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Cirurgião do século: Francis Daniels Moore

Cirurgião do século

Francis Daniels Moore

Ernesto Lima Gonçalves

Professor Titular de Medicina da Universidade de São Paulo

Membro Emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões

Existem escolhas que nem sempre são facilmente justificáveis. Não é essa, contudo, a situação que estamos propondo analisar, que a todos quantos se dedicam à prática da cirurgia em nível compatível com os avanços científicos contemporâneos, o nome de Francis D. Moore está sempre presente. Todos tem clara a visão da elevada contribuição que ele trouxe para a evolução da cirurgia, de uma cirurgia executada com plena fundamentação científica.

Ao lado dessa contribuição, Moore assinalou sua presença com a marca de um homem realmente universitário. Não apenas no sentido de integrar-se e permanecer fiel a uma universidade, mas principalmente pela universalidade de temas e aspectos a cuja análise se dedicou e para cuja reflexão sempre contribuiu de maneira lúcida e consistente. Como homem universitário, nunca deixou de ensinar, de pesquisar e de atender, os três atributos essenciais da vivência universitária.

A importância da contribuição de Moore talvez possa ser melhor avaliada a partir de uma retomada da evolução dos conhecimentos disponíveis para o tratamento do doente cirúrgico. Alguns dos mais desafiadores problemas da cirurgia nas décadas de 30 e 40 eram a perigosa imprecisão, as inadequações e às vezes a desastrosa ineficiência do suporte oferecido a doentes com traumas graves, queimaduras extensas ou operações de grande vulto. Estes problemas contrastavam com os avanços decorrentes de novas técnicas de anestesia, de novos modelos de assepsia, mas principalmente com os desafios decorrentes das situações de graves traumatismos, durante os combates que marcaram o período intermediário deste século: a Segunda Guerra Mundial, a guerra da Coréia e, depois, a do Vietnam.

O tratamento de apoio incluía a infusão endovenosa de água, sal e glícidos, bem como suporte nutricional por boca. A tais recursos foi acrescentada a transfusão de sangue ou plasma, desde a Segunda Guerra. A quantidade de fluido adequada a ser transfundida, contudo, permanecia não esclarecida e sujeita a erros por larga margem. Esse tipo de vôo cego, que poderia representar um problema na clínica, envolvia na atividade cirúrgica uma situação especialmente perigosa.

Os desvios do tratamento decorriam do desconhecimento do volume de líquido existente no organismo em dado momento, bem como em que compartimentos ele se distribuía. Não era possível conhecer o significado de perdas de água e sódio sem conhecer os respectivos valores básicos normais. Algumas da alterações encontráveis poderiam decorrer de realocações, ainda não identificáveis, dentro do organismo: do plasma sangüíneo para o espaço linfático nas queimaduras, por exemplo.

Movido pelo desejo de conhecer mais sobre o metabolismo do doente cirúrgico, Moore propôs-se a pesquisar os assuntos envolvidos nessa área, mediante novas técnicas e novos instrumentos. Para tanto, afastou-se durante um ano de sua atividade cirúrgica, para empreender estudos no campo da física aplicada, o que lhe abriu o caminho para pesquisas com o emprego de isótopos radioativos. Aprendeu a metodologia do uso de marcadores no Huntington Memorial Hospital e participou de pesquisas sobre localização de abcessos e tumores, sob direção de Aub. O padrão desses trabalhos de pesquisa pode ser avaliado por sua aceitação para publicação no J. Clinical Investigation.

Mas pessoalmente desenvolveu pesquisa própria sobre a permeabilidade vascular e linfática em tecidos queimados, permitindo superar os mistérios da localização do plasma perdido em queimaduras: ele estava dentro do organismo, mas em outro compartimento, numa localização cujo desconhecimento podia ser fatal. Em 1948 publicou no Surgery, Gynecology and Obstetrics, o SGO bem familiar a todos os cirurgiões, uma revisão sobre "Uso de isótopos em pesquisa cirúrgica", resultado de oito anos de investigação, na qual descrevia em termos compreensíveis o princípio da diluição isotópica, o significado da composição corpórea e sua contribuição potencial para melhoria do cuidado com o paciente cirúrgico.

Por meio da diluição isotópica passou a ser possível conhecer melhor a composição corpórea, as necessidades do doente cirúrgico e a melhor maneira de atendê-lo. Passou a ser possível medir a água corpórea total, a água extracelular, o volume sangüíneo, a massa celular total, o sódio e o potássio totais. A partir daí foi possível estimar o nitrogênio e o hidrogênio totais, a gordura corpórea e o peso do esqueleto. Tudo isso passou a ser possível sem dor e sem outros inconvenientes para o doente operado ou em preparo para a operação.

Em 1959 publicou talvez sua obra mais marcante - "Metabolic Care of Surgical Patient" - em colaboração com Margaret Ball, bioquímica e pesquisadora sempre presente em seus trabalhos. A partir dessa publicação, em diversos países numerosos laboratórios de pesquisa cirúrgica passaram a desenvolver sua atividade e continuam dedicando-se a trabalhos dessa natureza, cinqüenta anos depois das pesquisas iniciais de Moore. Na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo o Grupo de Metabologia Cirúrgica da Disciplina de Técnica Cirúrgica foi exemplo dessa dedicação. Seus integrantes vieram a publicar em 1973 "Metabolismo e Cirurgia", com resultados de suas pesquisas e prefácio de Francis D. Moore.

A seqüência pós-operatória vista hoje

Vale lembrar que a natureza humana permite o desenvolvimento de processos que envolvem distintos e sucessivos elementos : 1. um estímulo; 2. mediadores nervosos; 3. ativação de mecanismos hormonais; 4. modificações na composição corpórea; 5. data-alvo para normalização e equilíbrio; 6. fato que assinala a complementação do processo.

Essa seqüência está presente na evolução pós-operatória do doente cirúrgico . Para bem compreender o programa que, tal como acontece com o computador, comanda a convalescença, é útil recordar dois processos que envolvem igualmente todo o organismo e que são muito familiares: a gravidez e o desenvolvimento do corpo humano, particularmente na adolescência.

Na gravidez o estímulo para alterações metabólicas é a fertilização do óvulo pelo espermatozóide. As modificações estruturais acontecem primeiro no útero, com hipertrofia do endométrio e sua preparação para receber o ovo. Depois, ao longo da gravidez, modificações nutricionais ocorrem, com a passagem de nutrientes do corpo da mãe para o feto. A mulher retém água e sódio e sua pressão arterial se eleva em níveis variáveis, segundo fatores individuais. Suas mamas aumentam , preparando-se para a futura amamentação; próximo do parto seus ligamentos pélvicos se relaxam por imbebição, para facilitar a expulsão do feto. Depois do parto as mamas começam a produzir proteínas do leite, em quantidade em geral suficiente para a alimentação da criança, durante toda a amamentação. Quando esta termina, a seqüência metabólica está completa; o prazo total de duração do processo é de cerca de 12 meses, aí incluindo-se o período de gestação; o fato novo que marca o conjunto é o aparecimento do filho.

De maneira análoga modificações seqüenciais acontecem ao longo do crescimento do ser humano normal, através da infância e da adolescência. Na infância, interrompida a alimentação à custa do leite materno, o organismo começa a adaptar-se a outras fontes nutricionais, capazes de garantir o aporte de todas as substâncias orgânicas e minerais necessárias ao desenvolvimento dos diferentes tecidos do organismo; entre estes talvez devam merecer destaque os ossos e os músculos, pela intensidade do crescimento que os assinala nesse período. O aproveitamento das substâncias ingeridas envolve mecanismos neuro-hormonais, que vão aos poucos sendo desenvolvidos e consolidados.

Na puberdade outros hormônios começam a ser produzidos, desencadeando o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários típicos de um e outro sexo: nas meninas, deposição localizada de gordura, desenvolvimento das mamas, início dos ciclos menstruais; nos meninos, desenvolvimento da musculatura, redução dos depósitos de gordura, aumento dos órgãos sexuais,. aparecimento da libido. É fácil perceber que todas essas modificações exigem suporte nutricional adequado e suficiente. A seqüência termina com a estruturação de um produto acabado: o ser humano adulto. A duração de toda a seqüência metabólico-hormonal dura 14 a 16 anos nas moças e 16 e 18 anos nos rapazes.

A convalescença após uma agressão segue uma seqüência semelhante. Aqui o estímulo é representado pela própria agressão e a seqüência inclui inicialmente perda de proteína e retenção de água e sal, seguida por gradual correção dessas perturbações. A duração do processo é determinada pela natureza e intensidade da agressão; ao término das modificações e recuperações encontra-se uma pessoa convalescente, pronta para retornar à sociedade e ao trabalho. O prazo de duração do processo varia entre duas e quatro semanas para uma operação abdominal e entre dois e três meses para a consolidação de uma fratura complexa.

Hoje está plenamente confirmada a visão de que uma intervenção cirúrgica representa para o organismo humano papel em tudo semelhante ao de um trauma, de intensidade variável, de acordo com a gravidade da operação. Nos primeiros momentos do pós-operatório o doente está arrasado, sente dores e quer apenas permanecer deitado e em repouso. Não tem apetite, perdendo peso e gordura rapidamente; água e sódio são rigorosamente conservados, mas potássio e nitrogênio são eliminados; o volume urinário está diminuído. Os músculos reduzem-se, o doente sente-se fraco e não tem interesse por nada.

Após algum tempo chega o que se chama habitualmente "ponto de viragem", que em operações abdominais de médio porte ocorre após 2 ou 3 dias; em queimaduras extensas e politraumatismos esse período é prolongado para 8 ou 10 dias. A modificação é percebida por todos porque o paciente apresenta interesse crescente pelo em-torno, pelas pessoas, pela alimentação. Os homens perguntam pelo jornal e querem ver o noticiário da TV, enquanto as mulheres apresentam o "sinal do batom positivo", facilmente identificável. Os visitantes são bem-vindos, mas o doente ainda está enfraquecido, porque seus músculos estão ainda em recuperação. A perda de peso continua por mais um ou dois dias e é acompanhada por diurese aumentada. O local da ferida apresenta-se menos doloroso e menos edemaciado. Chega o momento da retirada dos pontos da sutura, porque a pele já recuperou a resistência tênsil para garantir a aproximação das bordas da ferida cirúrgica.

A terceira fase da convalescença é marcada pela reconstrução muscular, pela incorporação da proteína ingerida, num processo de duração intermediária entre a da cicatrização da pele e a consolidação do osso fraturado. Esta é mais demorada, o mesmo ocorrendo com a cicatrização da pele destruída em queimaduras extensas e profundas. Exercícios de reabilitação e recursos de fisioterapia auxiliam na recuperação. A libido reaparece e o paciente já começa a pensar em voltar para o trabalho. Embora a massa muscular possa estar recuperada, a gordura ainda demora a normalizar-se, numa recuperação que assinala a quarta fase da convalescença.

Qualquer que seja o tipo de trauma, incluindo-se aí o de natureza cirúrgica, desencadeiam-se no organismo traumatizado, ao lado de modificações físicas, alterações psicológicas e emocionais, incluindo medo e apreensão, bem como modificações neurológicas e hormonais. Muitas dessas perturbações espelham-se em níveis sangüíneos de diferentes elementos, permitindo acompanhamento laboratorial do processo.

É fácil de entender que a reação do organismo à agressão passa por uma fase inicial de identificação do trauma sofrido e das perturbações que dele decorrem. Tal identificação é feita por sensores dispostos estrategicamente por todo o organismo: são termoceptores, baroceptores, quimioceptores, osmoceptores, distribuídos de maneira eficiente e todos encarregados de surpreender modificações de parâmetros básicos. Assim, uma redução da volemia é identificada por "receptores de volume", ao que parece situados nos átrios cardíacos; outros baroceptores estão localizados no aparelho justaglomerular renal, cujas células são especializadas na percepção de variações da pressão sangüínea que a artéria aferente oferece ao glomérulo renal. De maneira semelhante células da mácula densa do aparelho justaglomerular são capazes de funcionar como quimioceptores sensíveis a variações do nível plasmático de sódio.

Todas as informações obtidas são conduzidas a um amplo sistema regulador. As primeiras hipóteses a respeito dos mecanismos envolvidos nas perturbações pós-traumáticas apontaram para processos endócrinos, uma vez que os hormônios são os principais efetores das alterações metabólicas que ocorrem, a cada momento, no organismo humano. Aos poucos verificou-se que componentes do sistema nervoso interferem com as referidas perturbações pós-traumáticas.

` Foi assim possível identificar dois grandes sistemas reguladores neurendócrinos do metabolismo: o primeiro é denominado catabólico, sendo encarregado de mobilizar substrato estrutural e energético, segundo as necessidades; o outro, chamado anabólico, ocupa-se da deposição de substrato, conforme as possibilidades do organismo.

O "sistema neurendócrino catabólico" é constituído pelo núcleo ventromedial do hipotálamo, pela adenohipófise, pela suprarrenal (tanto em sua parte medular quanto a cortical), pelo sistema nervoso simpático e pelas células alfa das ilhotas pancreáticas. O "sistema neurendócrino anabólico" é integrado pelo núcleo ventrolateral do hipotálamo, pelo sistema nervoso parassimpático e pelas células beta das ilhotas do pâncreas.

Com base nesse conjunto de informações é possível entender toda a seqüência de modificações que decorrem do trauma cirúrgico. Sem ordem de precedência cronológica, a redução do volume extracelular que se observa desencadeia de início a liberação pelo núcleo supraóptico do hipotálamo grânulos de hormônio antidiurético (HAD), que vão desencadear retenção de água e oligúria. O mesmo estímulo, representado pela redução do extracelular, desencadeia a atividade do sistema renina-angiotensina, com a conseqüente produção de aldosterona pela cortical da suprarrenal, com o que ocorre retenção de sódio e excreção aumentada de potássio.

Outro integrante do sistema catabólico - o núcleo ventromedial do hipotálamo - desencadeia a produção de "fatores de liberação", entre os quais o referente à produção pela adenohipófise do ACTH, o hormônio adrenocorticotrófico. Este vai estimular a produção pela córtex da suprarrenal dos correspondentes hormônios: no grupo dos mineralocorticoides, a aldosterona, em estimulação complementar à desencadeada pela ativação do sistema renina-angiotensina. Simultaneamente são liberados glicocorticoides, que tem a capacidade, entre outras tantas, de inibir a síntese de proteínas pelo fígado..

O trauma cirúrgico determina também a estimulação do sistema nervoso simpático, capaz de incrementar a produção de catecolaminas pela medular da suprarrenal. Trata-se de hormônios capazes de atuar sobre depósitos da periferia, acarretando proteólise das proteínas musculares, com liberação de aminoácidos na corrente sangüínea, bem como glicogenólise dos depósitos hepático e musculares. Ao mesmo tempo os glicocorticoides estimulam gliconeogênese pelo fígado, fato que somado à glicogenólise apontada explica a tendência à hiperglicemia identificada após traumatismos. Os aminoácidos liberados são catabolizados pelo fígado, sob estimulação dos glicocorticoides, contribuindo assim para a excreção aumentada de uréia. O sistema simpático estimula também as células alfa do pâncreas a produzirem glucagon, capaz de acarretar lipólise dos depósitos periféricos, com decorrente elevação do nível de ácidos graxos no plasma.

Ultima marca dos fenômenos catabólicos pós-traumáticos é a inibição do sistema nervoso parassimpático, do que decorre a inibição das células beta das ilhotas pancreáticas, com redução da produção de insulina e todas as conhecidas conseqüências metabólicas que decorrem desse fato.

A fase final da evolução do doente operado supõe a desativação gradual do sistema neurendócrino catabólico, com o gradual desaparecimento das perturbações metabólicas que decorriam de sua atividade. Mas, ocorre também a estimulação do sistema anabólico, particularmente do sistema nervoso parassimpático, da qual decorre o incremento da produção de insulina pelo pâncreas. Fica, em conseqüência, facilitada a fixação nos músculos de aminoácidos, agora livremente produzidos pelo fígado, ao lado daqueles que resultam da digestão das proteínas ingeridas. O ganho de massa muscular conseqüente apenas será possível com o fornecimento de quantidade suficiente de calorias. O mesmo ocorre com a recuperação das reservas de gordura, sabidamente a fase mais tardia e mais lenta da recuperação completa do doente.

Toda a longa elaboração feita a propósito do tema das alterações metabólicas do doente operado justifica-se pela estreita vinculação de todo o progresso obtido a partir do trabalho pioneiro de Francis Moore. Basta retornar ao título de seu livro básico: "Cuidado Metabólico do Doente Cirúrgico", que ainda merece estudo e reflexão de todos os que se dedicam à prática cirúrgica.

A era dos transplantes

O impulso dominante na personalidade de Moore, relativo à pesquisa, fazia-se sempre presente. Basta que se retome o conceito autêntico de pesquisa, para que se perceba quanto sua inquietação o impulsionava sempre pela busca do desconhecido. Em verdade a pesquisa lança-nos na interrogação, exige de nós invenção, criação, descobertas, mas também reflexão, crítica, enfrentamento e questionamento em relação ao estabelecido. A pesquisa exige trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que ainda não foi pensado, nem foi dito. Ela supõe uma visão compreensiva de abrangências e de sínteses, que continuam sugerindo interrogações e novas buscas.

Toda essa inquietação levou Moore a penetrar no universo até então pouco desvendado do transplante de órgãos, como única alternativa para a incompetência funcional, quando ela se afigura fatal. Quando nestes dias estamos celebrando o fato extraordinário ocorrido há trinta anos, de chegada do homem à Lua, a contribuição de Moore talvez possa ser sintetizada na frase de Neil Armstrong, o primeiro homem a pousar o pé na superfície lunar: "um pequeno passo para um homem, mas um gigantesco salto para a humanidade". Estatísticas brasileiras ajudam na avaliação do problema: dados relativos apenas aos centros médicos do Estado de São Paulo mostram que nos últimos cinco anos foram realizados, em média anual, 500 transplantes renais, 50 transplantes de fígado e 18 transplantes de coração.

Um dos pioneiros, pouco lembrado ou muito esquecido, foi Carrel, o francês que se inquietava com a condição de "desconhecido" que pesava sobre o homem, plagiando o título do livro que o tornou famoso Cirurgião hábil, desenvolveu técnicas cuidadosas de anastomose arterial, o que o levou a trabalhar em transplantes renais em gatos. Convidado pelo Rockfeller Institute de Nova York trabalhou na instituição americana, principalmente na década de 20. Embora tecnicamente bem sucedidos, seus resultados não foram satisfatórios porque os animais morriam dentro de 7 dias, com necrose do rim, cuja causa Carrel não conseguia localizar. Apenas muito mais tarde é que foi possível identificar de maneira cada vez mais completa o mecanismo daquela necrose renal como sendo a rejeição por incompatibilidade imunológica.

Anos depois dos trabalhos de Carrell, por ocasião da Batalha da Inglaterra, nos primeiros tempos da II Guerra Mundial, o tema foi retomado por uma razão de natureza prática: o número de combatentes atingidos por queimaduras levou o governo inglês a procurar solução para a perda constante dos transplantes de pele a partir de doadores voluntários executados nos soldados queimados. O mecanismo para a sistemática rejeição da pele transplantada pode ser esclarecido com a ajuda de um biologista nascido no Brasil, Peter Medawar. O pesquisador conseguiu demonstrar que um segundo transplante de pele em animais era rejeitado ainda mais rapidamente que o primeiro; a razão era o desenvolvimento de anticorpos pelo hospedeiro, a partir da presença inicial dos antígenos do transplante inicial. Complementarmente Medawar pode fazer a comprovação do que se começava a identificar - o mecanismo imunológico da rejeição da pele transplantada - a partir da identificação de um "momento privilegiado" para a realização do transplante, representado pelos primeiros dias de vida do hospedeiro, quando seus mecanismos imunológicos de defesa ainda não estavam desenvolvidos.

Tudo isso ocorria na década de 40 e de toda a inquietação em torno de transplantes participava Moore. Em seu laboratório em Boston desenvolveram-se experiências com o treinamento cirúrgico de especialistas. Entre eles estava David Hume, que realizou em 1951 o primeiro transplante renal em humanos; o óbito ocorreu no 37o. dia, por rejeição do rim transplantado. Em 1954 já era realizado com sucesso o primeiro transplante renal intervivos, com doador representado pelo irmão gêmeo do doente.

Ao mesmo tempo Roy Calne vinha trabalhando experimentalmente em Londres, realizando transplantes em cães, já com emprego de 6-mercaptopurina, como droga imunossupressora. Mas, o grosso de seu trabalho foi desenvolvido em seguida no laboratório de Moore, em Boston. Foi fundamental aqui o apoio da indústria farmacêutica, que já tinha desenvolvido as pesquisas com nova droga, a azatioprina. Foi, então, possível a realização em 1962 do primeiro transplante renal com doador cadáver, com controle da rejeição pelas novas drogas imunossupressoras. O doente veiu a ser operado de apendicite aguda 18 meses depois do transplante, tendo sido submetido a novo transplante 20 meses mais tarde.

A participação de Moore nesses trabalhos e seu prestígio no meio cirúrgico e científico dos Estados Unidos permitiram-lhe introduzir na literatura médica expressões inovadoras e definitivas, como "imunossupressão" e "quimioterapia imunossupressiva"

Outro capítulo dessa rica saga decorre do fato de que desde 1958 no laboratório de Moore vinham sendo desenvolvidas pesquisas relativas ao transplante de fígado. Os primeiros resultados foram apresentados por ele no Congresso do American College of Surgeons em 1960, com comentários por um jovem cirurgião que também vinha trabalhando no campo do transplante hepático, Thomas Starzl. Em 1963, Birtch realizou o primeiro transplante de fígado, com ampla participação de Moore, com óbito do doente no pós-operatório por pneumonia. No mesmo ano, em centros médicos distintos em que se vinha também trabalhando com o mesmo propósito, Starzl e Calne realizaram seus primeiros transplantes hepáticos. Em 1963 Moore figurou como capa da revista "Time", distinção muito significativa para o público americano; mas realmente significativa para o mundo científico foi sua indicação para o Prêmio Nobel de medicina naquele ano.

Em 1974, foi publicado por Moore o livro em que procurava retomar todo o rico momento da pesquisa médica desenvolvida ao longo de duas décadas de trabalho de tantos e distinguidos pesquisadores e cirurgiões em diversos centros médicos. Em seu "Transplant: the give and take of tissue transplantation", Moore retrata com isenção de alto nível ético a contribuição de todos quantos tinham contribuído para aquele "gigantesco salto para a humanidade".

Aspecto curioso: o fígado conseguiu vingar-se de seus principais "agressores": em poucos anos Birtch, Calne, Starzl e Moore adquiriram hepatite de intensidade variável da qual felizmente todos se recuperaram.

A personalidade: da origem à formação em Harvard

Moore nasceu em Illinois, perto do lago Michigan Ele sempre lembra que essa origem marca definitivamente os que se originam daquelas regiões do Meio-Oeste americano. Embora seus antepassados tenham vindo da Nova Inglaterra, com espírito jocoso ele brinca com os que nasceram em Boston, dizendo que eles podem até viajar para a Europa, mas não conhecem Ohio ou Iowa, terras planas, com nomes curtos cheios de vogais.

Seu avô materno era advogado de uma empresa ferroviária; tinha estudado em Boston e Nova York, fixando-se depois em Illinois por causa de seu trabalho. Dele Moore herdou não apenas o nome - Francis Barrett Daniels - mas também a lembrança de sua pequena fazenda, onde passava as férias: a recordação do som dos sinos pendurados no pescoço das vacas nunca o abandonou ao longo da vida.

A família do avô paterno era de Massachussets. O pai estudou no Massachussets Institute of Technology, graduando-se em metalurgia. Juntamente com um amigo registrou a invenção de um equipamento adaptado a vagões ferroviários, o que o levou a mudar-se para o Meio-Oeste, onde se localizavam as grandes centrais das estradas de ferro americanas. Foi assim que Philip Wyatt Moore conheceu Caroline Seymour Daniels em Vermont, Illinois, onde se casaram em l909; tiveram três filhos, sendo Francis o caçula, nascido em l913.

O pai era extremamente voltado para seu trabalho na empresa ferroviária, cabendo à mãe, como acontece muitas vezes, o contato maior com os filhos e maior participação em sua educação. Ela tinha muito boa formação intelectual, lendo no original clássicos latinos e gregos. Filho e neto de homens envolvidos com ferrovias, o assunto representou parte integrante da vida do jovem Moore, visitando com freqüência o escritório do pai na fábrica de material ferroviário em que trabalhava.

Aspecto importante em sua formação foi a proximidade com a música. Um tio paterno e principalmente a avó materna abriram-lhe perspectivas para o conhecimento de peças teatrais e concertos orquestrais, com freqüentes presenças nos teatros de Chicago. Tais elementos desabrocharam durante seu curso no Harvard College, tocando clarinete e piano e participando da preparação de peças teatrais e representações musicais.

Aos 18 anos mudou-se para Boston, para fazer o "college" na Harvard. Sua preferência voltou-se sempre para a química orgânica, mas também para antropologia, a filosofia e a música. Sua formação musical permitiu-lhe integrar-se no grupo de estudantes que apresentavam periodicamente peças musicais preparadas por eles mesmos. O conjunto chegou a ser convidado em 1934 para apresentar-se na Casa Branca, incluindo no programa músicas do tempo em que o presidente Roosevelt fazia seu curso de direito na Harvard.

Em 1935 matriculou-se no curso de medicina, numa Harvard que ainda não permitia o acesso das moças ao curso médico, o que apenas veiu a ocorrer em 1945. Ao longo do curso refere falhas na formação anatômica, mas permanente interesse pela bioquímica. Trabalhou como monitor do prof. Hastings, que o apoiou na discussão de problemas do âmbito cirúrgico - choque, hemorragia, infecção, fraturas - afeiçoando-se aos conhecimentos bioquímicos que mais tarde iria demonstrar serem básicos no cuidado do doente cirúrgico e na correção de distúrbios metabólicos freqüentes no pós-operatório.

Seus professores de clínica e cirurgia eram nomes eminentes na medicina americana, particularmente Cutler e Churchill. Deles Moore diz que "observar e assistir tais homens enquanto operavam, ouvi-los pensar em voz alta e conseguir um pouco de sua habilidade e sua filosofia era um imenso privilégio" .

Moore casou-se com Laura Benton Bartlett em 1935, no mesmo ano em que começou seu curso médico na Harvard, situação que não era freqüente naquele tempo. Dela recebeu sempre apoio de todo tipo. No 2o. e 3o.anos do curso, Moore desenvolveu com seu colega Bill Carleton pesquisa que lhes custava os tempos livres, inclusive dos domingos e feriados. O tema era o comportamento de certos hormônios da gravidez, cujo nível sangüíneo sofria queda abrupta logo após o parto. A casuística da pesquisa incluía as esposas dos dois jovens pesquisadores, fornecendo urina para as dosagens necessárias, uma vez que ambas estavam grávidas.

A prática cirúrgica era desenvolvida em hospitais gratuitos de Boston. Naqueles anos, em que se viviam ainda as dificuldades da Grande Depressão da economia americana, com graves problemas sociais decorrentes, a assistência obstétrica era freqüentemente realizada a domicílio, abrindo a sensibilidade e a consciência dos jovens estudantes para realidades que eles não encontravam no "campus" da Harvard.

A decisão de ser médico não foi influenciada pela família, porque não existiam outros registros dessa opção entre os antepassados, até onde havia memória. Na infância era ávido leitor e confessa ter ficado muito impressionado com a biografia de Pasteur escrita por Valéry-Radot. Embora não pudesse ainda compreender os dados químicos, encontrou por certo na leitura muito da pesquisa acadêmica e da ciência biomédica a que depois se dedicou.

Francis D. Moore cirurgião: prática e convicções

Em sua formação acadêmica Moore procurou sempre viver próximo de grandes vultos da cirurgia de sua época, buscando completar a cada momento seu aprendizado. Em complemento buscou sempre aproveitar as oportunidades para desenvolver seu aprendizado prático, enriquecendo e aperfeiçoando sua capacidade de saber mais e de fazer melhor.

` Assim formado, exerceu sua atividade profissional com perfeito senso de dedicação e de respeito ao doente e a seus familiares. Nessa linha de comportamento atendia a todos quantos se valiam de seu socorro da mesma maneira, com o mesmo cuidado e idêntico carinho. Dois exemplos: guardava sempre com carinho o dólar de prata que ganhou certa vez da mãe de uma criança pobre de Boston operada por ele; a gratidão da mãe apenas pode manifestar-se naquela atitude humilde, que mereceu de Moore toda a compreensão do que tal gesto significava. Com a mesma simpatia guardava o relógio de ouro que recebeu de um dos homens mais ricos do mundo, o rei Ibn Saud da Arábia, operado também por ele em 1961, após grandes peripécias.

Em certo dia de novembro daquele ano sua aula foi interrompida por um telefonema urgente do Departamento de Estado em Washington, perguntando-lhe sobre a possibilidade de ele se dirigir naquela mesma tarde para Dahran, na Arábia Saudita; o objetivo era atender o soberano daquele longínquo país. Moore naturalmente colocou-se à disposição e seguiu para a Arábia pelo caminho aéreo mais curto. Encontrou o rei saudita praticamente cego em conseqüência de extensa catarata bilateral; era ainda portador de enorme hérnia abdominal e de outra hérnia inguinal, mas principalmente queixava-se de fortes dores no tórax e abdome. A hipótese de problema cardíaco tinha sido afastada por exames eletrocardiográficos executados por médicos ingleses. A pobreza de recursos e equipamentos de diagnóstico locais rapidamente indicou a necessidade de ser o soberano transferido para outro centro, onde melhor pudesse ser tratado. A decisão foi levá-lo para Boston, onde Moore e o rei teriam todos os recursos assistenciais à disposição.

Um deslocamento real, contudo, não é tarefa fácil de se preparar e desenvolver. Ibn Saud tinha 55 filhas e 45 filhos, alguns dos quais, segundo hierarquia que os ocidentais não poderiam penetrar, deveriam acompanhar o real pai, o mesmo acontecendo com ministros e auxiliares. O resultado foi que o avião que transferiu o rei para Boston conduzia uma comitiva de mais de 100 pessoas. Para abrigar os que deviam permanecer mais próximo de Ibn Saud fora reservado todo o andar superior de um dos braços do hospital da Harvard.

O passo inicial do atendimento do rei saudita foi definir melhor o diagnóstico das dores de que se queixava. Cuidadosa exploração radiológica revelou considerável numero de projéteis que o tinham atingido e que ainda permaneciam dentro de seu corpo. Eram restos das batalhas em que ele se tinha envolvido, principalmente após a I Guerra Mundial, na luta pela libertação de sua pátria do domínio do Império Otomano. Alguns desses fragmentos foram retirados por ocasião da correção cirúrgica da ampla hérnia abdominal de que o rei era portador. Nessa oportunidade foi também possível fazer ampla investigação da cavidade abdominal, com identificação de extensa cirrose hepática. Conhecida a proibição de consumo de bebidas alcoólicas que os muçulmanos adotam, seria necessário invocar outro mecanismo para o quadro cirrótico, além do alcoólico. Depois da correção cirúrgica da hérnia inguinal que também estava presente, o rei foi submetido à indispensável fascectomia, para retirada dos cristalinos opacificados pela catarata. Após esta última intervenção, precedida de adequados cuidados pré-operatórios, tal como já tinha acontecido com as outras intervenções, Ibn Saud pode manifestar sua satisfação, porque conseguia agora conhecer melhor a fisionomia de cada uma das quatro esposas que tinha levado consigo para Boston.

Ao mesmo tempo outros membros da comitiva real eram examinados, diagnosticados, tratados clinicamente ou operados, segundo as necessidades. Uma das princesas teve identificado um tumor ósseo, que a levou à morte algum tempo mais tarde.

Depois de uma longa permanência, a comitiva real deixou Boston, para uma escala na Florida, antes de voltar à Arábia. Na ocasião da partida, Ibn Saud ofereceu a Moore e a outros membros do corpo médico-assistencial da Harvard um relógio de ouro de fabricação suiça, contendo sua própria efígie. Considerando a originalidade do presente ou a lembrança da grande "aventura" árabe, Moore conservava consigo o relógio recebido.

O comportamento de Moore nos dois casos citados traduz em boa medida alguns traços fundamentais de sua personalidade, particularmente aqueles que comandam a relação médico-paciente. Entre tais elementos avultam aqueles que definem a dignidade da pessoa humana, que deve ser respeitada em cada doente, qualquer que seja sua condição social, sua cor, sua raça ou sua religião.

Tais parâmetros juntam-se, na personalidade de Moore, a outros elementos sobre os quais se baseiam suas convicções. Estas foram expostas em numerosas oportunidades, sem qualquer reserva e sem qualquer limitação. Algumas merecem ser retomadas, pela contribuição que podem trazer para a reflexão e a prática do exercício profissional de qualquer cirurgião.

Em uma dessas oportunidades Moore afirmou que "existem três recursos pelos quais o médico pode ajudar uma pessoa em dificuldades: os medicamentos, as mãos e as palavras. Estas, embora mais fáceis de ministrar e de menor custo, são da maior importância. Enquanto os psiquiatras usam as palavras como sua principal arma, alguns dos piores enganos tem sido cometidos por clínicos, cirurgiões e até pediatras pelo mau uso das palavras".

Tal afirmação traz à tona a reflexão sobre o fato indiscutível de que o doente procura o médico, em primeiro lugar em busca de tratamento para o mal que o aflige, mas também à procura do que lhe falta naquele instante, a saber, carinho, compreensão, apoio, calor humano. É de se reconhecer, então, que o tempo que o médico dedica a seu doente, além do comprometimento profissional, em busca do diagnóstico, que permita estabelecer a conduta adequada, já é em si mesmo terapêutico, tal é o significado que o contato com o médico assume para o doente. Contato no qual, ao lado das atitudes e dos gestos, sobrelevam as palavras.

Em outro momento, referindo-se mais expressamente à atividade que o dominava, foi dito por Moore: "a cirurgia é baseada no mesmo conjunto de conhecimentos que o restante da medicina, ao qual se acrescenta a habilidade manual: a cirurgia não tem existência autônoma, existe apenas para o cuidado do doente e apenas por isso deve ser avaliada". A lição é clara, dirigida ao fato de que qualquer outra motivação - carreira, fama, prestígio, dinheiro - passam para plano secundário, para que o cuidado do doente assuma a primazia.

No exercício da difícil especialidade que é a cirurgia certamente existem riscos a serem enfrentados. "Assumir riscos é situação inerente à cirurgia; mas é essencial separar o risco cirúrgico de erros pessoais: diante destes é preciso perdoar mas não esquecer". Forgive but do not forget, na expressão forte de Moore. Lição do mestre para os jovens que se iniciam.

Assumindo o tom coloquial que freqüentemente adotava, Moore lembrou que "você certamente não deseja um cirurgião orgulhoso demais para não aceitar perder ou tímido demais para aceitar sem luta uma morte pós-operatória, mas deseja certamente um cirurgião que faça todo o possível para evitar esses riscos. Você deseja um cirurgião que enfrente cada erro, que o identifique e que tome providências para evitar sua repetição".

Essa coragem de enfrentar os erros permitiu a Moore oferecer o testemunho da autoridade moral de que se revestia ao publicar em 1969, em colaboração com integrantes de seu grupo, um livro exemplar -"Post-traumatic Pulmonary Insufficiency". Exemplar pela honestidade intelectual de seus autores, que examinavam na publicação, com toda a minúcia, cinco casos de doentes tratados sob sua responsabilidade e que tinham falecido pelo uso inadequado de ventiladores. O que os autores desejavam era a identificação dos erros, para que pudessem ser evitados no futuro. "Forgive but do not forget".

Seu ânimo de pesquisador autêntico transpareceu nitidamente no momento em que trabalhava com animais de laboratório, preparando-se para realizar a vagotomia em doentes portadores de úlcera péptica. Nessa ocasião foi divulgado que Dragstedt já tinha operado os primeiros casos segundo essa técnica. Moore afirmou então que seus planos não tinham por que ser alterados, uma vez que "nunca me ocorreu que não poderia mais invocar a prioridade por essa nova operação, porque no trabalho científico a verdadeira prioridade não cabe a quem faz primeiro, mas a quem analisa e extrai dos fatos os melhores resultados".

Coragem na afirmação de suas convicções sempre esteve presente em seus pronunciamentos, mesmo quando se trata de examinar tópicos desafiadores. Basta ler: "assistir as pessoas a deixar o abrigo de seu corpo, quando ele não é mais habitável, está se tornando obrigação da profissão médica". Por isso mesmo é que em outro momento Moore afirmava que "inevitavelmente a sociedade e a lei chegarão a aceitar avaliações flexíveis sobre o comportamento do médico no auxiliar a alma a deixar o corpo".

F.D. Moore: lição de felicidade

Francis Daniels Moore e Laura Benton Bartlett conheceram-se muito jovens, aos 15 anos de idade. Suas casas eram bastante próximas e a freqüência com que o carro dos Moore fazia o percurso de cerca de uma milha entre elas fez com que o velho Moore afirmasse que o automóvel seria até capaz de fazer o trajeto sem ninguém na direção. Na idade do college Moore foi para Boston e Laura para Nova York; mas a distância não perturbou o namoro, porque em todos os fins de semana Moore ia ao encontro dela.

Sobre a atração que os unia Moore afirmou : "o amor não pode ser objeto de análise porque oscila do puro erotismo até a alegria simples da conversa a dois; todo tesouro é sempre guardado por dragões e em torno de Laura havia muitos, mas foi a mim que ela escolheu".

Casaram-se em 1935, ano em que ele foi admitido à Escola de Medicina de Harvard, passando a viver uma situação pouco freqüente naquele tempo, de acadêmico casado, com todas as dificuldades facilmente identificáveis. Um ano depois nasceu a primogênita e em seguida, com intervalos de dois a três anos, nasceram mais três, sendo duas meninas e um menino. Apenas o caçula respeitou um intervalo maior, de seis anos, nascendo em 1950. Os cinco filhos deram ao casal Moore 17 netos.

A vida conjugal foi sempre extremamente participativa, com Laura interessando-se e integrando-se nos acontecimentos da vida profissional do marido. Moore liderou durante muitos anos uma sessão de discussão de casos clínicos na Harvard, na qual os doentes eram apresentados, para enriquecimento da discussão, sendo a seguir operados com assistência dos alunos. Numa dessas oportunidades a sessão centrava-se sobre um caso de colecistite calculosa e a paciente era ... a senhora Moore, que jocosamente participou da atividade acadêmica dirigida pelo marido.

A vida social da família era sempre animada por excursões aos arredores de Boston e principalmente pelo gosto do casal por velejamento. Nessas oportunidades contavam com a companhia freqüente de um casal muito amigo, Katharyn e William Saltonstall; as esposas tornaram-se particularmente muito amigas, provavelmente porque ambas tinham cinco filhos e número apreciável de netos, enriquecendo muito a vida das famílias.

Numa tarde de julho de 1988 Laura regressava a Boston dirigindo seu carro. No meio de uma tempestade extremamente violenta, como acontece com alguma freqüência naquela região, o veículo chocou-se com um caminhão e ela morreu no local do acidente. Tinha 75 anos de idade e o casal tinha permanecido juntos 53 anos; mas Moore diz que ela esteve integrada na vida dele durante 58 anos de muita felicidade.

Ao analisar o que pode ser o segredo de um casamento feliz, ele identificava "uma contínua expressão de atração física e intelectual, convergência de interesses, fidelidade mais capacidade de pedir e oferecer desculpas".

Dois anos depois da morte de Laura, Moore casou-se com Katharyn Saltonstall, que tinha ficado viuva seis meses antes. A proximidade dos dois casais, quando Laura e William ainda eram vivos permitiu identificar provavelmente semelhanças e compatibilidades que originaram a decisão desse novo casamento. Em certo momento Moore afirmou que, quando ele pensa em homens que perderam suas esposas ou mulheres que perderam seus maridos, ele não pode desejar-lhes outro caminho que o que foi escolhido por eles dois.

Um envelhecimento inteligente

Em determinado momento Moore escreveu: "desempenhar grande número de tarefas e encargos ao longo de muitos anos faz uma pessoa sentir-se importante. Parte da neurose da aposentadoria provem da sensação de deixar de ser engrenagem em alguma parte importante da máquina".

Importante Moore certamente foi. Apenas alguns exemplos podem ser lembrados: do ponto de vista científico, desde 1952, consultor do Departamento de Estado para atendimento de situações de graves traumatismos e queimaduras, ajudando a desenvolver o modelo divulgado pelo cinema do MASH ( Mobile Army Surgical Hospital); a partir de 1968, consultor da Nasa para estudo dos efeitos fisiológicos do vôo espacial com ausência da gravidade.

Do ponto de vista profissional, membro honorário das mais importantes associações cirúrgicas do mundo. Do ponto de vista acadêmico, doutor honoris causa de grandes universidades da Europa e dos Estados Unidos. A Universidade de Harvard, depois de conceder-lhe o título honorário, criou a cadeira de cirurgia "Francis Daniels Moore", procedendo à indicação de seu primeiro titular - Nicholas Tilney - em 1992.

Restava-lhe fugir da neurose da aposentadoria. E ele conseguiu fazê-lo de forma elegante e inteligente. Em diferentes oportunidades já tinha sido membro do Conselho Editorial de uma das mais importantes publicações médicas americanas, o New England Journal of Medicine. Em 1981 assumiu a editoria da seção de revisão de livros da revista, uma atividade intensa e desafiante, uma vez que são recebidos por ano cerca de 3.000 livros para serem examinados. Depois de avaliados e selecionados, os livros são objeto de resenha por especialistas, num processo dirigido pelo editor da seção.

É fácil imaginar que se trata de tarefa que exige amplo conhecimento médico e que, por sua exigência, obriga a permanente atualização científica. Não se poderia imaginar melhor forma de fugir da neurose da aposentadoria. Nessa função Moore permaneceu até 1983, quando completou 80 anos de idade.

Vive hoje cultivando a felicidade que lhe proporcionam sua esposa, os dez filhos (cinco de cada casal anterior) e seus trinta e três netos, reunindo os filhos dos filhos dos dois casamentos anteriores. Moore costuma dizer que a garantia de sua felicidade atual são os 111 anos de felicidade conjugal que ele e Katharyn viveram em seus casamentos anteriores.

Francis Daniels Moore, o cirurgião do século.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2000
  • Data do Fascículo
    Out 1999
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