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O corpo da experiência

RESENHAS

O corpo da experiência

Maria Cristina Poli

Psicanalista, membro da Appoa, professora da Faculdade de Psicologia da PUC/RS, doutoranda da Universidade de Paris 13; crispoli@mageos.com

Corpo e escrita: Relações entre memória e transmissão da experiência

Ana Costa

Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001, 168 p.

Quem não conhece a famosa imagem de Proust que, ao molhar madalenas no chá tem, subitamente, sua infância evocada e vivenciada, como uma experiência conjugada no presente? Pois aproveitemos a analogia: Ana Costa, em Corpo e escrita, nos oferece a oportunidade de revisitar os fundamentos da psicanálise, notadamente a teoria das pulsões e o registro da memória. O gosto que provamos em sua leitura nos indica os matizes ainda inexplorados de um antigo e árduo terreno que constitui — por assim dizer — a “infância” da psicanálise: a metapsicologia freudiana.

São justamente os impasses das conceituações de Freud, e também de Lacan, que a autora vai explorar e reinscrever. Seu ponto de partida é aquele, único, a partir do qual um psicanalista se autoriza: a sua própria experiência. A autora nos presenteia, assim, com uma obra que testemunha seus mais de 20 anos de trabalho clínico e sua experiência como responsável pela condução de uma instituição de formação em psicanálise.

Neste seu segundo livro, Ana Costa, dá continuidade às questões trabalhadas em A ficção de si mesmo: Interpretação e ato em psicanálise, acerca das condições de representação do sujeito. Tanto Freud como Lacan propuseram em suas obras o trabalho com o inconsciente como uma espécie de “semiótica”. Significantes e traços mnêmicos são representantes que constituem marca, registrando e apagando, pelo mesmo movimento, o traumático desvelamento do real. Sexo e morte, os representantes pulsionais deste real, fazem borda ao corpo; é neste encontro do corpo com seu registro, com sua escrita, que Ana Costa inscreve seu trabalho.

Que esta escrita tenha um endereço pode ser pensado como interpretante do axioma lacaniano “o inconsciente é o social”. Em uma leitura inovadora, corpo e memória são trabalhados por Ana Costa como fenômenos transicionais que dialetizam a interface coisa, nome e endereço. É na fronteira eu-Outro, e suas mediações, que somos convidados a repensar a experiência do inconsciente como constituindo um campo relacional. Impõe-se, então, a questão: o que dessa experiência se transmite, no além daqueles a quem é dado compartilhá-la de forma imediata? Isto é, como é que a experiência pode fazer memória na cultura?

A tese aqui sustentada é de que as condições de construção de um registro e sua transmissão relevam uma particular inscrição do sujeito no campo do Outro, quando o mais singular ganha valor de universal. Por “construção de um registro”, entende-se o sentido freudiano de “construções em análise”, ou seja, de inscrição a posteriori de um traço que suporte o sujeito como valor de verdade, para além de sua facticidade histórica. O diálogo de Ana Costa, como vemos, é com as próprias origens da psicanálise, com a constatação de Freud da insuficiência de um saber interpretativo. Assim, por exemplo, se “as histéricas sofrem de reminiscências”, as suas memórias são as de um corpo irredutível ao suporte simbólico que o inscreveria como cultura. Coube a Freud construir esse registro ao inventar a psicanálise. Porém, o cotidiano do trabalho analítico — a forma como, em cada condução de cura, é preciso, em certa medida, reinventar a teoria analítica — atesta a persistência desse ponto de resistência à transmissão.

Ana Costa traz para o diálogo não apenas a experiência da clínica psicanalítica, mas, também, outros campos da cultura, como o cinema e a literatura. Arendt, Benjamin e Win Wenders, só para citar alguns, têm seus trabalhos abordados enquanto representantes de um sujeito — o moderno — e seus avatares na inscrição da experiência. Eles aparecem no livro como interpretantes dos relatos memorialísticos, de Proust a Perec. Contudo, não se trata de uma memória qualquer, mas sim daquela que interessa ao psicanalista: a memória da repetição, do que, em ato, se inscreve como experiência imediata, mas que resiste ao esvaecimento imposto pelo tempo. O trauma, para retomar Freud, atesta a impossibilidade de constituição de uma representação do “eu” do narrador. Essa impossibilidade de uma inscrição do real que encontre perfeita similitude com o código social, no que ele releva do simbólico, é o que constitui enigma e que move aqueles que se deixam interrogar a produzir cultura, a buscar perenizar a imediatez da experiência.

É, igualmente, nesse espaço de impossível que emerge o mais inusitado e criativo de cada percurso singular que uma análise coloca em jogo. Os padecimentos físicos e morais e as obsessões — atos sintomáticos — se revelam como o mais próprio deste tempo do sujeito e situam-se como ensaios que propõem uma saída para o mal-estar da civilização. Também a figura do adolescente e seus impasses na transposição de tempos (da infância a vida adulta) e espaços (da família ao laço social) são paradigmáticos dessa questão. O “modelo” de “saída” trabalhado por Costa é o do sofisma lacaniano do tempo lógico: só é possível sair-se junto, num movimento enunciativo de um “eu” cujo “saber reflexivo” diz a um só tempo de si e do outro/ Outro. Terceiro excluído/incluído, que só pode ser dispensado no a posteriori do ato enunciativo. De sintoma a sublimação, a escrita, entre outros produtos da cultura, é exemplar desta condição enunciativa, em que a exclusão/inclusão do Outro se torna possível.

Ana Costa passeia pelo “nó duro” da psicanálise freudiana e lacaniana. Interroga e reinscreve seus fundamentos, sendo o maior mérito do livro a leveza e a poesia de sua escrita, em contraste com a densidade de sua matéria. Ao longo da leitura, somos conduzidos a uma experiência desses contrastes, experiência barroca, na qual cada leitor é convidado a legar seu testemunho.

Recebido em 18/10/2002.

Aprovado em 6/11/2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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