singular, cuja aplicação resultava desprovida de garantias de eficácia. Tal como fez notar à sua audiência, todavia, a desconfiança e a hostilidade que sua invenção atraiu sobre si desde a sua origem não se deviam à incerteza do sucesso terapêutico ou mesmo às dificuldades de transmissão que lhe eram inerentes. O repúdio sofrido pela psicanálise estaria ligado, antes de tudo, a duas de suas teses fundamentais: a) a afirmação de que “[...] os processos psíquicos são, em si, inconscientes” (FREUD, 1916FREUD, S. Conferências introdutórias à psicanalise (1916-1917) (1917). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014./2014, p. 28); e b) a descoberta de que a sexualidade humana, perversa e polimorfa, encontra-se tão implicada na etiologia dos sintomas neuróticos quanto nas mais importantes realizações da civilização.

A história documentada do movimento psicanalítico, por sua vez, revela um Freud muito pouco inclinado a fazer concessões que favorecessem a recepção de suas afirmações mais polêmicas. Cismas internas ou externas nunca o levaram a substituir seus pontos de vista originais por outros mais palatáveis. Não se submeter ao gosto comum conjugava-se, nesse caso, com a obstinada opção de Freud pelo resto; tal como ele afirma, a psicanálise privilegia justamente “[...] aqueles eventos modestos, descartados pelas demais ciências como demasiado insignificantes - o refugo, por assim dizer, do mundo dos fenômenos” (FREUD, 1916/2014, p. 34). Desde o princípio, interessa-lhe aquilo que foi rejeitado pela opinião comum: os aparentemente insignificantes acontecimentos da vida cotidiana, tais como os sonhos ou os lapsos de linguagem. Em sua investigação do inconsciente, Freud valoriza precisamente aquilo que preferiríamos nunca ter de assumir como nossos: aquilo que surge inesperado no espaço aberto entre a intenção arquitetada e o ato que, sempre aquém ou além da motivação que o precede, mostra-se falhado. Uma vez admitida a hipótese do inconsciente, Freud propõe-se a interrogar o sentido daquilo que se deu à revelia da intenção visada. É imperativo interpretar, traduzir. Isso porque “o sujeito (do inconsciente) só se apreende nos efeitos da fala” (GOLDEMBERG, 2006GOLDEMBERG, R. Política e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006., p. 23, grifo do autor).

Dezesseis anos depois da publicação do texto de fundação da psicanálise, Freud retornava àquele que havia sido o objeto primeiro de sua investigação. E não o fazia, entretanto, para celebrar a boa acolhida de sua descoberta, afinal, seguia obrigatório manejar as dificuldades inerentes a esse objeto e combater sistematicamente o descrédito que lançava sobre ele parte considerável da opinião esclarecida. Julgado supérfluo por uns, odiado por outros, os sonhos já haviam aberto o caminho para a compreensão da gramática do inconsciente: “Depois de completado o trabalho de interpretação, o sonho se revela como uma realização de desejo” (FREUD, 1900FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2012./2012, p. 142, grifos do autor). Distinto do sujeito cartesiano (aquele no qual vemos coincidirem, no momento fecundo do cogito, o pensamento e o ser), o sujeito do inconsciente descoberto por Freud afirma-se intervalar, hiato aberto entre o eu consciente e a cadeia significante que se articula à revelia de toda vontade: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso” (LACAN, 1998LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (O seminário, 11), p. 521).

A exemplo do que já havia ocorrido na poética de Mallarmé, o inconsciente descoberto por Freud, por sua vez, violenta os esquemas representativos da mímesis clássica. A linguagem sobre a qual ele se estrutura nada tem de nobre ou de ultraclaro: ela remete antes ao que há de abjeto no corpo e àquilo que, na linguagem, se articula à revelia das intenções do falante. À mensagem cifrada veiculada pelos sonhos e pelos sintomas, Freud interpõe um esforço de leitura que, muito embora tenha começado pela triunfante certeza de que os sonhos portavam um sentido a priori, encaminha-se logo para a constatação de que o sentido que resulta de toda interpretação é, no limite, uma invenção - repleta de consequências. Ao longo deste trabalho, pretendemos demonstrar que, em Freud, diferente do que ocorre aos seus predecessores, a interpretação não se reduz à revelação de algo já dado, mas consiste sempre em um ato criador. Partindo do contraste entre as políticas da representação em Homero e na ToráTorá. Torá: a lei de Moisés. Trad. Isolina Viana. São Paulo: Editora Sêfer, 2001., passaremos em seguida à técnica da interpretação em Artemidoro de Daldis e em Freud. Da contraposição entre o modelo antigo (centrado na figura do intérprete) e o método freudiano (centrado na suposição de que aquele que fala somente saberá o que diz ao receber sua mensagem do Outro), concluiremos que a interpretação funda, retroativamente, o passado.

POLÍTICAS DA REPRESENTAÇÃO

A fim de legitimar, diante de sua audiência na Universidade de Viena, a tese segundo a qual o sonho é a realização de um desejo inconsciente, interessava a Freud eliminar qualquer vínculo entre a estratégia interpretativa adotada pela psicanálise e aquela de que se serviram os misticismos que a precederam. Interrogando a possível origem do desdém da ciência pelo sonho, ele conclui: “[...] acredito que ele é uma reação à tendência a superestimá-lo verificada em épocas passadas” (FREUD, 1916FREUD, S. Conferências introdutórias à psicanalise (1916-1917) (1917). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014./2014, p. 113). “Para os gregos e outros povos orientais, empreender uma campanha militar sem um intérprete de sonhos pode, por vezes, ter parecido tão impossível quanto, hoje em dia, sem aviões de reconhecimento” (idem), ele acrescenta em seguida. Supervalorizados no passado, com o advento da ciência moderna, os sonhos caíram no descrédito da opinião esclarecida, que passou então a considerá-los mero resquício de tempos dominados pelos obscurantismos. No entanto, não se pode perder de vista que, tal como argumenta Mario Vargas Llosa, “os homens não vivem somente da verdade. [...] A ficção enriquece sua existência, completa-a e, transitoriamente, compensa-os dessa trágica condição que é a nossa: a de desejar e sonhar sempre mais do que podemos alcançar” (LLOSA, 2004LLOSA, M. V. A verdade das mentiras. São Paulo: Arx, 2004., p. 29). Assim, tão necessário quanto desvincular a psicanálise de todo e qualquer misticismo, afirmando-a enquanto prática laica e esclarecida, era fazê-lo sem cair em reducionismos simplistas. Freud está ciente de que, por mais delirante que seja a crença em qualquer narrativa, nos termos propostos por Llosa: “Ela funda suas raízes na experiência humana, da qual se nutre e à qual alimenta” (LLOSA, 2004LLOSA, M. V. A verdade das mentiras. São Paulo: Arx, 2004., p. 21). Cada ficção cumpre, portanto, o objetivo de remediar as insuficiências da vida tal como ela se apresenta a nós: “Seres mutilados, a quem foi imposta a atroz dicotomia de ter uma única vida, e os apetites e as fantasias de desejar outras mil” (idem).

No que concerne especificamente a esse tópico, vale destacar que: a) na referência de Freud aos antigos, temos em perspectiva, basicamente, duas políticas da representação, a homérica (diretamente citada por ele nessa conferência) e a judaica (à qual ele já havia se referido na Traumdeutung); b) conforme veremos mais adiante, tais matrizes literárias constituem dois modos radicalmente distintos de conceber a representação; e c) a opção por aquilo que seus contemporâneos haviam rejeitado não se deu sem profundas modificações e serviu a Freud mais como impulso para a sua pesquisa do que como ponto de chegada de suas formulações. A mais significativa dessas modificações diz respeito ao método empregado pelos antigos para a leitura dos sonhos e aquele do qual se serve a psicanálise. Antes de passar ao método freudiano, entretanto, tomemos, a título de exemplo, o sonho de Agamêmnon:

Deuses e os homens de elmo equinoforme ornados dormiam todos, toda a longa noite. Zeus, só ele não cedia à hipnose do sonho, mas ponderava: como, nos navios acaios, muitíssimos matar, honrando assim Aquiles. Decide o coração (e lhe parece bem): enviar - ruinoso - o sonho ao atreide Agamêmnon. “Ôneiros! [o sonho]” chamou (e as asas-frases tatalaram): “Alcança, oniro-fúnebre, os navios aqueus. Junto ao leito do Atreide, diz-lhe, tal e qual: Põe os Aqueus, cabelos-longos, já! em armas, todos a tomar Troia, pólis de amplas ruas: que os Imortais, do Olimpo aonde habitam, não mais discrepam, nenhum deles. (HOMEROHOMERO. Odisseia. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011., Canto II, v. 1-14).

No segundo canto da Ilíada, Zeus serve-se do sonho (Ôneiros) para transmitir ao comandante das forças gregas a mensagem vinda do Olimpo. Nos versos seguintes, caberá ao próprio Agamêmnon proclamar junto aos seus comandados a decisão tomada pelos deuses no tocante à campanha que viria a ser empreendida contra Troia. Nenhuma hesitação, nenhuma dúvida: o enredo da epopeia “[...] é como a própria vida humana: não foi inventado [...]. Não é preciso explicar nem interpretar nada” (CARPEAUX, 2012CARPEAUX, O. M. A literatura greco-latina. São Paulo: Leya, 2012., p. 23). Isso porque, tal como assinala Erich Auerbach, Homero desconhece segundos planos: “O que ele narra é sempre somente presente, e preenche completamente a totalidade da cena e da consciência do leitor” (AUERBACH, 2007AUERBACH, E. A cicatriz de Ulisses. In: AUERBACH, E. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 1-20., p. 3). A representação homérica dispensa ao leitor o artifício da decifração. Isso, na medida em que adota como imperativo formal “[...] não deixar nada do que é mencionado na penumbra ou inacabado” (idem). Nenhum vazio a ser preenchido, nenhum vão que tivesse de ser vencido por meio do salto interpretativo: “[...] há um desfile ininterrupto, ritmicamente movimentado, dos fenômenos, sem que se mostre, em parte alguma, uma forma fragmentária ou só parcialmente iluminada, uma lacuna, uma fenda, um vislumbre de profundezas inexploradas” (AUERBACH, 2007ARTEMIDORO. Sobre a interpretação dos sonhos. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 4). Isso explica o fato de que, em toda a Ilíada, os deuses figuram pura e simplesmente como “ideais humanos”, por meio dos quais revela-se “[...] não só a condição humana, mas também a capacidade dos homens de superá-la” (CARPEAUX, 2012CARPEAUX, O. M. A literatura greco-latina. São Paulo: Leya, 2012., p. 26). Se é assim, seria um equívoco tomar a certeza infundida no comandante grego como produto de seu misticismo. Conforme a política da representação adotada por Homero, a certeza anunciada por Agamêmnon é, pura e simplesmente, expressão da vontade humana de transpor os obstáculos da vida.

Sigamos ainda com Homero. Passados vinte anos, Odisseu está de volta a Ítaca. Disfarçado, ele retorna vinte anos após sua partida. Embora a anciã Euricléia tenha descoberto sua verdadeira identidade ao tocar-lhe, enquanto lavava-lhe os pés, a cicatriz de sua coxa, para a sua mulher, Penélope, ele permanece irreconhecível. Acolhido como hóspede em seu próprio palácio, conforme determina a tradição, ele será instado a manifestar seu entendimento acerca do sonho que sobreveio à anfitriã:

Mas peço que interpretes este sonho, que ouças: em casa vinte gansos comem grãos, à margem d´água, espetáculo que me enche de alegria: uma imensa águia, bico adunco, sai do monte e trunca-lhes o colo e os mata. Numa pilha jazem no paço e a águia torna ao vasto céu. Pus-me a chorar no sonho, a lamentar-me a acaios belicomados postam-se ao redor: às lágrimas, eu deplorava a eliminação do gansos. Mas a águia volta e pousa sobre o teto imenso, virando para mim, com voz humana: ‘Força, filha de Icário hiperínclito! Não é um sonho, mas visão veraz que há de cumprir-se. Os gansos são os pretendentes e eu a águia fui para ti como esposo agora torno e darei fim à trupe de cortejadores.’ (HOMERO, Canto XIX, v. 535-550).

Ao que Odisseu responde: “Senhora,/ não poderia interpretar o sonho em outra/ direção da que o teu marido te apontou/ para falar de sua ação: o fim de todos/ os pretendentes se aproxima, nem um só/ escapará da Quere morticida” (HOMEROHOMERO. Odisseia. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011., Canto XIX, v. 554-559). Assim como no episódio do sonho de Agamêmnon, é certamente espantoso que os deuses comuniquem aos mortais aquilo que está por vir. No entanto, em ambos os casos, nada do que acontece encontra-se velado para aquele que acompanha o desenrolar da ação. Na cena em que descreve ao hóspede o seu sonho, Penélope se faz conhecer de modo integral - pois ainda que ela própria desconheça a verdadeira identidade de seu interlocutor, o leitor sabe perfeitamente tratar-se de Odisseu. Ao relatar-lhe o sonho, Penélope expressa o estado dividido em que se encontra: anseia pelo retorno do marido ao mesmo tempo em que desagrada-lhe perder o prestígio daqueles que a cortejam. O que não pode ser visto por ela (e não pôde ser visto também por Euricléia, que apenas desvendou-lhe a identidade pelo tato) encontra-se, todavia, explícito para o espectador. Assim, por mais complexos que sejam os aspectos psicológicos implicados em uma dada questão, toda a matéria narrada apresenta-se claramente articulada para o leitor.

Tal como afirma Auerbach, “a singularidade do estilo homérico fica ainda mais nítida quando se lhe contrapõe um outro texto, igualmente antigo, igualmente épico, surgido de um outro mundo de formas” (AUERBACH, 2007AUERBACH, E. A cicatriz de Ulisses. In: AUERBACH, E. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 1-20., p. 5). O episódio do sacrifício de Abraão (GÊNESIS, cap. XXII) é paradigmático desse modo particular de representação. Nele, a cena encontra-se apenas parcialmente iluminada. Abruptamente, somos apresentados aos personagens sem que nada nos seja dito a respeito dos seus motivos ou intenções. Diferente de Homero, que “[...] apesar dos muitos saltos para trás ou para diante, deixa agir o que é narrado, em cada instante, como presente único, sem perspectiva” (AUERBACH, 2007ARTEMIDORO. Sobre a interpretação dos sonhos. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 9), a narrativa judaica encontra-se inevitavelmente ligada a acontecimentos anteriores sem os quais ela jamais poderia ser compreendida. Trata-se de uma questão fundamentalmente linguística, afinal “a língua hebraica […] não possui o tempo presente” (OZ, 2009OZ, A. A caixa-preta. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 135). No hebraico antigo, diferente do que acontece em sua versão moderna, a inexistência de verbos empregados no tempo presente denota uma experiência sempre condicionada pelo passado. Por esse motivo, “o modo de agir de Abraão explica-se não só a partir daquilo que lhe acontece momentaneamente ou do seu caráter […], mas a partir de sua história anterior” (AUERBACH, 2007ARTEMIDORO. Sobre a interpretação dos sonhos. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 9). Para ele, existe apenas o particípio: a ação encerrada, a promessa feita pelo Deus dos patriarcas e dos profetas. A ação concluída, todavia, segue influenciando secretamente qualquer que seja o presente narrado: a atemporalidade divina encontra-se coagulada no cutelo de Abraão, desde sempre a pender sobre o pescoço do filho Isaac.

O caráter enigmático e insondável da noção judaica de Deus, ao qual não são aplicáveis categorias como o tempo e o espaço, não é outra coisa senão “[...] sintoma do seu modo particular de ver e de representar” (ibidem, p. 6). Em Homero, a ausência de planos superpostos faz com que possamos analisá-lo sem que seja necessário interpretá-lo: não existe diferença entre aquilo que o poeta canta e aquilo que é. No breve episódio envolvendo Abraão e seu filho, acontece exatamente o oposto: a narrativa desdobra-se em uma multiplicidade exorbitante de camadas, de modo que é sempre necessário interpretar aquilo que subjaz a cada um dos diferentes estratos da trama; no texto bíblico, a linguagem nunca diz unicamente aquilo que ela enuncia. Disso, resulta a necessidade religiosa de afirmar uma determinada interpretação não apenas como verídica, mas como a única verdadeira. Ao indiferente Homero, contrapõe-se o obstinado esforço judaico para alcançar aquele sentido mais fundamental que subjaz a todo enunciado sagrado.

A indiferença grega, todavia, não é gratuita; juntamente com o rei, no período homérico, o poeta figurava enquanto um mestre da verdade. De seu lugar, ele pronunciava apenas “[...] a palavra digna”, aquela que coincidia com “[...] uma realidade natural, uma parte da physis” (DETIENNE apud LIMA, 2003, p. 33). Somente com o advento da tragédia (em fins do século VI a.C.), a reflexão sobre os conflitos humanos passou a prevalecer sobre a concepção de verdade (alétheia) unívoca, aquela da nobreza, cantada até então pelo poeta. Essa mudança de perspectiva, entretanto, manteve intocada a noção clássica de mímesis, concebida enquanto “um uso da linguagem que tinha por função sublimar a realidade, enobrecê-la, dimensioná-la quanto a alvos prévios” (LIMA, 2003, p. 166). Até o surgimento da modernidade, será esta a concepção estética prevalente: enobrecer e iluminar, a fim de melhor orientar o homem e resguardá-lo da arbitrariedade do mundo (LIMA, 2003).

A exemplo do que já havia ocorrido na poética de Mallarmé, o inconsciente descoberto por Freud, por sua vez, violenta os esquemas representativos da mímesis clássica. A linguagem sobre a qual ele se estrutura nada tem de nobre ou de ultraclaro: ela remete antes ao que há de abjeto no corpo e àquilo que, na linguagem, se articula à revelia das intenções do falante. À mensagem cifrada veiculada pelos sonhos e pelos sintomas, Freud interpõe um esforço de leitura que, muito embora tenha começado pela triunfante certeza de que os sonhos portavam um sentido a priori, encaminha-se logo para a constatação de que o sentido que resulta de toda interpretação é, no limite, uma invenção - repleta de consequências.

A TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO EM ARTEMIDORO E FREUD

Entre os autores que se ocuparam do tema da interpretação dos sonhos, Artemidoro de Daldis destaca-se como um dos mais notáveis. Na Dedicatória a Cassius Maximus, ele reitera a ambição de legar à posteridade um tratado de oneirocrítica que teria o mérito de corrigir os mais importantes equívocos metodológicos de seus predecessores, entre os quais destacam-se a escassez de dados tomados da experiência assim como a falta de uma revisão suficientemente ampla da literatura. O trabalho de investigação empreendido por Artemidoro, em seus escritos que versam Sobre a interpretação dos sonhos (ARTEMIDORO, 2009ARTEMIDORO. Sobre a interpretação dos sonhos. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.), serve-se de vasto repertório de autores e obras, além de apresentar ao leitor uma farta quantidade de experiências coletadas dos relatos provindos da Grécia e da Itália, mas também da Ásia e das ilhas mais populosas de seu tempo. Escrito no séc. II, o texto que nos chegou foi definido por Freud como “[...] o mais completo e mais cuidadoso estudo sobre a interpretação dos sonhos no mundo greco-romano” (FREUD, 1900FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2012./2012, p. 119). Excetuada a diferença estabelecida entre sonho simples (não preditivo) e sonho onírico (premonitório), é possível identificar ao menos dois pontos de convergência entre as opiniões apresentadas por Artemidoro e Freud: 1) em ambos os casos, a matéria dos sonhos resulta da mescla entre os elementos da realidade e aqueles afetivos; e 2) ambos salientam a influência secreta dos desejos na formação onírica (“para a multidão, tais como forem seus temores e desejos durante o dia, tais serão as coisas que verão em sonhos” (ARTEMIDORO, 2009ARTEMIDORO. Sobre a interpretação dos sonhos. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 202)). A existência de tais semelhanças torna as diferenças entre ambos ainda mais significativas. Artemidoro reivindica amplo privilégio à figura do intérprete. Tal como ele afirma, ao intérprete caberia primeiramente a tarefa de distinguir entre sonhos simples e sonhos oníricos e, em seguida, apresentar a interpretação adequada para aqueles sonhos que provarem ser do segundo tipo. Freud, por sua vez, nunca reivindicou semelhante privilégio para o psicanalista. Tal como ele argumenta, nenhum significado inconsciente estaria disponível para o intérprete em estado a priori. Apenas por meio da livre associação empreendida pelo paciente é que o trabalho analítico poderia avançar na direção do recalcado: cujo sentido, a priori, é tão imprevisto para o paciente quanto para o seu psicanalista.

No que diz respeito à técnica interpretativa, as diferenças são ainda mais notáveis. O princípio fundamental da arte interpretativa de Artemidoro, tal como Freud o define, “[...] é idêntico à magia, o princípio da associação” (FREUD, 1900FREUD, S. Conferências introdutórias à psicanalise (1916-1917) (1917). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014./2012, p. 119). Decorre disso que, no sistema elaborado por Artemidoro, “o objeto onírico significa aquilo que ele lembra. Aquilo que lembra ao intérprete, bem entendido!” (FREUD, 1900FREUD, S. Conferências introdutórias à psicanalise (1916-1917) (1917). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014./2012, p. 119). Nada havia nisso de surpreendente, afinal

Até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a gênese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. A pintura imitava o espaço. E a representação - fosse ela festa ou saber - se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de enunciar-se e de formular seu direito de falar. (FOUCAULT, 2002FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 23).

Freud, ao contrário, define assim o método empregado em A interpretação dos sonhos: “a técnica que exponho […] se afasta da técnica antiga no ponto essencial de impor o trabalho interpretativo à própria pessoa que sonha. Ela não pretende considerar as ideias que ocorrem ao intérprete, e sim aquelas que ocorrem à pessoa acerca do elemento onírico em questão” (FREUD, 1900FREUD, S. Conferências introdutórias à psicanalise (1916-1917) (1917). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014./2012, p. 119). Ao esquema interpretativo fixo e centrado na figura do intérprete, a psicanálise opõe um trabalho orientado pela tese de que a verdade, sempre não-toda, surge da equivocação. Decorre disso que o trabalho do analista possa ser definido como um esforço para desestabilizar aqueles sentidos que, cristalizados, orientam as narrativas pessoais sob a forma dos significantes-mestre. Sua meta é o corte, cujas consequências são: a) a destituição do significante que opera enquanto fundamento de uma dada cadeia discursiva; e b) a emergência do sujeito enquanto puro acaso, efeito fortuito de linguagem. Nesse ponto, surge a última diferença entre Artemidoro e Freud: para o primeiro, interpretar significa descortinar um sentido que se encontra à espera, enquanto, para o segundo, interpretar significa realizar discursivamente aquilo que, até aquele momento, permanecia irrealizado.

A INTERPRETAÇÃO COMO ATO CRIADOR

O hábito verbal de designar o recalcado como aquilo que deveria ser trazido à tona pela análise somado à analogia entre o trabalho do analista e aquele do arqueólogo acabaram fazendo com que a interpretação analítica se consolidasse na opinião comum como o equivalente de um descortinamento. Todavia, tanto para a teoria quanto para a prática clínica da psicanálise, são muitos os prejuízos que resultam de uma tal concepção. No que concerne estritamente à teoria, decorre dessa comparação que o inconsciente seja tomado como mero depósito de experiências, dentre as quais destacam-se aquelas que remontam à primeira infância. Pensado nesses termos, o conceito fundamental sobre o qual se assenta todo o edifício conceitual da psicanálise não sobreviveria à crítica sartreana que o acusara ser apenas um ato de má-fé. Conforme argumentava o filósofo francês em relação à teoria freudiana,

os casos a que alude em sua obra testemunham uma má-fé patológica de que o freudismo não daria conta. Trata-se por exemplo de mulheres que se tornaram frígidas por decepção conjugal, ou seja, lograram mascarar o prazer buscado pelo ato sexual. Note-se, em primeiro lugar, que não se trata de dissimular complexos profundamente soterrados em trevas semifisiológicas, mas condutas objetivamente verificáveis que elas não podem deixar de constatar quando as realizam […]. (SARTRE, 1997SARTRE, J. P. O ser e o nada: ensaio de fenomenologia ontológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997., p. 100).

Do ponto de vista prático, assim postulada a interpretação, a análise não seria outra coisa senão um exercício de memória, fadado a resultar, nos casos mais bem-sucedidos, em uma recordação em relação à qual o sujeito não teria outra opção senão resignar-se: aquela do evento traumático. Mas uma leitura mais atenta dos textos de fundação da psicanálise, a exemplo daquela empreendida por Jacques Lacan, levaria à conclusão de que o inconsciente freudiano é radicalmente outro. Afinal, conforme o psicanalista francês salientou em diferentes momentos de seu ensino, a novidade introduzida por Freud consistiu precisamente em formular o inconsciente enquanto o não-realizado e que, por isso mesmo, não-cessa-de-não-se-escrever sob a forma lacunar dos sintomas neuróticos, dos sonhos e dos atos-falhos, dos lapsos e dos chistes.

Se, conforme amplamente demonstrado por Lacan, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1985, p. 25, grifos do autor), então a interpretação consiste objetivamente em “[...] uma pontuação oportuna que dá sentido ao discurso do sujeito” (LACAN, 1953LACAN, J. A instância da letra no inconsciente (1957). Trad. Vera Ribeiro. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 496-533./1998, p. 253). Pontuação virtualmente capaz de alterar, retroativamente, o sentido de toda uma cadeia significante (afinal, todo S1 pode ser modificado retroativamente por um S2). Muito embora esse detalhe tenha escapado à leitura de muitos dentre os teóricos da psicanálise, a suspeita de que, ao longo de uma trajetória de uma análise, o sujeito é levado a fazer a descoberta de que o passado não se encontra inscrito para ele sob a forma de uma memória absoluta, no entanto, esteve em perspectiva para Freud desde muito cedo. Mais precisamente desde a Carta 52, dirigida a Fliess:

… Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico formou-se por um processo de estratificação: o material presente em forma de traços de memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias - a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos. (FREUD, 1896 /1974, p. 317, grifos do autor).

Nos termos acima apresentados, o psiquismo define-se enquanto uma acomodação apenas provisória e sempre sujeita a rearranjos decorrentes do que Freud designou as “novas circunstâncias”; isto é, a simples introdução de um novo elemento no presente de uma narrativa em análise, uma nova pontuação, teria o efeito de modificar substancialmente os sentidos anteriormente estratificados. Admitida essa tese, a noção de que o tempo se desdobraria em uma única dimensão, diacrônica, torna-se inadequada para pautar o ato analítico; dado o caráter retroativo do sentido, no tempo da análise, a memória revela-se forjada no presente. É exatamente esse ponto de vista que orienta, por exemplo, a leitura freudiana do caso Katharina: narrando sua história, ela não reconhece o ataque do tio como sexual, “(...) apenas muito mais tarde isso se tornou claro para ela” (FREUD, 1893-1896/2016, p. 187). Todavia, uma vez estabelecido o nexo que liga, no presente da narrativa, a história de Franziska à sua, ela poderá fazer-se curada de seus sintomas ao formular que “agora ele fez com ela o que naquela noite e nas outras vezes quis fazer comigo” (ibidem, p. 189), alterando assim o sentido de sua história pessoal. Por isso, conforme salienta Lacan (1953/1998), no trabalho clínico desenvolvido por Freud, a ênfase recai sobre a noção de rememoração:

É que não se trata para Freud, nem de memória biológica, nem de sua mistificação intuicionista, nem da paramnésia do sintoma, mas de rememoração, isto é, de história (…). Sejamos categóricos: não se trata, na anamnese psicanalítica, de realidade, mas de verdade, porque o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes LACANLACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: LACAN, J. Escritos(1953). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a, p. 238-324., 1953/1998, p. 257).

Mas, se a rememoração figura, portanto, como um equivalente da história, cabe salientar que “a história não é o passado. A história é o passado na medida em que é historiado no presente” (LACANLACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: LACAN, J. Escritos(1953). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a, p. 238-324., 1953-1954/1986, p. 21). Assim, mais importante do que os eventos originalmente formadores de um determinado sujeito, “o que conta é o que ele disso recontrói” (ibidem, p. 22) sob a forma de sua narrativa (dentro ou fora da análise). Ponto de vista inteiramente pautado na afirmação freudiana de que, mais importante do que o sonho, é a narrativa sobre o sonho (FREUD, 1900/2012). Acrescente-se a isso que, em razão da retroatividade do sentido, essa narrativa construída no presente de uma experiência com a psicanálise passaria a vigorar enquanto o nó do sujeito, aquele por meio do qual amarram-se as várias cadeias significantes que o constituem: “o centro de gravidade do sujeito é essa síntese presente do passado a que chamamos história” (LACAN-, 19531954/1986, p. 48). Por isso, observa Freud, “se a análise é corretamente efetuada, produzimos nele uma convicção segura da verdade da construção, a qual alcança o mesmo resultado terapêutico de uma lembrança recapturada” (FREUD, 1975FREUD, S. Construções em análise (1937). In: FREUD. S, Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1975. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23) /1937, p. 300). Lembrança que, dadas as suas características, bem “poderiam ser descritas como alucinações” (ibidem, p. 301), cujo paradigma poderia ser encontrado no sonho do Homem dos Lobos. Tal como afima Lacan,

Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde estiver identificado, está licenciado sob uma licença Creative Commons (cc by 4.0) cena primitiva é reconstruída a partir dos entrecruzamentos que se operam no prosseguimento da análise, ela não é revivida. Nada surge na memória do sujeito (…) que possa levar a falar de uma ressurreição da cena, porém tudo impõe a convicção de que ela se deu de fato de tal maneira. (LACANLACAN, J. A instância da letra no inconsciente (1957). Trad. Vera Ribeiro. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 496-533., 1954-1955/1997, p. 222).

Uma vez formulada, é como se esse novo elemento introduzido pela interpretação houvesse estado ali desde sempre, afinal, “a partir do momento em que uma parte do mundo simbólico emerge, ela cria, efetivamente, seu próprio passado” (LACAN, 1954-1955/1997, p. 29). Servindo-se do mal-entendido e da homofonia, a interpretação analítica impõe-se como acontecimento imprevisto cuja principal consequência é recolocar em movimento uma cadeia significante anteriormente imobilizada. Não convêm, portanto, defini-la como uma fala referida a uma realidade prévia (aquela na qual se revelaria o sentido último do desejo do Outro). Tal como gostaríamos de destacar aqui, a intepretação analítica deve poder prescindir dessa ambição da essência, afinal, interpretar é criar.

O GRAU ZERO DA INTERPRETAÇÃO

O inconsciente freudiano não se conforma à concepção segundo a qual a palavra equivale à realidade exata das coisas, nem tampouco partilha da crença resoluta na existência de uma verdade unívoca a ser arrancada das profundezas. Por isso, Lacan dirá: “o inconsciente não é o primordial nem o instintivo e, de elementar, conhece apenas os elementos do significante” (LACAN, 1998LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (O seminário, 11), p. 526). Substituir as formas inertes do discurso (por meio das quais institui-se o par necessário/impossível) por outras, mais móveis, este foi, desde o primeiro momento, o mais explícito esforço de sua clínica. A interpretação analítica, por conseguinte, não oferece uma representação daquilo que, recalcado, ainda que visto não poderia ser notado. Em Freud, a interpretação equivaleria pois, em seu grau zero, ao que Luis Costa Lima assim definiu: um “[...] puro trabalho das palavras, que já não fingem representar o visível, mas visualizam o não visível” (LIMA, 2003, p. 171). À semelhança do poema mallarmaico que já não exige nenhuma “presença prévia que o justifique” (LIMA, 2003, p. 172) , a interpretação freudiana não tem como meta expor uma cena primitiva, mas sim compor “uma cena produzida pela própria tessitura verbal” (ibidem, p. 171), cujas condições de verossimilhança não seriam dadas pela correspondência com o mundo empírico mas, sim, pela própria linguagem.

Ainda que frequentemente definida como uma prática hermenêutica, convém lembrar que uma experiência com a psicanálise não visa desvendar o mais profundo dos sentidos, nem o mais original. A interpretação analítica não constitui, por isso mesmo, a chave por meio da qual o real poderia ser apreendido em toda a sua plenitude. Assumidamente ficcional, ela mais exaspera do que apazigua. Sua ambição consiste em colocar em crise aqueles sentidos fundamentais em torno dos quais circula a narrativa de um determinado sujeito e, com isso, despertar a linguagem do sono dos estereótipos. Em cada caso singular, conforme afirma Lacan, a destituição dos absolutos decorre da assunção subjetiva de que “[...] toda verdade tem uma estrutura de ficção” (LACAN, 1988, p. 22).

Diferente de Bachelard, para quem “[...] o espírito científico deve lutar incessantemente contra as imagens, contra as analogias, contra as metáforas” (BACHELARD, 1996BACHELARD, G. O novo espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Trad. Estrela dos Santos. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.), Freud “[...] reconhece que a língua é um imenso halo de implicações, de efeitos, de repercussões […]” (BARTHES, 2015BARTHES, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2015., p. 21). Disso resulta que a prática inventada por ele implique “[...] fazer ouvir um sujeito ao mesmo tempo insistente e insituável, desconhecido e no entanto reconhecido segundo uma inquietante familiaridade: as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias [...]” (idem). Uma tal atitude linguística resulta incompatível com aquela pretendida pelo cientista: utopia de um enunciado neutro porque desprovido de enunciador. No limite, a interpretação analítica não diz, indiferente, as coisas como elas são nem tampouco revela, inflamada, qualquer verdade última a ser proclamada pelas leituras oficiais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2017
  • Aceito
    20 Dez 2018
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