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Sedução e feminilidade em transferência

Seduction and femininity in transference

Resumos

Buscam-se as relações entre a sedução e a transferência em psicanálise. Segue-se o desenvolvimento laplanchiano de que a transferência é provocada pelo analista, sendo essa provocação entendida ao modo de uma reativação da situação originária de sedução e passividade. Argumenta-se, então, sobre a facilitação, em psicanálise, do estabelecimento de circulação de fantasias da sexualidade "feminina", entendida também como originária. Discute-se, por fim, a presença da alteridade na relação transferencial em face da idéia, de Jacques André, do outro como o feminino.

Transferência; feminilidade em análise; alteridade


This essay develops considerations on the relations between seduction and transference in psychoanalysis. Following Laplanche's suggestion, transference, in so far as it reactivates the originary situation of seduction and passivity, it is understood to be provoked by the analyst. Psychoanalysis is considered to facilitate the circulation of fantasies of "feminine" sexuality - also regarded as originary. The presence of alterity in transference is discussed from the point of view of J. André's comprehension of the other as feminine.

Transference; femininity in analysis; alterity


ARTIGOS

Sedução e feminilidade em transferência* * Texto produzido como resultado parcial de projeto de pesquisa com apoio do CNPq, na forma de bolsas de pesquisador e iniciação científica e financiamento parcial. Este texto foi inicialmente apresentado no grupo de pós-doutorado, sob orientação do Prof. Dr. Luís Cláudio Figueiredo, na PUC-SP, de cujo grupo recebeu comentários diversos que ensejaram profundas modificações. Nem todas as críticas, porém, foram tomadas, pois partiam de fundamentos distintos dos aqui desenvolvidos. Ao Prof. Luís Cláudio Figueiredo e ao grupo agradeço a atenção, leitura e observações. Também agradeço à leitura e úteis comentários da minha colega, Profa. Tania Rivera, por ocasião de disciplina que conjuntamente ministramos na pós-graduação em psicologia da UnB.

Seduction and femininity in transference

Luiz Augusto Celes

Psicanalista. Professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília; celes@unb.br

RESUMO

Buscam-se as relações entre a sedução e a transferência em psicanálise. Segue-se o desenvolvimento laplanchiano de que a transferência é provocada pelo analista, sendo essa provocação entendida ao modo de uma reativação da situação originária de sedução e passividade. Argumenta-se, então, sobre a facilitação, em psicanálise, do estabelecimento de circulação de fantasias da sexualidade "feminina", entendida também como originária. Discute-se, por fim, a presença da alteridade na relação transferencial em face da idéia, de Jacques André, do outro como o feminino.

Palavras-chave: Transferência, feminilidade em análise, alteridade.

ABSTRACT

This essay develops considerations on the relations between seduction and transference in psychoanalysis. Following Laplanche's suggestion, transference, in so far as it reactivates the originary situation of seduction and passivity, it is understood to be provoked by the analyst. Psychoanalysis is considered to facilitate the circulation of fantasies of "feminine" sexuality — also regarded as originary. The presence of alterity in transference is discussed from the point of view of J. André's comprehension of the other as feminine.

Keywords: Transference, femininity in analysis, alterity.

Este ensaio tem como objetivo desenvolver algumas reflexões sobre a correlação entre sedução e transferência em psicanálise, havendo sido esse propósito instigado, por um lado, pela leitura do livro de Jacques André (1996), As origens femininas da sexualidade; e, por outro, em virtude de considerações surgidas de efetivas situações transferenciais no decorrer de processos analíticos.1 1 Abster-me-ei, no entanto, de fazer referências expressas a essas psicanálises. Tomarei casos de Freud, que serão tratados segundo minha compreensão, estabelecida a partir das tais "situações efetivas de transferência". O argumento central é o de que a transferência é provocada pelo analista, provocação esta entendida como uma reativação da situação originária (LAPLANCHE, 1988, p.165), ou seja, uma reativação da sedução e da passividade originárias (ANDRÉ, 1996, p.144). Devido à condição de transferência, a psicanálise fica propensa a estabelecer e facilitar a circulação de fantasias de sexualidade "feminina", esta também entendida como originária. Por fim, a presença da alteridade na relação transferencial é discutida em face da idéia do outro como o feminino, cunhada por J. André.

Na expressão "sexualidade feminina" acima mencionada, o adjetivo está entre aspas por diversos motivos. O primeiro é para que não se confunda esse termo com a classificação de gênero. O gênero envolve caracterizações sociais que não constituem nosso interesse neste momento, porque não dizem respeito necessariamente à sexualidade inconsciente, mas a comportamentos. A propósito desse tema, aliás, frise-se que a palavra "sexualidade", na mesma expressão, é decisiva, pois nos referimos à sexualidade feminina no sentido psicanalítico de "sexualidade" e de "feminino". Ora, o "feminino" constitui assunto que concentra muitas contradições e imprecisões em psicanálise; o mesmo não acontece com a sexualidade — ou, pelo menos, as imprecisões e indefinições a ela relacionadas não se dão da mesma maneira. Se a psicanálise toma o feminino (ou a feminilidade) como um enigma — se não o enigma da sexualidade humana, "o continente negro da investigação psicanalítica", segundo a expressão freudiana —, o mesmo não ocorreu com a sexualidade em sentido geral. Ela foi desvelada desde os primeiros momentos da psicanálise, não gerando incertezas irredutíveis, mas sim provocando reações de aceitação e rejeição.2 2 É verdade que as coisas não se dão nem se deram assim tão linearmente. Nós mesmos mostramos como a concepção da sexualidade infantil trouxe à elaboração freudiana, entre 1896 e 1905, muito mais um problema teórico que uma solução (CELES, 1995). Aqui, no entanto, comparando sexualidade e feminilidade ou sexualidade e essa mesma qualificada de feminina, de um modo caricatural como foi feito, tem a função de uma economia de exposição. À sexualidade "decifrada" em sua condição infantil, opôs-se uma ferrenha concepção da sexualidade genital como naturalmente determinada. Depois, inclusive, e acompanhando-se a história da psicanálise desde Freud, viu-se não raras vezes a sexualidade destituída de sua função estruturante e determinante das condições subjetivas.3 3 A desimportante condição da sexualidade na compreensão dos modos e processos de subjetivação não se constituiu somente como oposição a Freud proveniente de fora da psicanálise. Um dos grandes méritos de Laplanche foi apontar, parece-me, o mesmo alheamento da sexualidade nas considerações e práticas psicanalíticas que se estendem até a atualidade. Também Green (2000) alinha-se a Laplanche nessa denúncia, ainda que adotando concepção distinta de sexualidade.

Neste texto, a sexualidade é tomada no sentido perverso polimorfo da sexualidade infantil (ainda que se trate da sexualidade genital); já o "feminino" é considerado próximo ao sentido de "passivo", mas sob o aspecto pulsional, possuindo por característica "alvos passivos da sexualidade". No entanto, note-se que o feminino não tem de todo o sentido de passivo, porque feminino e passivo (ou passividade) não são sinônimos, ainda que a passividade — no sentido pulsional, dos fins da pulsão — não possa ser desprezada como uma das características do que se chama em psicanálise de sexualidade feminina. Nesta abordagem, também se toma o feminino em seu sentido originário, e como protótipo da feminilidade (inclusive a feminilidade de gênero), como o sugerem André (1996) e Ribeiro (2000). O originário e o passivo da sexualidade feminina sobre os quais versamos não se confundem, assim, com as definições de gênero, ainda que entre essas concepções e definições se constituam ligações e associações tenazes.

Desse modo, as palavras "feminino" e "feminilidade" serão utilizadas e mantidas neste trabalho. Pretende-se mostrar que a sexualidade a emergir em análise não se esgota na sua característica de passividade. Intenta-se, assim, constituir uma possibilidade de alcance de sua dinâmica e significação, qual seja, a dinâmica transferencial imposta pelo feminino como efeito de sedução, e o sentido do vínculo desse feminino de análise com a situação originária chamada "feminina".

INSTIGAÇÃO DO SENTIDO SEXUAL EM PSICANÁLISE

Em estudo anterior sobre o Caso Dora (CELES, 1995), embora não estivesse ocupado em caracterizar a transferência havida naquele caso, sugeri desejar Freud que Dora amasse a análise. Com efeito, Freud se decepcionou com o abandono de Dora, ocorrido quando ele tinha as melhores esperanças de a análise alcançar bom êxito. A suposição de sucesso parece ter-se apoiada apenas nas expectativas do analista, inebriado que parecia estar com suas próprias peripécias interpretativas, e crente — talvez não sem razão — do efeito sedutor de suas interpretações sobre o ânimo de Dora, o que a faria empenhar-se no trabalho analítico, quiçá de longa duração. Fazer com que Dora se interessasse pela análise parece ter sido, pode-se dizer agora, tarefa que Freud tomou corajosamente para si, diante dessa moça levada a ele pelo pai e que demonstrava, ela própria, pouco interesse por seu tratamento (o taedium vitae de que se queixava podia muito bem caracterizar seu movimento afetivo em direção a esse novo médico, Freud, que a tratava). No entanto, apesar de seu aparente desinteresse, a narrativa freudiana mostra que Dora se engaja no trabalho associativo, ainda que empurrada pelas interpretações de seu analista; talvez ela estivesse até mesmo respondendo transferencialmente ao desafio de Freud. Prenunciou-se, assim, para Freud, é possível crer, a aderência de Dora ao tratamento que lhe fora proposto. As animadas sessões que parecem ter ocorrido, a abundância do material inconsciente, a sustentação do papel da interpretação de sonhos, o intrincado romance familiar, os gestos e os sonhos de Dora — tão claramente sexuais — decerto trouxeram conforto para Freud em sua posição, bem como fundamento para sua esperança quanto ao bom êxito da análise.

Outra característica do caso permite determinar, com bastante segurança, a sedução com a qual se comprometeu Freud na conquista da analisante Ida Bauer. Freud — como ele próprio declara na introdução do caso — aplicou-se decididamente em tratar da sexualidade com essa moça já de todo instigada pela curiosidade sexual, como a análise acabou por mostrar, inclusive. De acordo com o que sugere Forrester (1990), Freud, conferindo atenção especial ao caráter sexual dos sintomas, dos gestos e das falas de Dora, colocou-se justamente na posição da Senhora K., aquela com quem Dora aprendera os segredos da sexualidade e com quem mantivera freqüentes e prolongadas conversas sobre a sexualidade e sobre a "anatomia" sexual. Tais colóquios constituíram segredos de Dora, a fonte jamais revelada de seu conhecimento da sexualidade; foram esses segredos que Freud se empenhou em desvendar, incitando Dora a contá-los como que movido por curiosidade infantil (como se estivesse ele mesmo, Freud, diante do enigma da sexualidade de Dora).

A equivalência entre o empenho de Freud em fazer falar e o ato da instigação sexual, da sedução — ou seja, a compreensão do falar como equivalente do toque, da penetração, do exame acurado e pormenorizado — foi estabelecida pelo próprio Freud já nas primeiras páginas da narrativa do caso, quando avoca a si os direitos do ginecologista. "Pour faire une omelette il faut casser des oeufs", assim justifica Freud (1905/1976, p.44), não sem razão, a necessária presença das "conversas" sexuais na análise da histeria. Mais especificamente falando, o tratamento da histeria requer de fato a interpretação de caráter sexual, já que a histeria está sexualmente determinada. Dessa forma, a psicanálise — por força de sua estrutura e por seu modo de se fazer — como seu objeto, a sexualidade implicada nas falas e nos sintomas, desvelando, assim, relações de amor, como as de Dora pela governanta, pela Senhora. K., por seus pais, pelo Senhor K. e pelo próprio Freud.

O acontecer psicanalítico, em seu sentido peculiar e específico, provoca, portanto, a sexualidade, instaurando a transferência. Nessa precisa medida, o psicanalista ocupa uma posição sedutora. Como no exemplo de Freud com Dora, a "iniciativa" sedutora — iniciativa que consiste em fazer circular a sexualidade (mais prudente seria dizer: fazer circular o sentido sexual daquilo que se trata), ainda que em abstinência — parte do analista, porque a psicanálise tem por fundamento a compreensão da determinação sexual da neurose e da própria subjetivação humana. Ainda que o analisando somente demande alívio de seu sofrimento, e que, então, suponha unicamente um sujeito saber no psicanalista, ou apenas permaneça aparentemente numa demanda de "ternura";4 4 Termo usado por Ferenczi (1933/1992) para caracterizar a fala da criança em diferença (oposição?) da fala sexual do adulto em seus encontros, de onde Laplanche (1988) parte para a concepção da teoria da sedução generalizada como característica da relação adulto e criança. ainda que o caráter erótico da transferência não se manifeste de imediato, mas tão somente a partir das interpretações efetuadas — mesmo que tudo isso aconteça, o analista, por exigência de seu pré-mundo psicanalítico (de seu mundo conceitual), e até com suas interpretações, instiga o sentido sexual das falas, dos sintomas, dos gestos e da própria transferência.

A caracterização da situação psicanalítica como acima descrita favorece sua aproximação estrutural ao que Laplanche (1988) designou de sedução generalizada. Com este paralelo, sugere-se que a suposição psicanalítica do fundamento sexual da neurose (e do próprio humano) se introduz no tratamento de psicanálise tal como a sexualidade inconsciente adulta se introduz no trato da criança. Mais especificamente, estou aderindo à proposição laplanchiana (LAPLANCHE, 1993a) da reativação em análise da sedução entendida como situação originária. Para sua utilização nos termos que interessam ao argumento deste texto, algumas matrizes devem ser determinadas.

Quando se sugere entender que em análise se verifica a reativação da sedução originária, não se está afirmando como se fosse uma conseqüência inexorável que em análise se encontra a presença plena do analista em seu caráter inconsciente sexual — posição essa última que Laplanche (1993b) designaria, se o interpreto bem, "transferência em cheio". Se assim o fosse, estaríamos diante da situação analítica francamente perversa ou completamente atravessada pela neurose. Não obstante, a impessoalidade da presença do analista — que é como proponho entender a sua posição — não impede a interferência ou a reativação de sua própria sexualidade inconsciente e infantil. A abstinência pode — e talvez deva — significar a suspensão do ato (sexual), mas não apenas; ela também denota a suspensão da realização de fantasias, seja no que se refere ao sintoma, às expectativas ou aos preconceitos, não significando isso a supressão de todo desejo e fantasia. Tal reflexão permite compreender que a sexualidade na análise — como observara Lacan (1964/1979, p.140) a respeito do caso Anna O. — vem da parte do analista.

No caso de Breuer com essa paciente, a "sexualidade" tornou-se presente a partir da queixa ciumenta da esposa do analista, cujas conseqüências todos sabemos. No Caso Dora, é Freud quem introduz o relato, chamando a atenção para a inevitabilidade do sentido sexual alcançado nas interpretações — dos sintomas, dos sonhos e da própria constituição da histeria — e para a necessária disposição do analista para embrenhar-se em "conversas" sobre a sexualidade. Também a atitude de o analista ignorar a sexualidade em análise — como o constata Bollas (2000) — traz implicada a sexualidade (em forma denegada, talvez?) advinda da "casa" do analista.

Aparentemente, esses não são bons exemplos para nuançar e dar delimitação à instigação da sexualidade provocada pelo analista. Nos casos citados, estão por demais presentes as conseqüências da "ignorância" do efeito transferencial da atualização da sexualidade implicada na análise (no caso de Breuer, a sexualidade está francamente envolvida sob a perspectiva de seu inconsciente sexual; no de Freud, sob o aspecto, no mínimo, dos fundamentos teórico-práticos da psicanálise).5 5 É sabida a determinação da sexualidade inconsciente de Freud nos desdobramentos do caso Dora. Estamos acima nos referindo às perspectivas de nossa análise e, não, ignorando as determinações da presença pessoal de Freud. Nos casos mencionados, os analistas não estavam "prevenidos" da transferência que faziam transitar, embora isso não invalidasse suas "iniciativas" sexualmente determinadas. O fato de os analistas se atropelarem com a sexualidade que avocam em análise, o que pode impedi-los de se manter em certa "reserva" — para usar um conveniente termo sugerido por Figueiredo (2000) —, não transforma a presença sexuada (inconsciente) do analista em um caso especial. Porém, em vez de nos precipitarmos em direção a conclusões contratransferenciais — como muito amiúde acontece em semelhantes avaliações —, é necessário introduzir um contraponto a essa idéia da sexualidade reativada pela análise.

Esse contraponto — outra matriz das considerações sobre a provocação da sexualidade em análise — diz respeito à presença do analista; no entanto, em análise, essa presença deve ser "impessoalizada", no sentido de se suprimir o peso da intencionalidade inconsciente (e mesmo a intencionalidade consciente) do analista. Como apontamos antes, trata-se de privilegiar o suposto teórico-psicanalítico a respeito da determinação sexual na constituição subjetiva, o que retira, certamente, o peso da pessoalidade do analista, permitindo-se sua presença em reserva. Mas tendo-se por certo que a teoria-psicanálise não deve se colocar no front do tratamento psicanalítico — embora ela também se faça presente —, estamos sugerindo, portanto, o seu lugar como o de um "inconsciente" no fazer desse trabalho. Ou seja, inconsciência da teoria enquanto — e isso tem mesmo o sentido temporal — acontece psicanálise. Essa proposta não me parece absurda, e sim muito bem conforme à idéia de que uma psicanálise não pode ser entendida como aplicação da teoria. Sobretudo porque considero a teoria (a metapsicologia) como teoria da psicanálise, isto é, teoria do trabalho que é a psicanálise (CELES, 2000a, b, c).

Retomando, sob essas matrizes, os dois casos nomeadamente citados aqui, é possível compreender suas dificuldades. No caso de Breuer com Anna O., parece estar-se diante do efeito da ausência da teoria, daquilo que, depois, se produziu como teoria psicanalítica. Essa ausência impediu Breuer de se manter em reserva (em abstinência) e o colocou, pessoalmente, com todo o peso de seu inconsciente doméstico, no front da instigação da sexualidade de Anna O. durante o tratamento. Freud, por sua vez, parece ter movido para a primeira linha de batalha a teoria da sexualidade no atendimento de Dora — pelo menos é disso que ele nos avisa na introdução do caso. Ao inverso de Breuer, é verossímil supor que Freud tomou sua então quase-teoria da sexualidade para empreender o tratamento de Dora levado por um afã justificativo de sua conquista. (CELES, 1995).

A certeza de sua teoria parece ter imposto o apagamento das presenças inconscientes da psicanálise e do próprio Freud; a teoria da sexualidade, tornando-se moeda corrente nesse tratamento, afastou sua presença "inconsciente" e, em conseqüência, lançou Freud diretamente na relação de tratamento na qual se julgava em reserva — a teoria da sexualidade fez-se denegatória da sexualidade inconsciente de Freud (e — por que não? — de Dora). Nesse caso, portanto, a reativação da sexualidade quase se deu propositalmente (como transferência em cheio, ainda que não precisemos concordar com o par complementar dessa noção, ou seja, a possibilidade de uma transferência em vazio). Anna O. e Dora são exemplos no sentido de que, como no modelo do cristal usado por Freud, revelam de maneira hiperbólica a "estrutura" do trabalho que é a psicanálise.6 6 O caráter revelador do trabalho de psicanálise que assume esses casos, aparece na consideração de que, afinal de contas, são casos que inauguram a psicanálise. Eles têm, portanto, o estatuto de fundação da psicanálise.

Quero, no entanto, ir além da constatação da atualização da sexualidade em análise, e mostrar que a "sedução" implicada na posição do analista ganha importância precisa no seu efeito de feminizar, de fazer circular a fantasia feminina, esta também entendida como reativação da posição originária feminina, tomando-se por base a hipótese de J. André (1996).

FEMINILIDADE EM TRANSFERÊNCIA

"Freud, psicanalista que reivindica os 'direitos do ginecologista', herdeiro transferencial dos sedutores históricos de Dora, ilustra com seu dito ('eu dou nome aos bois') a maneira como os significantes verbais da sexualidade adulta procedem à marcação e, com ela, à constituição da psicossexualidade infantil." (ANDRÉ, 1996, p.100)

Talvez mais do que ilustrar, Freud, analista primeiro, esteja repetindo a sedução originária, introduzindo no dispositivo analítico a revivescência ou o revigoramento da sedução infantil, entendida em sua concepção generalizada. A discussão aqui apresentada mostrou que isso implica a instigação da sexualidade, que partirá do analista. De modo suplementar, essa idéia supõe a sujeição do analisando à sedução do analista — também sob uma concepção de reativação da situação originária —, identificando-se sua posição como a de seduzido. Em conseqüência, seguindo-se a compreensão de J. André (1996) de que a posição seduzida infantil é a posição feminina, pode-se sugerir entender o necessário despertar da sexualidade feminina em análise. Um lugar feminino-infantil para o analisando, subjugado à "sedução" do adulto-analista.

A posição e o lugar do analista são aspectos sobejamente discutidos em psicanálise, como nós mesmos fizemos no item anterior. O que parece ter sido muito menos tematizado é a posição do analisando; na verdade, até mesmo a idéia de uma posição para o analisando carece de maiores debates — não se desconhecendo o entendimento do analisando na situação analítica como sendo de propensão regressiva. Talvez isso se deva ao fato de uma designação de posição trazer certa compreensão ativa, do ponto de vista pulsional, que não parece ser a prevalecente no caso do analisando. Neste texto, proponho justamente uma explicitação do lugar do analisando, definindo-o ou delimitando-o como pulsionalmente feminino — ou, melhor dizendo, libidinalmente feminino. É o que passo, então, a justificar.

A presença do rebaixamento sexual (sujeição sexual) como um dos mais temidos e desejados anseios na análise aparece expresso no caso Homem dos Lobos (FREUD, 1918/1976) de maneira por vezes quase grotesca, e por outras, sintomática. Esse anseio foi interpretado por Freud como desejo homossexual do Homem dos Lobos — que se teria por objeto de gozo de seu pai — com base no que se deu e se mostrou na análise. Tratava-se de um desejo profundamente recalcado, entendido por Freud como desejo feminino. Na concepção de Jacques André (1996), tal feminilidade ganha o sentido da sexualidade feminina originária recalcada. Delimitando ligeiramente o tema, sabemos que a compreensão de Freud do desejo feminino em análise é contraposta à castração — o que precisamente engendra o temor ao próprio desejo —, e Freud dá ao desejo feminino uma posição secundária.7 7 O desejo primário para Freud é, como se sabe, o desejo masculino, o desejo fálico. Embora essa questão da primazia dos desejos possa ser profundamente discutida no Caso Homem dos Lobos, uma vez que Freud encontra a origem do desejo feminino precisamente na "cena primitiva". Mas ela acaba sendo recoberta na compreensão freudiana pela castração, tal como aparece em seus textos sobre a feminilidade. Com a mesma rapidez de delimitação, pode-se dizer que o desejo feminino, também profundamente recalcado, é entendido por J. André como constituído originariamente, estando situado nos primórdios da sexualidade e, a bem dizer, caracterizando essa origem. O temor desse desejo feminino se deveria muito mais à sua condição de recalcado originário que de recalcado secundário. Apesar da diferença de compreensão da origem do desejo feminino recalcado, não se poderia, segundo penso, falar propriamente em feminilidade ou desejo feminino senão considerando-se a disputa edípica e a passagem pela castração. Estou sugerindo, portanto, uma compreensão que acompanhe J. André e Freud, assumindo-se a sexualidade como originariamente feminina e tomando-se a castração e o Édipo na determinação do vir a ser feminino.

É pertinente dizer que a feminilidade concebida como enraizada na passividade originária — trazendo como posterior conseqüência noções de passividade efetiva ou de "rebaixamento" na percepção do feminino — carregue uma valorização de nosso tempo. No entanto, para a compreensão da análise, o que está em jogo é de fato certa valorização — os valores, as crenças, as fantasias de caráter sexual que se atualizam na relação analítica, não se tratando de desprezar o espírito do tempo ou as condições culturais de um modo mais geral. A "feminilidade" buscada por Dora, evitada pelo Homem dos Lobos e transformada em delírio pelo Presidente Schreber (FREUD, 1911/1976) perderia por completo seu sentido e sua força "traumática" se convertida simplesmente em "passividade originária", desprovida dos "valores" advindos dos desdobramentos por que passa, em seguida à situação originária, a sexualidade. Se a passividade originária da criança de que fala J. André, diante do adulto sexuado ou do inconsciente sexuado do adulto, pode ser entendida como uma passividade como condição geral da dependência e do desamparo inicial, deve ser ela compreendida, em seu aspecto sexual, como um caráter pulsional. Somente assim podemos escapar da falácia da oposição ativo/passivo na compreensão do masculino/feminino. À passividade do fim pulsional de que se trata na instigação sedutora do adulto a partir de suas fantasias sexuais particulares corresponde a sexualidade recebida no corpo próprio da criança como — para não nos afastarmos de Freud — prazer de órgão. A excitação provocada pelo adulto, bem como sua solução — também proporcionada pelo adulto —, induzem ao prazer como passividade, ao prazer recebido. Assim, talvez se possa referir à passividade originária como a condição necessária, mas não suficiente, da sexualidade feminina que se institui e se recalca. É sob essa perspectiva que tomo a idéia da origem feminina da sexualidade proposta por J. André, embora a esteja interpretando e completando, mas, por outro lado, sequer esteja acompanhando toda a argumentação desse autor.

Retomando a feminilidade — abordada no caso do Homem dos Lobos com o intuito de se ampliar a sua compreensão como efeito inelutável da transferência provocada pela atualização da sedução —, podemos ainda recorrer ao caso Dora.

É curioso lembrar que, também em Dora, o ponto fundamental ao qual chega o encaminhamento sexual imposto por Freud à análise é a questão da feminilidade dessa analisanda, expressa na forma da homossexualidade, sendo esta a do amor incondicional pela Senhora K. Trata-se, provavelmente, de homossexualidades distintas, a do Homem dos Lobos e a de Dora. Se aquela do Homem dos Lobos permite ser caracterizada pela idéia do rebaixamento implicado na posição da relação por trás — e que tem, como se sabe, a função significante da excitação desse analisando e de seu investimento apaixonado —, no caso de Dora, a homossexualidade talvez possa ser qualificada como idealizada. Supostamente, Dora deseja aquela que é seu ideal, aquela com quem se identifica, aquela que representa para ela o enigma da feminilidade, ou a sua solução: a Senhora K. Assim, Freud, analista-pai no Homem dos Lobos, é apreendido — seguindo-se a sugestão de Forrester (1990) — como analista-mãe (Sra. K.) em Dora, o que significa ter sido nessa posição feminina que Dora transferencialmente colocou Freud. Este, por sua vez, assim se deixou, ou mesmo se fez tomar, facilitando a transferência do investimento de Dora, da Senhora K. para ele próprio.

A compreensão, que aqui estou sustentando, de Dora — seguindo Forrester (1990) e meu próprio entendimento (CELES, 1995) — diferencia-se daquela de J. André, pois este último privilegia a sedução paterna no entendimento do caso, a fim de resgatar a posição fundamental que a sedução teve na constituição da psicanálise. A conjectura aqui estabelecida é no sentido de que Dora "adere" à sexualidade feminina recalcada de seu analista, na medida que este ensejou o falar sobre a sexualidade, ocupando assim a posição de "sedutor" de Dora.

Dois casos que não permitem generalizações. No entanto, o intuito é identificar certas condições estruturais, e o caráter fundamental dessas condições é o que está em questão. Por outro lado, ao se pensar em certos desenvolvimentos de análise sob a perspectiva inescapável da transferência introduzida pelo analista como sedução, certamente haverá um proveito na compreensão desses desenvolvimentos.

RELAÇÃO SEDUTOR/SEDUZIDO NA CONSTITUIÇÃO DA FEMINILIDADE

Para firmar tais condições fundamentais — sedução e feminização em análise —, e indicar certo ganho de condução da análise nesses termos (que sugerimos como sendo a implicação da alteridade), necessito retomar o tema do entendimento do feminino e da feminilidade. Tal será feito — embora apenas de maneira indicativa — não apenas atando-se a noção do feminino ao seduzido e à sua "reação", mas também acompanhando os desdobramentos dessa "reação", na forma do recalque e do recalque propriamente dito.

Tal como proposto por Jacques André na obra citada, a premissa da sedução envolve feminizar o seduzido, que responderia a partir da sexualidade feminina recalcada. A sexualidade feminina é tomada como origem da sexualidade ela mesma. O argumento desenvolvido por Jacques André esbarra no limite, segundo entendo, de somente permitir pensar o originário feminino recalcado como um traço da "posição" feminina implicada na sedução, ou seja, como o traço do seduzido. A sedução deixaria na criança, assim, significantes do seduzido: passivo, penetrado, orificial, etc. Essa compreensão aparece de modo mais evidente quando o autor discute a idéia da alteridade como feminino, opondo a esse "outro" feminino a "mesmice fálica". Essa concepção do feminino originário, que transparece de maneira mais evidente na argumentação de J. André, parece-me limitada, pois exclui a presença (ou o traço da presença) do sedutor, isto é, aquilo que no traço do seduzido aponta para o sedutor.

Paulo de Carvalho Ribeiro, em texto inédito,8 8 Texto com o título "Identidade de gênero e identificação feminina primária", apresentado no grupo de pós-doutorado na PUC-SP, sob orientação do prof. dr. Luís Cláudio Figueiredo, em 2003. Segundo informação pessoal do autor, o referido texto encontra-se em vias de publicação. propõe, a meu ver, uma correção da compreensão de Jacques André. Para isso, desloca a ênfase para a relação penetrante/penetrado, evitando separá-la em pólos distintos. Em J. André, ao contrário, parece ser possível tornar o penetrado independente do penetrante e vice-versa; em conseqüência, fica esboçada a idéia do recalque da situação de penetrado, que se daria de maneira autônoma — ou seja, ocorreria a manutenção do traço de seduzido, a partir da experiência da sedução generalizada, independente do traço do sedutor. Assim, J. André propõe entender o feminino como o outro, porque recalcado e porque efeito da sedução na criança. No argumento deste texto, pretendo restabelecer a situação originária em sua plenitude — a da relação sedutor/seduzido —, permitindo compreender-se que o propriamente outro, na perspectiva da criança na situação de sedução originária, é o adulto sedutor, o inconsciente sexual deste, o adulto com sua linguagem sexuada. A partir daí, mas não em linha direta, na situação analítica, privilegia-se a possibilidade de marcar o valor de alteridade do analista.

Outro aspecto importante a ser completado na abordagem de J. André, para a elucidação do outro e do feminino em análise, diz respeito à condição do recalque em dois tempos, que deverá tornar possível a compreensão do feminino e da feminilidade no sentido complexo, ou seja, passível de análise. Se adotarmos a noção da feminilidade sugerida por J. André — alinhada com a passividade, o penetrado ou o orificial, estabilizada pela condição do recalcado da sexualidade feminina primária —, deveremos acrescentar o sentido do recalque propriamente dito na sua constituição. A concepção do trauma entendido em dois tempos, que enseja o recalque, mostra que, à feminilidade no sentido originário (como passividade) como traço de seduzido (como paixão), se associa uma sexualidade outra como "reação" à sedução. Isso significa que no recalque se pode apreender uma criança já sexuada (segundo uma sexualidade infantil), reativa à sua feminilidade como paixão, como simples traço de seduzido.

Para a sustentação desse argumento, recorro à observação de Laplanche (1988) quanto ao desdobramento da relação adulto/criança. Emprestando de Ferenczi os termos de designação, ele sugere que, no processo de sedução e constituição da sexualidade, a criança passa da ternura à sexualidade, enquanto o adulto que trata a criança, que a seduz, vai da sexualidade à ternura. Não é necessário tomar essas considerações ao pé da letra, como se houvesse estados de pura ternura e de pura sexualidade (puramente perverso). A observação de Laplanche é útil porque chama a atenção para os movimentos inversos entre a criança e o adulto, apontando para um duplo processo. No primeiro, o da criança, evidencia-se a inoculação ou instigação da sexualidade (da ternura à sexualidade); no segundo, o do adulto, expressa-se a ação do recalque, ou do afastamento do adulto em relação à criança, o desinvestimento da criança como objeto da satisfação, seu desinvestimento como o falo materno (se esse esquema for pensado sob uma perspectiva freudo-lacaniana). Assim, quando o adulto sexualmente se retira, interditada que está a sua permanência, abre-se a possibilidade da significação sexual da experiência da criança — o que, como Freud já estabelecera desde os Estudos sobre a histeria, induz ao recalque. Trata-se do recalque da experiência originária (passiva, seduzida — significante enigmático, segundo Laplanche [1988]), que então é significada como sexual (plenamente sexual); essa mesma significação se constitui como a causa e o efeito do recalque. A significação sexual da experiência originária confere a essa experiência, protótipo da feminilidade, o sentido da feminilidade propriamente dita. No entanto, a presença do sedutor na constituição da sedução generalizada e do recalque não pode ser ignorada: a sexualidade recalcada envolve a relação sedutor/seduzido, penetrante/penetrado. Assim, fica possível, por fim, pensar a sexualidade feminina recalcada como a presença marcante da relação sedutor/seduzido na perspectiva do seduzido — o que não vai impedir, uma reação ativa, ou uma tentativa de instalação de uma sexualidade ativa (fálica ou masculina). A propósito, lembremo-nos da reação do Homem dos Lobos à sedução praticada pela irmã: é como sedutor (portanto, fálico) que ele investe, por sua vez, sobre a querida Babá.

Desta forma, deve-se estabelecer uma diferença, ao menos teórica, entre a sexualidade feminina originária — a sexualidade do seduzido, protótipo da feminilidade — e a sexualidade feminina recalcada propriamente dita — como supomos ser, por exemplo, a que se mostra na relação transferencial entre Freud e Dora. Em síntese, proponho considerar duas posições da sexualidade: 1) a "sexualidade infantil" como a "ternura" (de que falou Ferenczi 1933/1992) já sexualmente significada, um passo no movimento de aderência que a criança faz à sexualidade do adulto, uma certa apropriação inconsciente (recalque primário) da sexualidade nela introduzida pela sedução adulta; 2) a "sexualidade infantil recalcada", já submetida a um segundo tempo significante, tempo do recalque propriamente dito. Essas posições permitem distinguir dois aspectos complementares em posterioridade da feminilidade: a "feminilidade" como passividade originária, e a feminilidade recalcada, que seria aquela atravessada pela significação genital, ou melhor dizendo, fálica.

TRANSFERÊNCIA FEMININA EM ANÁLISE

Esses dois aspectos em consideração permitem entender o desenvolvimento da transferência feminina em análise não apenas como derivada diretamente de uma resposta a partir do "feminino originário", mas também como desdobramento desse originário. Isso significa que não se deve pensar somente no efeito da sedução sobre o seduzido, mas também na "resposta" do seduzido e nos desdobramentos dessa resposta em face do sedutor, ou seja, considerar os dois tempos da constituição da significação sexual e do recalque. Tal consideração implica incluir o outro aí envolvido — o sedutor. Para o caso da situação analítica em que sugerimos atualizar a sedução, isso permite afastar o analista da atitude de tomar a transferência como repetição automática da sexualidade feminina, a partir da feminilidade dita originária. Propomos, portanto, que se considere a sexualidade feminina recalcada, em seu sentido completo. Pois somente considerando-se o recalcado como mais que o traço de seduzido, mas como resultado da relação sedutor/seduzido que envolve o recalque em seus dois tempos, se poderia circunscrever um lugar próprio para o analista apontado como "sedutor". A sedução do analista — provocador da sexualidade na relação analítica — não encontra uma criança (no sentido laplanchiano ou ferencziano do termo), mas um "adulto", ou seja, um analisando também com sexualidade recalcada. A posição de sedutor do analista faz despertar a feminilidade recalcada — no sentido pleno que lhe quisemos conferir antes, como paixão e reação, ainda que do ponto de vista do apaixonado, do seduzido — na forma de uma homossexualidade feminina, como aparecem as feminilidades nos casos de Freud mencionados. Desta maneira, é possível considerar o envolvimento do outro — no caso, o analista — no desdobramento da sexualidade estabelecida transferencialmente, sexualidade transferencial esta que ele mesmo provoca.

No Homem dos Lobos, Freud posiciona-se no tratamento quase em linha direta, a partir da imago paterna do analisando. A constituição dessa imago paterna (fálica), objeto do desejo e da identificação do Homem dos Lobos, é alcançada por meio de transformações da sexualidade feminina, que é recalcada e dá lugar a uma sexualidade fálica. Segundo a compreensão de Freud, teria ocorrido a atualização da herança filogenética que permitiu ao Homem dos Lobos tomar seu pai como castrador (fálico, sedutor), e não a babá — de quem teria vindo efetivamente a ameaça de castração. Desse modo, fica possível compreender como Freud "facilita" sua própria apreensão transferencial, ao se tornar objeto do desejo homossexual do Homem dos Lobos e substituto paterno. A atuação dessa transferência (feminina, rebaixada, no sentido do feminino recalcado e não apenas do feminino originário passivo), resultado da sedução do analista, pode ser apreendida como transferência fundamental em todo o tratamento, o que se mostra na submissão e docilidade do Homem dos Lobos aos "cânones" técnicos das manobras de Freud, incluindo-se a precipitação do fim da análise, por exemplo.

Em Dora, Freud participa dos desdobramentos da sexualidade que instiga. A partir da resposta feminina da analisanda, Freud é deslocado para uma posição também feminina, quando Dora parece esperar de Freud uma conclusão para o enigma de sua feminilidade recalcada. Poder-se-ia dizer, ainda, que Freud vem ocupar uma posição identificada com a Senhora K (e com a mãe de Dora). Essa identificação à qual parece que Freud fica submetido à sua revelia, pode ser entendida, com elementos já explanados, como uma confluência entre a disposição freudiana de tratar da sexualidade com Dora e a disposição de Dora, esta instigada que está pela curiosidade sexual herdeira de suas conversas com a senhora K. Freud, portanto, abre a possibilidade, ou "dá a deixa", para que Dora o tome na posição feminina. E, ele mesmo, é tomado (no sentido passivo, nesse momento) pela identificação com essa posição feminina. Talvez se configure aqui um caso bastante característico de identificação projetiva — com a participação exata e adequada dos dois envolvidos na dinâmica transferencial, Freud e Dora, não sendo o caso de se compreender um deles como alvo da transferência (e da projeção) do outro. Assim parece se configurar uma relação transferencial no molde da relação sedutor/seduzido. Com ênfase em um ou em outro dos termos, Freud e Dora se posicionam na análise (melhor dizendo, são posicionados na análise). Com efeito, Freud se coloca promotor do sentido sexual em análise, ao que Dora responde transferencialmente com sua sexualidade feminina recalcada, em forma de homossexualidade, repetindo (ou atualizando) a relação seduzida/sedutora.

Antes de concluir, gostaria de introduzir determinada questão, que será exposta afirmativamente.

A sedução de transferência — entendida como reativação da situação originária de sedução generalizada — faz despertar (no modo transferencial) a sexualidade feminina primária recalcada. Retomando-se, no entanto, a relação entre a origem da transferência como sedução e os desdobramentos sexuais efetivamente havidos nos casos em referência — de Dora e do Homem dos Lobos —, pode-se asseverar que eles introduzem a questão específica da generalização possível da resposta feminina como homossexualidade. Sugere-se, então, a admissibilidade da generalização do destino da sedução reativada em análise como sendo no sentido da reativação da feminilidade caracterizada pela homossexualidade.

A feminilidade como resultado da "sedução" provocada em análise se atualizaria na forma transferencial da homossexualidade. A idéia de homossexualidade assim sugerida não diria respeito nem ao sujeito nem ao seu objeto amoroso (nem homossexualidade de sujeito nem homossexualidade de objeto). "Homossexualidade" teria de ser entendida no sentido de o mesmo sexual, o sexual que é o mesmo — o mesmo da sexualidade recalcada, resultado da sedução originária e do recalque propriamente dito, o que implica, como exposto mais acima, uma sexualidade feminina. Tal significaria também se referir, em análise, a uma homossexualidade a partir da posição feminina.

A sexualidade feminina tomada como o mesmo — o mesmo do recalcado — diferencia-se da concepção de J. André na obra já citada, pois esse autor compreende o feminino como o outro — e não o mesmo —, porque recalcado. De qualquer modo, a idéia que se propõe aqui — a da homossexualidade (em análise e como efeito da "sedução" do analista) como o mesmo feminino recalcado — permite sugerir a homossexualidade transferencial em análise como homossexualidade feminina. Homossexualidade de análise que apenas teria seu sentido se a feminilidade dita originária e a feminilidade recalcada secundariamente forem tomadas em conjunto. Em certo aspecto, trata-se de uma regressão ao feminino recalcado, que em análise se mostraria na forma da repetição da sexualidade feminina como homossexualidade. Nos casos acima mencionados, isso se revela na repetição da busca do outro como sedutor: no Homem dos Lobos, o sedutor paterno; em Dora, a sedutora e ideal que foi a Senhora K.

O entendimento que aqui se propõe será, então, o de uma certa universalidade do desenvolvimento da transferência homossexual em análise — ou seja, da reativação do mesmo sexual — como posição originária de seduzido.9 9 Fédida (1988) sugere, comentando sua intervenção em um determinado caso, a mesma idéia da universalidade de uma base homossexual em toda transferência: "considero essencial uma determinação homossexual nas transferências" (p.88). Embora faça algumas poucas considerações sobre a direção a ser dada em análise a essa relação "homossexuada" (idem), Fédida não se detém sobre a força de sua origem e nem sobre os meios ou processos pelos quais a homossexualidade se presentifica em transferência. Isso permitiria compreender a torção havida no caso de Dora, pois essa moça teria desenvolvido tão inesperadamente uma transferência homossexual com Freud — tomando-o no lugar da Senhora K —, que o analista chegou a não reconhecê-la, ou se sentiu impedido de fazê-lo. Por outro lado, essa torção provocada por Dora — ainda que numa espécie de resposta à posição freudiana — mostra que a passividade a que nos referimos como fundamento da feminilidade não pode ser compreendida como passividade pessoal ou moral. Tal é nossa opinião, ainda que essa passividade moral não deixe de ser tomada inconscientemente como meio de apresentação da sexualidade feminina, como aconteceu com o Homem dos Lobos em sua posição "rebaixada".

No entanto, não pretendo me estender, neste momento, na justificação da polêmica que a questão e o esboço de resposta que sugeri possam trazer, inclusive a respeito da denominação "homossexualidade feminina". Passo, portanto, à conclusão do texto.

CONCLUINDO

Conhece-se a postura fundamental de Freud no que se refere à transferência ("isso não é comigo pessoalmente"), bem como a sua compreensão da relação da transferência com a análise ("a análise não cria transferência, ela não é um mal a mais criado pela psicanálise, esta somente a atualiza") — ou seja, sabe-se que Freud isenta a si próprio (como na "Introdução" do Caso Dora) e a psicanálise da constituição e da manutenção da transferência. Ora, é possível supor que esses aspectos tenham impossibilitado o manejo adequado das transferências e da condução das análises. A isenção freudiana quanto ao caráter sexual das interpretações que oferece a seus analisandos ("para fazer omelete é necessário quebrar os ovos") e o alheamento de sua responsabilidade na constituição da transferência teriam marcado os casos narrados por Freud com uma espécie de cegueira para a presença atual do outro (ele mesmo, o analista) — o outro como o outro sexual (que não será necessariamente o outro sexo), o sedutor. Essas atitudes teriam impedido a elaboração da transferência constituída como homossexualidade feminina, já que a face atual do analista estaria excluída por Freud do manejo e da condução da transferência em análise. Essa face se expressaria de início como condição da análise — tanto na constituição da transferência pela psicanálise como na análise propriamente dita, pois que "exercita" a compreensão determinante, senão subjetivante, da sexualidade.

O analista — embora constitua as condições para a transferência, deixando-se tomar transferencialmente — elide sua alteridade, pois, absorvido no pacto transferencial, permanece como traço infantil, ou seja, o mesmo de outrora: um elo a mais na cadeia de deslocamentos do analisando. A transferência também necessita ter por fim apropriado a reintrodução da diferença, abrindo espaço para a alteridade do analista (e do analisando). Esse processo não pode ser entendido como uma espécie de "recusa da transferência" — já que estaríamos, pelo menos em teoria, alertados para sua recusa precipitada —, mas como exigência de atenção à alteridade que se dá na transferência, ou melhor dizendo, que ocorre no limite, nas bordas da transferência. O limite da transferência — a resistência à transferência imposta pela diferença do analista (e do analisando) com relação à imago transferida, o que significa a impossibilidade de consumação da transferência — apóia-se no outro atual que é o analista (e analisando).10 10 Discuto as noções de "resistência à transferência" e do limite da transferência como o lugar da alteridade em Celes (2003). A interpretação da transferência talvez possa ser entendida, assim, como o manejo do seu limite. Desta forma, tão importante quanto dar sentido regressivo à transferência seria trabalhar a transferência ela mesma, bem como os seus limites. Frise-se, de novo, que a transferência é aqui concebida como sexual e homossexual feminina.

Podemos entender o caráter homossexual da sexualidade feminina em transferência (como aconteceu com Dora e o Homem dos Lobos) como uma exigência transferencial enredada no vigor de sua consumação como força de repetição, de busca pelo mesmo, pelo igual, pelo comum. Mas isso deve ser tomado como compromisso entre uma moção de apagamento da diferença sexual e um movimento de manutenção da mesma diferença — portanto, como um retorno ao pré-recalque e ao recalque, ao pré-edípico e ao edípico. A homossexualidade feminina despertada por obra da transferência — resultado da "sedução" do analista e da psicanálise — seria o propriamente interpretável da transferência, seria o que se presta a restabelecer (construir/reconstruir, no sentido freudiano) a relação infantil. Por outro lado, a abstinência do analista — que não leva a cabo a sedução — e simplesmente a sua singularidade — que impede ou resiste à consumação da transferência — marcariam os limites da transferência, nos quais haverá a possibilidade da presença (do analista para o analisando) como alteridade. A compreensão do analista como atual-sedutor e atual-diferença abre as condições para a transferência e para seus limites, para a elaboração — como mergulho em si mesmo, carregado da série de outros-si-mesmos próprios à cadeia de deslocamentos dos objetos e das repetições das identificações — e para a alteridade — como abertura para a diferença e para a presença.

(1905) "Fragmento de análisis de un caso de histeria", v. 7, p.1 (Caso Dora).

(1911 [1910]) "Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito autobiográficamente", v. 12, 1 (Caso do Presidente Schreber).

(1918 [1914]) "De la historia de una neurosis infantil", v. 17, p.1-111 (Caso Homem dos Lobos).

Recebido em 20/9/2004. Aprovado em 12/4/2005.

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  • *
    Texto produzido como resultado parcial de projeto de pesquisa com apoio do CNPq, na forma de bolsas de pesquisador e iniciação científica e financiamento parcial. Este texto foi inicialmente apresentado no grupo de pós-doutorado, sob orientação do Prof. Dr. Luís Cláudio Figueiredo, na PUC-SP, de cujo grupo recebeu comentários diversos que ensejaram profundas modificações. Nem todas as críticas, porém, foram tomadas, pois partiam de fundamentos distintos dos aqui desenvolvidos. Ao Prof. Luís Cláudio Figueiredo e ao grupo agradeço a atenção, leitura e observações. Também agradeço à leitura e úteis comentários da minha colega, Profa. Tania Rivera, por ocasião de disciplina que conjuntamente ministramos na pós-graduação em psicologia da UnB.
  • 1
    Abster-me-ei, no entanto, de fazer referências expressas a essas psicanálises. Tomarei casos de Freud, que serão tratados segundo minha compreensão, estabelecida a partir das tais "situações efetivas de transferência".
  • 2
    É verdade que as coisas não se dão nem se deram assim tão linearmente. Nós mesmos mostramos como a concepção da sexualidade infantil trouxe à elaboração freudiana, entre 1896 e 1905, muito mais um problema teórico que uma solução (CELES, 1995). Aqui, no entanto, comparando sexualidade e feminilidade ou sexualidade e essa mesma qualificada de feminina, de um modo caricatural como foi feito, tem a função de uma economia de exposição.
  • 3
    A desimportante condição da sexualidade na compreensão dos modos e processos de subjetivação não se constituiu somente como oposição a Freud proveniente de fora da psicanálise. Um dos grandes méritos de Laplanche foi apontar, parece-me, o mesmo alheamento da sexualidade nas considerações e práticas psicanalíticas que se estendem até a atualidade. Também Green (2000) alinha-se a Laplanche nessa denúncia, ainda que adotando concepção distinta de sexualidade.
  • 4
    Termo usado por Ferenczi (1933/1992) para caracterizar a fala da criança em diferença (oposição?) da fala sexual do adulto em seus encontros, de onde Laplanche (1988) parte para a concepção da teoria da sedução generalizada como característica da relação adulto e criança.
  • 5
    É sabida a determinação da sexualidade inconsciente de Freud nos desdobramentos do caso Dora. Estamos acima nos referindo às perspectivas de nossa análise e, não, ignorando as determinações da presença pessoal de Freud.
  • 6
    O caráter revelador do trabalho de psicanálise que assume esses casos, aparece na consideração de que, afinal de contas, são casos que inauguram a psicanálise. Eles têm, portanto, o estatuto de fundação da psicanálise.
  • 7
    O desejo primário para Freud é, como se sabe, o desejo masculino, o desejo fálico. Embora essa questão da primazia dos desejos possa ser profundamente discutida no Caso Homem dos Lobos, uma vez que Freud encontra a origem do desejo feminino precisamente na "cena primitiva". Mas ela acaba sendo recoberta na compreensão freudiana pela castração, tal como aparece em seus textos sobre a feminilidade.
  • 8
    Texto com o título "Identidade de gênero e identificação feminina primária", apresentado no grupo de pós-doutorado na PUC-SP, sob orientação do prof. dr. Luís Cláudio Figueiredo, em 2003. Segundo informação pessoal do autor, o referido texto encontra-se em vias de publicação.
  • 9
    Fédida (1988) sugere, comentando sua intervenção em um determinado caso, a mesma idéia da universalidade de uma base homossexual em toda transferência: "considero essencial uma determinação homossexual nas transferências" (p.88). Embora faça algumas poucas considerações sobre a direção a ser dada em análise a essa relação "homossexuada" (idem), Fédida não se detém sobre a força de sua origem e nem sobre os meios ou processos pelos quais a homossexualidade se presentifica em transferência.
  • 10
    Discuto as noções de "resistência à transferência" e do limite da transferência como o lugar da alteridade em Celes (2003).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Jan 2005

    Histórico

    • Recebido
      20 Set 2004
    • Aceito
      12 Abr 2005
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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