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Cooperativismo

Cooperativismo

Venho hoje ocupar a vossa atenção, no desempenho da incumbência que me cometeu a Congregação desta Escola, confiando-me a aula inaugural deste ano, que é, como sempre, a fórmula acadêmica de expressar as boas vindas com que a instituuição, passado o interstício das férias, saúda com marcante satisfação, a chegada dos mestres e dos discípulos ao pórtico do novo ano escolar, a retomarem suas edificantes atividades: uns, na mais nobre das manifestações de altruismo e de humanidade, a transmitirem, repartindo o valioso cabedal que é o patrimônio todo pessoal de seus conhecimentos técnicos, fruto de aturado labor e de pacientes experimentações; a receberem, outros, esta mocidade que acorre, e aqui vêm empregar quatro anos de uma radiosa juventude, essa "flor de lotus que em cem anos floresce apenas uma vez", para aqui se aperfeiçoarem moral e intelectualmente, aparelhando-se para depois empreenderam a caminhada rumo daquelas paragens onde, sempre lá para mais longe, o ideal costuma aninhar-se, entre os encantamentos de u'a miragem.

Não decorre, contudo, do protocolo desta solenidade que deva ser necessariamente uma preleção científica, ou de caráter simplesmente pedagógico. É uma festa inaugural do trabalho, no exercício de uma ação altamente construtiva, de que, à porfia, mestres, discípulos e funcionários, todos participam nobremente, empenhando os melhores esforços, congregados sob uma das formas de cooperação racionalizada e harmônica, objetivando tão alevantadas finalidades.

Nasceu dessas considerações a decisão que me fez escolher o tema desta palestra. Eu vos poderia apresentar nesta hora, uma lição inaugural restringindo-me aos assuntos técnicos da cátedra - abordando e desenvolvendo qualquer dos temas que se podem fartamente escolher num programa de Engenharia RuraL E foi, de fato, a princípio, esse o meu pensamento. Eu viria aqui; e iria para o quadro negro; e com facilidade haveria de encarreirar uma porção de expressões polinômias por que se traduzem os princípios matemáticos fundamentais de qualquer das. disciplinas da cadeira; e as enredaria numa exposição adequada, com as explanações suficientes, entrelaçando-as com algumas citações adequadas de opiniões de autoridades; e, assim, me desempenharia também aceitavelmente do encargo que mé confiaram.

Rumou, porém, para outro lado o meu espírito. A engenharia, de qualquer dos pontos de vista que se considere, não deixa de ser a aplicação dos conhecimentos técnicos e científicos mobilizando do modo mais racional e inteligente os elementos materiais para as realizações dessa ordem, que contribuem, para o bem estar da humanidade.

E, para uma tal finalidade, para o alcance de um tal programa assás complexo, tudo evidentemente há de subordinar-jse às leis primárias da harmonia e da associação, eis que, neste mundo, nada há que possa subsistir de si mesmo, unicamente, isolando-se, furtando-se às imposições das dependências recíprocas de toda natureza.

Restringindo-me, pois, a esse ponto de vista, eu me atenho ao panorama da engenharia rural, que no nosso país terá por cenário praticamente a totalidade de seu vasto território, eis que as áreas urbanas desaparecem na imensidade da superfície de campos e matos.

E, sobre esse vastíssimo tapete de 8 e meio milhões de quilômetros quadrados, eu distingo, numa rarefação que dá que pensar, uma população diminuta, isolada em núcleos esparsos, cada um de pequena continência, e em cada um deles, efeito de vá- rias causas, complexas e agindo simultaneamente, seus componentes, num individualismo incompreensível e injustificável, a viverem a vida do desconforto e das privações, infelizes e subnutridos, habitando um território que, sem qualquer demasia, é o mais rico do mundo, de todos os pontos de vista, que se o considere.

E, nesta imensidão rural que é o Brasil, quatro séculos de civilização muito pouco têm realizado, em vista do que poderia, relativamente ao formidável potencial das suas energias disponíveis.

E, assim, nesse meio, e nestas condições, portanto, é de reconhecer que pouco tem valido, as cogitações da engenharia rural, - onde as suas realizações, por certo estão a depender indispensavelmente da existência de um elemento que, se de todo não falta, é entre nós escassíssimo: espirito de cooperação. E evidentemente esse tem sido o fator número um do em-perramento de qualquer iniciativa em nossa terra, o máximo responsável pelo atraso generalizado com que ainda se apresenta aos olhos do mundo.

Foi pensando assim, e na tristeza disso tudo, que eu - idealista do Cooperativismo e apaixonado propugnador de sua aplicação como a mais aconselhável para a solução dos mais importantes problemas da nacionalidade - me dispuz a aproveitar este magnífico ensejo, para cuidar do assunto entre nós, divulgando coisas interessantes dos primórdios da Cooperação, essa que deveria constituir o evangelho de todas as nossas atividades sociais e econômicas.

Porém, e evidentemente por norma de política de bôa vizinhança, eu me permito reconhecer aqui, de princípio e em público, que tal iniciativa pertenceria de direito e muito antes, à cátedra de Economia, essa em que refulgem o talento e a erudição do jovem Professor Rocha Nobre, sem favor uma das balisas desta instituição; e, de conseqüência, eu lhe solicito, primo-loco, que me defira a permissão de cuidar de assunto tão interessante.

* * *

Meus senhores: Volvamos a nossa mente para o cenário da Europa, pouco além dos meiadós do século XVIII. Anda por essa época mais ou menos, o início dos primeiros movimentos da organização dessas forças, que se costumou denominar genericamente de forças cooperativas, em que se possa com rigor fixar o momento preciso da história, em que se revelaram. Evidentemente remontam aos primeiros tempos da humanida- de, as formas porque os homens revelaram suas omnimodas tendências de associação, demonstrando, mesmo, terem inato o senso da soclabilidade e da vida em comum.

"Desde o princípio da vida, - dizia Juarés no seu "Idealismo da História", - ao lado do egoísmo brutal, encontra-se este sentimento simpático, preparando a reconciliação fraternal de todos os homens depois dos combates seculares".

E se investigarmos tão remotamente quanto nos permitam os mais distantes vestígios das tentativas que realizaram os homens, para se furtarem aos efeitos das privações, contornarem as consequências de adversidades, ou, ainda, em bnsca de quaesquer satisfações de ordem moral, intelectual ou física, veremos que são constantes os exemplos de indivíduos, em maior ou menor número, buscando realizar a seu modo associações de qualquer sorte, de duração suficiente à realização de seus ideais ou à satisfação dos desejos que as determinaram, e de aspecto variável pelo efeito dos óbices que porvetura tenham surgido obstando tais determinações.

Confirma de modo elegante tais assertos, Elysée Réclus, no "O Homem e a Terra", - dizendo que "a luta pela vida nãó é a lei por excelência e que o acordo a supera de muito na história do desenvolvimento dos seres. A melhor prova no-la dá o fato de não serem mais felizes nos seus destinos, os seres mais aparelhados de meios para a rapina, ou para a agressão; mas, ao contrário, aqueles que munidos de armas bem menos aperfeiçoadas, se entreajudam com mais decisão. São mais felizes, não os mais ferozes, mas os mais amantes.

Em todas as épocas vemos surgirem certas formas de agrupamento dos indivíduos para, compensando a insuficiência de sua fraqueza, pelo número se oporem à atuação destrutiva, ou maléfica dos mais fortes. E é mesmo interessante de verificar que, em inúmeros casos, as tendências associativas se tornam mais pronunciadas, quanto maior deva ser, em tais casos, a resistência a vencer.

Tão depressa, entretanto, tais organizações se vêm livres de coração das forças que as haviam determinado, elas se dissolvem automaticamente por inúteis e desnecessárias, vitimadas também pelas conseqüências das incessantes transformações da historia, dos turbilhões da batalha universal dos seres e das cousas.

É, entretanto, interessante de observar-se como data de época relativamente bem recente que a idéia da associação deixa de ter um sentido puramente moral, para esboçar-se mais precisa, e tomar aspecto cada vez mais concreto e positivo, de instituição necessária e permanente. Tal conceito impressionou a Leroy Beaulieu, fundamentando-se na observação de que a grande luta dos elementos sociais da época, proveniente da industrialização, sistemática crescente, havia então determinado a constituição de um proletariado, de uma classe operária, em que o instinto e o senso da solidariedade se deseenvolviam com mais preponderância. E, com o evoluir, percebia-se nitidamente como a associação se convencia de si própria, sistematizando-se, atribuindo-se um objetivo, impondo-se regulamentos, assumindo formas jurídicas, e participando de um movimento de ritmo incessantemente alterado e ampliado, e cujas ondas cada vez mais regulares e profundas su-blevam u'a massa de população cada vez mais considerável.

Essa é a época em que se começam a desenhar mais evidentes os primeiros efeitos da civilização industrial, na Europa, depois do meiado do século XVIII. É quando surgem a serviço da humanidade, as consequências de u'a mais adequada divisão do trabalho, do emprego das forças motrizes, com predominância das hidráulicas, da ferramenta mecânica, culminando com a revelação dos milagres da utilização industrial do vapor, em que tanto a alta burguezia, como também a nobreza, embora, em menor escala, empregavam avultados capitais. E isso se passava em França, quasi ao apagar das luzes do século XVIII, quando a Revolução de 1789, sacudindo violentamente a estrutura que mantinha em equilíbrio aparente as classes sociais, de modo a esfrangalhar as linhas de sua separação, e destruindo as corporações, impelia os homens que viviam do trabalho de seus braços, para a luta, para a concorrência no mercado do trabalho e das trocas.

Dos embates tremendos dessa competição, resultou que os mais fracos e os mais pobres foram sacrificados, como conseqüência aliás sempre verificada, nessa espécie de guerra social que é a concorrência.

Mais aquinhoados que esses, porém não mais felizes, viram-se os operários, os artífices, bs camponeses, que não ti? nham um pedaço de terra, e que a custo conseguiam do seu esforço isolado, ou dos seus labores esparsos, apenas a minguada ração do pão de cada dia, como que a comprarem em prestações diárias o direito de viver. Foi então que, exgotados os recursos, e exaustos dos padeçimentos que lhes infligia o industrialismo feroz e sem entranhas, sentiram que deviam opôr finalmente uma decidida resistência às pretensões exagera- das e abusivas de seus algozes, não consentindo que mais além fosse a sua depreciação no mercado dos valores.

Da enorme variedade de processos opressivos de cujos efeitos padeciam, resultava necessariamente uma série de medidas de repressão igualmente numerosas, em que se exercitavam movimentos adequados de defesa, estimulados a cada passo pelas vitórias alcançadas, orientados em oposição às subtilezas e artimanhas da ação direta dos exploradores.

E foi então aí nessa atmosfera de sofrimentos sem conta, nesse ambiente em que os mais. fracos sorviam a longos goles o cálice das amarguras, para mais capitosa tornar-se a taça das ambrósias dos mais poderosos, que a refulgir despontou no norizonte a cooperação, filha do amor, que, desiludido, descendo as escadarias de onix dos palácios dos grandes, em cujas salas só havia encontrado o gélido acolhimento do utilitarismo e da ambição, ia asilar-se no humilde tugúrio dos espesinhados, onde as mais ainda não haviam perdido o hábito de aleitar do próprio seio ós filhos, e eles adormeciam no regaço materno, entre os trapos, mais quentes e mais macios do que os arminhos e os tufos de filó dos berços de roda dos palácios dos opressores.

Datam dessa época e provêm de um tal ambiente, em França, os primeiros ensaios, de que se tem notícia, da arregimentação dos humildes a fim de, reunindo as suas possibilidades embora reduzidas e mínimas, permitirem que se pudessem realizar alguns dos planos da ideologia social criada pelos filósofos sociais e utopistas de então, à frente de quem avulta Fourier, em cujo pensamento, embora revestido das guirlândas do Socialismo societário, não se podiam esconder as tendências de finalidade e de forma, que ainda hoje se encontram nas linhas mestras do sistema cooperativo moderno.

Observador meticuloso, conhecedor apaixonado dos vícios do "negociantismo", e instruído das conclusões que pessoalmente tira da experiência local, verifica desde logo que à população operária, em defesa de seu patrimônio, pratica certas formas de associação rudimentar, a fim de diminuir o custo das compras, e não pode deixar de impressionar-se com esses exemplos de processos de luta direta contra o intermediário.

Apaixonado contra o mercantilismo de concorrência, cria o "phalansterium" a "communa societária". E, assim, pode empreender uma sistematisação de esforços tendendo a computer os efeitos nocivos do negociantismo.

Embora estejam aí descritos esses primeiros movimentos de despertar da organização embrionária do cooperativismo em França, difícil é dizer-se, entretanto, a quem cabe a prioridade da iniciativa em primeiro plano, pela confusão reinante na época napoleônica, mormente em vista do controle de Bonaparte que detestava os ideólogos, exercido, eficiente e ferrenho, sobre quaesquer expansões ideológicas que pudessem contaminar o povo, e desenvolver-se afetando consequentemente a autoridade, diminuindo-lhe a extensão e o prestígio, pelas possíveis tendências à msubmissão ou à independência, a que pudessem dar ensejo.

Curiosas e dignas de se considerarem as constatações de Fourier, na sua crítica sobre a sociedade e os costumes de então. Êle notou, desde logo, que as causas da desordem eram econômicas, e se distribuíam de lado sobre a quantidade considerável de parasitos improdutivos e absorventes; de outro, sobre a insuficiência da produção devido à falta de organização, ao retalhamento da propriedade agrícola, comercial ou industrial, e também sobre as formas de retribuição do trabalho produtivo. Verificou que essas causas eram de natureza moral, e tinham origem na educação viciada, e nos constrangimentos físicos e morais; e denunciou o caráter da atividade que chamou de "comércio anárquico", denominado "Livre concorrência".

Vê-se assim que o sistema de Fourier era baseado na associação, constituído da célula orgânica que formava a "phalange societária", organização de cerca de 400 famílias, fundada nos princípios da igualdade, a fim de permitir a maior satisfação das aspirações, favorecendo o trabalho, a produção e a vida em comum.

Tinha a "phalange societária" a sua sede no "Phalansterium". Ai, os indivíduos eram iguais entre si, homem, mulher ou criança.

Nenhum tinha qualquer direito acima do do próximo; e ém um tal sistema, a produção era organizada de modo que as necessidades da coletividade, ou do indivíduo, fossem satisfeitas da melhor maneira.

É notável também de ver-se como a organização de Fourier, que não deixa de ser o embrião da ideologia cooperativist.a e do mutualismo contemporâneo, realizava a sonhada "Harmonia Universal".

Para tanto, era necessário tirar ao trabalho a feição áspera, e dar à indústria societária atrativos que a tornassem agradável. E, para isso, estabeleceu algumas regras fundamentais que merecem ser enunciadas.;

1.ª - Que o trabalhador fosse associado, e pago por dividendos é náo por salários.

2.ª - Que cada indivíducr, homem, mulher ou-criança, fosse pago em proporção ás três faculdades: capital, trabalho- e taíenta

3ª - Que as secções industriais fossem revezadas oito vezes por dia, eis que o entusiasmo não podia manter-se por mais de uma hora e meia a duas horas, no exercício de qualquer função agrícolas era manufatureira.

4ª - Que as funções se exercessem em companhia de amigos, espontaneamente reunidos, e estimulados: por meia de emulações muito ativas.

5ª - Que as oficinas apresentassem aa operário requintes de elegância e asseio.

6 ª - Que a divisão do trabalho fosse levado ao grau extremo, para que a cada sexo fossem atribuídas funções convenientes.

7.ª - Que nessa distribuição, cada um, - homem, mulher ou criança --gozasse plenamente do direito de trabalhar, ou do de intervir em qualquer ramo de atividade que lhe conviesse, independentemente de qualquer atestado de especialização, ou de aptidão.

Tais eram os mandamentos do sistema com que Fourier esperava levar à humanidade a vér extinto o pauperismo, prevenidas as discórdias e garantido ao povo o máximo, desde que em tudo se obedecesse ao princípio de que, para conduzir toda a. humanidade â emulação, ao estímulo industiral, ao amor á ordem, seria imprescindível que-todos até o mais plebeu fossem associados e proprietários.

E para essa "associação" preconizava o seguinte rateio dos lucros entre os associados: 5/12 para o trabalho manual; 4/12 pará o capital em atividade; 3/12 para os conhecimentos práticos.

Tais ás linhas mestras da organização de Fourier. Conquanto não se tenham verificado imediatamente as conseqüências dê um tal código de atividades, é bem de vêr que a semente não caiu sobre á rocha. Demorou apenas o quanto foi preciso para mais tarde, embora sob aspecto um tanto difeirente, germinar explendente, com as mesmas características, e bafejada pelos ideais elevados da solidariedade humana.

Estas as idéias precursoras do Cooperativismo, dominando na França, nos albores do século XIX, o ambiente da multidão proletária, especialmente nos meios em que a indústria da tecelagem de seda era a mais desenvolvida.

Note-se bem caracterizada em toda essa ideologia, a absoluta ausência da preocupação de percepção de lucros no sentido financeiro do termo. Toda ela traduz a resultante de forças antagônicas a disputarem as primazias da vitória, na luta perpétua entre o capital e o trabalho, determinando a proliferação de tendências socialistas de diversos matizes, com a finalidade comum de constituir ou aparelhar de meios de de-lesa o proletariado, prejudicado pela concorrência da máquina ao braço operário, nos estabelecimentos de atividade fabril ou manufatureira. Tais idéias as que são a base do sistema de Fourier, fornecendo ao elemento operário os meios de encontrar mais um pouco de felicidade dentro da escassez de recursos determinada pela redução do salário a proporções mínimas. E da eficiência de tais princípios, dizem bem os exemplos que um século adiante, nos tempos que correm se vem patenteados entre todos os povos, quando exgotados todos os meios de solução dos problemas econômicos, quer sejam de natureza particular ou mesmo nacional, é nos fundamentos do cooperativismo que se vão buscar os remédios a aplicar,

* * *

Senhores.

Transponhamos agora a Mancha, e transportèmo-nos à Inglaterra. Examinemos o panorama que ali nos oferece o ambiente britânico nesse mesmo findar do século XVIII, junta das fábricas de tecidos de Brighton.

Lá encontraremos o mesmo fenômeno social do ambiente francês, em condições de tanta analogia, què seria admissível supor-se que, em ambos os países, os promotores de um tal movimento de emancipação tivessem recebido insinuações da mesma fonte. Nasce daí a razão da controvérsia de ser o moderno Cooperativismo descendente em linha direta da doutrina de Fourier, ou de ter tido a sua origem nas brumosas terras da Bretanha.

A documentação a esse respeito é abundante e muito oferece à observação dos interessados na solução da controvèrsia. Em qualquer caso, o que resulta evidente é que "se a França operária deve partilhar com a Inglaterra a honra de ter dado origem ao pensamento da Cooperação, e de lhe haver elaborado a doutrina moderna, e se mesmo cronologicamente pode ainda ser discutida a prioridade da experimentação cooperativa entre a Inglaterra e a França, entre Brighton e Lyon, admitindo mesmo uma certa prioridade a Brighton, não se poderia contestar a filiação direta do pensamento dos primeiros cooperadores franceses, discípulos de Fourier, que tentaram praticamente realizar á doutrina do mestre e de conduzir através do "comércio verídico" a humanidade à reforma da sociedade de concorrência capitalista.

Não são de opinião diversa Gide, Fourniére, Jaurés e tantos outros, qüe não emitiram um falso conceito sobre as relações de causa é efeito, que conduziram da crítica da concorrência, da supressão do lucro, da eliminação dos intermediários do Comércio privado, da generalização da associação, como em geral de tôda a teoria do socialismo societário, à doutrina cooperativa contemporânea.

Hà, entretanto, nos arquivos da história da tecelagem britânica, documentos que revelam a organização de um grêmio de tecelões pobres de Ayrshire, com o intuito de comprarem em comum a aveia para o seu sustento.

Em uma escala muito maior, 1435 cidadãos pobres do porto de Hull, acordaram em 1797 a formação de uma sociedade, com o fim de comprar um moinho de vento, a fim de se protegerem da ganância de alguns homens cobiçosos, que faziam do monopólio do abastecimento da farinha um antigo e odioso instrumento de exploração dos consumidores.

Entretanto, tais divergências não importam ao que nos interessa, sendo certo que a moderna ideologia cooperativa em quase todo o mundo promana diretamente do pensamento e das tradições dos meios operários franceses ou britânicos.

O que não se contradiz, é que a Corporação inglesa, pelo imenso desenvolvimento que tomou desde logo, como também pela precisão de doutrina, e pela nitidez de visão dos seus militantes, que, mesmo hoje, que são exatamente passados cento e dez anos, aplicam sem interrupção os métodos originais e fecundos doS fundadores, pode sem temor reinvidicar para si a honra de ter sido a primeira a realizar no estado de instituição social positiva, a idéia cuja origem, pode dizer-se sem dúvida, que é comum tanto à França quanto à Inglaterra.

Nem se pode calar aqui que o movimento de disseminação das teorias da Cooperação se evidenciou muito mais intensa na Inglaterra, justificado pela dianteira que ela tomou na evolução industrial e, por conseqüência, na formação de um proletariado mais numeroso e mais compacto. Daí notar-se a fundação em 1812, da Union Mill em Whitby, e de uma padaria cooperativa em Sheerness, em 1815, exemplo que proliferou na Escóssia, onde igualmente se contam organizações semelhantes datando de 1800 em Bridgeton, de 1812 em Lenoxton, e de 1821 em LarWiall.

Avulta na Inglaterra, como o campeão de tais organizações, Roberto Owen - que por notável coincidência tinha diferença de idade de apenas um ano, sobre Fourier, o paladino lrancês, das idéias precursoras da Cooperação.

Entretanto, diferentes, e por muito, as condições sociais dos dois grandes pioneiros do Cooperativisvo.

Roberto Owen, em Inglaterra, não é mais um caixeiro de loja, como o próprio Fourier se apelidava.

Lá na Bretanha, quem vai traçar os destinos da Cooperação é, ao contrario, um magnata da indústria.

Nascido da camada operária, e tendo mesmo sido empregado durante alguns anos da condição de comissário de tecidos, Owen foi depois, entretanto, um patrão filântropo e generoso, antes de ser o inventor de um sistema social e mesmo o agitador socialista, apóstolo do pré-cooperativismo.

A sua doutrina é, antes, mais simplista do que a de Fourier, e embora tenham aparências bem diversas, há uma certa analogia em suas concepções seja no relativo à inspiração geral, como nos pormenores.

Destaca-se no caso de Owen uma certa monotonia de expressão, bem diferente de exuberância de imaginação de que dá mostras a exposição de Fourier, o que se explica provavelmente, pela diversidade de manifestação de um saxônio e de um latino.

São, entretanto, de tal aproximação ideológica ambas as doutrinas, que Fourier chegou a acusar Owen de plagiário de suas idéias.

Parece, porém, que não há nessa acusação qualquer procedência, porquanto a semelhança apontada poderá ser explicada como a consequência inevitável do intercâmbio de idéias, levado a efeito pela contaminação do elemento proletário de ambos os países no contacto decorrente das transações comerciais evidentemente já muito intensas nessa época.

Releva notar nesta altura, que o próprio Fourier, reco- nhecendo a capacidade de seu rival, e praticando êle mesmo o princípio de colaboração, dirige-se em 1824 a Owen, para pedir-lhe o apoio, a fim de se fundar uma associação de maiores proporções, na qual se pudessem por em experimentação prática as idéias de que ambos se tornaram paladinos intemeratos.

Vê-se, assim, como desde os seus primeiros passos, a ideologia da Cooperação se manifestava incoercível e vitoriosa, desde os seus primeiros movimentos de expansão, entrelaçando mesmo os pioneiros do continente europeu aos da Bretanha., numa demonstração de tendências para uma solidariedade efetiva que se acobertava na ingenuidade daquele convite de Fourier.

Era essa a prova real das primeiras conquistas das idéias da Cooperação. E elas, daí por diante, vêm multiplicados de modo assombroso os seus adeptos, embora contra tal expansão viessem arrumando, de todos os tempos, todos os elementos que em defesa de seus interesses podia opôr o industrialismo absorvente e implacável.

Assim é que em 1828, discípulos de Owen, sob a orientação de King fundaram as primeiras mercearias (union shops), em Sussex, que o mestre encontrou enormemente disseminadas, quando do seu regresso da América, onde tinha deixado fundada com ótimos alicerces a sua "Colônia da Harmonia e da cooperação Mútua", plantada em New-Harmony.

Essas atividades durante a ausência do mestre, orientaram-se entretanto de modo a desagradar a Owen, visto que se esboçava nítida a diretriz que deveria levar o Dr. King à condição de precursor do Socialismo Cristão, ideologia que em muitos pontos divergia dos princípios puros do credo da Cooperação Qweniana.

Com o avançar dos dias, proliferam em toda a parte, alastrando-se por todó o continente europeu, onde houvesse aglomeração de proletariado, focos de expansão das novas idéias, de tal forma que, com tantos pregadores, a doutrina em certas regiões tomou seus aspectos especiais, divergindo levemente aqui e ali, a fim de acomodar-se às condições de meio, já então sensivelmente diferentes em suas modalidades gerais, trazendo como conseqüência uma tál ou qual perda de unidade, embora no fundo, em suas linhas mestras, se conservassem tais tendências estritamente destinadas à solução do eterno problema da felicidade.

Dessa falta de método e de orientação que, entretanto, depunha apenas a favor da viabilidade da idéia, e tão somente contra a afoiteza de seus primeiros pregadores, ocorreu o que era aliás de todo esperável, a confusão decorrente da falta de preparação para um tão generalizado movimento de expansão, fruto de infiltrações de todo o aspecto do capitalismo, da desordem, da tolerância, e da inobservância dos princípios básicos, e, na maioria dos casos, conseqüência da terrível opressão em toda a parte a seguir o evangelho, oriunda do poder público, então, como sempre, nas mãos e ao serviço dos magnacas do dinheiro.

É nesse ambiente que vemos surgir o ano de 1844, que estabelece o marco inicial de uma nova era de imensas realizações do Cooperativismo, e em que se estabelecem em definitivo os mandamentos traduzindo a notável orientação doutrinária de Ch. Howarth, que hão de orientar com firmeza e decisivamente a doutrina Cooperativista até os nossos dias.

* * *

Se demorarmos a vista sobre o que se passava nos últimos anos em França, acompanhando a evolução de tais idéias, a correr parelhas com a revelada na Inglaterra, veremos surgir um nome o de Miguel Derrion, como o de um apóstolo socialista em Lyon, a pregar a paz e a concórdia entre o proletariado e o capitalismo dos empregadores, expondo em manifesto aos seus concidadãos idéias e conselhos que o colocam, com direito a lugar de evidente destaque no monumento que a história da humanidade erige permanentemente à memória dos seus grandes nomes, no preito de homenagem aos seus benfeitores.

Era já então de notar-se, em todas as refregas da expansão das idéias precursoras do Cooperativismo, na luta constante contra os excessos do industrialismo, que a pesar da prepotência, dos sofrimentos, das lágrimas e do sangue derramado, nesses embates em que a vitória material sempre pendeu para o lado dos mais poderosos e dos opressores, as vantagens da vitória moral punham sobre o martírio dos vencidos o bálsamo da verificação de mais um passo adiantado em direção a meta de um ideal.

A princípio Saint-simonista, Derrion em breve torna-se discípulo de Fourier, quando por seus trabalhos de divulgação compreende mais adaptável ao meio a associação de tipo falans-teriano, em vez da simples associação com feitio de cooperativa de produção, tendendo à eliminação do elemento patronal.

Da extraordinária atividade de Derrion, diz bem a sério imensa de seus trabalhos em que avulta ao lado do agitador socialista, o espírito de organização eminentemente empreende- dor e intemerato, que não recuava ante os embaraços desde que estivesse em foco qualquer realização filiada ao seu idealismo.

Basta para atestar a segurança de previsão desse grande. precursor do Cooperatívismo, dos destinos reservados à expansão de sua doutrina, os seguinte conceito que a respeito externou, quando chamado para orientar certo movimento de emancipação que se esboçava, publicando em 21 de fevereiro de 1834., no "Éco da Fábrica", uma carta dirigida a uma associação mu-tualista, afirma : " A ideologia que ora me preocupa é uma opinião nova inteiramente alheia á política, que começa a propagar-se entre os trabalhadores. Forte de lógica e de cálculo, ela será logo compartilhada por todos os homens".

Nesse mesmo tempo analisando inteligentemente a situação aflitiva do ambiente, aventura com extrema segurança o seguinte Juízo relativo ás causas do sofrimento do proletariado : "A verdadeira causa do mal estar material do povo provêm da desordem com a qual se operam a produção e a distribuição das riquezas, fruto do seu trabalho. O remédio é a organização pacífica da indústria e do comércio".

Repare-se que isso afirmava Derrion, em fevereiro de 1834, há pouco mais de um século, portanto. Poderá alguém dizer que o que então se aplicava ás condições do meio social dos te-celões da França e da Inglaterra, não seja aplicável integralmente, ainda hoje, às condições atuais do mundo inteiro, a. débater-se neste ínsondável dédalo de desassossêgo e de sofrimentos ? Como não admirar, naquele extraordinário conceitr do socialista de um século atrás, a segurança do diagnóstico e a justeza do receituárío que honrariam a decisão de um economista da atualidade sobre o mesmo assunto?

As mesmas causas e o mesmo remédio têm de ser admitidos ainda hoje, que a moléstia está disseminada e avassala todo o mundo.

Da força das convicções de um tal evangelista, diz bem a decisão de levar às plagas brasileiras, em 1340, um bando de famílias de diferentes categorias, a fim de aqui fundar no Estado de Santa Catarina uma colônia societária. Organizou-se a sociedade com o nome de "União Industrial" confiada à direção de Arnaud, e destinava-se à exploração de uma concessão de terras obtida do Governo Brasileiro, na península de Sahy. É o que nos revela Gaumont historiando a evolução da Cooperação em França.

Tinha ela por fim constituir no Brasil, de acordo com as autoridades locais deste país novo, um centro de colonização operária, que tentaria difundir e pór em prática as teorias de Fourrier, pela constituição de uma ou mais comunas agrícolas ou industriais.

Operários de todas as profissões tinham se decidido a participar desta tentativa, e se haviam repartido em três grandes grupos que deveriam partir sucessivamente com destino à nova colônia.

É interessante de se considerar por um momento esta organização, que em nossa pátria se estabeleceu permitindo-lhe disputar primazias mesmo com a Inglaterra, de berço das primeiras organizações precursoras do moderno Cooperativismo.

Foi designado em Lyon para chefiar um destes grupos Reynier, êmulo de Derrion, que durante os anos de 1840 e 1842 entregou-se à organização e equipamento do seu pessoal, conseguindo recrutar 75 pessoas entre homens, mulheres e crianças, com 2080 francos de numerário e 3150 francos de ferramentas.

Os dois outros condutores das demais levas foram escolhidos por eleição, tendo sido designados Miguel Derrion e Jamain. Já antes havia partido para o Brasil o Dr. Mure que trazia a incumbência de negociar com o Governo do Brasil as condições da concessão, e da organização da colônia societária.

Derrion, promotor do empreendimento, e que havia agrupado os aderentes da primeira turma composta principalmente de parisienses, embarcou, seguindo-se logo mais Jamain, que piloteava a segunda leva. Reynier ficou para o último lugar para esperar os aderentes lyoneses. Mas, devido a um grave conflito entre os expedicionários, não o pôde fazer, havendo uma parte deles embarcado com o Dr. Mure, médico homeopa-ta que chegou a Santa Catarina e instalou na península de Sahy, em 1841, o falanstério Oliveira, mediante a proteção do cidadão brasileiro, coronel Oliveira, que lhe conseguiu a outorga da concessão de terra de duas léguas em quadra, do governo do país.

Do êxito desta tentativa parece que não se pode dizer mais, que dela havia notícias de ter durado no Brasil alguns anos, até 1851, tendo-se dedicado ao corte e à indústria de madeiras, e instalado uma serraria mecânica, dirigida por Jamain.

A esse tempo, os outros condutores das turmas fourieiristas estavam no Rio de Janeiro, sendo certo que Miguel Derrion morreu vítima de febre amarela, em 13 de março de 1850, depois de aí ter vivido cerca de nove anos, como professor particular, empregando todo o tempo que lhe sobrava de sua atividade no magistério, na expansão da doutrina fourierista de quê foi um verdadeiro apóstolo, tendo mesmo fundado no Rio de Janeiro, um centro de doutrina societária, e mantido um periódico de propaganda denominado "O Socialista", que foi publicado até o tempo de sua morte.

Não me pude furtar, senhores, à esta digressão sobre um tal episódio da história do pré-cooperativismo, para poder divulgar o fato que aí esboçado fica, de haver para a nossa pátria uma pequena mas muito nítida parcela de direito, de se arrolar entre os países que serviram de berço às idéias precursoras do Cooperativismo, podendo com absoluta verdade histórica disputar primazia com a Inglaterra, relativamente aos? Pioneiros de Rochdale, com três anos de antecedência.

É entretanto inegável que a estes, aos Pioneiros de Rochdale, como a posteridade costumou denominar os célebres vinte e oito tecelões ingleses, cabe a primazia de se haverem organizado sob a chefia de Howarth dando início à uma sociedade, fundada em normas que se deveriam perpetuar nas tábuas da lei do Cooperativismo, pelos elevados princípios sociológicos que encerram, denotando um exato conhecimento das finalidades doutrinárias. Conquanto não tenha essa organização a prioridade no assuto da sistematização do Cooperativismo, é entretanto muito seu o mérito de constituir-se o ponto de partida da organização racional cooperativa moderna, por ter conseguido estabelecer para fundamento de tôda a estrutura social, os mais simples preceitos de organização e de doutrina, derivados direta e simplesmente do principio fundamental da igualdade.

Admira mesmo que uma tal organização tenha tido a estrutura de sua regulamentação delineada pela mentalidade dos simples tecelões do "beco do Sapo", onde por força não aninhava nenhum legislador, desses que entre os povos modernos costumam encarregar-se da urdidura e da codificação de suas leis.

Toda a regulamentação rochdaleana deriva simples e exclusivamente do princípio invariável da equidade, pedra angular sobre que se erigiu espontaneamente e decisivamente o monumento do moderno Cooperativismo, sem quaesquer movimento de tentativa, pois que nasceu de uma vez, sem precisar de se ater a resultados de experimentações, brotando e crescendo segundo uma diretriz definitiva e segura, de modo a justificar amplamente a opinião do grande Gide quando afirma que "O Cooperativismo foi, entre tantas cousas, a única experiência social que, no decorrer da segunda metade do século XIX, lançou raizes definitivas."

É pois a sociedade cooperativa, na sua estrutura social propriamente dita, alicerçada apenas em dois mandamentos básicos que garantem em toda a extensão a observância do princípio da igualdade:

I - Limitação da quantidade de capital de cada sócio, do qual decorre a impossibilidade de degenerar a sociadade cooperativista em campo de ação do capitalismo, evitando o predomínio dos mais ricos sobre os menos aquinhoados, pois o limite máximo legalmente estabelecido, é em regra bastante reduzido, e fica perfeitamente ao alcance das possibilidades de qualquer modesto associado.

II - Singularidade de voto nas deliberações, que é o mandamento mais vulgarizado da organização cooperativista, o célebre princípio do "One man, one vote", a estabelecer de modo integral a absoluta distinção entre a sociedade cooperativista e a capitalista.

Enquanto na organização capitalista, a sociedade anônima, o capitalismo enfeixa nas mãos de um asso ciado tantos votos quantas ações êle possui, fornecen- do aos argentários oportunidade de fazerem prevalece? na deliberação dos destinos sociais, uma opinião individual muitas vezes repetida, é talvez mesmo inconveniente ou errônea, a prevalecer apenas porque mais escorada em maior número de ações, sobrepondo às vezes o modo de pensar de um só associado à opinião da maioria, o contrário se passa na sociedade cooperativa, onde a singularidade de voto, qualquer que seja o quantum de capital do associado, impede a prepotência dos mais ricos, e permite a qualquer um defender com igual intensidade a sua opinião individual. É o mandamento democrático que permite a todos indistintamente, e com a mesma eficiência, intervir nos negócios e influir sobre a marcha dos destinos da sociedade. É esse mandamento que permite a Powell dizer com admirável poder de síntese: "Na sociedade cooperativa vota o homem; na outra, o dinheiro".

Eis perfeitamente estabelecidas as bases de toda a organização cooperativista:" Todas as demais normas que regulam a vida e as atividades da sociedade, promanam desses dois mandamentos básicos. Examinemos, pois, de relance, para demonstrar a verdade do assêrto. .

a) - Não limitação do número de associados. 6 corolário direto do princípio da limitação do quantum de capital de cada associado, visto que a progressão dos negócios sociais exigindo cada vez maior volume de capital de movimento e sendo limitada a porção de capital de cada associado, deverá a sociedade para a sua expansão admitir maior número deles, o que em suma apresenta uma das mais notáveis conquistas do ideal de associação, bem diferente do das organizações capitalistas em que o número de associados tende cada vez mais para a redução.

É, pois, conseqüência direta deste corolário, que as sociedades cooperativas se tornam agremiações cada vez mais democráticas, de grande irradiação social, tendendo sempre para aumentar o perímetro da zona de ação de seus benefícios, possibilitando a reunião de um grande número de associados e permitindo a associação de indivíduos de pequenas possibilidades pecuniárias, daqueles que conseguiram amealhar apenas um pequeno pecúlio insuficiente para ser empregado isoladamente na exploração de qualquer gênero de atividade. É, assim, da observância deste preceito, que a associação tende a generalizar-se, estendendo-se ilimitadamente.

b) - Variabilidade do capital social. É corolário do mesmo princípio básico da limitação do quantum de capital dó associado, a fim de não impossibilitar o aumento do quadro social.

c) - Maioria deliberativa constituída do número de associados e não do número de quotas de capital representado. É preceito que se origina do princípio democrático da prevalência da vontade da maioria, garantindo à sociedade a segurança de ter os seus destinos orientados por deliberação que, tanto quanto possível, represente a resultante do modo de pensar da maioria dos associados, representados na assembléia, e não a opinião de uma minoria aristocrática, às vezes absorvente e tendendo ao individualismo.

* * *

Eis assim em poucas linhas exposta a doutrina em que assenta a organização cooperativista em sua estrutura primária. São preceitos absolutamente simples, e, afinal, provêm diretamente do princípio fundamental da igualdade que deve presidir a todas as atividades e iniciativas de ordem social, para garantirem a estabilidade da organização. São de tanta simplicidade, e por isso mesmo de tanta eficiência, que sejam quais forem as dúvidas e controvérsias que se apresentam no deseu-volvimento da atividade social, nos ensinamentos que encerram, está tudo quanto seja necessário para em definitivo e decisivamente arredar da trilha o embaraço, deixando-a livre e desimpedida para que a vida social por ela prossiga suave e segura, rumo do elevado destino que lhe auguraram no nascedouro.

E essa conquista, note-se, a sociedade cooperativista realiza sem quaisquer intuitos de combate, sem lutas ou ardores de competição. Pode mesmo dizer-se que ela realiza o congraçamento dos elementos de resistência, e vence na defensiva. É, ainda sob o influxo do pensamento fourieirista, de distribuir a pro-rata em proporção às atividades dos sócios, e não ao respectivo capital que estabelece o maior elemento de êxito contra a especulação capitalista, pois impede em definitivo a sua influência na orientação dos negócios, recompensando o esforço, o trabalho e não o capital. E, enquanto o capitalismo opera no campo da produção, de cujas empresas empolga a orientação e a chefia suprema, de modo a produzir tendo por fito vencer na luta contra o consumidor, contra que se arma de todos os recursos imaginários, o Cooperativismo realiza logicamente a sua vitória organizando a produção subordinada ao consumo. O Capitalismo busca o lucro, produzindo por produzir, na expressão de Gide, do que provêm as crises freqüentes e sucessivas tanto de super-produção quanto de escassez de produtos, que igualmente são lesivas ao equilíbrio econômico, ocasionando inevitável desordem social, enorme perda de riquezas, com desperdício de energias e invasão de funções inúteis.

O Cooperativismo entrega a orientação das atividades econômicas ao consumo, relacionando às suas necessidades a atividade da produção, evitando o afã de produzir apenas à caça de lucros. Restringe toda a produção aos imperativos do consumo, impossibilitando a necessidade de se vir a lançar mão dos artifícios do comércio, para tentar repor em equilíbrio a equação fundamental da oferta e da procura, de onde se originam as contrafações de toda a sorte, a indústria dos anúncios, das reclames, das fraudes, e de outros processos enganosos.

* * *

Cogitemos porém, senhores, da aplicação da doutrina cooperativista, atendo-nos assim ao programa a que nos propuzemos.

O que é uma sociedade cooperativa?

Nos termos da legislação em vigor no nosso país, é a sociedade de pessoas naturais, em número não inferior a sete, que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços, sem capital fixo predeterminado, para conseguirem vantagens comuns ds ordem econômica.

É sociedade de pessoas e não de capitais; e portanto, de responsabilidade limitada, fundando toda a estrutura de seus estatutos nos conhecidos princípios da Cooperação: variabilidade de capital; ilimitação de número de associados; limitação do quantum de capital de cada um deles; incessibilidade de quotas-partes de capital a estranhos ao quadro social; maioria deliberativa nas assembléias fundada no número de associados presentes e não no de quotas de capital representado; singularidade de votos nas deliberações; área de ação determinada; e distribuição de lucros ou sobras proporcionalmente à atividade do associado em relação à sociedade.

A legislação nacional, com subsídio na dos demais países, sabiamente encerrou assim dentro dos nove vértices desse polígono de proteção e segurança à obra da Cooperação, tudo quanto é radicalmente eficaz para garantir a pureza da doutrina no exercício das sociedades que a queiram praticar.

Estabeleceu condições interessantíssimas de associação, pois ao mesmo tempo que permite uma dilatação ilimitada do quadro social, e conduz consequentemente à variabilidade de capital, veda intransigentemente a cessão de suas quotas a terceiros estranhos à sociedade. Parecendo à primeira vista condições a se repelirem, de tendências opostas, realizam, entretanto, tais dispositivos de defesa uma admirável cintura de proteção que se abre para receber o elemento vitalizador, que corresponde ao ingresso na sociedade de mais uma vontade, de mais um cérebro, e de mais uma quota de capital ao serviço da comunidade, em seus anseios de expansão de desenvolvimento, ou de procura de melhores condições de estabilidade, e fecha-se imediata e inexoravelmente às manobras do capitalismo, na ronda que mantêm em torno de sua esfera de atividades, para evitar a intromissão de estranhos ou de agentes de seus interesses.

É esse polígono de nove lados que circunda fortemente, na mais admirável condição de equidade, como num âmbito de família, a sociedade cooperativista, pois se estabelece um mundo à parte, para a defesa dos interesses comuns, não deixa con- temporaneamente a sociedade furtar-se aos benefícios do contato exterior, merecendo especial observação o regime de estimulo que impera no ambiente social decorrente" da absoluta despreocupação de sobras em beneficio do capital, por terem de ser distribuídas proporcionalmente ao trabalho e à atividade recíproca entre o indivíduo e a coletividade. Reina, por isso, ali dentro daquele perímetro de sabedoria e de prudência, a impossibilidade da proliferação do individualismo gerador de discórdias e de desintegração. Resulta antes, por efeito de uma tal distribuição de lucros, a realização inteligente do critério de premiar em proporção o esforço do indivíduo a prol da sociedade, regime altamente construtivo e consolidador, que determina a generalização do dinamismo, por meio da emulação constante e equitativa.

Vêm-se, portanto, de relance, esboçadas as condições do organização, características da sociedade cooperativa, estabelecendo singulares diferenças com as das sociedades capitalistas em geral.

Reunidos os interessados na realização de um ideal econômico definido, estabelece-se por escritura o pacto social de que constem os característicos de identidade de cada associado, e a declaração dos intuitos da associação, local da sede, e afirmação da vontade comum de a constituírem, regida por estatutos que governem as atividades sociais segundo os princípios fundamentais do Cooperativismo, prescrevendo a regulamentação das funções, direitos e deveres dos componentes.

Devidamente organizados tais documentos, que são o ato constitutivo e os estatutos sociais, pelo arquivamento na Junta Comercial, do que se dará a indispensável publicidade, a fim de garantir a personalidade jurídica à nova organização, e validade a quanto contratar, acha-se a nova associação em condições de, sem nenhum impecilho, iniciar suas atividades, com ainscrição dos associados fundadores, no Livro de Matrículas. E é nesse livro, essencial que, daí por diante, ao serem admitidos os novos associados, pela assinatura ratificam expressamente as condições do vinculo social estabelecidas no ato constitutivo.

Organizar-se-á inicialmente a escrituração das atividades econômicas, como em geral nas sociedades comuns; e a vida da nova célula do cooperativismo se encaminhará com segunrança aos melhores destinos, bastando que os seus diretores a deixem crescer normalmente, amparada tão apenas pela aplicação dos preceitos fundamentais da doutrina da Cooperação, que, com extrema simplicidade e absoluta eficiência, resolverão satisfatoriamente e sem qualquer possibilidade de falha todas as dificuldades que se possam antepor.

* * *

Bastará lembrar que tais princípios têm sido duramente provados há já um século, nas constantes refregas que, em todo o mundo, as sociedades cooperativas vêm sustentando.

E essa orientação da sociedade cooperativa, praticada em todo o mundo, tem dado ensejo às melhores demonstrações da excelência da doutrina da Congregação, como elemento capaz de encaminhar a humanidade com segurança à terra da promissão.

E que o grande comboio pouco a pouco vai cedendo à incoercível ação desse novo evangelho, de modo a se patentearem os primeiros deslocamentos na trilha que conduz à uma brilhante realidade, comprova-se de modo inconfundível, se por breves momentos compulsarmos os dados estatísticos do progresso das organizações cooperativas nos principais países, demonstrando mesmo às vistas dos mais céticos, que, aos poucos, mas com segurança, a humanidade vai progressivamente cedendo à ação dessas forças irreprimíveis que são os efeitos da Cooperação.

No panorama da Europa, após o ocaso do grande Corso em Santa Helena, quando as idéias tomaram dianteira às vanguardas das organizações militares, e o confusionismo estabeleceu-se criando um novo estado de coisas e de condições, arrastando a humanidade a acompanhar no pélago revolto o fluxo e o refluxo das tendências em busca de uma orientação mais segura, o senso comum ditou como melhor conselho às massas sobre que se faziam sentir as opressões, a união para uma resistência em conjunto, não para agredir, reagindo em senso oposto à ação convulsiva da desordem, mas para permitir a organização dos recursos eventualmente disponíveis, a fim de mais inteligentemente conquistar-se uma situação de refrigério aos sofrimentos as às vicissitudes.

E os primeiros exemplos da França e da Bretanha alastraram-se invadindo a Germânia, e quási ininterruptamente, a Bélgica, a Holanda, a Escandinávia, a Rússia, os Bálcãs e a Itália.

E os princípios da Cooperação orientaram por toda a parte organizações semelhantes, de processos mais ou menos iguais ou parecidos, de modo a provar que na sua marcha avassaladora a doutrina não cedia às irregularidades do meio, fundando-se núcleos de irradiação em todo o sentido, de modo tal que em breve se podiam catalogar as associações do cooperativismo classificando-as pelas suas finalidades em cooperativas de produção agrícola, de produção industrial, de trabalho, de beneficiamento de produtos, de compras ou de vendas em comum, de consumo, de abastecimento, de crédito em suas variadas modalidades, de seguros, de construção de casas populares, de cultura espiritual, escolares, mistas, centrais e, ainda, cooperativas de outras cooperativas, on sejam federações -de cooperativas, evidenciando surpreendente a capacidade de não só congregar indivíduos, mas ainda de reunir também outras organizações coletivas em um mesmo sistema metodizado, tendendo às mais amplas generalizações.

E é da vitória incontestável de uma tal ideologia que se podem alinhar os seguintes resultados apanhados de relance nas estatísticas mais fidedignas, e que são os troféus que se podem atar ao carro do triunfo da Cooperação.

Na Europa contam-se 65.298 cooperativas de consumo, abastecendo de gêneros de primeira necessidade perto de 94 milhões de pessoas, com um giro de negócios num montante de onze milhões de milhares de dólares.

Com finalidade de fornecer habitação aos sens associadas, 51.425 sociedades com mais de 3.500.000 associados, e 12.155 sociedades para fornecer crédito para habitação, isto é, garantias para alugueres, com 12.336.754 associados.

Sociedades cooperativas com finalidades de auxiliar a produção agrícola, em suas variadas formas, 366.253 disseminadas por toda a Europa, reunindo em seus quadros sociais 22.700.000 associados. Cooperativas de crédito rural, 76.850 sociedades, com 11.504.922 cooperadores, envolvidas tais atividades agrícolas em um giro de negócios orçando por mais de 10 1/2 milhões de milhares de dólares.

Se deixarmos os meios rurais, ainda na Europa, e procurarmos examinar os números que definem as atividades urbanas, abrigadas sob as bandeiras do Cooperativismo, contaremos 27.559 cooperativas profissionais com 3.329.122 cooperadores, e 5.165 sociedades de crédito com 2.267.324 associados, mobilizando uma cifra de negócios nas alturas de 3.700.000 dólares.

E tudo isso se resume, afirmando pelos dados oficiais do Bureau International du Travail, que há 604.684 sociedades federadas na Europa, com 152 milhões de associados, e um giro de negócio orçando por cerca de 25 1/2 milhões de milhares de dólares.

Convenhamos meus senhores, no momento presente, em que por uma curiosa coincidência podemos contar passados dez anos do termo do primeiro século de atividades cooperativistas desde a reunião dos 28 pioneiros de Rochdale, convenhamos, repito, que essa enumeração que aí se expõe é um balanço suficientemente honroso dos merecimentos e das realizações do novo evangelho.

E acertemos também que esses resultados bastam de sobra para a consagração dos princípios do Cooperativismo, como o verdadeiro rumo a ser trilhado pela humanidade nesta hora de incertezas, de confusão, e de sofrimentos.

E como notável elemento de convição decorre também desse admirável exame cujo resultado acabo de vos revelar que de todas essas notáveis conquistas do cooperativismo, em qualquer de suas atividades, desde a menos considerável à mais vultosa, jamais tereis qualquer referência ou documentação de se haver prestado ao exercício de malefícios ou de opressão, ou como elemento pernicioso, eis que decorre de seus próprios princípios fundamentais não ser exeqüível senão nos meios de ampla verificação, em que não é possível encontrar os cantos excusos, onde se geram os germens patogênicos da sociedade.

* * *

Não. Nunca tereis ouvidos para ouvir as loas às vitórias do Cooperativismo, acompanhadas do cantochão das lamúrias de sofrimento da humanidade.

O carro de triunfo do vencedor não vai acompanhado da turbamulta dos vencidos. A quádriga da vitória já segue agora à frente dos clangores de uma enorme e incoercível caudal, o séquito dos convencidos.

(a) J. Bierrenbach de Lima

Aula inaugural proferida pelo prof. eng.° João Bierrenbach de Lima ao iniciar-se o ano letivo de 1944 -11-3-44

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2013
  • Data do Fascículo
    1944
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