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Hiperceratose epidermolítica: um seguimento de 23 anos de uso de retinoides orais

Resumos

A hiperceratose epidermolítica é uma forma de ictiose geralmente resistente a tratamentos tópicos. Relata-se um caso de paciente feminina , em acompanhamento na dermatologia desde 1978, com diagnóstico de hiperceratose epidermolítica. Foi tratada inicialmente com queratolíticos, vitamina A oral, ácido tartárico e emolientes tópicos, porém sem melhora no quadro clínico, já que não haviam disponíveis outros tratamentos na época. Em 1986, com o advento dos retinóides orais, foi introduzido o etretinato, e em 1998, foi substituído pelo acitretin, apresentando excelente resposta terapêutica. No momento a paciente está em uso de acitretin 25 mg/dia, completando 23 anos de uso de retinóides orais, com mínimos efeitos adversos e melhora significativa na qualidade de vida

Acitretina; Hiperceratose epidermolítica; Retinóides


Epidermolytic hyperkeratosis is a form of ichthyosis normally resistant to topical treatments. Female patient monitored since 1978 diagnosed with epidermolytic hyperkeratosis. Clinical examination showed generalized hyperkeratosis and scaling. Given that no other treatments were available at the time, the patient was initially treated with keratolytic, systemic vitamin A and moisturizers, with no improvement. In 1986, with the development of oral retinoids, etretinate was introduced. In 1998 this was replaced by acitretin. The patient is receiving 25 mg/day after 23 years of using oral retinoids. Significant improvement of the condition and patient's quality of life has been noted

Acitretin; Hyperkeratosis, epidermolytic; Retinoids


CASO CLÍNICO

Hiperceratose epidermolítica: um seguimento de 23 anos de uso de retinoides orais* * Trabalho realizado no Instituto Lauro de Souza Lima (ILSL) - Bauru (SP), Brasil.

Priscila Wolf NassifI; Sadamitsu NakandakariII; Letícia FogagnoloIII; Letícia Arsie ContinIV; Cinthia Janine Meira AlvesV

IMédica dermatologista titular SBD/AMB- Professora assistente de dermatologia do curso de medicina da Faculdade Uningá- Maringá (PR), Brasil

IIMédico dermatologista titular SBD/AMB- Preceptor da residência médica de dermatologia do Instituto Lauro de Souza Lima (ILSL) - Bauru (SP), Brasil

IIIMédica dermatologista titular da SBD/AMB. Pós-graduanda em dermatopatologia na Universidade Estadual de Campipnas (UNICAMP)- Campinas (SP), Brasil

IVMédica dermatologista titular SBD/AMB. Pós-graduanda em cirurgia dermatológica na Faculdade de Medicina do ABC (FMABC)

VMédica dermatologista titular da SBD/AMB. Clínica particular -Montes Claros - MG

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Priscila Wolf Nassif Rua Piratininga, 159 - Ap. 122 - Zona 1 Maringá PR Brasil 87013 100 E-mail: priwolf@gmail.com

RESUMO

A hiperceratose epidermolítica é uma forma de ictiose geralmente resistente a tratamentos tópicos. Relata-se um caso de paciente feminina , em acompanhamento na dermatologia desde 1978, com diagnóstico de hiperceratose epidermolítica. Foi tratada inicialmente com queratolíticos, vitamina A oral, ácido tartárico e emolientes tópicos, porém sem melhora no quadro clínico, já que não haviam disponíveis outros tratamentos na época. Em 1986, com o advento dos retinóides orais, foi introduzido o etretinato, e em 1998, foi substituído pelo acitretin, apresentando excelente resposta terapêutica. No momento a paciente está em uso de acitretin 25 mg/dia, completando 23 anos de uso de retinóides orais, com mínimos efeitos adversos e melhora significativa na qualidade de vida.

Palavras-chave: Acitretina; Hiperceratose epidermolítica; Retinóides

INTRODUÇÃO

Ictiose compreende um grupo heterogêneo de doenças de pele, cuja manifestação cutânea mais comum é a descamação.1 A hiperceratose epidermolítica, de transmissão autossômica dominante, tem prevalência de 1/200.000 indivíduos e em 50% dos casos ocorre mutação espontânea.2

É caracterizada por alteração na ceratinização, causada por uma falha na rede de queratinas 1 e/ou 10, conferindo fragilidade aos ceratinócitos, particularmente os da epiderme superior.2

Formas graves de ictiose são resistentes a tratamentos tópicos, mas os retinoides orais têm se mostrado uma modalidade de tratamento efetiva.1

RELATO DO CASO

Paciente feminina, 48 anos, em acompanhamento na Dermatologia desde 1978, referia manchas eritematosas difusas e pele espessada ao nascimento, que evoluíram para bolhas e exulcerações. Ao exame físico inicial, apresentava hiperceratose acentuada e descamação fina, generalizadas, mais proeminentes em joelhos, tornozelos e cotovelos (Figuras 1A e 1B). Não havia acometimento facial ou palmoplantar. O exame histopatológico foi compatível com o diagnóstico de eritrodermia ictiosiforme congênita bolhosa (Figura 2). Diversos tratamentos foram instituídos à época, como ácido salicílico tópico, corticosteroide tópico, hidratantes e vitamina A 50.000U/dia oral, porém, com resultados insatisfatórios. Em 1985, mudou-se o tratamento para ácido tartárico 5-7% tópico oclusivo em todo o corpo, com melhora parcial do quadro, porém, com irritação local. Em 1986, com o advento dos retinoides, foi introduzido o etretinato, na dose inicial de 50 mg/dia, que foi posteriormente reduzida a 10mg/dia. Em 1998, o etretinato foi substituído pelo acitretin, na dosagem 20mg/dia, com melhora importante da descamação e da hiperceratose. Os exames laboratoriais de função hepática apresentaram discretas alterações durante todo o tratamento (TGO 21 e TGP 26 - setembro 2009), e os níveis lipídicos, pouco elevados (colesterol total 195 e triglicerídeos 193 setembro 2009), foram controlados com dieta. Em relação a efeitos colaterais clínicos, a paciente queixouse apenas de queda de cabelo. Quanto ao risco de gestação e teratogenicidade, a paciente faz uso contínuo de anticoncepcional oral como forma de prevenção. Cintilografia óssea realizada em 2003 mostrou-se normal e Raio-x de coluna em 2009 não evidenciou alterações. No momento, a paciente está em uso de acitretin 25 mg/dia, completando 23 anos de uso de retinoides orais, com melhora importante do quadro clínico e da qualidade de vida.



DISCUSSÃO

A hiperceratose epidermolítica é doença genética da ceratinização e, inicialmente, foi descrita sob a sinonímia de eritrodermia ictiosiforme congênita bolhosa.2 Caracteriza-se por apresentar herança autossômica dominante, podendo ocorrer mutação espontânea em 50% dos casos. A falha na rede de queratinas 1 e/ou 10 confere fragilidade aos ceratinócitos, particularmente os da epiderme superior, caracterizando a hiperceratose epidermolítica.2 Usualmente, apresenta-se ao nascimento com bolhas, eritema e descamação, evoluindo para hiperceratose com ou sem eritrodermia associada.2 A histopatologia é típica, destacandose camada córnea intensamente espessada, com degeneração vacuolar na porção superior da epiderme.2

A maioria dos tipos de ictiose que apresenta descamação importante não melhora com cremes hidratantes ou queratolíticos.3 A qualidade de vida dos pacientes é gravemente afetada e o tratamento deve ser feito por toda a vida.3 O tratamento pode ser feito com retinoides, que controlam o crescimento e a diferenciação do tecido epitelial.3,4 É sabido que os retinoides afetam a expressão das ceratinas na epiderme humana, levando ao aumento de algumas ceratinas (K4, K6, K13 e K19), enquanto outras são diminuídas (K2e, K1 e K10) ou mostram pequena ou nenhuma resposta ao tratamento.5

Nos dias atuais, o acitretin é o tratamento sistêmico mais efetivo para a maioria dos casos de ictiose grave.3 Entretanto, seus efeitos colaterais estão bem discutidos na literatura: alterações mucocutâneas (queilite, xerose, anormalidades das unhas, queda de cabelos - são dose-dependentes), toxicidade hepática (elevação reversível das transaminases e fosfatase alcalina), anormalidades dos lipídios séricos (triglicerídeos e colesterol), e risco de teratogenicidade.3,4

Os retinoides tópicos podem representar uma boa alternativa para evitar o tratamento sistêmico, apesar de não serem tão eficazes e apresentarem alto potencial de irritação local.3

Há muitos relatos sobre as alterações esqueléticas induzidas por retinoides.6 Em adultos, as anormalidades são idênticas à Hiperostose Esquelética Idiopática Difusa (DISH), que consiste em hiperostose espinhal e extraespinhal e calcificação dos tendões e ligamentos. Outras alterações incluem afinamento dos ossos longos e osteoporose.6,7 Em crianças, pode haver espessamento do periósteo, reabsorção óssea, estreitamento discal e fechamento prematuro das epífises.6,7 Entretanto, nenhum consenso foi estabelecido sobre a frequência e magnitude destes efeitos.6,7 Em um estudo recente, não houve relação entre a duração do tratamento com retinoides orais, ou a dose cumulativa e a prevalência e severidade da DISH, e alterações degenerativas e osteoporose.6 Portanto, não é recomendada uma rotina anual de radiografias da coluna vertebral durante o tratamento com retinoides.6,7 Deve-se apenas questionar o paciente sobre dor esquelética e restrição de mobilidade articular.6

Outros efeitos colaterais sistêmicos dos retinoides são dependentes da dose e do tempo de tratamento, como observado no quadro 1. Segundo Zhang e cols., num estudo com 28 pacientes de 1 a 13 anos tratados com acitretin na dose média de 0,86mg/kg/dia durante 2 a 36 meses, as alterações mais frequentes observadas foram: queilite, fragilidade cutânea, boca seca, alterações lipídicas e de função hepática e nenhum efeito ósseo ou no crescimento.8 Em contrapartida, uma pesquisa realizada por Mork e cols. com 3 pacientes, usando a medicação na dose de 0,5-0,75mg/kg dia por 22, 28 e 14 anos, observou-se hiperostose espinhal nos 3 casos.9 Estes achados são condizentes com os de Bondson e cols. que, em relato de caso do uso do retinoide 25 mg/dia por 20 anos, observaram alterações lipídicas e de transaminases.10 Já em trabalhos com uso da medicação por período mais curto, de 6 meses a 2 anos, mesmo em dosagem mais elevada (1mg/kg/dia), não houve eventos adversos sistêmicos importantes.11-12


A despeito de todos os possíveis efeitos colaterais dos retinoides descritos na literatura, a paciente relatada neste caso apresentou apenas leves alterações nos níveis lipídicos e de transaminases, além de queda de cabelo, reversíveis com dieta e redução da dose. Isto reforça a ideia de que, apesar de ser necessário o contínuo monitoramento, o uso de retinoides orais a longo prazo parece ser seguro e melhora significativamente a qualidade de vida dos pacientes.

Recebido em 26.10.2010.

Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 21.12.2010.

Conflito de interesse: Nenhum

Suporte financeiro: Nenhum

  • 1
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  • 3
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  • Endereço para correspondência:
    Priscila Wolf Nassif
    Rua Piratininga, 159 - Ap. 122 - Zona 1
    Maringá PR Brasil 87013 100
    E-mail:
  • *
    Trabalho realizado no Instituto Lauro de Souza Lima (ILSL) - Bauru (SP), Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Recebido
      26 Out 2010
    • Aceito
      21 Dez 2010
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