Acessibilidade / Reportar erro

ENTRE MORRER E EXISTIR: DA FALHA NA INSCRIÇÃO DO AUTOEROTISMO AOS IMPASSES DA PASSAGEM DE MENINA A MULHER NA ANOREXIA

Between dying and existing: from the failure of self eroticism inscription to the problems of the passage from girl to woman in anorexia.

Resumo:

O presente artigo tem como objetivo compreender a manifestação da anorexia em mulheres. Partiremos da investigação da relação entre a falha na inscrição do autoerotismo e a manifestação da anorexia. Seguiremos para a averiguação de qual é a especificidade do funcionamento psíquico feminino que, para além dos componentes sociais associados às exigências estéticas, contribui para a manifestação dessa problemática no campo do feminino e quais são os impasses da passagem de menina a mulher que ela revela. Finalmente, visaremos compreender o que faz com que as anoréxicas cheguem a ponto de se darem a morrer.

Palavras-chave:
autoerotismo; anorexia; menina; mulher; dar-se a morrer

Abstract:

The present article aims to comprehend the manifestation of anorexia in women. We will depart from the investigation of the connection between the failure of self eroticism inscription and the manifestation of anorexia. Then, we will verify the specificity of female psychic functioning that, beyond social esthetics demanding, contributes to the manifestation of anorexia in women and the problems from the passage from girl to woman that it reveals. Finally, we will intend to understand what makes the anorexics get to the point of giving themselves to death.

Keywords:
self eroticism; anorexia; girl; woman; giving oneself to death

A palavra anorexia deriva do vocábulo grego anorektos (an + orektos), que significa sem apetite, sem desejo. É um transtorno alimentar que se manifesta majoritariamente no campo do feminino e que revela falhas na inscrição do autoerotismo com subsequentes impasses na passagem de menina a mulher. Neste artigo, veremos qual a especificidade do funcionamento psíquico feminino que, para além dos componentes sociais relacionados às exigências estéticas, contribui para a manifestação dessa problemática em meninas e jovens mulheres, e o que as leva a chegarem ao ponto de dar-se a morrer.

DA FALHA NA INSCRIÇÃO DO AUTOEROTISMO À ANOREXIA

Desde Freud, sabemos que a alimentação, no início da vida, engaja o corpo e o outro. É o outro materno que, a partir da oferta do seio e do alimento, faz da boca do bebê uma zona erógena e inscreve nele a pulsionalidade. Baseado nesse ponto da teoria freudiana, Karl Abraham divide essa pulsionalidade primeira, representada pela libido oral, em duas fases. Em seu texto Breves estudos do desenvolvimento da libido visto à luz das perturbações mentais (1924ABRAHAM, K. Breve estudo do desenvolvimento da libido visto à luz das perturbações mentais (1924). In: Teoria psicanalítica da libido. Rio de Janeiro: Imago, 1970.), ele subdivide a fase oral da libido em nível primário (ou fase arcaica) e nível secundário (fase oral canibalesca). Para Abraham, no nível primário da fase oral, a libido da criança está ligada ao ato de sugar e ainda não há uma diferenciação entre ego e objeto externo, pois ainda não há um ego constituído. Sendo assim, ainda não há nenhuma manifestação de ambivalência.

Já o nível secundário difere do primeiro pelo fato de a criança trocar sua atividade de sugar pela de morder. Então, dentro do primeiro período do desenvolvimento sexual - a fase oral -, a criança tende a trocar sua atitude libidinal pré-ambivalente, que se acha livre de conflito, por outra que é preponderantemente hostil para com o objeto. Assim que uma criança é atraída por um objeto, isto é, que há um esboço de separação, de diferenciação entre ego e objeto, ela resiste à realidade da separação e tenta sua destruição. Ela reage canibalisticamente, tentando se apropriar do objeto a partir da incorporação.

Em 1968 e 1972, apropriando-se da noção de introjeção apresentada por Ferenczi no texto Transferência e introjeção, de 1909 (apud ABRAHAM; TOROK, 1972ABRAHAM, N.; TOROK, M. Luto ou melancolia (1972). In: ABRAHAM, N.; TOROK, M. A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta, 1995.), Abraham e Torok se aprofundarão no conceito de incorporação. Eles apresentarão a introjeção como tendo uma conotação positiva, correspondente à introjeção das pulsões a partir da mediação do objeto; ao passo que a incorporação negativamente apontará para uma inscrição todo-poderosa, que se instaura no eu e o impede de prescindir do objeto.

A partir da análise do artigo A definição da noção da introjeção, escrito por Ferenczi em 1912, Torok afirma que, para esse autor, a noção de introjeção comporta três pontos: “1. Extensão dos interesses autoeróticos; 2. Alargamento do Ego pela eliminação do recalcamento; 3. Inclusão do objeto no Ego e, consequentemente, ‘objetalização do autoerotismo’ primitivo” (TOROK, 1968, p. 221).

Assim, a introjeção corresponderia a um processo que, a partir da extensão dos interesses autoeróticos e do alargamento do ego, possibilitaria a abertura para relações objetais. Segundo Torok, “enquanto a introjeção das pulsões põe fim à dependência objetal, a incorporação do objeto cria ou reforça um liame imaginal” (ibidem, p. 223).

Mais adiante, em 1972, Abraham e Torok explicam a fantasia de incorporação a partir de um paralelo traçado com o processo de introjeção. Eles dizem que “os estados iniciais de introjeção emergem na infância quando o vazio da boca é experimentado juntamente com a presença simultânea da mãe” (ABRAHAM; TOROK, 1972ABRAHAM, N.; TOROK, M. Luto ou melancolia (1972). In: ABRAHAM, N.; TOROK, M. A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta, 1995., p.245) e acrescentam que “a transição da boca cheia de leite para a boca cheia de palavras ocorre por meio de experiências de intervenção da boca vazia. Aprender a preencher o vazio da boca com palavras é o modelo inicial da introjeção” (ibidem, p. 245-246).

Portanto, a introjeção pressupõe a passagem da comida à linguagem na boca, a partir da colocação bem sucedida da alternância entre presença e ausência do objeto. Quando essa alternância não é bem sucedida e a passagem da comida à linguagem na boca falha, resta a incorporação; parte ou todo o objeto é absorvido na fantasia e a separação fica impossibilitada. O objeto passa a ser o depositário do que se torna obscuro, da lacuna no psiquismo correspondente ao que não pôde ser introjetado.

Ao refletir sobre o que leva o bebê à incorporação do objeto, Fernandes (2012FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.) aponta que é o fracasso da introjeção da função de para-excitação materna e reforça a ideia apresentada por Torok (1968) de que a incorporação do objeto cria e reforça a ligação objetal imaginária, enquanto a introjeção permite ao sujeito restringir sua dependência do objeto. Fernandes aponta ainda que é a introjeção da função de para-excitação materna que dá recursos para o bebê vir a futuramente estabelecer relações objetais.

A que corresponderia, então, essa função de para-excitação?

Em 1920, Freud afirmou que, face às excitações vindas do exterior, intervém uma espécie de escudo protetor, o qual ele denominou de para-excitações. Em 1926, no texto Inibição, sintoma e Angústia, ele escreve:

O ser da primeira infância não está de fato equipado para dominar psiquicamente as grandes quantidades de excitação que chegam do exterior ou do interior. Em uma certa época da vida, o interesse mais importante é, efetivamente, que as pessoas das quais dependemos não retirem sua terna solicitude. (FREUD, 1926/1969, p. 261-262)

Com base nesse trecho, podemos pensar que é a solicitude de quem realiza os cuidados do ser da primeira infância que possibilita que ele tenha condições de lidar com as excitações provindas tanto do interior quanto do exterior. É a partir dessa ideia que Fernandes (2012FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.) afirma que quem é o escudo protetor, isto é, exerce a função de para-excitação, é a mãe. De acordo com a autora, essa função é não apenas protetora, mas também mediadora e libidinizadora. Ela só será parcialmente substituída pela sua introjeção, que irá assegurar, na ausência da mãe, a possibilidade de um apaziguamento através da constituição de um objeto interno capaz de garantir o enfrentamento das adversidades ao longo do crescimento.

Portanto, a princípio, a ausência da mãe coloca o bebê em situação de perigo. As quantidades de excitação provindas do interior e do exterior devem passar pelo outro maternal para que possam ser suportadas e administradas pelo bebê. Então, cabe à mãe a função do gerenciamento pulsional, que possibilitará ao bebê passar sem ela, que possibilitará ao bebê lidar com a força pulsional que dele emerge. Assim, não ficará à mercê de tal força e poderá ascender saudavelmente aos momentos subsequentes do desenvolvimento libidinal.

Em 1914, no texto Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud descreve três momentos do desenvolvimento da libido: autoerotismo, narcisismo e relação objetal. O autoerotismo corresponde a um funcionamento fragmentado da sexualidade, à organização libidinal pré-genital característica do narcisismo primário. O narcisismo primário ou original corresponde a um tempo no qual ainda não existe, para o bebê, distinção entre dentro e fora, entre eu e outro, e no qual, portanto, ainda não há uma unidade comparável ao ego, o qual deve ser desenvolvido. O narcisismo secundário - que surge por meio da indução de catexias objetais, superposto ao narcisismo primário - corresponde à tomada do ego como objeto de amor. Por fim, o amor objetal corresponde à maturação completa do indivíduo, à condição de amar um objeto enquanto tal, com a transferência do narcisismo original para o objeto sexual.

Os primeiros objetos sexuais da criança são as pessoas envolvidas com seu cuidado, alimentação e proteção. Assim, como se dá a passagem do autoerotismo para a subsequente eleição de objetos sexuais?

A experiência da primeira mamada inscreve, juntamente com a saciação da fome, uma experiência de satisfação, que tenderá a ser buscada novamente pelo bebê. Portanto, o bebê buscará, por intermédio do comer, dos movimentos labiais ou do uso de objetos externos como a chupeta, (re)encontrar a satisfação perdida. Nessa série, pode ser incluído o chuchar. Ao referir-se a essa prática, Freud escreve:

Como traço mais destacado dessa prática sexual, salientemos que a pulsão não está dirigida para outra pessoa; satisfaz-se no próprio corpo, é autoerótica (...). Está claro, além disso, que o ato da criança que chucha é determinado pela busca de um prazer já vivenciado e agora relembrado (...) A primeira e mais vital das atividades da criança - mamar no seio materno - há de tê-la familiarizado com esse prazer. (FREUD, 1905FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 7)./1969, p. 59)

Mamar no seio materno familiariza o bebê com um prazer que ele voltará a buscar e que, por intermédio do autoerotismo, poderá obter em seu próprio corpo. Então, embora Freud tenha apontado o autoerotismo como o primeiro estágio do desenvolvimento libidinal, podemos pensar, a partir do comentário relativo ao chuchar, que a possibilidade de o autoerotismo se desenvolver é dada a partir da experiência da mamada, ou seja, há algo anterior a ele. Laplanche, ressaltando o fato de a vida sexual ser secundária à vida de necessidade do indivíduo, escreve: “O autoerotismo não é em absoluto o primeiro, ele sucede a outra coisa no tempo” (LAPLANCHE, 1987LAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise (1987). São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 72).

Assim, o primeiro tempo do investimento libidinal é realizado pela mãe a partir da oferta do seio e dos cuidados que ela tem com o corpo do bebê. É a partir da possibilidade que a mãe tem de não só cuidar, proteger e libidinizar o bebê, mas também prescindir dele, que ele poderá prescindir dela por intermédio da reprodução no próprio corpo o que nele foi inscrito por ela.

Como a pulsão autoerótica não é originária, ela pressupõe a representação global da mãe, isto é, a sua perda. Portanto, o autoerotismo, por ser uma resposta à perda do objeto, corresponde a uma tentativa de evocá-lo. O bebê só buscará, a partir da pulsão autoerótica, o que já foi inscrito em seu corpo por outrem. A importância de tais inscrições pode ser verificada na seguinte passagem de Fernandes:

A constituição do autoerotismo, enquanto segundo tempo do desenvolvimento do indivíduo, de sua relação com o mundo, supõe originalmente a existência de um objeto maternal que assegurou a satisfação das primeiras necessidades; o autoerotismo vem apenas em resposta à perda desse objeto. (FERNANDES, 2012FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012., p. 218)

Nessa passagem, é possível verificar a importância da existência de um objeto maternal capaz de dar conta de suas funções. Se ele não der, e assim a criança não tiver condições de reproduzir o que deveria ter sido inscrito, ela fica à mercê do excesso pulsional e pode ver-se ameaçada de destruição. Se a ausência do objeto, diante da exigência pulsional, não puder ser atenuada pela satisfação autoerótica, ela será dificilmente suportada e impossibilitará a construção de bases narcísicas estáveis.

Então, a inscrição do autoerotismo se dá graças à possibilidade de a mãe ter podido exercer satisfatoriamente sua função de para-excitação. Se houver comprometimento na inscrição do autoerotismo, haverá um aprisionamento ao ego ideal, e os momentos seguintes do desenvolvimento libidinal ficarão, também, comprometidos. Vejamos o que é essa instância denominada ego ideal, porque o comprometimento na inscrição do autoerotismo acarreta num aprisionamento a ela e, ainda, porque os momentos seguintes do desenvolvimento libidinal ficarão também comprometidos.

Bem, a inclusão do objeto perdido no ego e o retorno da libido a partir do narcisismo secundário só são possíveis com a instauração, no psiquismo, do ideal do ego (ou ideal de eu). Em oposição ao ideal do ego, há outra instância denominada ego ideal (ou eu ideal), que representa um estancamento narcísico da libido, uma morte do desejo, um domínio das pulsões de morte e um não estabelecimento de relações objetais.

Freud utiliza os termos ego ideal e ideal do ego pela primeira vez no texto Sobre o narcisismo: uma introdução, em 1914. Nesse texto, tais conceitos aparecem de forma confusa e muitas vezes de difícil distinção acerca de quando ele está se referindo a um ou a outro. Mas, o que pudemos concluir das colocações que Freud faz é que o ego ideal seria a instância originária em que se constitui o ego indiferenciado do sujeito a partir do narcisismo primário, enquanto o ideal do ego seria uma instância diferenciada que constitui um modelo ao qual o sujeito procura se adequar. No ego ideal o sujeito se define como seu próprio ideal, enquanto que, no ideal do ego, o ideal é algo que transcende o sujeito e que ele deseja atingir, sua função é ser uma referência para o ego.

Sobre o ego ideal, Freud escreve:

Esse ego ideal é agora alvo do amor de si mesmo desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. (...) Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o próprio ideal. (FREUD, 1914FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 14)./1969, p. 111)

Nessa passagem, Freud aponta que o amor de si mesmo, que era desfrutado pelo ego real do sujeito na infância, corresponde ao ego ideal, o qual, fruto da posição infantil de sua majestade, o bebê, se acha possuído de toda perfeição e valor. Isso que é projetado como ego ideal do sujeito é um substituto do narcisismo perdido da infância, época na qual ele era seu próprio ideal, bem como de suas figuras parentais.

Nesse mesmo texto, referindo-se ao ideal do ego, Freud escreve:

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação desse estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em direção a um ideal do ego imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal. (FREUD, 1914FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 14)./1969, p. 117)

Segundo ele, para que haja o desenvolvimento do ego, deve haver um afastamento do narcisismo primário juntamente a uma tentativa de recuperação desse estado. O afastamento do narcisismo primário seria ocasionado por um deslocamento da libido, que daria origem ao ideal do ego. Este seria imposto de fora e a satisfação passaria a ser obtida a partir da realização desse ideal. Assim, podemos pensar que, à medida que o ego ideal seria um substituto do narcisismo infantil, o ideal do ego, por ser imposto de fora, seria a instância que daria origem ao narcisismo secundário.

Sobre o ideal de ego (ou ideal de eu), Alonso escreve:

O ideal de eu permite criar laços sociais e amorosos na dimensão do mais tarde e abre o lugar para o desejo. Os ideais nos puxam pra frente; quando eles desaparecem, só nos resta o caminho da regressão em relação ao eu ideal, do retorno ao estancamento narcísico da libido. Quando prima o eu ideal, morre o desejo e ficamos entregues aos excessos da pulsão que ameaçam engolir o eu. (ALONSO, 2003ALONSO, S. L. Novos arranjos para a melodia. In: FUKS, L. B.; FERRAZ, F. C. (orgs.) Desafios para a psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta , 2003., p. 233)

Então, enquanto o ideal de ego abrirá lugar para o desejo, com a primazia do ego ideal há o retorno do estancamento da libido, a morte do desejo, laços sociais e amorosos deixam de ser criados e, consequentemente, o eu fica ameaçado de ser engolido pelo excesso. Assim, podemos pensar no autoerotismo como uma forma de comunicação, como uma metáfora para a “boca cheia de palavras” mencionada por Abraham e Torok (1972)ABRAHAM, N.; TOROK, M. Luto ou melancolia (1972). In: ABRAHAM, N.; TOROK, M. A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta, 1995., pois é ele que comunica que o bebê tem condição de reproduzir no próprio corpo o que pôde ser inscrito nele pelo objeto materno por meio da função de para-excitação. À medida que sua boca não possa introjetar um discurso, que seu corpo não possa ser suficientemente erogeneizado e que, assim, não se saiba o que fazer frente à ausência do objeto a ponto de se sentir ameaçado de destruição, o que resta é a incorporação. Frente à incorporação, e ao reforço da ligação imaginária ao objeto que está em sua base, não há recursos para a efetiva separação que daria origem ao alargamento do ego promovido pela introjeção das pulsões, com consequente objetalização do autoerotismo primitivo. O resultado disso é um aprisionamento ao ego ideal, com consequente estancamento narcísico da libido e, assim, morte do desejo.

É na adolescência que a anorexia tende a eclodir, pois esse é um período de apropriação da identidade, do corpo e da sexualidade. De acordo com Lippe, a reativação pulsional da adolescência revela eventuais falhas nas elaborações anteriores. Sobre isso, ele escreve:

A reativação pulsional da adolescência obriga a rearranjos internos e conduz à organização edípica genitalizada “definitiva”, cuja elaboração é, ela mesma, tributária das elaborações anteriores sobre as quais se funda e cujas falhas eventuais ela revela. (LIPPE, 2008LIPPE, D. Transtornos das condutas alimentares e ideal. In: URRIBARRI, R. (org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta, 2008., p. 85)

Mais adiante, referindo-se à anorexia e à bulimia, ele acrescenta:

A problemática da separação-individuação que se desenrola na adolescência reativa, assim, as problemáticas de diferenciação original (sujeito/objeto) e a dependência primitiva que acontecia, então, em torno da relação oral com o seio, na qual a frustração introduz a dimensão do tempo e a diferenciação si/não-si, sujeito/objeto. (Idem)

Portanto, a problemática separação-individuação apresentada pela anoréxica na adolescência revela a falha de diferenciação original ocorrida na fase oral do desenvolvimento sexual. Afinal, não é por acaso que a anoréxica apresenta uma problemática que se manifesta no (não)uso da própria boca, isto é, relativa à oralidade.

Como houve falha na primeira fase do desenvolvimento libinal - a fase oral, que, por presença ou ausência extremas da mãe, não ofereceu recursos para a menina recorrer ao autoerotismo para lidar com a ausência do objeto -, essa falha será reativada num momento da vida em que o corpo, o psiquismo e as relações sociais demandam uma separação.

Vejamos, então, qual a especificidade do funcionamento psíquico feminino que contribui para a manifestação da anorexia em meninas e jovens mulheres.

ANOREXIA: OS IMPASSES DA PASSAGEM DE MENINA A MULHER

No texto Sexualidade feminina, Freud (1931)FREUD, S. Sexualidade feminina (1931) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 21). revê sua concepção a respeito do desenvolvimento sexual da menina e aponta que, inversamente ao que propusera até então, a ligação com a mãe (até os quatro ou cinco anos), que antecede o Édipo, tem, para as meninas, uma importância muito grande. Ele escreve que a menina só atinge a normal situação edipiana positiva (desejar o pai) depois de ter superado um período anterior, que é governado pelo complexo negativo (desejar a mãe).

Além disso, ele acrescenta que o afastamento da mãe constitui um passo extremamente importante no curso do desenvolvimento de uma menina e que a transição para o objeto paterno juntamente com tendências passivas, abre caminho para o desenvolvimento da feminilidade.

Na Conferência XXXIII, Freud (1932)FREUD, S. Conferência XXXIII (1932) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 22). aponta que a passagem para a feminilidade está ligada ao reconhecimento da mãe como um ser castrado, pois é isso que fará com que a menina renuncie à mãe como objeto de amor e volte-se ao pai para dele obter o que não obteve da figura materna. De acordo com Freud, a situação feminina só se estabelece a partir dos quatro ou cinco anos, após o desejo de possuir um pênis ser substituído pelo desejo de ter um bebê. Nesse contexto, a menina vivencia o complexo de Édipo positivo e, consequentemente, a hostilidade contra sua mãe se intensifica muito, pois ambas passam a disputar o amor do mesmo homem.

Nasio, ao referir-se à entrada da menina no Complexo de Édipo positivo, não menciona a transferência, para o pai, do desejo de um pênis-bebê. Ele fala que a menina volta-se para o pai com outro objetivo: o de salvaguardar seu narcisismo. Sobre isso, ele escreve: “(...) Eu diria que a menina entra no Édipo, vai ao encontro do pai para pedir-lhe que faça um curativo em seu narcisismo ferido” (NASIO, 2007NASIO, J. D. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007., p. 52). Nasio concorda com Freud que é o reconhecimento da mãe como um ser castrado, bem como a sua percepção de também ter sido privada do pênis, que fazem com que a menina se ressinta com a mãe e seja impulsionada a se afastar desse objeto primordial. Mas ele acrescenta que essa percepção deixa sequelas: uma ferida no narcisismo que caberá ao pai curar. Para Nasio, esse “golpe infligido em seu narcisismo” (idem) fará com que a menina revista do mais alto valor afetivo outra coisa - a imagem de si - e acrescenta que, no intervalo temporal entre a dor da privação e a recorrência ao pai para que ele invista a imagem da filha libidinalmente e ela recupere o amor-próprio perdido, a menina fica imersa num tempo de solidão.

Enquanto, no menino, o narcisismo do corpo interrompe o Édipo, pois ele prefere salvaguardar seu membro a manter sua mãe como objeto sexual; na menina, o narcisismo da imagem de si abre para o Édipo, impulsiona a menina a sair do tempo de solidão e direcionar-se para o pai.

Bidaud (1998BIDAUD, E. Anorexia mental, ascese, mística: uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.), referindo-se à condição necessária para que o pai se torne objeto de investimento libidinal da menina, diz que a inveja do pênis só permitirá à menina separar-se da mãe e voltar-se para o pai se ele tiver um lugar no desejo da mãe, isto é, se a mãe apresentá-lo como válido. Em seguida, acrescenta que é a problemática da passagem do falo da figura materna para a paterna que lhe parece estar no núcleo do drama da anoréxica.

Assim, de acordo com Bidaud, o pai da anoréxica não teve um lugar significativo no desejo da mãe, e a inveja do pênis não foi inscrita na menina de forma satisfatória a ponto de impulsioná-la a separar-se da mãe e a tomar o pai como objeto de amor que, por ser interdito, a levaria, futuramente, à busca pelo amor de outro homem.

Além disso, a referência de Bidaud ao tempo de mudança de objeto nos remete ao tempo de solidão mencionado por Nasio (2007NASIO, J. D. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.), no qual a menina já rejeitou a mãe mas ainda não recorreu ao pai, se vê desamparada e sofre por seu narcisismo ofendido. Fazendo uma relação entre a concepção apresentada por Bidaud (1998)BIDAUD, E. Anorexia mental, ascese, mística: uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. e a apresentada por Nasio (2007)NASIO, J. D. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007., podemos pensar que, na medida em que o pai não é investido libidinalmente pela mãe para que a ele seja atribuído o falo e, assim, ele possa curar o narcisismo ferido da filha, esta permanecerá ferida em seu narcisismo, a imagem de si não será investida de amor próprio como resposta ao investimento que deveria ser realizado pelo pai. Além disso, por mais que, tomando a concepção de Nasio como base, nesse tempo a menina já tenha rejeitado a mãe, não haveria outro recurso a não ser ficar presa a ela e esperar que ela cure sua ferida, o que implicaria mantê-la num lugar fálico. A ferida em seu narcisismo poderia ficar tão aberta, tão em carne viva, que atrairia todo o investimento libidinal da menina para si, o que acarretaria uma exacerbação do narcisismo - característica da anorexia.

E onde se encaixam aí o apagamento dos caracteres sexuais secundários, o não menstruar e a não apropriação da imagem no espelho, que são, também, característicos da anorexia e que revelam os impasses da passagem de menina a mulher?

Brusset, referindo-se ao ideal de magreza apresentado pelas anoréxicas, afirma que tal ideal tem a função de repúdio de certos aspectos da feminilidade, bem como de controle onipotente, e acrescenta que o corpo é ainda mais inaceitável em sua feminilização quando este se torna idêntico ao da mãe, “reativando uma indiferenciação desejada e insuportável (a realização alucinatória da identificação com a mãe)”. (BRUSSET, 1999BRUSSET, B. Anorexia mental e bulimia do ponto de vista da sua gênese. In: URRIBARRI, R. (org.) Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta , 1999., p. 56).

Assim, o apagamento dos caracteres sexuais secundários e das formas arredondadas que corresponderiam a um corpo visivelmente feminino tem, segundo o autor, função de repúdio de aspectos da feminilidade, principalmente se esse corpo torna-se idêntico ao corpo da mãe. Ter um corpo idêntico ao da mãe reativaria uma indiferenciação desejada, mas insuportável. Ainda, ter um corpo idêntico ao da mãe corresponderia a assumir características femininas que agradariam ao pai, o qual escolheu alguém que, antes de ser mãe, é uma mulher. Se esse pai não é investido falicamente por essa mãe-mulher, não é reconhecido em sua potência fálica, por que agradá-lo como mulher? Provavelmente esse pai é apenas “pai da filha” aos olhos dessa mãe que não se afeta como mulher por ele e, sendo assim, não desperta nessa filha o desejo de desejá-lo. O corpo magro e desprovido de contornos arredondados seria, então, uma tentativa de diferenciação, de cura de um vínculo patológico.

Fernandes defende que a menina agrada a ela própria ao apagar os contornos arredondados de seu corpo e, ao responder por que a menina se agradaria, afirma “para poder diferenciar-se da mãe” (FERNANDES, 2012FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012., p. 306). A autora aponta que tal apagamento não se trata de uma recusa da feminilidade, pois, para que ela fosse recusada, deveria ter sido atingida. Em seguida, acrescenta: “o objetivo da anoréxica não me parece, então, ser um ataque ao feminino, mas antes uma tentativa de diferenciação, a busca de uma feminilidade outra, a configuração da própria identidade” (idem).

No que se refere à menarca e ao que ela representa para a sexualidade da menina, André (2001ANDRÉ, J. Feminilidade adolescente. In: CARDOSOS, M. R. (org.) Adolescência: reflexões psicanalíticas. Rio de Janeiro: Nau, 2001.) escreve que, como marca de identificação entre mãe e filha, a experiência da menarca aparece como momento fundamental, pois lança a menina numa possibilidade de abertura para o mundo ao despertar o desejo dos homens.

Assim, pensamos que o não menstruar da anoréxica revela a não condição de identificação com a mulher na mãe. A filha ficou presa à mãe, não transferiu o falo para o pai, e não acedeu à sexualidade genital que levaria à busca por despertar o desejo dos homens. A anoréxica não se apresenta como mulher, pois, por estar presa à mãe, apresenta um corpo infantil.

Referindo-se ao corpo ou, mais precisamente, à imagem corporal, Dolto (2010DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo (1984). 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.) escreve que é na imagem do corpo, que representa o suporte do narcisismo, que o tempo se cruza com o espaço, e que o passado inconsciente ressoa na relação presente. Então, por mais que a libido seja mobilizada numa relação atual, ela desperta uma imagem relacional arcaica, reativa algo de uma relação de um tempo anterior.

Fernandes (2012FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.), referindo-se ao passado que ressoa no presente e à dificuldade de percepção do corpo, sustenta a hipótese de que a distorção da imagem corporal é fruto de uma ancoragem do corpo no registro da necessidade por uma falha da constituição do autoerotismo. Assim, pode-se pensar que a magreza das anoréxicas serve para defendê-las, para proteger o ego de um engolfamento pela mulher que reside na mãe. Elas se mantêm como meninas para manter a mãe como mãe, a mãe universal; pois só existe mãe se houver um(a) filho(a). Consequentemente, o narcisismo que serve como suporte para essa proteção é um narcisismo mortífero, pois é associado a um corpo-morte, que fica à beira da desaparição.

DAR-SE A MORRER OU SE FAZER EXISTIR?

Green, baseando-se no grafo do desejo elaborado por Lacan entre 1957 e 1958, ao responder a pergunta “O que é o desejo?”, escreve que o desejo é o movimento pelo qual o sujeito é descentrado; é o movimento que “faz o sujeito viver a experiência de que seu centro não está mais nele mesmo, que está fora de si num objeto do qual está separado, ao qual tenta se reunir para reconstituir seu centro (...)” (GREEN, 1982GREEN, A. O narcisismo e a psicanálise: ontem e hoje (1982). In: GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988., p. 21).

A constituição do desejo enquanto tal implica então em um descentramento do sujeito que acarrete uma busca por objetos de satisfação. Implica o sujeito ter podido viver a experiência de separação e eleito um objeto para que, a partir da relação com ele, busque uma re-união. Em outras palavras, implica buscar alimentar-se daquilo que não é si mesmo, em ter acedido à relação objetal, num movimento impulsionado pela pulsão de vida.

A anoréxica recusa a alimentar-se daquilo que não é ela própria e vai se consumindo nesse fechamento narcísico. Ela não se move em busca de objetos de satisfação, não tenta uma re-união para reconstituir seu centro. O que ela faz é recusar a demanda do outro para que coma. O que ela manifesta é um desejo de não desejar.

Referindo-se à solução de não desejar, utilizada pela anoréxica, Camargo escreve:

É na adolescência que a anorexia surge como uma solução conciliatória entre a dependência infantil e a tentativa de individuação e autonomia. O corpo começa a ser o reduto do “não” à mãe. (...) O conflito se estabelece: querer e não querer separar-se da mãe. Querer pode significar a morte da mãe, não querer pode ser sua própria morte. A combinação do desejo invasivo da mãe e a “fantasia primordial de fazer um com a mãe-universo” resulta, então, mortífera. A solução é não desejar. Não há desejo, não há ausência, não há nada. (CAMARGO, 2003CAMARGO, I. Anorexia e bulimia: o negativo do corpo - um colar de pérolas sem fio. In: BUCARETCHI, H. A. (org.) Anorexia e bulimia nervosa: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003., p. 118-119)

O autor aponta que a anorexia surge como uma solução conciliatória entre a dependência infantil e a tentativa de individuação, e que o corpo passa a ser o reduto do “não” à mãe. Ele acrescenta que a combinação do desejo invasivo da mãe com a fantasia primordial de fazer um com esta resulta mortífera, e, frente a isso, a solução encontrada pela anoréxica é não desejar. Lacan (1956LACAN, J. A relação de objeto (1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. (O seminário, 4)./1957), por outro lado, não concebe na anorexia a presença de um não-desejo, mas de um desejo de nada. Ele se refere à anorexia como sendo um “comer nada”, que não se refere a um nada comer, mas à tentativa de, nessa mãe, cavar uma falta, de instaurar uma separação, de alimentar-se de um vazio. Nesse sentido, a anorexia também seria uma tentativa de cura desse vínculo doentio indiferenciado.

De qualquer forma, não desejar implica não se descentrar e não investir libidinalmente em objetos; e desejar nada, ou “comer nada”, por representar uma tentativa de descentramento, explicita o quanto o que se faz presente é também um centramento. Assim, seja a partir da concepção de Camargo (2003CAMARGO, I. Anorexia e bulimia: o negativo do corpo - um colar de pérolas sem fio. In: BUCARETCHI, H. A. (org.) Anorexia e bulimia nervosa: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.) ou da de Lacan (1956LACAN, J. A relação de objeto (1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. (O seminário, 4)./1957), a anorexia implica um sobreinvestimento no eu. Implica uma não ascendência ao ideal do ego e um aprisionamento ao ego ideal, substituto do narcisismo primário. Isso nos leva a questionar: esse aprisionamento, esse sobreinvestimento no eu, não resultaria, também, mortífero?

Fernandes (2012FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.), referindo-se ao aprisionamento das jovens anoréxicas no registro de ego ideal, escreve que a recusa da realidade humana, no que ela tem de mortal e erótica, sugere que a anorexia abrigaria um fantasma de indestrutibilidade do corpo. Nessas garotas, o apego ao ego ideal é tamanho que a ilusão de onipotência leva-as a pensar que, independentemente de quão magras se tornem, estão ilesas à possibilidade da morte. Elas se dão a morrer justamente por não acreditarem que poderão morrer.

Fuks, referindo-se à fusão dessas jovens com o ideal, escreve: “Na gestão narcísica do ideal, não se regulam por valores absolutos; elas, mais bem, os representam, os encarnam. Não aspiram à magreza, são a magreza (e se sentem secretamente invejadas)” (FUKS, 2003FUKS, M. P. O mínimo é o máximo: uma aproximação da anorexia. In: VOLICH, R. M.; FERRAZ, F. C.; RANÑA, W. (orgs.). Psicossoma III: interfaces da psicossomática. São Paulo: Casa do Psicólogo , 2003., p. 7). Assim, o ideal de magreza que cultuam as transforma em seres únicos e especiais que não estão submetidos a necessidades e vulnerabilidades como os outros. Parafraseando Fuks, elas não aspiram ao ideal, são o ideal; ou seja, o eu ideal: o que deseja não desejar na ilusão de bastar-se a si mesmo.

E qual o preço a ser pago por isso? Quais as consequências para o eu de tamanho centramento, de tamanha encarnação do ideal e, portanto, de tamanha recusa ao desejo?

Referindo-se ao alívio de todo desejo, Green escreve:

O narcisismo oferece a ocasião para uma mimese do desejo através da solução que permite evitar que o descentramento obrigue a investir o objeto detentor das condições de acesso ao centro. (...) O centro, como objetivo de plenitude, tornou-se centro vazio, ausência de centro. A procura de satisfação prossegue então fora de qualquer satisfação - como se esta tivesse realmente ocorrido - como se tivesse encontrado seu bem no abandono de toda busca de satisfação. É aqui que a morte adquire sua figura de Ser absoluto. A vida torna-se equivalente à morte, pois é alívio de todo desejo. (GREEN, 1982GREEN, A. O narcisismo e a psicanálise: ontem e hoje (1982). In: GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988., p. 23)

De acordo com Green, o preço é também a morte. Pensamos que, na anorexia, porque o falo não foi atribuído ao pai, porque o que restou como possibilidade para a menina foi um aprisionamento à mãe, e porque a busca de satisfação prossegue fora de qualquer satisfação, o narcisismo não ofereceu a ocasião para uma mimese do desejo que permitiria evitar que o descentramento obrigasse a investir o objeto detentor das condições de acesso ao centro. A realização unitária do narcisismo falhou, pois acarretaria a morte do sujeito frente ao desejo invasivo da mãe. Assim, o narcisismo tornou-se mimese do não-desejo, a morte adquiriu sua figura de Ser absoluto.

O autor acrescenta que, nesses casos, o que reina é o narcisismo de morte (mimese do não-desejo), e não o narcisismo de vida (mimese do desejo): “Não é o desprazer que substituiu o prazer, é o Neutro. Não é na depressão que devemos pensar aqui, mas na afânise, no ascetismo, na anorexia de viver” (ibidem, p. 24), que seria o verdadeiro sentido da autodestrutividade nirvânica representada pela pulsão de morte, apresentada por Freud (1920)FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 18). em Além do princípio do prazer. Isso porque, a partir da dualidade entre pulsões de vida e pulsões de morte apresentada por Freud nesse texto, enquanto as pulsões de vida, designadas pelo termo Eros, passam a corresponder à junção entre as pulsões sexuais e as pulsões do ego e sua meta é instituir unidades, conservar, levar à ligação e ao investimento objetal; as pulsões de morte passam a ser concebidas como aquelas responsáveis pelo desligamento dos objetos, aquelas que buscam reconduzir o indivíduo a um estado inorgânico, e que, portanto, se voltadas para o mundo externo podem manifestar-se por meio da agressão, e, se voltadas para o interior, podem levar à autodestruição.

Baseando-se nas teorizações de André Green, Bidaud (1998BIDAUD, E. Anorexia mental, ascese, mística: uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.) descreve a anorexia como uma forma do narcisismo de morte que busca, na aspiração ao zero, na valorização da privação, uma ilusão de autossuficiência que apagaria todo esboço do outro e do seu desejo.

Acreditamos, assim, que a especificidade do funcionamento psíquico feminino que contribui para a manifestação da anorexia em meninas e jovens mulheres diz respeito justamente à não ascendência ao feminino, pois a anoréxica acaba por não se posicionar diante da castração, mantendo-se à margem e apartada dessa angústia acreditando ser “toda”, “inteira” em seu corpo. Pensamos, também, que o “nada me falta” encarnado na magreza de seu corpo responde a um conflito que atende, por um lado, a ficar numa posição indiferenciada, e, por outro, a fazer-se separar. É sob uma posição de recusa às ligações objetais, aos caracteres secundários e ao sexual que a anoréxica permanece infantilizada, ao mesmo tempo em que comer nada representa uma tentativa de fazer surgir um esboço de diferenciação e, assim, de desejo; como se o dar-se a morrer fosse um grito em prol de se fazer existir.

Referências

  • ABRAHAM, K. Breve estudo do desenvolvimento da libido visto à luz das perturbações mentais (1924). In: Teoria psicanalítica da libido Rio de Janeiro: Imago, 1970.
  • ABRAHAM, N.; TOROK, M. Luto ou melancolia (1972). In: ABRAHAM, N.; TOROK, M. A casca e o núcleo São Paulo: Escuta, 1995.
  • ALONSO, S. L. Novos arranjos para a melodia. In: FUKS, L. B.; FERRAZ, F. C. (orgs.) Desafios para a psicanálise contemporânea São Paulo: Escuta , 2003.
  • ANDRÉ, J. Feminilidade adolescente. In: CARDOSOS, M. R. (org.) Adolescência: reflexões psicanalíticas. Rio de Janeiro: Nau, 2001.
  • BIDAUD, E. Anorexia mental, ascese, mística: uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
  • BRUSSET, B. Anorexia mental e bulimia do ponto de vista da sua gênese. In: URRIBARRI, R. (org.) Anorexia e bulimia São Paulo: Escuta , 1999.
  • CAMARGO, I. Anorexia e bulimia: o negativo do corpo - um colar de pérolas sem fio. In: BUCARETCHI, H. A. (org.) Anorexia e bulimia nervosa: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
  • DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo (1984). 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
  • FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.
  • FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 18).
  • FREUD, S. Conferência XXXIII (1932) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 22).
  • FREUD, S. Sexualidade feminina (1931) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 21).
  • FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 14).
  • FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) Rio de Janeiro: Imago , 1969. (Ed. standard brasileira das obras completas, 7).
  • FUKS, M. P. O mínimo é o máximo: uma aproximação da anorexia. In: VOLICH, R. M.; FERRAZ, F. C.; RANÑA, W. (orgs.). Psicossoma III: interfaces da psicossomática. São Paulo: Casa do Psicólogo , 2003.
  • GREEN, A. O narcisismo e a psicanálise: ontem e hoje (1982). In: GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte São Paulo: Escuta, 1988.
  • LACAN, J. A relação de objeto (1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. (O seminário, 4).
  • LAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise (1987). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
  • LIPPE, D. Transtornos das condutas alimentares e ideal. In: URRIBARRI, R. (org.) Anorexia e bulimia São Paulo: Escuta, 2008.
  • NASIO, J. D. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2015
  • Aceito
    31 Jan 2016
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistaagoraufrj@gmail.com