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“MORRER DE VERGONHA”: UMA INVESTIGAÇÃO PSICANALÍTICA SOBRE VERGONHA, HUMILHAÇÃO E ABJEÇÃO NA MIGRAÇÃO DE RETORNO

DIE OF SHAME”: A PSYCHOANALYTIC INVESTIGATION OF SHAME, HUMILIATION AND ABJECTION IN RETURN MIGRATION

RESUMO:

A migração de retorno se tornou apenas recentemente objeto de pesquisas no campo da saúde mental. A experiência do migrante de retorno em sua comunidade de origem o expõe aos olhares de alteridade que apontam para a fragilidade tanto de seus ideais egóicos como daqueles partilhados com o grupo cultural, particularmente quando o retorno se faz “com as mãos abanando”. Com duas vinhetas clínicas tiradas de uma pesquisa conduzida no Senegal entre 2014 e 2019, abordamos esse cenário no qual os sujeitos enfrentam vergonha, humilhação e abjeção quando retornam, ficando condenados a um espaço marginal de entre-dois migratório.

Palavras-chave:
migração de retorno; vergonha; humilhação; ideal de eu

Abstract:

Return migration has only recently become subject of research in the field of mental health. The experience of the returning migrant in his community of origin exposes him to the eyes of otherness that point to the fragility of both his ego ideals and those shared with the cultural group, particularly when the return is made “with empty hands”. With two clinical vignettes taken from a survey conducted in Senegal between 2014 and 2019, we approach this scenario in which the subjects face shame, humiliation and abjection when they return, being condemned to a “migratory between-two” marginal space.

Keywords:
return migration; shame; humiliation; ego ideal

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Qual a sabedoria popular veiculada na expressão “morrer de vergonha”? Alguém pode realmente morrer de vergonha? Pode-se morrer de tédio ou tornar-se escravo do amor? São expressões que ilustram possibilidades de configuração da relação do sujeito com seus ideais, seu desejo, com seus objetos, com outrem. A crônica antropológica guarda em seu bojo uma miríade de exemplos notáveis de efeitos do social e da cultura sobre a experiência do indivíduo, como no clássico Efeitos físicos no indivíduo da ideia de morte sugerida pela coletividade (1926), de Marcel MaussMAUSS, M. Effets physiques chez l’individu de l’idée de mort sugerée par la collectivité. Journal de Psychologie Normale et Pathologique, 1926. Disponível em: Disponível em: http://classiques.uqac.ca/classiques/mauss_marcel/socio_et_anthropo/4_Effet_physique/Effet_physique.html . Acesso em: 26 maio 2022.
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Através de um levantamento de estudos etnológicos sobre populações da Oceania, o autor francês comenta estranhos casos de morte decorrente da quebra de tabus e outras situações em que um indivíduo atenta contra algum dogma ou ideal que sustenta a sociabilidade de sua comunidade. São situações nas quais um sujeito de aparência saudável perde o desejo e a possibilidade de controlar o próprio corpo, de se ver e de ser visto pelos outros como um ser de valor, algo que implica, além de tabus e interdições, a magia.

Por sua vez, o entalhe fenomênico e antropológico que aqui decalcamos perpassa acontecimentos de realidades culturais pós-coloniais e zonas de subjetivação sob efeitos do capitalismo avançado (ROSA, 2016ROSA, M. D. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2016.). Circundamos os efeitos psíquicos e subjetivos dos fluxos migratórios Sul-Norte e, particularmente, os da migração de retorno Norte-Sul. Os fluxos migratórios sistemáticos envolvendo populações específicas reagem conforme um complexo arranjo, implicando lutas pós-coloniais, ditaduras, guerras civis, ocupação e desocupação militar de territórios, efeitos contemporâneos do imperialismo, disputas étnicas e religiosas, tragédias climáticas etc. Contudo, nota-se uma certa regularidade em alguns desses fluxos, em uma continuidade de êxodo de um grupo étnico ou social específico em direção a certas regiões do planeta. Isso se trama seja pela facilidade de acesso e instalação em razão de políticas regulatórias de acolhimento, da necessidade econômica em certos polos industriais específicos (como é o caso da construção civil e da agroindústria) ou ainda pela manutenção de relações coloniais, linguísticas e culturais (como é o caso da França para com as populações sobre as quais exerceu domínio colonial).

Na experiência clínica e de pesquisa dos autores do artigo (BINKOWSKI, 2020BINKOWSKI, G.I. Adolescentes “filhos da migração” e o Estado: apontamentos envolvendo psicanálise e educação no contexto francês, Estilos da Clínica, v. 25, n. 1, p. 48-62, 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i1p48-62. Acesso em:26.05.2022.
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; GIANNICA, 2019GIANNICA, D. Psychologie et psychopathologie de la migration de retour, du non-retour et de l’entre-deux migratoire. Tese de Doutorado, Université Sorbonne Paris Nord, 2019.), em práticas na Europa, na África subsaariana e na América do Sul, percebemos que há muitos fenômenos que atravessam as mais diferentes singularidades de vivências e périplos. Aqui, situamos principalmente imigrantes cuja busca do exílio se pautou, a princípio, por questões financeiras e de luta por uma vida com melhores condições humanas e materiais, onde os ideais têm relevância particular.

Pela psicanálise, os ideais são aqueles que remetem ao ideal de eu e tudo aquilo que participa das composições e recomposições de um sujeito para com seus movimentos desejantes, que são metonímicos, e para com as costuras com que vão se dando o pertencimento do sujeito a grupos, culturas e modalidades de gozo e fixação fantasmática. Isso configura como o sujeito reage à ciranda de imposições e repetições superegoicas e, seja pela via da psicopatologia, seja pela via da criação - que se recompõem em diferentes espaços culturais e sociais -, em tecidos simbólico-imaginários que se transformam seguindo o estrutural e o contingencial.

A vergonha, por sua vez, mostra um valor heurístico central para a modalidade de enquadre clínico discutida: a das práticas clínicas com populações migrantes e imigrantes. Isso se dá a partir do campo das relações entre psicanálise e antropologia e das pontuações ético-epistemológicas que produzem dispositivos e pesquisas pautados pelas perspectivas da clínica transcultural (MORO; COLS, 2006MORO, M. R.; DE LA NOË, Q.; MOUCHENIK, Y. Manuel de psychiatrie transculturelle: travail clinique, travail social. Grenoble: La Pensée Sauvage, 2006.) e dos campos da etnopsicanálise (DEVEREUX, 1972DEVEREUX, G. Ethnopsychanalyse complémentariste. Paris: Flammarion, 1972.) e da etnopsiquiatria (DEVEREUX, 1970DEVEREUX, G. Essais d’ethnopsychiatrie générale. Paris: Gallimard, 1970.; NATHAN, 2001NATHAN, T. L’influence qui guérit. Paris: Odile Jacob, 2001.).

Poderíamos aí incluir algumas variantes mais específicas, como as da psicologia intercultural e da psiquiatria transcultural. Entretanto, nosso interesse se articula em práticas clínicas e metodologias exploratórias nas quais a psicanálise mantenha seu valor ético e hermenêutico (DOUVILLE, 2014DOUVILLE, O. Les figures de l’autre: pour une anthropologie clinique. Paris: Dunod, 2014.) ali quando se desdobra para acolher e pensar os fenômenos migratórios e suas incidências psíquicas e subjetivas. Levamos em conta a relação destas com as configurações contemporâneas das políticas internacionais, dos efeitos da globalização e das transformações das políticas públicas (ROSA, 2016ROSA, M. D. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2016.).

Neste artigo, trataremos do tema da imigração de retorno, da experiência do migrante de retorno quanto à reinstalação em sua dita comunidade de origem e a confrontação dos olhares de alteridade que se dirigem a ele e todo o apanhado que compõe os ideais sobre uma experiência migratória “bem-sucedida” e, no caso, um retorno que se deu de forma injuntiva, por expulsão ou por impossibilidade de continuar vivendo no país para onde o sujeito havia migrado. Abordaremos esse cenário por meio de dois casos recolhidos ao longo de vivências de campo. A pesquisa se deu entre 2014 e 2019 a partir de visitas a três hospitais no Senegal: Le Centre Hospitalier National Universitaire de Fann, o Hôpital Principal de Dakar e o Hôpital Psychiatrique de la Ville de Thiaroye. Tomar a questão do retorno como um significante e uma realidade psicossocial que demandavam cuidado e uma escuta privilegiada foi consequência de nossas atividades inicialmente na Europa, nas redes de saúde mental, psiquiatria e atenção psicossocial na França, particularmente. Acompanhamos, em diversos cenários, imigrantes que retornavam, seja espontânea ou obrigatoriamente, mantendo contato com os mesmos quando da chegada em seus países e também eventualmente com outras instituições que os acolhiam em diferentes modalidades de cuidado. Mais adiante, descreveremos com mais detalhes o desenho da pesquisa.

Consideramos pertinente apresentar a temática para um público de psicanalistas, psicólogos, psiquiatras e outros profissionais do campo da atenção psicossocial e da subjetividade brasileiros e também da América Latina porque o chamado campo das “novas migrações” (SAGLIO-YATZIMIRSKY; GEBRIM, 2017SAGLIO-YATZIMIRSKY, M. C.; GEBRIM, A. “Nouvelles migrations” au Brésil: des représentations de l’accueil aux forms contemporains de racisme. Brésil(s), v. 12, 2017. Disponível em:Disponível em:https://journals.openedition.org/bresils/2313 . Acesso em: 25 maio 2022.
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), no deslocamento de indivíduos entre países do Sul geográfico e socioeconômico, se apresenta como um panorama que veio para ficar, seja para casos de refugiados, como da Síria, da África subsaariana, ou para imigrantes cuja emigração parece constituir uma das únicas vias de existência e sobrevivência, como a das levas de haitianos que vieram ao Brasil nos anos 2010.

Essas “novas migrações” podem ser confrontadas com fenômenos paralelos às migrações de retorno de africanos que estavam na Europa, uma vez que mobilizam sujeitos, coletivos, governos e autoridades não governamentais de modo a pensar sobre as migrações e os efeitos das mesmas num novo horizonte global, em que questões sanitárias (como Covid-19), religiosas (fundamentalismos), políticas (radicalismos, aumento fulgurante de grupos de extrema-direita), econômicas (recessão global) e psíquicas (deterioramento da saúde mental) nutrem um desamparo que serve de motor para a solidificação do neoliberalismo como gestão das economias, da política, das populações e das condições de subjetividade.

Tudo isso nos dá material de composição para uma psicanálise implicada com o social e com a política, onde o psicopatológico serve como mapa de localização dos sujeitos frente ao Outro e aos fenômenos de recriação de si na linguagem, na cultura e no social (ROSA, 2016ROSA, M. D. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2016.). Isso pode ser constatado nessa modalidade na clínica em situação de migração, de um retorno em condições delicadas, nas quais indiferença, segregação, exclusão e humilhação tomam o sujeito. A vergonha aí se torna um afeto social e um fenômeno psíquico com alto valor para uma psicanálise que contribua com o destrinchamento desses cenários tão complexos e desestabilizantes que se tornaram a via régia de acesso dessa subjetividade global capitalística, na qual o sujeito ocupa seguidamente o lugar de abjeto.

Privilegiamos vergonha, humilhação e abjeção como decalques que nos ajudam a pensar clínica e politicamente nesse panorama migratório. A vergonha, como apresentaremos logo adiante, aparece como um afeto-mediador de uma espécie de abertura do sujeito para com o Outro, em um verdadeiro efeito de transparência que frequentemente deixa o sujeito desabonado da possibilidade de resguardar em sua intimidade - em uma experiência mais privada - aquilo que lhe é doloroso ou mesmo valioso.

Por sua vez, a humilhação se constitui como um processo mais intenso e constante de rebaixamento das possibilidades egoicas e também dos ideais do sujeito. Com efeito, o sujeito se aliena, ou melhor, fica impossibilitado de se ver como digno de algo melhor para seu olhar e diante do outro. O sujeito humilhado se torna um refém de um gozo do Outro que o mantém testemunhando sua própria derrocada e sua impossibilidade de adentrar no laço social de forma digna.

Em seguida, quanto à abjeção (KRISTEVA, 1980KRISTEVA, J. Pouvoirs de l’horreur. Paris: Seuil, 1980.), trata-se de um processo no qual um material psíquico não pôde se inscrever, enquanto representação, em uma realidade partilhada entre o sujeito e seus objetos (outros) de investimento. O abjeto se situa, portanto, como um entre-dois radical, ambíguo por definição, mobilizando angústias arcaicas e geralmente não simbolizadas. É através deste efeito de um entre-dois que daremos sequência ao nosso desenvolvimento temático.

O CAMPO DA MIGRAÇÃO DE RETORNO E O ENTRE-DOIS MIGRATÓRIO

A migração de retorno é o “capítulo perdido da migração” (AMMASSARI; BLACK, 2001AMMASSARI, S.; BLACK, R. Harnessing the potential of migration and return to promote development: applying concepts to West Africa. Geneva: IOM, 2001.). Recentemente, a Organização Internacional da Imigração (IOM) colocou em seu radar esse fenômeno com um questionamento sobre as condições de saúde dos que retornam (RODENBURG; BLOEMEN, 2014RODENBURG, J.; BLOEMEN, E. Returning with a health condition. Geneva: IOM , 2014.), integrando o aspecto psicossocial da volta de expatriados para seus países de origem (HALL, 2017HALL, S. Setting standard for an integrated approach to reintegration. Geneva: IOM, 2017.). Tal circunflexão serve de referência para articularmos algo sobre o que chamamos de bilhete de retorno, uma co-construção de sentido da experiência migratória, na medida em que esta é organizada em torno de um objeto social (GIANNICA, 2019GIANNICA, D. Psychologie et psychopathologie de la migration de retour, du non-retour et de l’entre-deux migratoire. Tese de Doutorado, Université Sorbonne Paris Nord, 2019.). Um bilhete de retorno é um motivo que valide um retorno para a comunidade de origem, seja uma doença, a aposentadoria, uma expulsão/extradição, ou seja, algo que sirva para que o sujeito compartilhe e tente construir com os seus uma via para se reintegrar à comunidade deixada, partilhando o que viveu, suas transformações, aquisições, sofrimentos e perdas.

O “retorno” é um tema com variadas acepções culturais, religiosas, psíquicas e políticas. No mundo sobrenatural e religioso, temos o retorno de um povo a um território (a Terra Prometida), o retorno de um Messias, do filho pródigo ou, a partir de figuras míticas e seres monstruosos, como vampiros ou, mais especialmente, os zumbis. O migrante que volta “de mãos abanando” porta, tal como esses seres originários do panorama cultural vodu, o contraditório, sendo uma figura que não se sabe se é vítima ou culpada (COULOMBE, 2012COULOMBE, M. Petite philosophie du zombie. Paris: PUF, 2012.), mas que passou por um processo de “renascimento monstruoso” (THORET, 2015THORET, J.-B. A. Politique des zombies: L’Amérique selon George A. Romero. Paris: Ellipses, 2015.). Um renascimento que marca o fim de uma viagem, mas, também, na maior parte das vezes, remete à quebra dos ideais da experiência migratória, da vida em um lugar onde o sujeito encontraria melhores condições, um horizonte de ideais compartilhados e que o sujeito tinha a missão de atingir.

O zumbi é a personificação do desencantamento do homem pós-moderno desiludido, condenado a errar sem objetivo, sem memória, sem identidade, indo apenas atrás do próximo objeto de consumo (COULOMBE, 2012COULOMBE, M. Petite philosophie du zombie. Paris: PUF, 2012.). Porém, contrariamente ao homem sem gravidade teorizado por Melman (2003MELMAN, C. L’homme sans gravité: jouir à tout prix. Paris: Denoël, 2003.), que sofre da injunção da felicidade que o leva a refundar uma economia psíquica a partir da busca de prazer extremo, sem mais interdições ou gozos proibidos, o zumbi pós-moderno é o monstro do retorno de algo que não está nem dentro nem fora, alguém (ou algo, quando perde seu reconhecimento enquanto ser humano) que se liga tacitamente à figura do estrangeiro, do exilado, do bárbaro, monstro exatamente por estar na margem e não conseguir retornar.

Nessa zona marginal, a partir da evocação da noção de bilhete de retorno, conceituamos o fenômeno do entre-dois:

Estes homens que voltam de uma migração, homens do entre-dois - do entre-dois-lugares, do entre-dois-tempos, do entre-dois-países - são também e sobretudo do entre-duas maneiras de ser ou do entre-duas culturas, [...] que introduzem práticas suscetíveis de perturbar a homogeneidade cultural do grupo [...], quanto maior ameaça, a acusação, mesmo que muda ou recalcada, é a mais violenta possível, e o processo que ocorre com os imigrantes que voltam aos seus países de origem se dá porque eles carregam essa ameaça. (SAYAD, 2006SAYAD, A. L’immigration ou Les paradoxes de l’altérité. Paris: Raisons d’agir, 2006., p. 158-159, tradução nossa).

Sinalizamos o lugar do entre-dois ao qual é submetido o migrante de retorno (GIANNICA, 2019GIANNICA, D. Psychologie et psychopathologie de la migration de retour, du non-retour et de l’entre-deux migratoire. Tese de Doutorado, Université Sorbonne Paris Nord, 2019.), a similitude com a figura do zumbi, porque o morto-vivo carrega essa pluralidade de interpretações que provocam fascínio, inquietação, estranheza (FREUD, 1919/2019). Isso sugere uma aproximação, um reconhecimento velado ou rejeitado de um lugar crítico da expressão das contradições sociais (PENHA; GONÇALVES, 2018PENHA, D.; GONSALVES, R. Introdução. In: PENHA, D.; GOLSALVES, R. (orgs.). Ensaios sobre mortos-vivos: The Walking Dead e outras metáforas. São Paulo: Aller Editora, 2018.), seja da dita cultura de origem, seja da própria subjetivação do capitalismo. Desta feita, o retorno aponta para o recalcado, o rejeitado ou o forcluído.

Como mencionado na introdução, os casos com os quais animamos esse escrito surgem a partir de uma pesquisa de campo feita no Senegal ao longo de seis anos. O fenômeno da migração de retorno aparece em nossos fazeres clínicos com imigrantes na Europa, justamente porque o retorno, do recalcado nos sintomas e outras formações do inconsciente ao discurso dos sujeitos, denota um gérmen que dá pistas potentes para pensar os arranjos das migrações atuais.

Na pesquisa, tivemos uma coorte de 19 participantes entrevistados (15 homens, 4 mulheres, diferença que é bem característica da demografia das travessias entre a África e a Europa) que tinham retornado ao Senegal, todos de nacionalidade senegalesa. A idade média dos participantes era de 39 anos no momento da entrevista, tendo cada um permanecido no exterior por cerca de dez anos. Alguns passaram por cuidados em unidades psiquiátricas. Também montamos grupos focais com informantes privilegiados, profissionais de saúde, assistência social, juristas e curandeiros tradicionais.

A partir dessa complexa composição de dados - que envolvia entrevistas, relatos de terceiros da comunidade, grupos com profissionais e pessoas que atuam com esses sujeitos e nossa própria exploração da realidade local -, tínhamos a necessidade de tentar reconstituir eixos de sentido que apontassem chaves de leitura com tudo o que foi recolhido. Assim, com o material bruto oriundo desse combo de entrevistas, de nossos diários de campo e dos grupos focais, aplicamos a teoria fundamentada (GLASER; STRAUSS, 1967/2019GLASER, B. G.; STRAUSS, A. L. La découverte de la théorie ancrée: Stratégies pour la recherche qualitative (1967). Paris: Armand Colin, 2017.; MUCCHIELLI; COLS, 2009MUCCHIELLI, A. et al. Dictionnaire des méthodes qualitatives en sciences humaines et sociales. Paris: A. Colin, 2009.), uma metodologia qualitativa que nos levou a explorar questões referentes ao impacto do social sobre as trajetórias migratórias dos sujeitos e às modalidades de construção de sentido da experiência migratória e do retorno (daí a categoria bilhete de retorno).

Já a escolha dos sujeitos e de uma apresentação pela via da vinheta do caso (SIQUEIRA; QUEIROZ, 2014SIQUEIRA, E. R. A.; QUEIROZ, E. F. O singular do caso clínico: uma proposta metodológica em psicanálise. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, n. 3, p. 104-114, 2014.) aposta que o tema da vergonha, que acabou sendo uma das grandes chaves de sentido na análise dos discursos produzidos no material recolhido, tem um valor heurístico e atravessa o campo das migrações e a circunvolução da migração de retorno.

A vergonha, que costuma aparecer enredada pela experiência da humilhação e pela demarcação do sujeito na linha do maldito e da abjeção social, traz algo que amplia o repertório de possibilidades de interfaces entre psicanálise, antropologia e a política no contemporâneo. Por isso, nossa composição entre vergonha, humilhação e abjeção desvela uma centralidade da experiência da vergonha e sua relevância como uma categoria que pode ser pensada como metapsicológica, por possibilidades-chave de leitura para a forma como a teoria psicanalítica pensa o sujeito e seu aparelho psíquico.

De tal feita, como o próprio título já entrega, o “morrer de vergonha” torna-se um emblema de um tipo de experiência de retorno que faz o sujeito resvalar em uma fossa de sentido e da relação entre sujeito e Outro, tornando o laço social inabitável, uma verdadeira morte simbólica e psíquica. Justificamos então uma centralidade para a categoria da vergonha, mesmo que nossa evocação inicial a trate a partir de uma tríade envolvendo também a humilhação e abjeção.

VERGONHA E HUMILHAÇÃO: PASSAGENS ENTRE PSICANÁLISE E ETNOPSIQUIATRIA

Dentre as frases mais repetidas pelos sujeitos entrevistados em nossa pesquisa, duas chamaram a atenção pela grande quantidade de ocorrências, por sua insistência ao longo das falas e, também, por marcar tanto o alojar como o desalojar dos sujeitos perante o olhar do Outro, da família, dos amigos, enfim, do olhar estruturante que compõe e que corrompe as soluções imaginárias que o sujeito forja em relação à sua localização narcísica. Referimo-nos a “morrer de vergonha” e “voltar de mãos abanando” (renter les mains vides).

A vergonha é um produto da civilização, um afeto primário ligado à nossa existência (MILLER, 2003MILLER, J.-A. Note sur la honte. La cause freudienne, n. 54, p. 7-19, 2003.). Ela atravessa a constituição do campo especular, de como o sujeito se dá ao olhar constituinte do Outro. Para Sartre, a vergonha é um afeto da experiência radical da presença do Outro, sendo operada a partir da presença do corpo no mundo. Denota daí uma importante distinção entre vergonha e humilhação, posto que, na segunda, há uma violência implícita, intencional (DE LA TAILLE, 2012DE LA TAILLE, Y. O sentimento de vergonha e suas relações com a moralidade. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 15, n. 1, p. 13-25, 2012.), na qual o outro é ativo em retirar os atributos narcísicos que ligam o sujeito a seus ideais, em uma ruína do sujeito que o leva à experiência de rebaixamento.

A vergonha comporta uma atividade psíquica um tanto mais delimitadora para o sujeito na sua relação com a própria imagem especular e com o Outro. Isso se dá em muitos tipos de troca e relação, porém, há uma espécie de sobredeterminação na qual a dependência do sujeito em relação ao olhar do outro (que é uma espécie de regra narcísica e imaginária em toda relação) direciona a um vacilo do sujeito em sustentar sua imagem especular. Se, na sensação de timidez, o sujeito vive um sentimento de ser invisível e opaco, insuficiente diante do olhar do outro, na vergonha, o sujeito vira objeto de desprezo (VERTZMAN, 2014VERTZMAN, J. Embaraço, humilhação e transparência psíquica: o tímido e sua dependência do olhar. Ágora, v. 17, n. spe., Rio de Janeiro: UFRJ, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1516-14982014000300011. Acesso em:26 maio 2022.
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) por não conseguir sustentar uma imagem egoica - tecida por uma relação com ideais de eu - suficiente para se relacionar com o outro.

Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905FREUD, S. Trois essais sur la théorie de la sexualité (1905). Paris: Seuil, 2012./2012), de Freud, a vergonha é marcada como uma das resistências psíquicas diante do aparecimento da pulsão sexual, fazendo grupo com o nojo, a dor, o horror e a moralidade como forças que fazem barragem à sexualidade. Com Lacan, diferindo da tradição psicanalítica americana que circunscrevia a vergonha como um afeto eminentemente social, ela aponta algo que atenta contra a imagem de si e que mobiliza a castração pelo olhar, pelos modos de gozo do sujeito e na constituição do laço social (PRUDENTE, 2016PRUDENTE, S. À guise de uma conceituação da vergonha na obra de Jacques Lacan. Psicologia em Estudo, v. 21, n. 4, 2016. DOI: 10.4025/psicolestud.v21i4.32201.
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). Aqui, importa dar relevo à castração porque a experiência da vergonha, de uma vergonha extrema que, muitas vezes, acompanha a experiência da humilhação e a localização do sujeito como pária, alguém legado às margens do social, refunda a relação do sujeito com um outro que outrora foi considerado ser íntimo e com o qual o sujeito compactuava traços de sua imagem e, de modo sobressalente, dos ideais de eu que o compunham e com os quais ele organizava seu desejo.

Se Lacan, no seminário sobre os escritos técnicos de Freud (LACAN, 1975LACAN, J. Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, 1975. (Le Séminaire, 1)), ao comentar Sartre, falava de vergonha junto com o pudor e o prestígio, no seminário O avesso da psicanálise (LACAN, 1992LACAN, J. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O Seminário, 17)), em que institui uma teoria dos discursos e da produção do sujeito e do saber, o psicanalista francês deduz que a vergonha implica em como o sujeito se comporta com a cultura, como se produz enquanto um nome próprio, com suas falas, saberes, sintomas e, assim sendo, em uma certa relação com a verdade. Lacan propõe pensar a vergonha como uma vergontologia [hontologie, em francês, honte (vergonha) com ontologie (ontologia)], porque coloca o sujeito como que identificado, naquilo que seria topologicamente íntimo, a um olhar do fora que o acusa na frustração dos ideais e na castração.

Se há um conceito-chave para a interface entre psicanálise e antropologia esse conceito é a castração. A castração é a dívida (simbólica) que abre à alteridade (PRADELLES DE LATOUR, 2014PRADELLES DE LA TOUR, C. H. La dette symbolique: thérapies traditionnelles et psychanalyse. Paris: EPEL, 2014.). Em nosso material de pesquisa, vimos que os sujeitos que retornavam desde um lugar de “migrantes de retorno fracassados” viviam o fracasso tanto do ideal migratório como do próprio retorno - aqui falamos de um entre-dois migratório, essa espécie de cavidade na qual eles acabavam tendo que viver diante da tarefa de retornar e de se reintegrar.

Muitos desses sujeitos acabavam recorrendo a rituais em vistas a tentar se restabelecer novamente entre os seus, no caso, no Senegal, com seus matizes culturais, sociais e existenciais. O espaço terapêutico do ritual realizado pelos curandeiros (tradicionais) tenta promover uma mudança de discurso com o intuito de que o sujeito saia de um lugar de frustração e consiga se relacionar com a alteridade da ordem social pela via da castração (PRADELLES DE LATOUR, 2014PRADELLES DE LA TOUR, C. H. La dette symbolique: thérapies traditionnelles et psychanalyse. Paris: EPEL, 2014.). Caso funcione, um ritual desse tipo reatualiza a dívida simbólica ao produzir o jogo simbólico-imaginário do sujeito em relação à cultura, ao social, enfim, ao olhar do Outro, nos efeitos de um mito individual do neurótico (LACAN, 1978/2007LACAN, J. Le mythe individuel du névrosé (1978). Paris: Seuil, 2007.). Esse, entre cultura e cenário fantasmático, é um discurso sobre a verdade do sujeito, sobre as origens e destinos de seu sofrimento.

É nesse bojo do ritual e daquilo que da cultura se atualiza para dar conta do sofrimento, do deslocamento e da errância do sujeito que a etnopsiquiatria também comparece como um recurso, haja vista que essa disciplina ajuda a mapear como fantasias e sintomas funcionam a partir, através e, muitas vezes, contra um tecido cultural (DEVEREUX, 1972DEVEREUX, G. Ethnopsychanalyse complémentariste. Paris: Flammarion, 1972.) - cultura como o apanhado de modalidades de gestão e recalque das pulsões, através da frustração e da castração.

Em pesquisas sobre imigração e transmissão familiar (GUERRAOUI; MOUSSET, 2012GUERRAOUI, Z.; STURM, G. (2012) Familles migrantes, familles em changement. Devenir, v. 24, 2012/4. DOI: 10.3917/dev.124.0289
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; GUERRAOUI; STURM, 2012GUERRAOUI, Z.; MOUSSET, S. Fratrie adolescente em situation d’interculturalité. Dialogue, n. 196, p. 37-47, 2012.), a vergonha aparece articulada à culpa, a partir dos efeitos da quebra na transmissão de ideais entre as gerações, uma vez que pais imigrantes podem encontrar dificuldades em manipular e apresentar a cultura do país de acolhimento aos filhos. Essa composição entre culpa e vergonha se emaranha especialmente com adolescentes, quando não reconhecem em seus pais sujeitos capazes de dar conta do mundo em que vivem, seja da língua, dos signos culturais, dos sistemas de trocas. Isso leva frequentemente a fenômenos de crispação identitária, com pais tentando restabelecer a autoridade à força, voltando-se a fundamentalismos, como o religioso.

Outros autores de renome já haviam produzido trabalhos importantes sobre os efeitos de um retorno migratório, da colonização e suas consequências. Para ficar apenas em uma referência preciosa, Frantz Fanon, no primeiro capítulo de Pele negra, máscaras brancas (FANON, 1952FANON, F. Peau noire, masques blancs (1952). Paris: Seuil, 2008.), descreve a mudança fenotípica dos antilhanos que viveram na França metropolitana, que, ao voltar, dão a impressão de terem completado um ciclo, algo que faltava, retornando plenos de si mesmos. Trata-se de um processo de alienação que escancara uma realidade colonial e racial catastrófica para a subjetividade.

Ao escolhermos dois casos para pensar essas questões, fazemos isso no intuito de contribuir para as muitas inflexões do laço social do sujeito migrante e, nesse contexto, do migrante de retorno. Esse é um sujeito atravessado pelos efeitos do capitalismo, da colonização, do racismo e que, ao voltar “aos seus”, vive no próprio corpo a vergonha, a humilhação e a abjeção como facetas (im)possíveis da relação e do deixar-se ver pelo Outro.

O ENTRE-DOIS MIGRATÓRIO DO HOMEM BODE: SAÍDA PELO AEROPORTO

Conhecemos a trajetória de Pan (nome fictício) por seu irmão mais jovem, que vivia na Itália. Ele nos contou sobre a saga desse imigrante que viera para a Europa logo depois da morte do pai. Como o filho mais velho de toda a fratria (composta por filhos de diferentes esposas, todos vivendo na mesma casa), foi escolhido para partir e mandar dinheiro para os familiares. Anos depois, de volta a Dakar, Pan se isolara e passava os dias conversando com um bode.

Em Dakar, ao encontrá-lo, ele contou sobre sua trajetória como migrante descrevendo uma vida europeia “que não era uma vida” e sua expulsão pelas autoridades italianas. Com efeito, depois de anos vivendo como imigrante ilegal, conta, “a ideia de um retorno tinha ficado soterrada, mas estava lá”. Até que um dia, em um bar, ele se mete em uma querela entre homens de uma mesma família. Como consequência, é levado a uma delegacia e confrontado sobre os eventos e sobre seu estatuto legal.

O que se segue é algo que poderíamos pensar como o cenário de uma passagem ao ato. Ilegal por muitos anos, Pan recebe uma ordem de expulsão do território italiano, algo que, em tradução literal do vocabulário jurídico local, é um “recalque” do território. Contudo, sob o aspecto jurídico, tal ordem não significava uma extradição ou um acompanhamento policial até as fronteiras; na verdade, ele poderia ter recorrido e, dando provas de residência e trabalho, estaria apto a legalizar sua situação. Mesmo assim, Pan decide pagar do próprio bolso um bilhete de retorno.

Se, nos primeiros dias, houve uma acolhida normal de familiares e amigos, logo ele deixa de ser convidado para batismos, casamentos e outras festas religiosas, “eu estava socialmente morto”. Em sua segunda semana no Senegal, acaba acompanhando familiares a um casamento para o qual “não sabia se tinha sido convidado”. Foi ao quebrar um copo que se deu conta do seu estatuto cultural: teve de pagar pelo utensílio destruído.

Nesses dias, notou que a família parou de lavar suas roupas e de fazer comida para ele, como seria normal para um imigrante que retornava de férias. Logo depois, é colocado para dormir no quarto das crianças, junto com seus sobrinhos. Na propriedade da família, moravam as esposas do falecido pai e seus irmãos e os filhos desses, posto que não se realizou um inventário dos bens paternos em vistas de uma partilha. Aliás, a partida de Pan para a Europa se deu exatamente quando se discutia tal inventário, que terminara em um impasse.

Dormindo no quarto das crianças, com metade das pernas para fora da cama, Pan começou a se isolar de todos os tipos de trocas sociais. “Eu tentava contar minha história, mostrar os documentos para provar que eu não estava mentindo, que não tinha feito nada ilegal na Itália. Eu não vendia DVDs falsificados, drogas. No começo, eles acreditaram em mim, mas, depois, não mais”. Ao tentar comprovar que seu retorno se dera de forma não voluntária, Pan tentava construir um bilhete de retorno, esse instrumento social de compartilhamento de sentido para que o sujeito demarque seu retorno como alguém de valor depois de uma experiência migratória. Todavia, sua volta era entendida como uma afronta; não à toa, Pan falava sucessivamente em “vergonha de ser”.

Nos documentos que mostrava a todos, o que se lia é que ele era um “problema para a ordem pública”, sendo esta a razão para ser “recalcado” do território. Esses documentos, contudo, não serviam como visto para seu retorno, para uma volta honrosa. Mesmo vivendo no quarto das crianças, Pan não descrevia exatamente um processo de infantilização pelos olhares dos familiares, e, sim, algo que marcava um retrocesso, como se ele tivesse deixado de ser alguém. “Para eles, só o fato de ser um imigrante na Europa significa que você está rico, só que essa riqueza imaginária não se traduz para a realidade da vida de um migrante. Quando voltei, todo esse patrimônio imaginário se tornou dívida e vergonha”. A atitude de sua família era de forte ambivalência, como acima descrevemos na figura do zumbi, entre vítima e ser malvado, inclusão e exílio.

Não tendo com quem conversar, Pan juntou o dinheiro que lhe restava e comprou um bode, com o qual passava os dias falando em italiano. Com o animal, conversava como se estivesse falando com um espelho. A escolha do italiano como língua da performance tinha por efeito de permitir que ele contasse sua história na Itália, das dificuldades, frustrações, do retorno. A escolha desse animal não é anódina: o bode é um animal de predileção para rituais animistas na tradição islâmica e também remete ao bode expiatório, função que Pan parecia carregar na família. Quando da morte do pai, anos antes, é durante o impasse sobre a herança e a divisão dos bens que ele fora escolhido para ser mandado para fora, para o exílio, como um verdadeiro culpado pelo crime de parricídio. Portando essa culpa, a vida no exílio acabou sendo interrompida por essa passagem ao ato na cena de uma disputa em um bar. Diante da Lei, Pan resolve retornar e enfrentar o banimento entre os seus.

Como sustenta Timera (2001TIMERA, M. Les migrations des jeunes Sahéliens. Affirmation de soi et émancipation. Autrepart, v. 18, n. 2, p. 37, 2001.), a motivação dos jovens senegaleses a partir é algo que não é incompatível com o mandato comunitário; contudo, o que se dá é que a partida torna o sujeito um “bode expiatório”, enviado para o exílio em benefício dos outros. Ao ser mandado para fora, como alguém que é indesejável ou dispensável, o sujeito deve expiar o pecado dos outros (GRINDBERG; GRINDBERG, 1986). Na cena familiar de Pan, seu retorno teve o efeito de um retorno do recalcado, recalcado no grupo, da indecisão quanto à herança. A atribuição do estatuto de bode expiatório por sua família é vivida metonimicamente por Pan, que chega a se identificar ao animal.

Como Homem Bode, Pan falava sobre a vergonha e a humilhação de forma incessante, sobre ter “voltado de mãos abanando”, carregando apenas a culpa do fracasso. A vergonha parecia ter por função mantê-lo longe do olhar dos outros, em uma homeostase familiar que o encobria de algo ligado à culpa partilhada pelos irmãos pela morte do pai e por uma herança não decidida. O luto dava então lugar à melancolia. Um ano e meio depois, o encontramos trabalhando no aeroporto. Ele já não precisava do bode, tinha recuperado alguns de seus laços, sendo a “escolha” de um aeroporto algo oportuno para alguém que habitava um entre-dois migratório, sem bilhete de retorno para o trajeto inteiro. A condição de abjeto diante da família parecia ter sido contornada, porém, humilhação e vergonha continuaram a se mostrar estruturas relevantes para pensar as modalidades de laço social que ele instituía como sujeito.

O HOMEM DO BURACO ENTRE OBSCENO E ABJETO

Soubemos do caso de Sissoko (nome fictício) através de um amigo de infância seu, Daouda (nome também fictício). Ao ouvir sobre nossa pesquisa, este nos procurou na esperança de que poderíamos ajudá-lo a “decodificar as mensagens deixadas por Sissoko em muros pela cidade”. Em um primeiro encontro, os dois estão juntos, o que nos permite ouvir alguns traços da história de Sissoko em italiano mesmo. Ele nos conta que é músico e que, na Itália, tinha um carro vermelho; vai falando do bairro e de sua obra, mas logo ele parte, contrariado.

Essa foi a única vez que nos encontramos. Os relatos obtidos são de seu amigo e conhecidos, do hospital psiquiátrico e do curandeiro tradicional que operara um ritual para livrar Sissoko do djinn, um espírito que estaria ocupando seu corpo desde o retorno da Itália. Além disso, seus escritos estavam pelo bairro todo, por muros e portões, em uma obra gigantesca que apresentava as mesmas palavras: Visa, Droit, Asile (Visto, Direito, Asilo, em francês). Havia ainda outros fragmentos em um italiano críptico. Sissoko era um personagem conhecido, vagava traçando seus escritos e morava em um buraco escavado em uma parte vazia de um terreno de propriedade de sua família. Era visto saindo de lá pela manhã e voltando à noite.

Ele contava 40 anos, bem longe já dos 19 que tinha quando emigrou para a Itália, logo depois do suicídio da mãe. “Nós passávamos nosso tempo em um terreno perto do aeroporto, ele falava do pai, com quem não convivia. Quando sua mãe morre, ele começa a passar cada vez mais tempo perto do aeroporto, onde antes jogávamos futebol, mas parou de participar dos jogos e apenas ficava por lá”. Nessa época, ele parte para a Europa. Daouda conta que o amigo voltava seguidamente de férias para Dakar, participava de festas, mostrava estar bem, ganhando dinheiro. A ostentação inicial foi contrastando com as vindas dos anos posteriores, em que Sissoko foi se tornando introspectivo, pouco saindo da propriedade da família.

Esses retornos temporários de imigrantes, para passar férias, são momentos em que se tira a temperatura do sentimento de pertencimento ao grupo, a ausência de mudanças é valorizada e entendida como marca de fidelidade ao pacto social (SAYAD, 1977SAYAD, A. La double absence: des ilusions de l’émigré aux souffrances de l’immigré. Paris: Seuil , 1999.). A cada retorno, de dois em dois anos, Daouda notava um distanciamento em relação ao amigo, que falava cada vez mais sobre voltar e investir em casas para locação no terreno da família. No entanto, havia uma grande recusa por parte de seus irmãos em relação a esse projeto: sua presença na Europa era necessária para o sustento de todos.

Segundo Daouda, Sissoko se mostrava incomodado e pronto a romper os laços com todos, sentindo-se isolado tanto na Itália como no Senegal. A vida parecia não transcorrer com facilidade na Europa: “Ele começou a falar em ir atrás do pai biológico, mas aí, logo depois de partir de uma dessas férias, ele já estava de volta, dizendo que tinham ficado com seus papéis, que ele tinha aceitado uma espécie de aposentadoria precoce, com a condição de não poder voltar mais”. Pelo relato apresentado, acreditamos que Sissoko entrara em um programa de retorno remunerado, algo oferecido a trabalhadores menos qualificados, em que o imigrante recebe a passagem aérea e uma indenização.

Quando do retorno, já mostrando sinais de errância e de sofrer de alucinações auditivas (vozes que o convocavam a voltar), Sissoko mostrava as joias compradas na Europa, suas conquistas, porém, também apresentava roupas sujas, em um forte odor de fezes. Os conflitos com a família foram frequentes nesses anos que antecederam o retorno e depois. Se, antes, dizia da vergonha de não mais prover a família em caso de retorno, sua volta colocou a vergonha para lado de seus familiares, incomodados com o comportamento tido como obsceno.

Ao encontrarmos um curandeiro que recebeu Sissoko e seus familiares, somos apresentados a um jardim no qual jaziam pequenas jarras de barro enterradas, com a abertura virada para baixo; com isso, víamos apenas a parte de baixo, chamada por ele de “traseiro”. Cada jarra correspondia ao ritual realizado para uma pessoa, rito esse que serviria para aprisionar um djinn que perturbava o sujeito. O rito fora realizado para Sissoko, uma vez que as causas mágico-religiosas são operantes dentre muitas comunidades africanas, fazendo parte das trocas simbólicas sociais convencionais. Mesmo com um tratamento em hospital psiquiátrico, ele recebeu cuidados mágicos, em algo que teria por instrumentalidade promover um efeito de castração sobre o sujeito, restabelecendo seu pertencimento ao grupo (PRADELLES DE LA TOUR, 2014PRADELLES DE LA TOUR, C. H. La dette symbolique: thérapies traditionnelles et psychanalyse. Paris: EPEL, 2014.).

O ritual serviu para que sua família aceitasse algum tipo de convivência, de integração, porém, foi quando Sissoko se tornou um andarilho e começou a fazer seus rabiscos por toda parte, em uma tentativa de dar materialidade a palavras que falavam de asilo e do direto de obter um visto. Aqui é interessante decalcar que, mesmo tendo vivido na Itália, as três palavras que mais encontramos são em francês, que é a língua oficial (e colonial) do Senegal. Ou seja, suas escritas parecem ser tentativas de inscrição do direito de ter um visto de retorno, de ter asilo para suas errâncias, algo que lhe era interditado.

Já o ritual de fixação do djinn à terra teve por objetivo reconectar Sissoko à sua terra de origem, mas ele acabou ficando perdido entre uma sociedade e outra, em um entre dois migratório que o manteve oscilando, assim como a seus familiares e próximos, entre vergonha, humilhação e abjeção social. Algum tempo depois, soubemos que ele tinha morrido. Não havia maiores informações, apenas um estrondoso “deve ter morrido de vergonha, deixando sua família em paz”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE AQUILO QUE RETORNA

Há muitos tipos de morte, entre natural, acidental, provocada ou mesmo simbólica. Na antropologia africanista, costuma-se dizer que toda morte sempre é encarada como um fenômeno social e enquadrada dentro de um espectro mágico; afinal, o inconsciente sempre está em ação e produzindo fenômenos. Entre exílio e morte, os casos cujas vinhetas destacamos ajudam a pensar a experiência de dois sujeitos que retornavam de uma experiência migratória na qual tinham sido imbuídos de ideais que falavam de suas singularidades, de certas composições familiares, de um apanhado mítico-cultural específico e também de aspectos ligados aos processos de subjetivação do capitalismo avançado.

A emigração é vivida por muitos como um sonho, um desejo de escapar à castração da economia, da pobreza. Muitas vezes, um projeto migratório se forja no desejo de escapar disso, mesmo que tal partida implique o sujeito nos riscos, dissabores e na experiência de clivagem que costuma acompanhar a migração. Além do mais, em muitas sociedades, como é bastante comum na África subsaariana, a emigração costuma ser um projeto familiar de eleição de alguém que deverá se manter fora, como que exilado, em benefício da família. Nos dois casos, tanto de Pan como de Sissoko, vimos traços dessa configuração existencial, social e cultural. No retorno de ambos, um retorno um tanto forçado (mesmo que escolhido), vimos sujeitos tomados pela vergonha, como algo que denunciava não apenas seu fracasso migratório, mas também um fracasso do retorno. Contudo, o que apontamos é que o retorno desses dois viajantes trouxe à tona algo que denunciava uma determinada configuração familiar e cultural, pois em ambas as situações a emigração se dera quando da morte de alguém que ocupava a posição central na organização familiar, seja o pai (Pan) ou a mãe (Sissoko).

No retorno, os dois fracassaram na constituição de um bilhete de retorno válido, algo que justificasse um retorno possível e aceitável na partilha de suas experiências enquanto migrantes. Com isso, o retorno marcou o fracasso de uma modalidade de gozo que talvez servira para, a princípio, organizar os grupos familiares. Ao voltar, os dois sujeitos foram tomados pela vergonha (ser olhados como sujeitos que não sustentaram um ideal que lhes cabia) e acabaram humilhados (no laço social) e, por fim, ocuparam um lugar de abjetos, ou seja, de objetos que não podiam mais ser investidos, uma vez que o entre-dois migratório, lugar que ocupavam, era um lugar limítrofe entre o dentro e o fora, da margem entre o vivo e o morto; um lugar para monstros, zumbis e seres deformados de seus aspectos humanos.

Vergonha, humilhação e abjeção ocorrem quando o bilhete de retorno fracassa, portanto, a esses sujeitos foi vetada a operação de castração que lhes possibilitaria se re-filiar e ser sujeitos de desejo no laço social. Ambos acabaram sendo condenados à errância e a um tipo de morte social, mortos de vergonha.

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    » https://doi.org/10.1590/S1516-14982014000300011
  • Errata

    O nome correto do primeiro autor é DAVIDE GIANNICA e não DAVIDS GIANNICA, como foi grafado anteriormente

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2020
  • Aceito
    26 Maio 2022
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