Acessibilidade / Reportar erro

REVERBERAÇÕES DE UM DISCURSO: MULTIPLICIDADE DAS PESQUISAS EM PSICANÁLISE

Prezados leitores, é com alegria que publicamos o novo volume da Revista Ágora - Estudos em Teoria Psicanalítica. Esta edição é profícua no que se refere à multiplicidade das pesquisas realizadas em psicanálise. Apresentamos ao leitor tanto estudos clínicos, trabalhados com riqueza de casos - os quais relançam o olhar para problemáticas que atravessam a nossa contemporaneidade e, deste modo, contribuem para a compreensão das formas de sofrimento contemporâneo (BIRMAN, 2014BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.; FREUD, 1925/2017FREUD, S. A negativa (1925). Rio de Janeiro: Imago, 2007. (Escritos sobre a psicologia do inconsciente, 3); GREEN, 2017GREEN, A. A psicanálise e o pensamento habitual (1979). In: GREEN, A. A loucura privada: psicanálise de casos-limite. São Paulo: Escuta, 2017, p. 45-68.; LACAN, 1975/1991LACAN, J. R. S. I. Livro 22 (1975). Tradução de Romana M. Ramos Costa para uso interno da Escola Lacaniana de Psicanálise: Rio de Janeiro, 1991.) - quanto estudos teóricos, que articulam a psicanálise à literatura (ASSOUN, 1996ASSOUN, P.-L Littérature et psychanalyse. Paris: Ellipses, 1996.; CALDAS, 2007CALDAS, H. Notas preliminares sobre escrita e estilo em Guimarães Rosa. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.). Escrita e Psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2007.; FREUD, 1908/1989), à filosofia (BUTLER, 2015BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Editora Autêntica 2015.; DESCARTES, 1999DESCARTES, R, Meditações. São Paulo: IFCH/UNICAMP, 1999.; RORTY, 1999RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2)) e à política (BROUSSE, 2003BROUSSE, M-H. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2003.; FREUD, 1921/2020FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Obras incompletas de Sigmund Freud, Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos); LACAN, 1970/2003LACAN, J. Alocução sobre o ensino (1970). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.; MARX, 1867/2013MARX, K. O processo de produção do capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2013. (O capital: crítica da economia política, 1)), ressaltando alguns pressupostos da psicanálise, quais sejam, que ela compreende um corpo teórico, um método de investigação e uma técnica de intervenção (ALTHUSSER, 1984ALTHUSSER, L. Freud e Lacan, Marx e Freud: introdução crítica-histórica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.), e, não menos importante, está imersa em seu tempo, o que nos exige retraçarmos alguns fios da sua história.

No artigo A clivagem e seus embargos na adicção sexual , Ney Klier e Monah Winograd alocam a adicção sexual no universo dos casos fronteiriços, uma vez que caracteriza-se como uma configuração psicopatológica em que o ato sexual adquire teor irrefreável e nocivo, a despeito da compreensão intelectual e possíveis racionalizações do sex-addict sobre o problema. O objetivo deste artigo é investigar a primazia do mecanismo de defesa da clivagem no engendramento da adicção sexual. A partir de uma revisão metapsicológica e da apresentação de duas vinhetas clínicas, os autores destacam o caráter pseudo-reparador da atividade sexual que, sem êxito, visaria suturar fendas no sistema de um ego clivado, estagnado em suas capacidades integrativas e eróticas.

Em A reificação do corpo na imaginarização , Joyce Bacelar e Denise Coutinho propõem uma relação entre a reificação do corpo e o processo de imaginarização, sublinhando que esta última é apenas aludida na obra de Lacan. Tomando como partida algumas apresentações clínicas nas quais prevalece um estado depressivo neurótico, as autoras nos apresentam como hipótese a redução, nessas situações, do sujeito ao próprio corpo, como resposta a certas exigências da cultura contemporânea. Deste modo, o artigo busca lançar luz sobre o automatismo do gozo do corpo no circuito pulsional. Por meio da noção de imaginarização, destaca-se um enquadramento particular que o sujeito dá ao gozo, ao invés de posicionar-se como faltante na relação com o Outro.

Da clínica à filosofia, a construção identitária do Eu permanece em debate, agora a partir da articulação entre filosofia e psicanálise. Érico Andrade, em Do sujeito cartesiano ao sujeito identitário: sobre natureza narcísica do sofrimento, tenciona apresentar a origem do sujeito identitário da psicanálise na filosofia cartesiana, ou, mais precisamente, no sujeito cartesiano. O autor sustenta a tese segundo a qual Descartes funda o sujeito moderno na identidade dele com a consciência que o sujeito guarda para si mesmo de sua própria interioridade. Esse caráter identitário do sujeito cartesiano pode ser entendido em uma ótica psicanalítica, por meio da compreensão de que o ego tenta narcisicamente manter a sua própria integridade. Assim, para Andrade, Descartes inaugura, em certo sentido, o identitarismo por fornecer, com a sua compreensão de sujeito, a base que estrutura o ego na psicanálise, entendido como processo subjetivo de identificação consigo mesmo.

Marcelo Martins Barreira, no artigo A abordagem pós-metafísica e conversacional do self em Richard Rorty, enfoca a relevância de uma dimensão política no psíquico. Em um primeiro momento, aborda as linhas gerais de uma ruptura com modelos filosóficos metafísicos do self, tendo, como exemplo, as críticas de Rorty e Heidegger à “intencionalidade de consciência” de Jean-Paul Sartre; bem como o contraponto rortiano à leitura epistemológica da psicanálise de Paul Ricoeur. Em uma segunda etapa, discute a concepção rortiana de self por mostrar, ao final, seus possíveis limites com a abordagem antipredicativa de self.

Entre a escrita como modo de construção de si vinculada à consciência, que reivindica um sujeito identitário, à escrita como modo de elaboração daquilo que excede o sujeito, passamos ao artigo Trauma, desejo e escrita em Grande Sertão: Veredas, de Filipe Ramalheiro Venâncio de Souza e Caciana Linhares Pereira. Os autores articulam as noções de trauma e desejo à figura de Diadorim, personagem do romance Grande Sertão: Veredas, escrito por João Guimarães RosaROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015., propondo pensar a ficção como resposta à emergência do desejo em sua relação com um núcleo traumático e refratário ao simbólico. O trauma é abordado, ainda, em sua relação com a técnica analítica e seu modo particular de operar com o tempo (destacando-se aqui o uso freudiano da expressão Nachtraglichkeit) e em sua relação com a subversão do código linguístico levada ao extremo por Rosa, que assina uma obra reconhecida em todo o mundo pela fisionomia de uma língua singular.

A interseção entre psicanálise e literatura também está presente no artigo A posição da poesia na teorização freudiana: o ato do poeta entre o particular e o universal, de Pedro Fernandez de Souza. A partir de dois momentos da obra freudiana (um trecho da Interpretação dos sonhos e o Complemento B da Psicologia das massas), o autor buscar ressaltar, de um lado, a dubiedade que a arte (e a literatura) ocupa na teorização freudiana e, de outro, um possível ponto de encontro entre a escrita literária e a teorização analítica.

Soraya Souza e Ana Archangelo, em Diagnóstico Ético-Político (DEP): um dos modos de diagnosticar as singularidades nas práticas coletivas conceituam uma estratégia psicanalítica para o diagnóstico de acontecimentos sociais, que vão desde um evento-limite até uma cena traumática ou catastrófica. Tal estratégia comporta os tempos de ver, de compreender e de concluir, e abarca as dimensões singulares e coletivas que atravessam os sujeitos. O artigo em tela apresenta o excerto de um encontro com professores de uma escola pública, que se reuniram para abordar os aspectos traumáticos da experiência escolar durante a pandemia. Tal excerto serve de modelo para a análise das possibilidades de reconstrução que oferece o Diagnóstico Ético-Político.

Fabio Malcher, no artigo Qual discurso ao capitalismo?, aponta a demarcação, na obra freudiana, da inseparabilidade entre subjetividade e cultura, algo que a teoria lacaniana dos discursos permite explorar com rigor. O autor aborda alguns efeitos discursivos do capitalismo a partir da teoria dos discursos de Jacques Lacan, avançando no debate acerca de qual matema melhor expressaria tais efeitos: o discurso universitário, denominado em 1970 como discurso do mestre moderno, com seu estilo capitalista, ou o discurso do capitalista, proposto em 1972 em Milão. A aposta do artigo é a de que não se trate de uma opção exclusiva, mas que ambos podem fornecer ricas contribuições para a exploração dos efeitos discursivos do capitalismo.

O Grupo de Boston e suas propostas para o desenvolvimento da prática psicoterápica, de autoria de Sylvia Labrunetti e Leopoldo Fulgencio, faz um retomo de forma crítica à proposta do Grupo de Boston (que propôs um paradigma unificado para as práticas psicoterápicas), composto por psicanalistas, pediatras, desenvolvimentistas e outros pesquisadores da situação e desenvolvimento da relação mãe-bebê no período perinatal, ressaltando em que sentido suas contribuições - colocando em destaque a necessidade de “algo a mais do que a interpretação”, a realidade afetiva do encontro entre o analisa e o paciente, as comunicações verbais e não verbais, os conteúdos explícitos e implícitos nas relações psicoterápicas - podem levar ao desenvolvimento da teoria e da prática psicoterápica, especialmente a psicanalítica.

Andrei Silva Ribeiro de Albuquerque e Rogério Paes Henriques, em O desejo do analista na atualidade, discutem o conceito de desejo do analista no ensino de Lacan, como modo de demonstrar que o percurso conceitual do qual o desejo do analista resulta exige a articulação com outros temas, sobretudo aqueles que abrangem a prática da clínica psicanalítica nas suas relações com a época atual. Nesse contexto, marcado pela modalidade de laço social configurado pelo discurso da ciência em parceria com o discurso do capitalista, a hipermedicalização dos sintomas torna-se a orientação principal das práticas psicoterápicas consideradas robustas e ditas científicas. Na contramão desse movimento, a psicanálise, para os autores, vem re-posicionar os sintomas em Outra cena, aquela do inconsciente, inaugurando assim seu endereçamento ao Outro, isto é, à alteridade radical fundante do ser falante.

Desejamos uma boa leitura a tod@s!

REFERÊNCIAS

  • ALTHUSSER, L. Freud e Lacan, Marx e Freud: introdução crítica-histórica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
  • ASSOUN, P.-L Littérature et psychanalyse Paris: Ellipses, 1996.
  • BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
  • BROUSSE, M-H. O inconsciente é a política São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2003.
  • BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Editora Autêntica 2015.
  • CALDAS, H. Notas preliminares sobre escrita e estilo em Guimarães Rosa. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (org.). Escrita e Psicanálise Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2007.
  • DESCARTES, R, Meditações São Paulo: IFCH/UNICAMP, 1999.
  • FREUD, S. A negativa (1925). Rio de Janeiro: Imago, 2007. (Escritos sobre a psicologia do inconsciente, 3)
  • FREUD, S. El creador literario y el fantaseo (1908 [1907]). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 9, p. 127-135)
  • FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Obras incompletas de Sigmund Freud, Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos)
  • GREEN, A. A psicanálise e o pensamento habitual (1979). In: GREEN, A. A loucura privada: psicanálise de casos-limite. São Paulo: Escuta, 2017, p. 45-68.
  • LACAN, J. Alocução sobre o ensino (1970). In: LACAN, J. Outros escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
  • LACAN, J. R. S. I Livro 22 (1975). Tradução de Romana M. Ramos Costa para uso interno da Escola Lacaniana de Psicanálise: Rio de Janeiro, 1991.
  • MARX, K. O processo de produção do capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2013. (O capital: crítica da economia política, 1)
  • RORTY, R. Freud e a reflexão moral. In: RORTY, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 193-219. (Escritos filosóficos, 2)
  • ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistaagoraufrj@gmail.com