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O que os psicanalistas aprendem com os povos indígenas? Psicanalistas entrevistam tupinambás, baniwas, payayás, tuxás, guajajaras e puris

Este texto é o resultado de um trabalho intenso do projeto de pesquisa e extensão Ocupação Psicanalítica1 1 O coletivo Ocupação Psicanalítica está em quatro estados. Na UFMG, ele é coordenado por Andrea Guerra; na UFES, por Fábio Santos Bispo; na UFRB, por Marcelo Fonseca de Souza; e, na UFRJ, por Mariana Mollica. , vinculado ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ em parceria com o LaPTE - Laboratório de Psiquiatria Transcultural e Etnopsicanálise do Instituto de Psiquiatria (IPUB/UFRJ), na conversação com os autores indígenas que assinam conosco o resultado escrito de um trabalho que contou com a força da oralidade e da transmissão ancestral. Contamos também com a participação do Ocupação Psicanalítica Núcleo da Bahia, situado na Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Nas próximas páginas, trazemos fragmentos da transcrição de entrevistas que realizamos com lideranças ou membros de povos indígenas, trabalhadores da Saúde e Saúde Mental Indígena e também com uma indígena do povo guajajara e da aldeia Maraka’nà, que nos contou sobre a importância de seu encontro com a psicanálise através do seu processo psicanalítico. Apesar da perda da riqueza da oralidade na escrita, buscamos extrair nas próximas páginas a força de nosso encontro e de nosso aprendizado com diferentes povos com os quais tivemos contato.

Enquanto campo de pesquisa, partimos da atuação do psicanalista junto aos movimentos de luta política dos povos originários brasileiros, além da participação em polos de assistência pública da saúde mental da população indígena. Atualmente, temos também construído uma clínica que se inicia na Bahia e no Rio de Janeiro, com atendimentos online da população tupinambá de Ilhéus. Mais recentemente, iniciamos uma clínica presencial com indígenas não aldeados no Rio, por meio da construção de um ambulatório para essa população através de uma parceria entre as equipes coordenadas pelo prof. Bruno Reys e pela profª Mariana Mollica, de ambos os projetos. Temos visitado aldeias no Grande Rio, junto à defensoria pública, além da articulação com a Aldeia Maraka’nà2 2 Sobre a aldeia Maraka’nà - De acordo com Urutau Guajajara - atual cacique da aldeia Maraka’nà, aldeia pluriétnica urbana, localizada na região do Maracanã, Rio de Janeiro - por volta do ano 2000, um coletivo de povos tradicionais procurou junto a ele um espaço que tratasse de políticas públicas para questões indígenas. Encontraram, no antigo Museu do Índio, então abandonado, o interesse de se instalar ali, em uma região na qual houve importante presença indígena até o século XVIII, quando a região foi paulatinamente ocupada por grandes engenhos de açúcar pertencentes à ordem religiosa jesuíta. Já tendo de posse da coroa portuguesa, parte daquela região pertencia em 1884 à condessa de Itamaraty, sendo então adquirida pelo engenheiro Paulo de Frontin para construção do Derby Clube, onde teria sido construído o prédio localizado no terreno em que mais tarde se ergueria o famoso estádio de futebol Maracanã. Há mais de um século, o prédio e seu terreno foram destinados ao movimento de proteção e preservação das culturas indígenas no país, pois, em 1889, o terreno foi apropriado pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio da República nascente, sendo esse prédio dedicado ao cultivo e pesquisas de plantas da floresta a partir do conhecimento indígena. Em 1910, foi fundado o Serviço de Proteção do Índio (SPI), subordinado ao referido Ministério. Em 1956, por iniciativa de Darcy Ribeiro, criou-se no prédio o primeiro Museu do Índio na América Latina. De acordo com o livro Em nossas artérias, nossas raízes: Universidade Indígena Aldeia Maraka’nà (2023) produzido a muitas mãos, os povos Maraka’nà são da tradição indígena do maracá, instrumento de percussão de uso ancestral religioso-espiritual utilizado por centenas de etnias brasileiras, também para batalha de resistência anticolonial secular por aqueles que foram segregados, expulsos, desterritorializados e exterminados. É também um tipo de arara, comum em florestas tropicais brasileiras, incorporada ao léxico da língua à palavra maracanã, a partir da origem tupi-guarani, e que reproduz a sonoridade poética da imaginação dos seus significantes, referidos à oralidade do cantos das aves próprio ao instrumento ritual. Há aproximadamente 13 anos, surgiu a ideia de fazer do Museu do Índio e seu entorno uma universidade indígena, como existe no Equador, México, Guatemala e Bolívia. É um lugar onde a sabedoria das culturas indígenas pode dialogar em pé de igualdade com o conhecimento produzido pelos não indígenas, de modo que os conteúdos e métodos de ensino e aprendizagem, sua cosmovisão e suas noções de tempo e espaço possam ser compartilhados. Alguns membros da aldeia moram no terreno cercado em torno do prédio e outros frequentam as inúmeras atividades realizadas pela aldeia todos os dias. ².

Iniciamos este compilado pela conversa com indígenas entrevistadas/os, como: Cacica Maria Valdelice, líder e anciã dos povos tupinambás no sul da Bahia, sendo a primeira cacica reconhecida na Bahia e a segunda no Brasil; Geana Baniwa, psicóloga e que finalizou seu mestrado a partir da perspectiva de seu povo, indígena do povo baniwa, que habita a região da floresta amazônica no noroeste do estado do Amazonas e nos países da Colômbia e Venezuela; logo em seguida, apresentamos partes da entrevista com Dilmar Puri, do povo goytacá, que pertence à nação puri localizada na região sudoeste do Brasil, tendo se tornado membro da aldeia Maraka’nà na cidade do Rio de Janeiro; Itaynara Rodrigues Silva, que é do povo tuxá, localizado no norte da Bahia, às margens do rio São Francisco e a primeira psicóloga indígena do CFP. Ela trabalha com a população tupinambá integrando uma equipe interdisciplinar de saúde mental indígena.

Compilamos também fragmentos da nossa conversa com o Cacique Juvenal Payayá, escritor e líder do povo payayá, na região da Chapada Diamantina, na Bahia; em seguida trazemos Thaiany Santos Araújo, indígena do povo guajajara, aluna e professora da Universidade Indígena Aldeia Maraka’nà, que fala sobre sua experiência analítica. Ao fim desses relatos, temos a entrevista da enfermeira da SESAI-BA Rebeca Antunes Nascimento, uma entre os 37 profissionais, aproximadamente, no polo base de Ilhéus, constituído de 6 equipes multiprofissionais, mais a equipe do Núcleo de Apoio à Saúde Indígena, que conta com mais 4 profissionais de saúde mental. As equipes atendem a 23 aldeias tradicionais e 11 regiões de retomada (que foram ocupadas por indígenas cujas terras haviam sido anteriormente invadidas). Tanto Rebeca, a enfermeira, quanto Itaynara, a psicóloga, nos apresentam o quadro do sofrimento do povo tupinambá a partir da escuta direta dos povos desta região, endereçando seu testemunho aos psicanalistas de nosso projeto, sob a forma de uma demanda de atendimento dos referidos povos tradicionais e também de supervisão e acompanhamento dos casos clínicos. Também foi solicitado um pedido de ajuda para atuar politicamente junto aos órgãos públicos de saúde mental e à rede de atenção psicossocial da região que é bastante precarizada. Elas representam um grande número de trabalhadores das equipes multiprofissionais, muitos deles indígenas de diversas etnias, que têm pouquíssimas condições de trabalho para enfrentar a complexidade e a falta de investimento público que envolve sua tarefa.

As entrevistas serão apresentadas da seguinte forma: algumas seguirão uma sequência de perguntas e respostas, como as da Cacique Valdelice, da enfermeira Rebeca e da Thayane Guajajara, por trazerem algo muito específico. As demais - com Geana Baniwa (realizadas pelos entrevistadores Bruno Reys e Mariana Mollica); com o Cacique Juvenal Payayá (por Mariana Mollica, Marcelo Fonseca de Souza e Ana Paula Galdino) e com Dilmar Puri e Itaynara Tuxá (ambas entrevistadas por Mariana Mollica) - foram dispostas de outra forma: trechos das entrevistas extraídos foram agrupados por temas comuns abordados pelos entrevistados, de forma que o leitor pode verificar as aproximações e diferenças da história de cada um dos povos, sua luta política, o sofrimento psíquico, a questão do suicídio, da temporalidade, o manejo dos sonhos, da ancestralidade e dos modos de autocuidado e bem viver que são transmitidos pela fala e transcritos de forma a chegar à possibilidade de leitura. Reconhecemos que a tentativa de decolonização de nossos saberes e modos de construir as entrevistas que se seguem é mais um desejo e esforço coletivo em movimento do que, propriamente, algo que se realize efetivamente.

1 ENTREVISTA COM A CACIQUE MARIA VALDELICE AMARAL DE JESUS

Entrevistadora - Estamos aqui com uma grande liderança tupinambá que tivemos a oportunidade de visitar junto a outros membros da comunidade indígena e do Ocupação Psicanalítica Rio e Bahia. Gostaria de agradecer muito pela parceria e por conceder essa entrevista, e solicitar que a senhora fale um pouquinho do povo e da importância da sua liderança enquanto mulher. Fique à vontade para se apresentar.

Cacica Valdelice - Meu nome é Maria Valdelice Amaral de Jesus na língua portuguesa florescer. Estou cacique ainda, a primeira cacique do território e a segunda do Brasil. O nosso território ainda não é um território demarcado. Tento ajudar meu povo, sou cacique de 13 comunidades, não faço limite de comunidade, pois a gente precisa é da união do povo, temos dificuldades porque todo ser humano é falho, mas eu continuo na luta. Eu já fui presa, fui para o presídio, mas tudo isso não fez eu deixar a luta. É toda uma história de termos sido povos de primeiro contato, onde os portugueses chegaram invadiram primeiro essa região, então tem uma sabedoria muito grande tupinambá com relação a essa resistência política.

Entrevistadora - Então, a senhora pode contar um pouquinho dessa história, da sua prisão, que, imagino, tenha ocorrido por conta de uma resistência muito grande.

Cacica Valdelice - Olivença3 3 Sobre Olivença: é o nome da aldeia mãe. era aldeia jesuítica. Em 1536, teve um massacre com o nosso povo. A gente faz todo ano uma grande caminhada em memória do massacre do Cururupe. É uma história que Ilhéus nem sabe e nem conta, nem sabe por quê esses índios caminham. Eles caminham porque têm um objetivo, esse marco ficou fora da marcação do território, mesmo assim a gente vai fazendo homenagem aos nossos filhos que morreram para que hoje a gente possa estar aqui. Foram sete quilômetros de corpo de índio estendido na praia de Cururupe, e Cururupe quer dizer “mar de sangue”; a água ficou vermelha de sangue dos parentes. A gente precisa viver a nossa história ou a gente acaba. Eles acabam sufocando a gente e a gente não consegue dizer que a história é nossa, que o povo tupinambá existe. Eles falam: como é que o povo está agora sendo índio? Os nossos anciãos, alguns estavam vivos e, na hora que a antropóloga procurou para fazer o levantamento étnico do povo, eles estavam ali dizendo nossa história que nós somos tupinambá e tudo que quisermos ser; não vai então o historiador que teve aqui muito tempo atrás contar uma história que não existe. Nós estamos contando a história do nosso povo, que é resistente a tudo isso. Minha bisavó morava em Olivença e hoje temos a casinha dela ainda lá, mas ela foi, resistiu quando os coronéis chegaram em Olivença e disseram: “Olha, aqui não faz mais casa de pau e de palha só de telha e tijolo”. A minha bisavó morreu com 105 anos e ela disse: “Quem for no mato traz uma vara, quem for no rio traz o barro e fez por dentro uma casa do nosso jeito, com os tijolos do lado de fora”. Quando deu a chuva, caiu aquela estrutura de fora que tava velha e a nova ficou, a que a gente tinha construído, aí eles foram para cima e ela disse que só saia daqui para o cemitério. É uma história de resistência de uma mulher que tinha três filhos, todos deficientes. Então, assim é a resistência das mulheres dentro de um território que era dela e ela disse que aqui é meu, continuou sendo dela até hoje. Tiraram de nós e a gente retomou.

A gente tem essa casa em Olivença. Um ancião dizia que tinha sumido de Olivença um manto, ido para outro lugar. O manto daqui era um manto de pena de guará, ele era usado nos casamentos, nas festas; sumiu esse manto da aldeia, enfraqueceu a aldeia. Quando veio uma exposição para São Paulo, a exposição no Ibirapuera de 3.000 peças indígenas, uma anciã nossa foi convidada pela Folha de São Paulo porque já tinha aqui uma antropóloga chamada Susana Viegas, de Portugal, ela era muito amiga da minha mãe. Minha avó contou que esse manto é feito de pena de guará, ela disse que esse manto era a força do povo e a força do povo acabou, porque todos os coronéis chegaram em Olivença e eles começaram a dizer: “Olha, vocês são caboclo, caboclo acabou aqui”. Tinha até um apelido dado “caboquinho da bunda chulada”, que eles chamavam para nos diminuir. Nós já estávamos quase crucificados pelos jesuítas. E quem fez a igreja de Olivença foram os índios, foram nossos parentes. Carregaram pedra do Cururupe até Olivença. E, quando chegava em Olivença, tem uma parede que ainda é de pedra, ainda com óleo de baleia. Quando eles chegavam, já chegavam muito cansados, muito destruídos. Já não conseguia mais nem falar, quem sabe até alguns morriam. Foi muito, muito massacre com o povo. Em 1999, a gente conseguiu fazer o levante, seu Alício e Paulino foram a Brasília, conheceram Juruna e conversaram.

Juruna achou que os tupinambás tinham sido extintos, mas eles disseram que estavam vivos, a história estava viva. Ali houve algo especial, de legitimidade e reconhecimento pela nossa existência para o governo brasileiro. Aí ele deu umas caixas de remédios a eles. Eles vieram embora e chegaram aqui e foram muito perseguidos, porque os coronéis não queriam que eles reivindicassem território. Eles voltaram lá para a roça. Aqui foram muito perseguidos e depois adoeceram. Hoje, apenas seu Alício está vivo, os outros faleceram. Hoje, a gente chega até aqui com tanta falta de assistência. Mas a gente conseguiu chegar até a retomada das terras pelo nosso povo. Em 2002, nós fomos reconhecidos, assinaram lá a portaria que saiu. Essa portaria veio para o município, para o estado, e daí, enfim, para cá. A gente fica se perguntando como é que a gente vai fazer, só podemos acreditar naquilo que a gente está fazendo quando a gente bota o pé no chão e vai lá nos reunir para fazer a nossa retomada. Vamos mostrar ao governo brasileiro que a gente precisa de terra. Já fizemos duas retomadas. Mas com 3 meses nós tivemos que sair porque a polícia veio.

Era um português, o dono da Limoeiro, tinha relação forte com o juiz e deu favorável que a terra não era demarcada, que não havia nada nosso. Aí veio o povo para fazer o processo do limite do território com todo mundo. Fez e só tá faltando assinar. A gente espera em breve que seja assinado para depois vir a homologação e a indenização do povo. Como eu era a primeira cacique, a única cacique, os processos foram todos para cima de mim. Aí saiu a prisão da Cacique Valdelice na questão do território. Eu fiquei nove dias no presídio de Itabuna e 120 dias em outro presídio. Com o laudo médico, conseguiram me tirar do presídio para prisão domiciliar. Mas, por causa da luta da terra, hoje a gente tem alguma terra. Ainda temos fazendeiro dentro desafiando. Eles desafiam a gente. Colocam o índio para trabalhar e não paga, jogam agrotóxico na terra, nas plantações e assim estão acabando com o rio, acabando com os peixes, acabando com os camarões que meus parentes comem. Não tem como pescar e não tem água de beber. Essa água da natureza, quando contaminada com agrotóxico dos fazendeiros, traz cada dia um desafio diferente. Estão acabando com o território tirando todo o mineral que tínhamos, as aroeiras que servem para remédio. Tiram várias plantas que nos servem para fazer remédio. Fizeram aqui grandes hotéis, são portugueses. Nós embargamos a obra em Brasília. Queremos ir lá na embaixada de Portugal. Nós tínhamos um Brasil todo, mas nós não queríamos o Brasil todo, só esse pedacinho para viver com dignidade e respeito a nossa cultura, do nosso jeito. Porque a gente tem nossos manguezais. É a vida dos bichinhos que temos aqui, tudo é vida e a gente preserva. Por que vai fazer um hotel dentro do mangue?

Entrevistadora - Gostaria de te ouvir sobre como o povo tupinambá vem tratando das suas dores da alma ou do sofrimento subjetivo que temos escutado?

Cacica Valdelice - A falta do território. Eu sinto que a maioria do nosso povo é a falta da terra! Quando conseguem visualizar a possibilidade da terra, se acalmam. Eu moro aqui há 3 hectares de um fazendeiro. Ele tem 100 ou 200 hectares. O meu povo sabe que foi dele, que aquilo foi dos nossos parentes. Aquelas terras foram do primo de alguém. Algum parente foi escravo naquela terra que antes era dele, trabalhar de dia e o recurso que recebe às vezes não dá para nada. Outra coisa é a questão das drogas. Muitos se envolvem pela necessidade. Faltam as políticas públicas voltadas para as comunidades indígenas para trabalhar a saúde mental. Aqui no meu quintal não tem uma semente para plantar, não tem uma semente para fazer um colar, uma coisa para vender ali na praia. Às vezes, quando você chega na praia, você é humilhado. E isso nos afeta. Às vezes, quando o estado ou o município libera um profissional para o cuidado da saúde mental, ele vem, faz uma visita e vai embora. Recentemente, um jovem de 13 anos se enforcou. Você imagina uma criança fazer isso com ela mesma? Houve alguma coisa. Será que foi abusado? Ninguém sabe se ele tinha alimento todo dia, se ele trabalhava na fazenda como escravo, se estudava. Tudo isso é para ser perguntado, mas ninguém responde.

Entrevistadora - A gente está recebendo encaminhamento das equipes de enfermagem, da equipe médica das aldeias tupinambás e estamos escutando os casos, fazendo um relatório que descreve a incidência do sofrimento, para colaborar com a ampliação das vozes de vocês junto aos órgãos públicos de saúde mental da região. Agora, é muito importante também que vocês possam indicar quem são as pessoas que estão sofrendo mais e às vezes são jovens, idosos ou pessoas de todas as idades que não conseguem chegar até um psicólogo. Eles não confiam. A palavra da senhora como liderança é fundamental para o estabelecimento da confiança. Como a senhora pode participar dos encaminhamentos para a psicologia, para que a população tenha confiança e possa se servir desse atendimento?

Cacica Valdelice - Só temos uma psicóloga, eu acho que ela precisa de pernas e se ela não tiver em um ambiente saudável, ela não pode cuidar de ninguém. Primeiro, então, a SESAI4 4 Sobre a SESAI: Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) é uma entidade estadual, atrelada à gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS), que é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI). Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) estão atrelados à Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), como uma entidade federal, que visa a facilitação dos povos indígenas ao acesso a recursos básicos de saúde, conforme a participação de cada povo de acordo suas especificidades, que visam levar em consideração os próprios conceitos e práticas, isto é, a cosmogonia dos povos indígenas relativa às suas condições de viver e morrer. precisa dar condição a essa pessoa que vem com a escuta, eles (SESAI) querem que o profissional fique 20 minutos e vá embora, que o outro carro já vai sair e que vai levar a equipe. Não tem tempo para ouvir, não tem tempo para visitar realmente aquela família para ver onde está o problema. Quando vem já se matou, já se mutilou, já está no estado mais grave e até correndo doido por aí. Infelizmente, nosso município está despreparado para atender nosso povo que é grande; a gente sabe que a espiritualidade também é forte. Mas tem gente que não acredita, aí apanha porque não acredita. O nosso psicólogo precisa pegar na mão com as ervas, nossos remédios naturais, com banhos. A gente precisa buscar alternativas. Gostaria de agradecer muito a vocês pelo trabalho junto com Itaynara, nossa psicóloga, e as equipes de saúde da nossa região. A gente está junta para construir um reforço para pressionar os governos aqui da região para uma melhor assistência dessa área de Saúde Mental.

2 ENTREVISTAS COM TEMAS AGRUPADOS A PARTIR DE QUESTÃO COMUM

Entrevistadores - Fale um pouco da sua história e da história de seu povo.

Geana Baniwa - O povo baniwa habita a região do Amazonas. Nós temos baniwas no território da Amazônia, na parte brasileira, mas também aqueles que habitam a Colômbia e a Venezuela. Muitos migraram para o território brasileiro e se refugiaram por conta desse contato com os colonizadores nas terras indígenas do alto Rio Negro. Vários ainda viviam ali afastados, não habitam muito por ali na margem do rio. Viviam mais para dentro da mata. Mas, por essa influência, por essa colonização, devido a esse conflito, muitos baniwa foram se refugiando para as cabeceiras. Há os que habitam mais próximos dos rios, mais às margens dos rios e saíram propriamente de dentro da mata. Nós somos aproximadamente 3 ou 4 mil só no território brasileiro. Se considerarmos a Colômbia e a Venezuela, os números sobem mais. É por isso que temos muitos parentes baniwa que falam espanhol, como também falam baniwa e nheengatu (língua geral), além do português. E há muita diferença. Eu e minha família, por exemplo, não falamos baniwa; falamos nheengatu devido a toda aquela questão dos conflitos. Durante o tempo da colonização, não quiseram que a gente falasse nossa própria língua. E a colonização ainda não acabou. Embora nós tenhamos iniciado o processo de descolonização e de retomar nossa historicidade, nossa língua, esse processo ainda continua. [...] Então, tem algum movimento das escolas indígenas dentro dos territórios. Nas cidades, tem um movimento menor. Nas cidades, ultimamente, a gente fala da educação escolar indígena, e há leis e diretrizes. E, dentro delas, tem a questão da formação dos alunos, para que nas comunidades indígenas seja feito um fortalecimento do uso da língua indígena. Tanto é que, na minha comunidade, nós estudávamos em português e na língua indígena. A gente cantava nas línguas indígenas, a gente aprendia sobre o uso das plantas como remédios na língua. Enfim, nós praticávamos nossa tradição, mas dentro da escola. Então, existe a questão de usar a língua materna mas também de usar a língua ocidental, o português. Já nas cidades, algumas escolas têm como disciplina a língua indígena. Talvez no ensino fundamental e médio já não tenha. Nas cidades, os parentes mais jovens têm buscado resgatar a língua e se reconectar com a cultura indígena também. [...] A que mais prevalece é o nheengatu. Mas, já nas comunidades, elas privilegiam a própria língua. Se está no território baniwa, então, a língua privilegiada é o baniwa. Entre os baniwa, a gente tem as ‘escolas modelo’ que privilegiam a língua baniwa. Já nos meios urbanos, há um movimento muito fraco de recuperação da língua. Os parentes jovens têm tentado se reconectar para ver se aprendem a língua. Eu sei que tem alguns cursos que oferecem oficinas de nheengatu. De baniwa e tukano ainda não vi. Existem alguns movimentos de recuperação mesmo para os mais jovens, porque os mais jovens já não privilegiam mais a língua indígena. Os nossos pais e nossos avós, 90% deles continuam falando a língua indígena. Os jovens de hoje, muitos estão perdendo sua língua. E a língua é muito importante. É o que está ligado à nossa história, a tudo.

Dilmar Puri - Eu sou Dilmar Puri, do povo puri, sou de Goytacá. O puri é uma nação muito grande, eu sou do lado do Goytacá Puri. E também participo da aldeia Maraka’nà há alguns anos. No Brasil, são mais de 305 povos que se tem conhecimento. Então, há muita coisa, são mundos que existem, coexistem, que a gente não tem conhecimento nenhum, não aprende na escola, em lugar nenhum a respeito desses mundos que estão dia a dia convivendo conosco. [...] O puri é um povo que faz parte da nação puri, que dialoga e convive com outros povos que têm cultura muito próxima, que vivem em outros territórios. Como eu falei, os goytacaz, os coroados, coropós, os goyanazes, os guarulhos, que foram chamados de guarulhos, mas que se autointitulavam maromomi. Tem toda uma gama de povos que, como viviam juntos com os puris, e que têm uma língua mais ou menos comum, bastante similar, que é a língua puri, então é chamado de nação puri. [...] a nação puri é uma das maiores nações indígenas do país, nós temos registrados mais de 400 municípios que são terras puris, entre os estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, ou seja, justamente onde se montou a base do colonialismo. Foram em cima de terras roubadas de nosso povo e, mais recentemente, descobriram através de pesquisas nossas que até na Bahia existem vários municípios que pertencem aos nossos povos, onde havia aldeias puris, quando o Brasil foi invadido na época dos europeus.

Itaynara Tuxá - Eu sou de Rodelas-Ba. Eu sou Itaynara Rodrigues Silva, meu nome civil. Mas me autoidentifico como Itaynara Tuxá. Sou também filha das matas, do cosmos, das forças dos mais velhos, da ancestralidade. [...] Vou caracterizar o meu povo, nós somos da Bahia, da região do submédio do São Francisco, localizado ao norte da Bahia, conhecida tradicionalmente como território dos índios rodeleiros, que hoje são os indígenas tuxá. O nosso povo, desde a época da colonização, tradicionalmente ocupou essa região do Vale do São Francisco, do submédio São Francisco. O nosso povo foi o segundo povo a ser reconhecido pelo Estado no Nordeste e nós éramos conhecidos historicamente pela nossa relação com o rio São Francisco, a relação com essas águas. Éramos denominados como índios canoeiros, justamente por essas travessias, por nós sermos possuidores de ilhas e ilhotas. E tinha uma ilha muito comum nessa memória mais recente do meu povo, porque algumas ilhas como a ilha de Sorubabé/Zorubabé, na língua do Subucuá, na família kariri, a gente tinha essa ilha que, com uma enchente, tivemos que mudar.

Quando a gente muda de lugar, já vem a geração do meu bisavô, da minha avó, do meu pai, ficar nessa aldeia que foi palco das missões, conhecida como rodela. Tinha a ilha da viúva, dentre tantas outras ilhas, mas essa ilha da viúva ocupava uma centralidade muito grande do meu povo, de uma agricultura compartilhada, de rituais compartilhados, da nossa cultura compartilhada. Nós, quando fazíamos a plantação e a colheita, a gente era conhecido na região por levar essa agricultura para o comércio. Essas travessias eram de canoas, então, eram mais de trinta ilhas que a gente conhecia, era um outro tipo de relação. Depois da construção da barragem de Itaparica, no final da década de 60, com a ditadura militar fazendo todo esse processo de expansão e “desenvolvimento” no Nordeste, como por exemplo a construção da usina de Itaparica. Na década de 70 e até a de 80, foram quase 10 anos para a construção e todo o processo de remanejo forçado do meu povo e outras populações ribeirinhas, tradicionais, que habitavam aquela região. Então, foi um período que impactou absurdamente no nosso modo de viver, de subsistir, de subjetivar a partir dos processos territoriais, e, principalmente, porque nessa fase de planejamento já se era possível mensurar esses impactos com a cultura do povo tuxá.

Cacique Payayá - Nós somos um povo com história. Nós estamos sentados em nossa história. E essa história nos pesa muito porque não abrimos mão dela. Então, toda vez que alguém tenta interferir a gente reage - minha mulher diz - como jararacas mesmo. Porque nós defendemos aquilo que nós hoje já conhecemos e dominamos. Foram feitos vários apagões, mas apagões mal-feitos. A borracha não apagou tudo. Então, nós fomos lá e descobrimos várias faces da história e é nisso que nos baseamos hoje. Outra coisa é essa questão da tradição. A nossa tradição se perdeu muito. E hoje nosso papel é revigorar todas as pequenas coisas que restaram da tradição. E quanto à questão do que sabemos e da língua, ainda é mesmo um aprendizado porque o apagão foi muito forte. Ele veio para destruir. É como vocês podem ver nesse projeto do marco temporal. É uma proposta de apagão mesmo. Aliás, eu acho a mais perversa lei que eu já tomei conhecimento. [...] Os payayá falavam tupi. São coisas que a gente teve que lutar até para descobrir isso. Nos baseamos inicialmente nas pouquíssimas palavras que sobraram. Todas eram do tupi, como ‘andaraí’5 5 Sobre andaraí: nome proveniente do tupi-guarani, cuja grafia andarahy, significa andara (morcego) e y (rio), rio dos morcegos; Andaraí é o nome de uma das cidades da região da Chapada Diamantina. , ‘utinga’6 6 Sobre utinga: nome proveniente do tupi, cuja grafia é y-tinga, que significa y (água) e ting (branco/claro), ou seja, águas claras. Utinga, nesse caso, é o nome do rio Utinga e da cidade de Utinga na região da Chapada Diamantina. . Em palavras assim que nos baseávamos. Mas depois encontramos documentos de 1870 e não tivemos mais dúvidas. O colonizador que esteve com o grande cacique Sacanboasu, ele deixou claro e escrito sem mistério: “eles falavam tupi”. Nós não temos dúvidas, que a língua dos payayá era a tupi.

Entrevistadores - Fale um pouco sobre o sofrimento subjetivo de seu povo e meios de cuidado que têm sido cultivados.

Itaynara Tuxá (responde essa questão do ponto de vista profissional, não a partir do povo tuxá mas enquanto psicóloga, a partir do seu trabalho com os povos tupinambás) - No final de 2020, eu fui ser a primeira psicóloga a estar alocada em polo-base, na prática da política da PNASPI7 7 Sobre a PNASPI: Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), implementada pelo decreto n.º 3.156, de 27 de agosto de 1999, que dispõe sobre as condições de assistência à saúde integral dos povos indígenas. Essa política está alinhada às determinações das Leis Orgânicas de Saúde e da Constituição Federal de 1988, cujo princípio está baseado em um modelo complementar e diferenciado de organização dos serviços - voltados para a proteção, promoção e recuperação da saúde -, que garanta aos indígenas o exercício de sua cidadania nesse campo. 7, levando o trabalho e a psicologia para o território. Eu assumi vindo de um lugar, porque essa foi uma conquista do povo tupinambá: a de olhar para o seu sofrimento e dizer “é preciso a gente se articular”, porque a justificativa da minha ida se dava pelos casos de adoecimento em saúde mental, e se deu devido também ao contexto de suicídio de uma jovem indígena, que tinha acabado de acontecer. Eu chego no final de 2020, na pandemia, com algumas restrições ao território para acessar essa população, mas também nunca vou esquecer o lugar que o psicólogo simbolizou para aquela população em sofrimento. Fui também entendendo qual seria a minha atribuição, pensando não reforçar essa lógica da clínica individual, dos atendimentos individuais, que a grande maioria das populações indígenas pensa que é o trabalho, o papel do psicólogo de saúde indígena. Porque também a gente fala de uma política que tem 22 anos e apenas pouco mais de 3 anos aparece a figura de um psicólogo nessas comunidades; como esperar que eles compreendessem? Eu tive a preocupação também se eles entenderiam o trabalho de um psicólogo vindo de um lugar que a maioria mal conseguia falar a palavra psicólogo. [...] Eu também fiquei pensando nessas faltas do serviço do profissional nesses espaços. Eu fiquei pensando muito nesse lugar de expectativa e nesse lugar de falta. [...] A gente sabe que é muito importante a escuta para identificar as demandas, para depois a gente identificar fluxos. Só que, no primeiro momento, como não tinha esse profissional, as demandas foram muito altas. Eu parecia estar trabalhando em uma clínica individual. Uma das coisas que me deixou mais chocada, é que tinha muita demanda reprimida, muita coisa que eu ia fazer notificação compulsória. Ocorreram situações há muito tempo atrás, coisas sérias e graves. [...] Basicamente são ainda hoje as mesmas demandas atuais que eu ainda enfrento. Era muita violência contra mulheres, muito abuso infantil. Em geral, mulheres adultas, contando os processos lá atrás. Era mutilação, autolesão, tentativas de suicídio que nunca foram compartilhadas, que nunca chegaram aos familiares ou à própria equipe, porque algumas demandas são localizadas por profissionais, como a enfermeira, ou qualquer outro profissional da equipe identifica e encaminha. Acontece também que essa demanda vem da comunidade. A comunidade identificou uma questão e encaminha; ou essa demanda é espontânea, o sujeito busca por esse atendimento. Outra coisa muito diferente era a demanda espontânea, porque muitas vezes o lugar que eu estava ali, era o da confidencialidade, às vezes nem a família, nem o profissional da equipe sabiam daquelas situações. Eu também falo das demandas no sentido de não só pensar a violência de gênero, mas também o lugar desses homens no sofrimento, porque esses homens, apesar de serem eles que abusaram, que violentaram essas mulheres tupinambás, são eles que estão nos indicadores, a partir da planilha de monitoramento desses dados, de homicídio, do uso abusivo de álcool e outras drogas, ou no lugar também do suicídio.

A maioria das pessoas que se suicidaram aqui em Ilhéus foram homens, mas a maioria que tentou foram mulheres. A maioria que faz uso de psicotrópicos, eu posso considerar que sejam mulheres também. Então, existem sofrimentos e violências, que são múltiplas, acontecendo. Claro que em proporções, contextos e práticas diferentes. Eles têm sido vítimas de homicídio. Quando falo em abuso sexual, é entre os próprios indígenas, homens indígenas que abusam as mulheres, ou também pessoas de fora que praticam o abuso, porque, como aqui também não é diferente da realidade de outras populações indígenas, o território tupinambá não é um território demarcado. Então é um território que está em trânsito de muitos interesses do tráfico, dos empreendimentos... Nós vemos um aumento absurdo das construções de hotelarias e de condomínios luxuosos, muito próximos dessas comunidades que estão mais de beira de pista e próximas dos centros urbanos. Só que, dentro das aldeias que estão afastadas e têm o acesso mais difícil, ocorrem mais essas situações. Existe um trânsito muito grande de não-indígenas porque existe a monocultura dentro dessas terras, que inclusive é o cacau e a piaçaba. Por essa insegurança territorial, coloca-se também em xeque tantas outras inseguranças como a habitacional, alimentar, social, cultural; então é um entremeado de coisas, que, quando pensamos violência na população indígena, nunca podemos considerar que é uma única violência, porque ela vai estar atrelada a outras.

É preciso respeitar a autodeterminação dessas populações, porque com isso nós desvinculamos dessa tutela que há muitos anos essa população indígena foi submetida. O que é violência para esse povo? O que é o suicídio para esse povo? É uma prática cultural? Eles compreendem, têm esse entendimento, de que é uma prática cultural? Quando a gente olhava esses casos pela lente da individualidade, quando a gente não colocava nessa lente um olhar contra-hegemônico, um olhar de desconstrução e de construção de outros saberes. Desde o início eu falo da importância desse lugar, desse território, para os processos subjetivos para as populações indígenas, em que eu coloco inclusive que nós somos construídos nesses processos, enquanto sujeito individual, mas também enquanto corpo coletivo, eu quero dizer que tudo que atravessa esse território, me atravessa também, se esse território está atravessado por empecilhos, violências, descrenças, ataques, mutilações e fragmentações, pela morte desse território, da biodiversidade, dessa memória que é coletiva, porque uma das estratégias da colonialidade para a colonização do nossos corpos, como produção em massa, é a destituição da nossa cultura. Hoje também existe de uma forma, talvez, mais velada ou não tão velada assim, que há uma destituição em curso das culturas indígenas que vêm muito nesse lugar também das tecnologias, desse lugar de comparação e do lugar histórico de construção dos corpos e territórios indígenas. Sempre foi um lugar com dores, de perdas, então existe também esses conflitos intergeracionais e atuais das tecnologias, onde parece haver um mundo ideal, porque o meu mundo real é a construção que nós temos e a experiência devido a todas essas violências e inseguranças; entra a renda, a alimentação, entra acesso a alguns serviços e políticas públicas.

É importante a gente falar nesses acessos, na construção do lugar de habitação, desse racismo ambiental, dessa construção de que a cidade é melhor do que a zona rural, deste lugar de investimento que as cidades têm, que as zonas rurais e as comunidades tradicionais não vão ter; tudo isso também produz essa morte simbólica dos sujeitos que estão no território e não sabem se são indígenas e sofrem influências para abandonar suas práticas, rituais e modos de viver. Há a influência das igrejas dentro das comunidades indígenas, que nenhuma outra política pública, nenhum tipo de serviço chega. Mas a igreja está lá dentro e está convidando, dando lugar social para aquele sujeito, dando função e sentido, por quê?

Se a comunidade não está em regimento e união, ela está enfraquecida. A nossa luta, nosso enfraquecimento não é só físico, ele é espiritual também. Se não alimento esse meu espiritual, essa nossa cultura com o que vem da terra, com a terra, eu também não alimento esse corpo que é constituído por esse território. Devemos pensar nessas atualizações da colonialidade e nas formas de produção de sofrimento e adoecimento que vêm também com os avanços dessas políticas do agronegócio, com o neoliberalismo e as tecnologias em nosso território. Não são respostas tão rápidas e imediatas que o Estado tem com políticas públicas, como são esses outros meios de acessos que entram na nossa comunidade.

A partir das falas de Itaynara Tuxá, destacamos essa, em especial, que visa nos orientar a um horizonte subjetivo sobre a invenção e soluções a partir dos modos de fazer clínico:

Itaynara Tuxá - Eu acho que a gente já vem construindo, não essa clínica somente do atendimento individual, mas vem construindo também outras perspectivas da clínica. É importante a gente construir modos de relação com esse território, a gente precisa reinventar esse atendimento, adaptar algumas coisas desse modo de fazer, e como são potentes esses espaços, espaços políticos inclusive que a gente está construindo. Falando aqui, mesmo que não tenha tido formação, mesmo que não tenha tido contato, esse também é um lugar político e aqui também pode ser um lugar pedagógico.

É fundamental pensar também nessas estratégias que podem ser construídas, e nunca construções isoladamente, porque nos mundos indígenas a aposta é sempre pela coletividade e as respostas também desses itinerantes terapêuticos, dessas questões clínicas, das resoluções estão dentro da comunidade; então, também essa escuta coletiva ela é importante, muitas vezes mais do que a escuta individual. Tem uma coisa no meu trabalho sobre a gente mapear e conhecer o território, conhecer as demandas e as estratégias de potencialização; porque, como eu falei, o território vai ter tanto as suas produções de vida quanto produções de morte, muitas vezes produções de morte provocadas por outros.

Quando a gente pensa nas estratégias de potencialização, no bem-viver, no quê de vida tem o território, descobrimos por que o território é vida. Eu não escolhi trabalhar só na aldeia tuxá, eu escolhi trabalhar também com a escola indígena tuxá, com a educação escolar indígena, todo mundo pergunta: o que é que têm os tuxás? Isso vem fruto de lutas e processos de reinvenções que a gente precisa ouvir, sem ter esse território físico, mas carregando apenas esse território simbólico, afetivo, corpo-território; então, na impossibilidade dos modos de viver sem aquele território, a gente inicia uma luta pelas mulheres tuxás nos anos 2000 para conseguir a primeira sala, a primeira turma. Mas, anterior aos anos 2000, ainda jovens, sem alcançar a maioridade, algumas mulheres saíram dos seus territórios para outros estados atrás de um nível técnico e, hoje, algumas delas estão ocupando cargo público na FUNAI, na Defensoria Pública, no ministério, em concurso na FUNAI. [...] Então, pra gente é uma grande conquista, isso se deve também a essa luta pelo território já que a gente não tem o físico, essa luta também vai para outros espaços, outros campos.

A questão do suicídio, que é quase quatro vezes maior entre jovens indígenas do que em todos os outros jovens no país, nos chamou a atenção, ao longo da fala dos entrevistados, tanto da Cacique Valdelice ou de Itaynara Tuxa. Esse é o tema da dissertação de mestrado de Geana Baniwa, que o aborda a partir da pesquisa sobre seu povo, mas também de forma abrangente no que diz respeito às demais etnias indígenas brasileiras. Os demais entrevistados também o abordaram e esse tem sido o motivo principal dos encaminhamentos das populações indígenas aos psicanalistas de nosso projeto.

Geana Baniwa - A gente tem um número significativo de suicídio nos territórios, [...] É um número bem alto. E, quando vamos parar para ver, ocorrem mais em determinadas localidades. A gente tem muitos no Alto Rio Negro, no Mato Grosso - guarani kaiowá, entre os guararani, os tikuna - Rio Solimões. Me parece que são determinadas localidades. E por que essas regiões? E estudei essa questão do suicídio na região de São Gabriel da Cachoeira no Alto Rio Negro, investigo as causas e como acontecem. Mas por que só lá no Mato Grosso? Por que no Alto Solimões? São regiões de fronteira, onde as terras não são demarcadas? É onde tem muito contato com o mundo ocidental? Essas discussões merecem ser mais amplas. Já existem muitas pesquisas que tratam de forma mais minuciosa essas questões da causa que envolve o alcoolismo, as relações familiares fragilizadas, do contato ocidental, transtornos mentais e inúmeros outros fatores que são esmiuçados para explicar a questão do suicídio.

Mas a gente não entende de uma maneira geral, global daquela região. A gente tem que ampliar nosso olhar para entender melhor a questão do suicídio. Do que observo, a questão do consumo de bebida alcoólica está muito atrelada entre os guarani kaiowá, entre os kuna também. Muitos autores dizem que não se pode atribuir diretamente o alcoolismo como único fator por serem diversos os fatores. São fatores culturais, sociais, econômicos e históricos. A gente sabe que teve um conflito inicial com a entrada dos colonizadores onde aconteceu todo genocídio. E isso também é um dos fatores elencados como de risco para questão do suicídio. Há um histórico de violência e destruição que acaba, de alguma maneira, caminhando junto até os dias atuais. A gente sabe que a violência ocorrida ali no primeiro contato com os colonizadores perdura até os dias atuais. Na verdade, ele foi se modificando e até hoje são inúmeras as violências que os povos indígenas sofrem e que colaboram para essa incidência tão alta de suicídio.

Cacique Payayá - Eu gostaria muito de dizer que está tudo em paz, mas não está; nós herdamos algo caótico. Os nossos parentes eram felizes. Essa coisa de ir para a cidade... quase todos voltaram com problemas pesados. E hoje o que percebemos é que temos que conviver com isso. Nossos velhos, por exemplo, estão todos aí deficientes, com problemas sérios, com problemas de demência. Os jovens voltaram com problemas de drogas e alcoolismo. As meninas, algumas, voltaram com o filho indesejado. Em compensação, recebemos um pequeno grupo que acolheu essas pessoas e nós temos dado o braço. Eu, minha esposa, minha cunhada, minha filha, mas nós estamos tendo problemas muito sérios com isso. Os idosos daqui são todos da minha idade. Fomos crianças juntos. E hoje eles estão dementes. A gente tem aqui uma casa muito boa para acolher nossos velhos. Tudo que temos aqui foi com ajuda. Eu sinto muito por não poder fazer mais. Eu faço mais ou menos hoje o papel do nosso último cacique. Ele morreu ajudando as pessoas. E eu procuro esse caminho. A ancestralidade indígena, ela foi construída assim. E o que eu prego aqui é isso: se você tiver esse relacionamento com o outro, esse braço dado, esse fôlego, e se você não sentir o cheiro do cangote do outro, nós não estamos indo bem. [...] Aí entra meu irmão que trabalha com as ervas, com as raízes. E minha irmã trabalha também com as ervas. E essa questão tem nos ajudado muito, porque cada pessoa que tem seguido o caminho deles e a orientação que eles dão, tem melhorado muito. A questão espiritual e, por exemplo, da nossa saúde mental, que nós achamos que ela está muito ligada a nossa espiritualidade e nossa cosmovisão. No meu livro Fenomenal (2022), eu tentei mostrar para vocês brancos os fenômenos da natureza como uma coisa viva, e, em sendo viva, ela pode ser entendida e alcançada por nós.

Para além do sofrimento psíquico e da temática do suicídio, houve também outros modos de responder “O que os psicanalistas aprendem com os povos indígenas?”, a partir de questões voltadas aos sonhos e à temporalidade, de modo que se apresente às cosmogonias de cada povo na perspectiva dos/das entrevistados/as. Com isso, essas falas, por mais que sejam de cada um, não reduzem a vivência de todo um povo em si. Portanto, apresentamos, na sequência, falas que revelam essas cosmogonias sobre os sonhos e a temporalidade.

Entrevistadores - Fale um pouco sobre sonhos: qual a função deles nos processos de subjetivação da sua comunidade ou naquela que você trabalha ou se inseriu?

Itaynara Tuxá - Quando você fala, por exemplo, dos sonhos, é muito mais a gente pensar todas essas construções mediadas pelo território, porque, se a gente pensar o sonho para minha população, ele não é só uma manifestação do inconsciente ou de coisas que estão conflitando ou efervescendo psiquicamente. É importante dizer que a construção de sonhos, do conceito do sonho, é uma construção da ocidentalidade, então, possivelmente, se você está em diálogo com um indígena e você perguntar sobre sonhos, ele vai dizer: “sim, nós sonhamos”; mas não é o tipo de sonho que talvez tenha um outro significado pra gente, que talvez a gente não vai nomear como sonho, como se fosse algo do ideário, do imaginário, como se não fosse real. Nós temos essa construção coletiva que sonho não é uma utopia ou uma construção do imaginário. Para as populações indígenas, e eu vou falar no lugar de uma mulher indígena tuxá, pensando nessa relação que eu tenho com o território, que implica essa espiritualidade; se a gente pensar nessa espiritualidade indígena, nesse território, o sonho interroga: “que corpos indígenas são esses?”; porque muitas vezes ele vem em um lugar da sabedoria, da orientação, da mediação com os nossos encantados, com a integralidade, com a mãe natureza. Às vezes, esse sonho é com plantas, quais são as plantas que a gente vai usar com aquele cuidado, daquela cabocla, que é da língua dos antigos e dos mais velhos do meu povo; eles trazem ainda na linguagem muito resquício colonial, mas que, em muitos momentos, eu até reforço como questão política do que seria esse pretuguês.

Eles falam que, no nosso idioma, no nosso conhecimento, esse sonho estaria ligado a uma questão de produção de sabedoria tuxá, de orientação, quando a cabocla está precisando tomar uns banhos, você chega para aquela pessoa que tem um conhecimento e diz: “olha, eu estou me sentindo pesado, e parece que meu corpo está sobrecarregado”. Muitas vezes, esses indígenas não precisam chegar e falar para essa pessoa, porque esta vai ter recebido a orientação e o que eles chamam de mensagem, muito desses processos está na ordem do oculto, do segredo. Muitos desses sonhos não podem ser verbalizados, porque esses corpos que nós chamamos de aparelhos, não têm a permissão, muitas vezes, de contar. Isso tem a ver com o que a gente chama de regimento, da nossa ciência, quanto mais doados nós somos ao regimento da ciência tuxá, quanto mais integralidade, disciplina e culto a essa ciência tuxá, mais sabidos nós seremos, mais orientações nós teremos, mais conhecimento do cosmos, nós teremos. Eu não falo nem só das plantas, mas o conhecimento dos rios, assim como os nossos antepassados conheciam tudo sobre os rios, sonhavam com a mãe d’água, com as orientações, dizendo onde tinha o que pescar para poder pescar mais peixes, com o nosso padroeiro que é São João Batista, mas que para o meu povo é o velho [Kaneném], que é o dono do Centro. O dono da nossa ciência, compadre [Soá] também. Quando falamos de sonho falamos de muitas questões que atravessam esse lugar de território, de sagrado e de ciência. A ciência que produz nossos saberes. [...] Hoje, depois de tantas modificações, quanto mais reduzidas as possibilidades do nosso território também mais reduzidas vão ser algumas questões e processos de cuidado nosso, porque o sonho também está nesse processo de cuidado. Pensando esse corpo que sonha, quem é esse corpo? Qual é a função desse corpo para a comunidade? Eu estava lendo algumas teses, pensando em escrever sobre o meu povo e esses impasses do sofrimento ético-político, o povo tuxá, eu me deparei com a tese em que relata uma cabocla, no tempo do meu bisavô e minha bisavó, que era uma cabocla muito bem resolvida, em que o pajé hoje ancestralizou; ele também em uma passagem falava de algumas plantas, peixes e da biodiversidade desse território que foi inundado e da força, porque lá também estavam os cemitérios ancestrais dos nossos mais velhos. Com essa inundação, houve uma redução desse conhecimento, do território, porque é uma outra realidade. Pensando essa outra realidade, inclusive as gerações dos mais velhos, que tinham toda essa memória funda, larga daquele território se perdeu porque os nossos mais velhos também estão se encantando, eles estão se ancestralizando. O conhecimento desse novo território, da nova geração, vai ser diferente. As estratégias de cuidado dos sonhos também vão ser diferentes, a intensidade e a frequência desses sonhos também vão ser diferentes. É muito comum eu ouvir dessa memória coletiva de que nós tínhamos mais conhecimento antigamente, nós tínhamos uma rede de cuidado muito maior, que hoje existe uma fragilidade. É preciso a gente pensar nessas estratégias atuais que nós, enquanto sujeitos de nosso tempo, temos inventado. Eu acho que não é mais possível a gente pensar apenas nesse conhecimento e esses sonhos centralizados em corpos mais velhos, porque os nossos mais velhos estão indo. É preciso haver uma adaptação nessa cultura. Precisamos pensar as especificidades. Sempre houve, mesmo tendo muitos rituais coletivos, como contam de antigamente desse território, mas sempre houve também micro lugares de cuidado, em que cada família também tinha seu próprio lugar de cuidar da família que não era aquele cuidado maior como o da comunidade. [....] Por exemplo, no meu quartinho, que a gente chama nesse lugar sagrado de cuidado, que não vai entrar apenas sonhos, vai entrar banhos, vai entrar outras orientações. Hoje, quem assume esse lugar, inclusive quando eu preciso de uma orientação, banhos e cuidados coletivos, dentro da família, é o meu irmão. Eu falo de um menino, de um rapaz de 23/24 anos que se iniciou muito cedo nesse chamado, porque é um chamado, e muitas vezes vêm como sonho. Esse lugar social que a gente vai ocupar pensando no processo de espiritualidade, muitas vezes ele vem através, revelado nesse sonho. Mas que a gente sabe que não é um sonho, mas uma comunicação ancestral. Assim como meu irmão, têm muitos outros jovens ocupando lugares no conhecimento tradicional tuxá, porque é preciso também a gente pensar nesses lugares, porque é o ciclo. Os nossos mais velhos estão levantando, se ancestralizando e os nossos mais novos estão chegando, porque é preciso que eles cheguem para que a gente consiga regimar. [...]

Geana Baniwa - Em relação aos sonhos, temos muitas explicações sobre isso. Por exemplo, se eu sonho e levo um sonho bem intrigante, como sonhar que foi mordido por uma cobra. E, ao compartilhar isso com outros parentes, no café da manhã, eles diziam para tomar cuidado porque poderia acontecer alguma coisa. Os mais velhos têm explicações para quase todos os sonhos. Alguns estão muito ligados à espiritualidade. Inclusive, eles podem mostrar para a gente se vamos ficar doentes, por exemplo, quando se sonha que se está muito feliz ou se que tirou um dente. Ou quando sonhamos que estamos viajando. Os mais velhos vão dizer que é perigoso, porque é sinal de morte. Geralmente, a maioria dos sonhos que levamos para os mais velhos, ou os mais sábios, eles sempre falam que vai acontecer tal coisa e geralmente acontece muito. E não sei a origem dessas explicações. Inclusive, dependendo do sonho, a gente nem sai de casa. Lá na comunidade, quando se tem um sonho não muito bom, que a gente acorda com uma sensação muito sufocante ou muito angustiante, a gente não vai para a roça, não vai pescar e fica em casa. Porque é certo que, quando tenho esse tipo de sonho e saio mesmo assim, acontece alguma coisa. Por isso que os mais velhos mais sábios orientam, porque a chance de acontecer alguma coisa com a pessoa é de uns 99%. [...] A gente, no território indígena, se liga demais nos sonhos. Porque a gente sabe que, quando o sonho é ruim, por exemplo quando tá arrancando dente, pescando ou arrancando mandioca, a gente sabe que aquilo lá tem significado. E pode ser ruim ou bom. E, no contexto urbano, muitos já não trazem mais isso, muitas coisas são valorizadas no território, mas no contexto urbano é diferente. Tem muita diferença de um para o outro.

Dilmar Puri - Para o meu povo, o sonho é muito importante também, porque, na realidade, eu já pesquisei muito sobre isso - sociedades indígenas e povos indígenas - e até hoje eu não descobri um povo onde os sonhos não são importantes. Assim tem uma relação com a psicanálise porque Freud teve um insight muito importante no trabalho dele. Com relação ao meu povo, a gente costuma contar os sonhos, mas geralmente os sonhos que são, por exemplo, ou pode ser um sonho todo doido, todo malucado, cheio de coisa caindo, surgindo, desaparecendo, monstros ou fadas, ou sei lá o que, eu tenho que te contar, seja claro ou não, porque, mesmo que ele não faça sentido, ele não sentido para mim, mas você vai ter a chave que vai abrir aquele enigma, e ele pode ser um aviso dos ancestrais de que vai acontecer uma coisa boa na sua vida ou uma coisa ruim. Com relação aos sonhos, nós temos esses costumes, não necessariamente contar para os anciões ou fazer uma discussão pública como são com outros povos, mas os sonhos como uma coisa espiritual, onírica de contato com a ancestralidade, com aquelas que já foram mas que continuam trabalhando em espírito para poder estar nos ajudando, porque no nosso modo de ver, existe uma guerra espiritual, maior do que a guerra material. Então, os ancestrais, que encantaram, estão travando uma guerra espiritual a favor do nosso povo e também das pessoas aliadas [...]. Agora eu vou falar sobre os sonhos no geral. Acho que a melhor definição dos sonhos, no modo geral, dos povos indígenas é a que deu Davi Kopenawa, yanomami, no livro dele. Ele falou que o sonho é a escola do índio, tem no livro dele, com o Bruce Albert. Quando o índio quer aprender alguma coisa, ele dorme, às vezes toma uma coisa para dormir, não é um Rivotril, é um rapé, coisas ancestrais que vão ficando muito melhor, daí ele vai sonhar e ali ele vai ter o contato com os ancestrais dele, e vai aprender sobre aquilo que ele precisa saber para resolver algumas coisas, algum determinado caminho para resolver alguma área.

Cacique Payayá - Essa coisa da nossa ancestralidade ainda está sendo construída. Porque esse processo de bíblia, de padre, de pastor, por pouco ele não destruiu tudo. Então, ficou muito aquela coisa da ligação do ser com Deus, da alma, do espírito. Só que tem um problema. O Kopenawa, ele acaba fortalecendo mais na gente a crença de que nada morre, o nosso espírito. O que morre, na verdade, é o corpo. Se você não tem um corpo, você imagina que não vive. Mas, quando você pensa em ancestralidade, você pensa em uma pessoa que não tem o corpo, em um ser sem corpo. Mas você não pensa, por exemplo, em um ser sem a vida. O ancestral é aquele tempo passado. A gente pensa que a palavra tempo não está bem definida ainda, porque o tempo pode ser exatamente esse ancestral. O tempo pode ser tanto uma passagem como pode ser um elemento. E imaginar que você tem um avô, uma avó. Imagina que sua avó foi contaminada pelo sêmen de um matador de índio com as mãos sujas de sangue. Imagina que nós somos fruto disso também. A minha ancestralidade chega só até aí. Ela foi abandonada. Porque, se você imagina que a morte dos nossos significa abandono, a gente deixa de acreditar que a vida tem propósito. Então, como nós acreditamos que vida tem propósito, nós não aprendemos a conviver com ‘vontade’ de preservar a vida do outro. O propósito da vida seria viver melhor e viver determinado tempo e depois se recolher. Essa questão é fundamental. Se você tem uma pessoa que teve seu físico destruído e ela preservou sua alma a ponto de dar vida. E que essa vida de hoje reconhece esse passado, essa existência. Provavelmente, essa pessoa que deixou de existir, ela tem alguma relação no seu tempo com algo de nós aqui. O máximo que eu posso dizer é que podemos chamar de um lugar. Nós acreditamos que esse lugar é na terra. Nós não acreditamos que vamos sair daqui e ir para determinado lugar. Nós acreditamos que existe um espaço, um lugar na terra, onde nossos ancestrais preservam lá uma vida diferenciada e talvez nos aguardando chegar um dia. É complicado. Foi mais ou menos assim que ouvimos dos nossos pajés. [...]

Entrevistadores - Como o seu povo lida com a temporalidade, já que temos percebido que o tempo para os povos tradicionais é diferente da tradição ocidental.

Geana Baniwa - Nós somos baseados nos saberes e no conhecimento de nossos ancestrais. O que a gente aprendeu foi aquilo que nossos pais aprenderam com nossos avós. Cada povo, cada região e cada etnia vai significar o tempo a sua maneira, de acordo com sua historicidade e cosmovisão. Para os baniwa, a questão do tempo é inerente à vida dos nossos antepassados. A vida dos nossos antepassados foi norteada por todo conhecimento que veio dos mais velhos. Até os dias de hoje, muita coisa tem se perdido. Até mesmo por essa questão de falta de transmissão desses conhecimentos, por falta de interesse em dar continuidade a todos esses saberes. E, quando falamos, tal como Aílton traz, que o futuro é ancestral, é porque a gente se vê muito perdido e confuso quando vemos que muito da nossa vida e do nosso conhecimento vai, de alguma maneira, se difundindo muito com a sociedade ocidental. Essa questão das mudanças climáticas e tudo que está acontecendo. Estamos avisando os cientistas que isso vai acontecer. E a gente, enquanto indígena, vai pensar de diversas formas. Eu lembro que meus avós já falavam desse tempo que estamos vivendo. Eles falavam que daqui um tempo veríamos coisas que nos deixariam assustados. Eles falavam muito dessa questão de doenças e de como as pessoas perderam um pouco a noção da realidade do mundo que a gente vive. [...] Em relação à questão do tempo, de alguma maneira, ele foi se interligando com essa influência do mundo ocidental e muitos perderam a concepção dos antepassados. Nós, baniwa, acreditamos que o tempo que vivemos hoje é consequência do que fizemos antes e agora, como alguns cientistas mesmo dizem.

Dimar Puri - Alguns estudantes da Unirio questionaram como é que os indígenas foram capazes de pegar uma semente que era venenosa, domesticá-la e transformar ela em uma semente comestível. Nós explicamos para ele que esse é um trabalho milenar, de geração para geração, que o indígena não se importa de começar um trabalho agora e não terminar em vida; ele conta com as próximas gerações, ele conta que depois vai voltar também, mesmo que não volte como matéria, a espiritualidade dele trabalha também. Enfim, é uma relação de temporalidade. Nesse mundo colonial que a gente vive, queremos tudo para hoje, para agora, então “farinha pouca, meu pirão primeiro”, a morte para a gente tem um outro significado. [...] Essa frase do Krenak, de que o futuro é ancestral, é sobre nós queremos, enquanto indígenas, reconstruir a nossa sociedade como era há 500 anos atrás. Então, não estamos falando de passado, estamos falando de futuro. Alguns filósofos, europeus inclusive, como o conceito de eterno retorno, tem toda uma discussão se é um eterno retorno do mesmo, se é um eterno retorno do diferente. Porque o mundo é bem simples, o ser humano é que complica as coisas. Marx fala no texto de antropologia filosófica, que ele fala sobre como o homem é um criador de necessidades. Então, ele cria cada vez mais necessidades. Antigamente, a vida era tão simples, era tão mais feliz na relação com as coisas que eram tão importantes. Mas o homem foi criando a cada geração, a cada modo de produção, foi criando outras necessidades. Esse mundo é muito doido, porque a visão do mundo, ela ainda é linear. Você falou do cartesianismo, porque o Descartes, ele foi um dos principais criadores do que se chama filosofia moderna. O nosso modo de pensar ainda é muito modernista, ele é muito atrasado, isso tem 500 anos de idade. [...] É um mundo muito cartesiano; nessa questão da temporalidade, o tempo não é linear, o tempo é circular. Depois das grandes navegações, depois que eles conheceram os povos indígenas e o mundo inteiro, é que eles desenvolveram esse conceito moderno da terra como uma bola. É um círculo, é a nossa figura geométrica, se é que podemos dizer assim, mais sagrada, que é o círculo sagrado indígena, a roda, é o maracá, que é redondo. As nossas cosmovisões sempre foram circulares, nunca deixaram de ser; quando você vai para frente, na realidade, você também está indo para trás, porque é um círculo. A gente não faz um movimento circular, a gente não faz um desenho, a gente não faz uma dança. Voltando à questão do corpo, você não pode dançar pela terra, fazer um nomadismo, uma coisa que se fala muito na ciência, o conceito mais curto entre dois pontos é a linha reta, o caminho mais curto entre A e B é a linha reta. Isso é geometria pura; a geometria não existe na terra, ela não existe na matéria, ela é só um conceito espiritual. Você nunca pode ir em linha reta de um lugar para o outro. Se vir uma árvore no caminho, você não pode derrubar a árvore, ou uma montanha. Essa é uma questão espiritual dessa ciência, dessa filosofia colonialista, de tudo botar em uma régua. O mundo criou várias necessidades que são supérfluas e vai chegar um momento que essas coisas vão sendo, como falava, negar a negação. Todas essas negações da natureza vão ser negadas uma a uma, vão ser conjuradas, as coisas vão voltar ao normal. Não é o normal, a coisa que você falou, a cura total não existe? Não seria o fim da história? Mas pelo menos elas vão voltar ao eixo mais saudável e não por opção, ninguém pensa por opção, mas tem uma coisa que te empurra por necessidade. Você pensa por necessidade. A tragédia vai fazer com que o ser humano pense uma maneira de voltar ao eixo, ou então ele vai ser dizimado. As coisas já estão muito fora do eixo, já foram muito para lá e não fizeram a curva, estão fora da cosmovisão, fora da cosmologia e não fizeram a curva [metáfora da curva].

Cacique Payayá - O tempo. Para se pensar tempo, precisamos sair dessa coisa de corpo. O corpo, você quer que ele seja seu corpo mas o tempo prova que o corpo não é seu. A cada momento, o corpo é um ser, é um ente. Imaginando dessa forma, aí, eu acho que dá para você pensar o tempo. Quando você vê essa coisa do passado e do presente, da forma como nossos intelectuais indígenas defendem. Eu só consigo pensar no tempo se eu pensar muito remotamente. Quando se fala, em desejo e querer, eu tenho que acrescentar uma terceira [palavra]. Eu só consigo entender desejo e querer com vontade. Se você não incluir, no desejo e no querer, a vontade fica só uma coisa do tempo presente. Mas, quando você fala em vontade, você retroage. Há duas vontades. Uma é aquela imediata, do corpo. E a outra é uma vontade superior, que nós indígenas costumamos chamar de temimotara. Ela seria um elemento de uma superioridade tal que ela é maior que o tempo. Ela é, sem dúvida nenhuma, um elemento capaz de produzir o coletivo. E, sem ela, você pode produzir o individual, mas o coletivo não, sem a ‘vontade’. Então quando retroagimos um tempo atrás, houve um tempo em que o tempo não existia. Houve um tempo em que houve uma ‘vontade’ para que o tempo existisse. Então, se é que essas duas coisas se batem, batem de testa. Se o tempo não existia e existe uma vontade para que o tempo existisse, existe alguém que teve essa ‘vontade’, que teve a temimotara. E aí vamos pensar em um grande espírito, em um cérebro. Um núcleo super-inicial que evolui, que se redime, ele se autoproduz. Então, ele se autoproduzindo, ele é capaz de se tornar gigante porque ele mesmo se constrói, mas, nesse caso, ele ainda não é coletivo. Ele é individual. Até que a ‘vontade’ dele de não ser só ele faz com que ele possa se tornar individual ou coletivo. E aí, na minha imaginação como indígena, esse vetor inicial foi capaz de se multiplicar; uma replicância. E sua multiplicação pode ter dado origem a tudo que existe, ao universo. E as pessoas, para mim, confundem muito. Porque as pessoas o limitam a um ser que diz assim: “Haja luz”. E daí, houve luz. Racionalmente, não houve isso. Porque, se você fala assim “haja luz” e houve luz, e o espírito desse poderoso pairava sobre as águas, então, já existia água. Se pairava sobre a terra, então já existia terra. Se fez um boi de barro e assoprou, então já existia a matéria-prima. Quando você pensa no tempo, ou você o pensa no passado e que agora presentemente estamos aqui discutindo ele, ou você pensa como o Krenak e o Kopenawa, que dizem que o futuro não existe. Existe um elemento que se chama vontade e está acima de tudo e que está acima do tempo. Porque, se encaramos o tempo como um elemento, um ser, então o tempo tem ‘vontade’, tem temimotara. E, se você imagina o indivíduo como individual, ele também pode ter vontade de ser coletivo. Mas ser coletivo apenas com o seu semelhante, o tempo ser coletivo com o próprio tempo ou o tempo pode ser coletivo com outros elementos como o espaço. Mas eles precisam estar em harmonia e isso também se chama temimotara. Vamos então descer ao nível do presente, ao nível da transformação. Houve vontade de criar o rio e de transformar todo esse processo de vida. A vida é um processo. E que, sem o rio, talvez não existisse. Quando você pensa assim, você acaba percebendo que o que estamos fazendo hoje, que chamamos de ‘transformação’ x consumismo, que nós estamos destruindo através de um processo que é a produção e que é destruição. Porque destruímos e não reconstruímos e aí vem a questão do consumismo. Que é algo de um espírito muito vulgar dos seres humanos, que não conseguimos superar ou pensar como superar isso ainda.

Trazemos aqui um relato da indígena Thaiany Santos Araújo, do povo guajajara, que vem atravessando um processo de análise e que nos transmite como faz uso da experiência analítica conjugando os saberes de seu povo e as tradições diversas sustentadas na aldeia Maraca’nà.

Entrevistadores - Com todo o ataque que a população brasileira vem sofrendo durante o governo Bolsonaro, considerando também o neoliberalismo avançando, a necropolítica, a destruição dos biomas, das matas, por outro lado, temos acompanhado a luta dos povos indígenas pela demarcação e pela retomada das terras que chega a ponto de termos a primeira mulher indígena que assumiu um ministério. O que você acha disso?

Thaiany Araújo - Pois é. É importante o outro aprender a ouvir, principalmente as lideranças indígenas. O ocidental está tão preocupado em falar, em impor, e aprender a ouvir o saber indígena é a primeira coisa a fazer. Pela escuta, pela sensibilidade, aprender mais a ouvir, ouvir o outro, para melhorar as nossas relações, ter mais sensibilidade. Acho que as etnias, elas estão querendo passar uma mensagem e as pessoas não querem ouvir e, assim, é tão significativo a forma como o indígena lida com a terra; por que o branco não consegue aprender isso? Por que eu tenho que sempre mercantilizar, sabe, em vez da troca? Aqui, a gente está trocando, trocando ideia, trocando informação, trocando carinho, olhar, sabe isso é troca, é aprender a lidar com a natureza, a melhor coisa é a observação. Quando você começa a observar os processos naturais, você meio que canaliza, interioriza e entende que a terra é um ser vivo, e que ela fala com a gente o tempo todo também, eu estou tendo essa sensibilidade de ouvir a terra, de ouvir os meus ancestrais e minhas ancestrais, que falam comigo o tempo inteiro...

Entrevistador - E o que elas dizem?

Thaiany Araújo - Ih, várias coisas. É mais o campo da percepção, eu tenho percebido muitas coisas, e aprender a cuidar, a cuidar de mim, a cuidar do outro, a cuidar da natureza. Uma vez que a gente está aqui para isso, sabe, em uma irmandade, é troca, é o tempo todo a gente trocando, sabe. Sabedoria é isso, é você não reter o que você tem de informação e sim você passar para o outro, quando o outro também está a fim de compreender.

Entrevistador - Não adianta falar sem ter alguém que escute, né? O fato é que o psicanalista é aquele que escuta. Buscamos escutar alguma coisa além da razão. E aí, nesse sentido, acho que é até interessante poder te ouvir porque você tem feito análise, você faz um tratamento pela palavra, certo? Será que a gente pode supor, por exemplo, que o inconsciente pode ser trabalhado junto aos povos indígenas [...]?

Thaiany Araújo - A minha experiência com a psicanálise tem sido interessante, porque é isso, é o meu desabrochar, é eu me perceber, eu tô me percebendo... Tem uma frase da Maria Sabino - vem muito ao encontro do que você falou, que é cura pela fala - quando a sua fala for um canto e o seu andar for uma dança você está curada [...] É a forma da gente conseguir se curar, sabe? De uma forma mais mansa, de uma forma mais calma, de uma forma mais sutil, ter essa seriedade, porque os povos indígenas não têm medo de morrer, a vida continua. Então, tipo assim, nós somos isso, as montanhas, as árvores, a terra, as folhas, nós somos isso tudo. Então, para o indígena, é uma experiência, a vida na terra, pra você cuidar, está sendo uma experiência para mim, vivenciar isso. Estou me autoconhecendo, me autodescobrindo, eu tenho muito orgulho de ser indígena. Então, assim, de uma forma especial, sabe, meu pai era uma pessoa incrível, ele é um ser incrível. Ele, guajajara, de uma forma que me criou, me educou, e está em conexão comigo o tempo todo; esse contato que a gente tem com os nossos ancestrais. Por que, no México, eles não choram a morte, eles festejam? Por que ensinaram para a gente que a gente tem que chorar os nossos mortos, por que ensinaram isso para a gente? Por que o mundo ocidental ensinou isso para a gente? Que a gente tem que ficar triste pelos nossos mortos? Enquanto a vida é passageira, ela é de uma forma, tipo assim, que dá continuidade em outro patamar, em outro lugar, em outra extensão do ciclo, sabe. É essa dança, a vida é um ciclo, a morte é um ciclo, é dança. Então, assim, a psicologia precisa aprender a ter esse ouvido, só para quem quiser aprender.

Entrevistadores - O que os psicanalistas podem aprender com os povos indígenas?

Thaiany Araújo - Os povos indígenas são muito leves, eu acho que é essa leveza que a gente tem que ter na vida. Você vê, os povos indígenas estão rindo o tempo todo, brincando o tempo todo, sabe, levando a vida leve, estão rindo, estão brincando, sabe, o ser humano na sua essência é isso, é puro, é leveza... Tipo assim, tem nossos aspectos sombra, eu acho que a gente precisa entender esse aspecto, precisa compreender a nossa sombra para saber, é o tao, também, uma filosofia oriental, né? Buscar o equilíbrio entre a luz e a sombra, nem tudo é luz, nem tudo é sombra, tem um ponto de escuridão na luz e um ponto luz na escuridão, na sombra. Por exemplo, aqui na aldeia é uma universidade, é uma pluriversidade…

Entrevistador - Como é que é isso?

Thaiany Araújo - Uma pluriversidade, onde todo mundo é professor, e todo mundo é aluno. É isso, é troca, é conversa, é experiência, é vivência, é você viver. Eu estou com uma questão muito grande, porque, assim, a sociedade ocidental impõe que eu tenha que trabalhar, da forma que eles mandam. E o que eu quero fazer? Então existe essa dualidade, entre o outro e nós mesmos, somos seres coletivos [...]

Entrevistador - Você nos perguntou sobre o inconsciente né, para falarmos um pouco, mas acho que você já tá falando um pouco disso [...]. Desde pequena você já sabia qual era o seu povo?

Thaiany Araújo - Desde pequena, meu pai, meus tios… Sou sobrinha do cacique, da Potira, tenho essa coisa que pulsa dentro de mim. A importância da aldeia Maraka’nà pra mim. Esse espaço tem para a gente uma forma excepcional, ter um lugar que recebe vários povos, várias pessoas, sabe, você, ele, povos indígenas, não indígenas. Então, assim, isso, de forma que é um lugar, é o epicentro de uma espiritualidade muito grande.

Entrevistador 1 - No meio de uma cidade como o Rio de Janeiro, tão desigual, extremante violenta, com tanta pobreza, temos pessoas de várias raças e aqui nessa aldeia urbana, se reúnem tantos povos num único espaço…

Entrevistador 2 - Lembrando que estamos em solo sagrado aqui...

Entrevistador 1 - É interessante essa história, porque aqui um espaço mesmo que foi demarcado e que não foi reconhecido como demarcado, mas que efetivamente foi feito uso dele e como você acaba de dizer, um solo sagrado.

Entrevistador 2 - Já era um uso tradicional... Os indígenas não viviam aqui, viviam no litoral, mas eles vinham para cá para enterrar os seus mortos.

Entrevistador 1 - Enquanto guajajara, vocês conseguem ter contato com membros, parentes, que estão em outras regiões do país, e articular a luta política nacional ou não? Como é que é feito isso?

Thaiany Araújo - Na política, a gente está mais sendo autônomo aqui [...].

Entrevistador - Você gostaria de acrescentar alguma coisa sobre como tem sido seu processo de análise?

Thaiany Araújo - Então, eu estou me autodescobrindo, é uma autodescoberta, sabe. É interessante por isso, porque estou me descobrindo e me descobrindo no outro também, isso é interessante, esse fascínio pelo outro, o indígena tinha muito isso. O Lucas, um grande parente, falou que o indígena tinha curiosidade pelo outro. Davi Kopenawa fala sobre isso, que o indígena tem essa curiosidade pelo outro, porque é você, sabe, a sua essência.

Por fim, encerramos nosso compilado de fragmentos das entrevistas, relatos, conversações junto aos membros de diversos povos indígenas, com o desfecho da conversa com a enfermeira Rebeca Antunes Nascimento, da SESAI-BA. Enquanto profissional de saúde indígena dentro do território e responsável pelo cuidado de muitas aldeias tupinambá, ela vocaliza a demanda das equipes interdisciplinares que nos encaminham àqueles indígenas que estão em intenso sofrimento e que têm recebido atendimento dos alunos e profissionais do projeto de extensão Ocupação Psicanalítica, com supervisão, tanto na UFRJ quanto na UFRB. Orientados pela psicanálise em busca de uma ética decolonial e antirracista, procuramos dar lugar às questões dos povos indígenas e destacar as políticas públicas de saúde mental voltadas para os povos tradicionais e sua especificidade.

Entrevistadora - O que você tem escutado nesses 11 anos de trabalho a respeito da saúde mental das aldeias tupinambás que estão sob sua responsabilidade na SESAI?

Rebeca Antunes - A população indígena apresenta três vezes o maior número de tentativa de suicídio, principalmente entre jovens. Passa por múltiplas causas, pela questão cultural, pela luta por demarcação do território, por reconhecimento. Se a gente observar e ler sobre a história do povo tupinambá, existe um apagamento dessa população. Isso só vai amenizar quando eles conseguirem a demarcação da terra que está lá no Congresso para ser votada. Há um apagamento histórico de sua existência.

A saúde começa a partir do momento que a gente tem um território com segurança, onde você é dono, você mora ali e não precisa lutar para sobreviver para estar ali. Para esse povo, já se parte do princípio de que você precisa sofrer para ser reconhecido. Os casos de sofrimento mental nessa região vieram a ser notificados a partir, mais ou menos, de 2018. Mas a gente só conseguiu ter esses dados mais de perto a partir de uma mobilização e articulação com alguns órgãos, serviço da rede de Atenção à Saúde Psicossocial do município junto com o conselho local de saúde, com lideranças, coordenação, Secretaria de Saúde para que a gente pudesse dar mais visibilidade a essa questão do adoecimento mental dentro do território indígena. Eu percebo que o cuidado em saúde mental parte de dentro das comunidades; elas têm recursos como forma de cuidado. São outros recursos que não o médico assistencialista. Determinadas comunidades, por exemplo, que não têm nenhum tipo de liderança ativa, que não têm atividades culturais e frequência de encontro de anciãos, de cuidadores tradicionais, estão piores do que as que têm. A gente percebe que, quando acontecem esses rituais e eventos dentro das próprias comunidades, a promoção de bem-estar parece tratar a dor psíquica. É fundamental trazer para a discussão a importância de outros modos de cuidado, fortalecendo os meios tradicionais, como aqueles que acontecem semanalmente dentro das aldeias, como forma de fortalecimento espiritual e dos laços entre os membros daquela etnia.

Rebeca Antunes - Em 2018, a gente começou a fazer algumas abordagens de escuta qualificada. Recebemos a primeira psicóloga indígena um pouco depois, para pensar a nossa atuação enquanto equipe multidisciplinar. Percebemos que ali já existia o sofrimento de várias décadas. Começaram a surgir alguns casos de adolescentes que a gente precisava notificar. De lá para cá, isso foi se intensificando e ganhando visibilidade, até que os problemas em saúde mental apareceram. Este trabalho marcou o início da área técnica de saúde mental, porque antes não tinha, não tinha um profissional de psicologia. A gente não tinha recurso nem perna para encaminhar uma demanda. Começamos a montar alguns grupos de bem viver dentro das comunidades. Mobilizamos todas as instâncias. Inicialmente, só havia profissionais com formação generalista, não tinha uma pessoa específica, responsável pelo programa de saúde mental. O psicólogo não veio para atender as demandas individuais, e, por isso, é fundamental estabelecer parcerias, como essa com vocês do Ocupação Psicanalítica, para essa população.

Entrevistadora - Se puder, nos fale um pouco sobre as situações de suicídio entre jovens que vocês têm acompanhado.

Rebeca Antunes - A gente perdeu uma vida de 20 anos, um adulto jovem. Na verdade, não foi o primeiro caso, foi o primeiro caso notificado dentro do território desde que eu comecei a atuar. O impacto foi muito grande porque a gente já acompanhava essa paciente de longa data e ela não deu nenhum indício de que faria naquele dia. No ano passado, tivemos o suicídio de uma criança, foi mais um caso que não era para ter acontecido, porque cada vida vale muito. A gente precisa ouvir o que é saúde, o que é doença, o que é sofrimento para eles.

Entrevistadora - Ouvindo você, outros enfermeiros, além de psicólogos, médico, farmacêutico e outros profissionais que estão na equipe, a gente tem uma certa impressão de que essa questão do suicídio já está quase epidêmica. A gente escutou sobre uma “tia” que tentou o suicídio, aí a irmã passa ao ato, a mãe tenta também e, então, a criança pequenininha já tá simulando um enforcamento. Parece que virou alguma coisa quase banal e corriqueira, que se pode lançar mão no momento que a angústia aparece. O que você acha que se pode fazer frente a essa situação tão grave?

Rebeca Antunes - O modo de frear isso é a gente trazer mesmo para mídia, para os órgãos competentes sobre a importância de olhar para essas comunidades. A gente precisa muito do apoio dos órgãos competentes, como a Secretaria de Cultura, Secretaria de Meio Ambiente, a Secretaria de Saúde, a Secretaria de Justiça. Todos precisam estar envolvidos para que a gente consiga ver as formas de adoecimento dessas comunidades. A gente tem uma barreira que é a questão da rede de atenção psicossocial da região, que é completamente inoperante, principalmente no que concerne aos CAPS. O CAPS não tem atendido as demandas de assistência que a gente tem demandado. A gente sabe que a população indígena tem um contexto diferenciado e precisa ser assistida dentro do território e não fora dele.

Entrevistadora - E como vocês, profissionais da SESAI, têm enfrentado o sofrimento subjetivo que chega a vocês sem suporte da rede?

Rebeca Antunes - Nós, junto a equipe de Apoio à Saúde Indígena, incentivamos e acompanhamos para que que cada aldeia realize seus rituais, suas manifestações culturais e as tradições de cura que tem uma importância enorme para enfrentar o sofrimento e sustentar os modos de bem viver dos povos tupinambás. Muitas vezes, a tradição vai se perdendo por conta da entrada da cultura ocidental, dos religiosos de fora das aldeias, invasões e até mesmo pela influência da cidade que chega sobretudo aos mais jovens pela internet.

Após várias análises e relatos da experiência de Rebeca, que infelizmente não cabem todos aqui, a enfermeira finaliza a entrevista dizendo sobre a importância de contar com os projetos de escuta como o nosso. As psicólogas da SESAI não fazem atendimento clínico individual, já que são muito poucas e nem haveria um local para atendimento. Além do território ser enorme, as aldeias estão, em sua maioria, localizadas em territórios muitas vezes com pouca acessibilidade. A psicologia entre as aldeias tupinambás atua junto com a equipe multiprofissional, pensando intervenções coletivas, incentivando a própria organização cultural de cada aldeia, ajudando a lidar com as situações mais agudas, articulando com a rede de atenção psicossocial, com a escola, com as lideranças, além de realizar encaminhamentos. O espaço das discussões de caso, supervisões e a escuta daqueles que aceitam e confiam nesse lugar novo que está se abrindo no encontro dos tupinambás com o Ocupação Psicanalítica foi destacado por Rebeca como uma perspectiva aberta por Itaynara Tuxa, a psicóloga indígena que aos pouquinhos vem construindo essa mediação que vem crescendo e tomando corpo, mas não sem muitas complexidades. Uma delas é a falta de recursos para realizarmos os atendimentos no território, presencialmente. Por enquanto, ele envolve apenas a modalidade online. A partir do recurso de uma emenda parlamentar da deputada Áurea Carolina, em uma parceria com a UFMG (que administra a verba do coletivo Ocupação Psicanalítica interestadualmente), conseguimos recursos para que as equipes estejam presentes no território. Não para atendimentos semanais, mas para intervenções mais pontuais que envolvam as equipes de saúde, lideranças, a própria rede de saúde mental e para realização de atividades coletivas com a população.

REFERÊNCIAS

  • GUAJAJARA, Potira et al (orgs.). Em nossas artérias nossas raízes Rio de Janeiro; Aldeia Marakà’nà: Cesac; I-motirõ, 2023.
  • KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • PAYAYÁ, Cacique Juvenal; PAYAYÁ, Edilene. Fenomenal ou vento em fúria: história da cabeceira do primeiro. 2022.
  • 1
    O coletivo Ocupação Psicanalítica está em quatro estados. Na UFMG, ele é coordenado por Andrea Guerra; na UFES, por Fábio Santos Bispo; na UFRB, por Marcelo Fonseca de Souza; e, na UFRJ, por Mariana Mollica.
  • 2
    Sobre a aldeia Maraka’nà - De acordo com Urutau Guajajara - atual cacique da aldeia Maraka’nà, aldeia pluriétnica urbana, localizada na região do Maracanã, Rio de Janeiro - por volta do ano 2000GUAJAJARA, Potira et al. (orgs.). Em nossas artérias nossas raízes. Rio de Janeiro; Aldeia Marakà’nà: Cesac; I-motirõ, 2023., um coletivo de povos tradicionais procurou junto a ele um espaço que tratasse de políticas públicas para questões indígenas. Encontraram, no antigo Museu do Índio, então abandonado, o interesse de se instalar ali, em uma região na qual houve importante presença indígena até o século XVIII, quando a região foi paulatinamente ocupada por grandes engenhos de açúcar pertencentes à ordem religiosa jesuíta. Já tendo de posse da coroa portuguesa, parte daquela região pertencia em 1884 à condessa de Itamaraty, sendo então adquirida pelo engenheiro Paulo de Frontin para construção do Derby Clube, onde teria sido construído o prédio localizado no terreno em que mais tarde se ergueria o famoso estádio de futebol Maracanã. Há mais de um século, o prédio e seu terreno foram destinados ao movimento de proteção e preservação das culturas indígenas no país, pois, em 1889, o terreno foi apropriado pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio da República nascente, sendo esse prédio dedicado ao cultivo e pesquisas de plantas da floresta a partir do conhecimento indígena. Em 1910, foi fundado o Serviço de Proteção do Índio (SPI), subordinado ao referido Ministério. Em 1956, por iniciativa de Darcy Ribeiro, criou-se no prédio o primeiro Museu do Índio na América Latina. De acordo com o livro Em nossas artérias, nossas raízes: Universidade Indígena Aldeia Maraka’nà (2023) produzido a muitas mãos, os povos Maraka’nà são da tradição indígena do maracá, instrumento de percussão de uso ancestral religioso-espiritual utilizado por centenas de etnias brasileiras, também para batalha de resistência anticolonial secular por aqueles que foram segregados, expulsos, desterritorializados e exterminados. É também um tipo de arara, comum em florestas tropicais brasileiras, incorporada ao léxico da língua à palavra maracanã, a partir da origem tupi-guarani, e que reproduz a sonoridade poética da imaginação dos seus significantes, referidos à oralidade do cantos das aves próprio ao instrumento ritual. Há aproximadamente 13 anos, surgiu a ideia de fazer do Museu do Índio e seu entorno uma universidade indígena, como existe no Equador, México, Guatemala e Bolívia. É um lugar onde a sabedoria das culturas indígenas pode dialogar em pé de igualdade com o conhecimento produzido pelos não indígenas, de modo que os conteúdos e métodos de ensino e aprendizagem, sua cosmovisão e suas noções de tempo e espaço possam ser compartilhados. Alguns membros da aldeia moram no terreno cercado em torno do prédio e outros frequentam as inúmeras atividades realizadas pela aldeia todos os dias.
  • 3
    Sobre Olivença: é o nome da aldeia mãe.
  • 4
    Sobre a SESAI: Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) é uma entidade estadual, atrelada à gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS), que é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI). Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) estão atrelados à Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), como uma entidade federal, que visa a facilitação dos povos indígenas ao acesso a recursos básicos de saúde, conforme a participação de cada povo de acordo suas especificidades, que visam levar em consideração os próprios conceitos e práticas, isto é, a cosmogonia dos povos indígenas relativa às suas condições de viver e morrer.
  • 5
    Sobre andaraí: nome proveniente do tupi-guarani, cuja grafia andarahy, significa andara (morcego) e y (rio), rio dos morcegos; Andaraí é o nome de uma das cidades da região da Chapada Diamantina.
  • 6
    Sobre utinga: nome proveniente do tupi, cuja grafia é y-tinga, que significa y (água) e ting (branco/claro), ou seja, águas claras. Utinga, nesse caso, é o nome do rio Utinga e da cidade de Utinga na região da Chapada Diamantina.
  • 7
    Sobre a PNASPI: Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), implementada pelo decreto n.º 3.156, de 27 de agosto de 1999, que dispõe sobre as condições de assistência à saúde integral dos povos indígenas. Essa política está alinhada às determinações das Leis Orgânicas de Saúde e da Constituição Federal de 1988, cujo princípio está baseado em um modelo complementar e diferenciado de organização dos serviços - voltados para a proteção, promoção e recuperação da saúde -, que garanta aos indígenas o exercício de sua cidadania nesse campo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2023
  • Aceito
    30 Nov 2023
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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