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Caso 6/2003 - Homem de 54 anos, com insuficiência cardíaca progressiva e refratária, infarto do miocárdio, aterosclerose coronariana e ponte miocárdica (Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas - UNICAMP)

CORRELAÇÃO ANATOMOCLÍNICA

Correlação anatomoclínica - Caso 6/2003 - Homem de 54 anos, com insuficiência cardíaca progressiva e refratária, infarto do miocárdio, aterosclerose coronariana e ponte miocárdica (Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas - UNICAMP)

Luís Felipe Bachur; Eros Antonio de Almeida; Luís Antônio K. Bittencourt; Márcio Jansen O. Figueiredo; Eduardo Arantes Nogueira

Campinas, SP

Correspondence Correspondence to Eros Antonio de Almeida Rua Prof. Jorge Nogueira Ferraz, 14/74 Cep 13070-120 - Campinas, SP E-mail: erosaa@cardiol.br

Homem de 54 anos, pardo, aposentado, natural de Rio Pardo, MG, foi atendido com sintomas de insuficiência cardíaca congestiva progressiva. Fazia parte do quadro clínico dor precordial com irradiação para o pescoço, porém sem outras características de dor anginosa. Foi feito o diagnóstico de miocardiopatia dilatada e o tratamento com digital, diurético e inibidor da enzima de conversão da angiotensina foi prescrito. Mesmo assim houve piora, passando o doente a apresentar dispnéia aos pequenos esforços e anasarca. Havia antecedente epidemiológico positivo para doença de Chagas, mas os exames sorológicos realizados foram negativos. Foi grande fumante e grande etilista de aguardente por aproximadamente 30 anos. Uma de suas irmãs era diabética.

Ao primeiro exame físico apresentava-se com sinais de insuficiência cardíaca congestiva grave. O ritmo cardíaco era irregular. A freqüência cardíaca medida foi de 100bpm e a pressão arterial era de 110/70mmHg. A semiologia cardíaca revelou sopro característico de insuficiência mitral de grau moderado. Apresentava, ainda, anemia de pequeno grau, icterícia e ascite. A radiografia do tórax revelou cardiomegalia (fig. 1).


O doente ficou internado por 13 dias, apresentando melhora gradativa do quadro clínico. Logo após a alta hospitalar apresentou nova descompensação cardíaca, desta vez mais grave, com edema agudo de pulmão e choque cardiogênico, tratados, também, com o uso de aminas vasoativas.

Decorridos cinco meses da segunda alta hospitalar, o doente voltou a procurar o serviço médico de urgência. Foi constatado quadro de depressão grave, havendo informação de que ele havia se descuidado do tratamento, expressando desejo de morrer. O quadro cardíaco não se mostrava descompensado e o paciente passou a referir tosse noturna, sudorese e febre nunca medida. Embora fosse proposta internação hospitalar, esta não ocorreu. Uma semana depois foi atendido no Pronto Socorro com taquidispnéia, cianose, hipotensão e desidratação. A freqüência cardíaca foi 120bpm e não se obteve a medida da pressão arterial. Como o doente apresentava episódios de apnéia, houve necessidade de intubação orotraqueal, mantida por um dia. Após a retirada da cânula de intubação, o quadro clínico piorou com intensificação da dispnéia. Culturas de sangue e urina foram realizadas sendo os resultados negativos. Apesar do tratamento intensivo para insuficiência cardíaca o quadro clínico foi piorando gradativamente, acrescentando-se arritmia cardíaca com descompensação hemodinâmica, necessitando de amiodarona para reversão. O quadro clínico tornou-se refratário à medicação, e o paciente faleceu no quinto dia de internação (tab. I).

O primeiro eletrocardiograma, de 15/2/94 (fig. 2A), mostra ritmo irregular, sem ondas P identificáveis, caracterizando fibrilação atrial. A freqüência ventricular média é de 120bpm. O complexo QRS mostra-se alargado, com 120ms de duração. O eixo elétrico do QRS é de aproximadamente –60°. Essas características associadas à presença de onda Q em DI e de onda S em DIII indicam a presença de bloqueio ântero-superior do ramo esquerdo. A duração do QRS é um pouco superior ao normalmente encontrado nessa situação, e a porção final do QRS encontra-se lentificada, sugerindo atraso adicional da condução intraventricular. No entanto, não existem alterações morfológicas características de outros bloqueios no plano horizontal. Ainda nesse plano observamos a não progressão da onda R de V1 a V6. As alterações da repolarização ventricular podem ser secundárias aos distúrbios da condução. O eletrocardiograma não apresenta características para o diagnóstico de alguma cardiopatia específica.




O segundo eletrocardiograma, de 21/2/94 (fig. 2B), é semelhante ao primeiro. A diferença que se observa é a presença de onda Q com supradesnivelamento do segmento ST em V3 e V4, e de padrão qR em V5 e V6. Essas alterações podem indicar a presença de infarto apical em evolução, já que não estavam presentes seis dias antes. No registro longo da derivação DII, observam-se dois complexos QRS (o segundo e o último) com morfologia distinta da basal, sugerindo tratar-se de ectópicos de origem ventricular.

O terceiro eletrocardiograma, de 17/8/94 (fig. 2C), é semelhante aos primeiros, mas com freqüência cardíaca mais elevada (170bpm) e mantém as características do eletrocardiograma prévio, sem o supradesnivelamento nas derivações em que essa alteração era observada, sugerindo evolução de um infarto pregresso. Os diagnósticos eletrocardiográficos foram: fibrilação atrial; bloqueio ântero-superior do ramo esquerdo; extra-sístoles ventriculares; infarto apical.

(Dr. Márcio Jansen O. Figueiredo)

O ecocardiograma revelou diâmetros de ventrículo esquerdo 81mm (diastólico) e 67mm (sistólico), fração de ejeção do ventrículo esquerdo 34%, espessura da parede posterior 10mm e do septo interventricular 5mm. O pericárdio e as valvas cardíacas foram normais. Além do aumento das câmaras esquerdas havia adelgaçamento do septo interventricular, que se encontrava com refringência aumentada e hipocinético. Foram detectadas insuficiência mitral moderada e insuficiência tricúspide leve.

Há somente relato das pressões intraventricular e intra-aórtica no cateterismo cardíaco, mas certamente o débito cardíaco deveria estar reduzido, as resistências pulmonar e sistêmica elevadas Há grande aumento da pressão diastólica final do ventrículo esquerdo que neste caso é revelador de grave redução da função sistólica desta câmara cardíaca.

A ventriculografia esquerda revelou grande dilatação e grave disfunção sistólica, com fração de ejeção de 23% (figs. 3A, 3B). Nota-se, como em outras cardiomiopatias dilatadas, que a base ventricular move-se mais que a metade apical, tanto na direção transversal como longitudinal. Há discinesia da ponta, ou melhor, de uma grande concha apical. Este aspecto também é comum nas cardiomiopatias dilatadas em fase avançada, podendo ser visto nos casos de miocardiopatia chagásica crônica com grande dilatação e déficit contráctil. Nestes casos, característico aneurisma de ponta da cardiopatia chagásica acaba se evanescendo dentro de uma grande área da concha apical discinética. A coronarigorafia não revelou obstruções do lúmen (figs. 3C, 3D). O diagnóstico foi de cardiomiopatia dilatada.



(Dr. Eduardo Arantes Nogueira)

Aspectos clínicos

O diagnóstico de miocardiopatia dilatada grave se impõe neste doente, pois os ecocardiogramas mostraram grave déficit contrátil associado a aumento dos volumes das câmaras cardíacas, além de insuficiência mitral e fibrilação atrial. Chama a atenção a piora acentuada e rápida do doente com intercorrências graves, que apesar de revertidas não lograram modificar o prognóstico, tendo o falecido por insuficiência cardíaca refratária.

A não aderência ao tratamento certamente contribuiu, significantemente, para o êxito letal e deve ter sido conseqüente ao quadro mental de depressão grave e ao alcoolismo. Nesses casos, às vezes, são tentadas doses mais baixas dos medicamentos que em princípio seriam mais suportáveis para esses doentes. Todavia, esta conduta pode não ser efetiva, uma vez que nestes quadros de grave disfunção ventricular, doses máximas dos medicamentos são necessárias para compensação da cardiopatia. O alcoolismo crônico grave estaria na base das explicações para o comportamento do doente, bem como o encontro de icterícia e ascite. Essas duas poderiam ser manifestações da hepatopatia crônica alcoólica, agravada por congestão passiva, resultante da insuficiência cardíaca global. A ascite pode estar presente quando há apenas insuficiência cardíaca global grave, porém aqui não foi descrita hepatomegalia, o que torna mais provável a cirrose hepática alcoólica e, conseqüente, fígado retraído com hipertensão portal e ascite.

O estudo hemodinâmico confirmou a miocardiopatia e não coronariopatia obstrutiva aterosclerótica.

É provável que o choque cardiogênico final tenha sido provocado por tromboembolismo pulmonar, já que no último estudo radiográfico há condensação e derrame pulmonar na base direita, que configurariam um infarto pulmonar hemorrágico. As enzimas elevadas também seriam explicadas pelo infarto pulmonar.

Cabe ainda um comentário a respeito da anemia e do aumento da bilirrubina indireta. Por ser o doente de cor parda, não se pode descantar a possibilidade de ele ser portador de traço falciforme e, portanto, de terem ocorrido na fase final fenômenos de falcisação das hemácias no interior dos órgãos, inclusive dos pulmões. A insuficiência renal deve ter sido secundária ao distúrbio circulatório.

Hipóteses diagnósticas - a) Insuficiência cardíaca congestiva; b) miocardiopatia dilatada de provável etiologia alcoólica; c) tromboembolismo pulmonar; d) cirrose hepática alcoólica; e) transtorno depressivo maior.

(Dr. Luís Antônio K. Bittencourt)

Necropsia

O coração pesou 477g. Havia cardiomegalia global com espessamento fibroso do epicárdio nas regiões anteriores dos ventrículos esquerdo e direito. O epicárdio da região apical do ventrículo esquerdo também apresentava essa mesma característica. A cardiomegalia se deve à dilatação das câmaras cardíacas, principalmente do ventrículo esquerdo (figs. 4A, 4B). Observou-se um afilamento da parede anterior do ventrículo esquerdo e do septo interventricular estendendo-se do plano da valva mitral até o ápice, acometendo, inclusive, o músculo papilar anterior. Conseqüentemente a esse afilamento do miocárdio, ocorreu a formação de aneurisma ventricular (fig. 4B). Havia ainda trombo aderido ao endocárdio (fig. 4B) e fibrose que substituiu as fibras miocárdicas.


Havia dominância da coronária direita. O lúmen coronário era irregular devido à presença de placas de aterosclerose. Na região proximal do ramo interventricular anterior da coronária esquerda a obstrução da luz chegou a aproximadamente 70%. Notou-se um trajeto intramiocárdico, iniciando-se em sua região proximal, se estendendo por 3cm e atingindo uma profundidade de 0,5cm (fig. 4C). Observou-se também que a obstrução aterosclerótica ocorreu no segmento proximal à ponte miocárdica, sendo que o trajeto sob esta não apresentou nenhum grau de obstrução.

Microscopicamente constatou-se que o afilamento do ventrículo esquerdo se deu às custas de fibrose densa. Havia hipertrofia de fibras nas áreas de miocárdio viável, com alterações degenerativas caracterizadas por afilamento, vacuolização e áreas de miocitólise. A presença de trombo organizado na área aneurismática foi comprovada.

A microscopia das coronárias confirmou placas ateroscleróticas, algumas com calcificações (figs. 5 A, 5 B).


Diagnósticos anatomopatológicos - a) Infarto do miocárdio cicatrizado; b) aterosclerose coronária; c) ponte miocárdica; d) cirrose hepática; e) úlceras gástricas; f) hemorragia e hiperemia da mucosa do intestino grosso; g) necrose tubular aguda renal.

(Acadêmico Luís Felipe Bachur e Dr. Eros Antonio de Almeida)

Comentários

O caso apresentado tem aspectos que merecem análise por suas características peculiares. O primeiro deles diz respeito ao diagnóstico da cardiopatia. Como salientado na discussão clínica, o diagnóstico de miocardiopatia dilatada se impõe, uma vez que os sinais e sintomas de insuficiência cardíaca estavam presentes e foram progressivos. O ecocardiograma, assim como o cateterismo cardíaco, comprovou o déficit contrátil, com fração de ejeção diminuída. As figuras 4A, 4B demonstram a dilatação ventricular grave, sendo o substrato anatômico do quadro clínico apresentado e discutido. No entanto, do ponto de vista clínico, não foi possível identificar a etiologia desta miocardiopatia. Pela definição da Organização Mundial da Saúde 1, as miocardiopatias dilatadas devem ser divididas em primárias e secundárias. No caso em questão a figura 4 mostra que a dilatação ventricular é secundária ao infarto ântero-septal extenso, não existindo nenhuma evidência histológica que aponte para a participação do álcool em sua etiologia.

As alterações histológicas degenerativas do miocárdio poderiam representar o substrato de possíveis lesões dependentes do álcool e devem ser valorizadas em função de se tratar de um grande etilista. No entanto elas são inespecíficas, uma vez que podem ocorrer secundariamente a outros mecanismos, como a hiperativação neuro-hormonal presente nos corações com grave disfunção ventricular e a isquemia relativa.

Apenas pelos dados clínicos, ficaria difícil realizar o diagnóstico de cardiopatia isquêmica. Contudo, havia alguns achados que poderiam levar ao seu diagnóstico. Dentre esses estava, principalmente, o tabagismo. Os estudos epidemiológicos abordando fatores de risco para infarto do miocárdio indicam o hábito de fumar como um dos mais importantes fatores associados ao desenvolvimento da doença aterosclerótica. Além disso, tratava-se de um homem, na quinta década de vida, com dor precordial que por não possuir as características para que se pudesse classificá-la como típica de angina de peito, acabou por não ser valorizada. Todavia, alguns dos exames subsidiários como o cateterismo cardíaco foram realizados, em parte por que a hipótese de coronariopatia específica foi aventada. A radiografia do tórax expressa evidente cardiomegalia global e congestão pulmonar, perfeitamente superponíveis às fotografias de macroscopia do coração vistas na figura 4 e compatíveis com o quadro clínico de insuficiência ventricular esquerda. Para o diagnóstico da etiologia da cardiomegalia, este exame não é específico quando analisado isoladamente, pois apenas permite a visualização do contorno externo das câmaras cardíacas. Neste caso, entretanto, este exame realizou os mesmos diagnósticos que aqueles mais sofisticados e recentes, como o ecocardiograma e o cateterismo cardíaco, mantendo-se atual e necessário às avaliações cardiológicas.

De todos os exames subsidiários, o eletrocardiograma foi aquele que mais se aproximou do diagnóstico revelado pela necropsia: o infarto do miocárdio, observado pela presença de supradesnivelamento e onda Q que poderia indicar presença de isquemia. No entanto, localizou o infarto apenas em região apical.

Clinicamente, a dilatação cardíaca já existia, no mínimo, 12 meses antes da primeira internação, época em que foi realizado o cateterismo cardíaco. Assim, o infarto já existia em sua forma cicatrizada e não foi revelado pelo eletrocardiograma. A nossa interpretação frente ao caso seria de que o eletrocardiograma é um exame capaz de revelar atividade elétrica e não a lesão estrutural responsável por ela, devendo ser interpretado dentro do contexto clínico. Todavia, ocorreu na região ântero-septal uma progressão lenta dos potenciais positivos, o que deve ser conseqüência dos achados vistos na figura 4. Essa região anterior sofre influência de múltiplos fatores que poderiam causar esta progressão lenta dos potenciais positivos, ou até mesmo sua ausência. Neste caso, um desses fatores é o bloqueio divisional ântero-superior do ramo esquerdo. Em trabalho de correlação eletrocardiográfica-necropsia, a propósito da doença de Chagas, Almeida e cols. 2 encontraram que, em casos de bloqueio divisional ântero-superior esquerdo, a não progressão dos potenciais positivos foi o padrão mais comumente observado. Carvalhal e cols. 3 também observaram que a mudança de posição do coração fazia desaparecer a onda R nas derivações precordiais anteriores. Até fatores extracardíacos como o tipo morfológico, obesidade, doenças pulmonares, derrame pericárdico podem influenciar esses vetores positivos, além do infarto do miocárdio em região anterior. Causa estranheza ainda, frente ao grande infarto, a presença de potenciais positivos na região ântero-septal, o que dificultou o diagnóstico eletrocardiográfico. Outros fatores que não o infarto podem ter contribuído para a manutenção dos potenciais positivos em região anterior. O fato de a lesão estrutural ser realidade comprovada e já existente por ocasião dos eletrocardiogramas permite a especulação de que os potenciais positivos, ora presentes, ora ausentes nos traçados eletrocardiográficos, não reflitam lesões estruturais, mas apenas distúrbios na condução do estímulo elétrico, justificando um infarto transmural sem onda Q, ou a não existência de infarto na presença de ondas Q.

O ecocardiograma, assim como o cateterismo cardíaco, apresentou resultados somatórios que se correlacionam exatamente com os achados da necropsia. Isto nos parece correto, uma vez que ambos os exames detectaram a cardiomegalia global com hipocontratilidade difusa. A acinesia ântero-septal e apical encontrada nos exames confirma a localização do infarto observado nas figuras 4. No entanto, predominou nas interpretações a idéia de uma miocardiopatia dilatada, não isquêmica, provavelmente de etiologia alcoólica. Contribuiu para este fato o resultado da coronariografia, dada como normal. Para interpretação deste dado temos a mesma opinião daquela emitida em relação ao infarto e ao eletrocardiograma. A placa de aterosclerose obstruindo, aproximadamente, 70% da DA não se formou em um intervalo de tempo de 12 meses entre o cateterismo e o óbito, uma vez que é exigido tempo bem maior para esta progressão 4,5. Embora a coronariografia seja o padrão ouro para avaliação da obstrução coronariana, em algumas situações esta avaliação não é possível, uma vez que circunstâncias técnicas podem influenciar o resultado do exame. Uma delas é o numero de posições em que se analisa as coronárias em um exame de rotina, como o feito neste caso. Apenas duas posições foram fotografadas, não havendo informações sobre as demais. Pode ser que nestes ângulos a lesão fosse impossível de ser identificada. Características próprias da placa aterosclerótica também podem ser responsáveis pela sua detecção ou não pela coronariografia, tais como a posição excêntrica ou não das mesmas.

O diagnóstico de infarto do miocárdio anterior não foi aventado em nenhuma ocasião devido à coronariografia normal. No entanto, poderia ter sido feito levando-se em contas as áreas de discinesia bem localizadas, em detrimento de miocardiopatia dilatada sem causa definida.

O último dado a ser discutido refere-se à causa do infarto. O fato deste se localizar em área de ponte miocárdica levanta a possibilidade desta ser responsável pelo evento isquêmico.

Há controvérsias sobre o significado que esta variação anatômica teria na circulação coronariana. Almeida 6, em revisão de casos de necropsia concluiu que as pontes miocárdicas são freqüentes, muito variáveis em extensão e profundidade e que não apresentam correlação com os infartos, ocorridos em seu território. Salientou-se, no entanto, que aquelas de grandes proporções seriam as que, eventualmente, poderiam gerar isquemia miocárdica. Neste caso, o fato de haver obstrução de 70% da DA poderia explicar a causa do infarto já que obstrução aterosclerótica é a causa mais freqüente de isquemia miocárdica, sendo a ponte apenas uma casualidade. Contudo, relatos de fisiologia da circulação coronariana em portadores desta variação anatômica apresentaram evidências de que pontes poderiam gerar isquemia 7-10. Estas evidências dizem respeito aos parâmetros verificados no segmento coronariano sob a banda muscular: redução do diâmetro sistólico, redução persistente do diâmetro diastólico, aumento de velocidade do fluxo sangüíneo, pico de velocidade do fluxo diastólico e redução da reserva coronariana. O fato de esses pacientes melhorarem dos sintomas com procedimentos clínicos e/ou cirúrgicos corretivos de impedimento de fluxo sangüíneo fala a favor da participação da ponte miocárdica na gênese da isquemia. Assim, frente aos novos conhecimentos sobre a dinâmica dos segmentos coronarianos sob e pré ponte devemos admitir a possibilidade de que estas sejam capazes de gerar condições para que ocorra isquemia miocárdica. Masuda e cols. 11 avaliaram expressão de agentes vasoativos em coronárias com pontes miocárdicas e concluíram que esta é menor para endotelina e angiotensina em segmentos coronarianos sob a ponte e maior nos segmentos pré ponte. Estes são agentes capazes de gerar disfunção endotelial quando em excesso, o que parece ser a base da cadeia de eventos fisiopatológicos que culminam com a aterosclerose 12,13. As pontes miocárdicas também são capazes de alterar o fluxo laminar do sangue no leito coronariano. Esta perturbação do fluxo laminar também contribui para gerar disfunção endotelial e, desta forma, favorecer o desenvolvimento de aterosclerose nos segmentos pré ponte miocárdica. No entanto, são relatados casos na literatura nos quais não se encontra aterosclerose pré-ponte miocárdica 14. Nesses casos e na vigência de infarto no território dependente da ponte, pode ser que a disfunção endotelial seja de porte suficiente para gerar espasmo coronariano, isquemia e, conseqüentemente, o infarto.

O único exame capaz de diagnosticar a ponte miocárdica em vida é a coronariografia, possível nas pontes de grandes dimensões, fato responsável por, no máximo, 5% de diagnóstico em serviços de cateterismo cardíaco 15. No entanto, quando o objetivo é identificar a ponte miocárdica, às vezes, em um mesmo serviço esta estatística aumenta, podendo chegar a 9,7% 16. No caso em discussão este diagnóstico não foi feito, embora a ponte atingisse grande dimensão, não havendo correlação positiva entre a coronariografia e a necropsia. A explicação para este fato pode ser a falta de contratilidade na parede anterior, observada ao cateterismo cardíaco, não havendo compressão sistólica no segmento coronariano sob a ponte miocárdica.

Devemos chamar a atenção para a correlação negativa entre o nível de colesterol plasmático e a aterosclerose coronariana. Não se discute a importância da dislipidemia como fator de risco para a aterosclerose coronariana, segundo estudos epidemiológicos e de prevenção de infarto do miocárdio 17-19. No entanto, este não é o único fator de risco, estando ao lado, principalmente, do tabagismo, diabetes e hipertensão arterial sistêmica 20. No caso em questão havia três fatores de risco: tabagismo intenso, sexo masculino e idade. Como houve a localização da maior placa no segmento coronariano pré-ponte, de acordo com a literatura, achamos que, desta forma, a ponte pode ter atuado na gênese da aterosclerose e se portado como um fator de risco adicional e localizador.

Finalmente, consideramos este caso didático, no sentido de chamar a atenção para causas menos freqüentes de isquemia miocárdica, principalmente quando os exames subsidiários não forem suficientemente claros para definirem a etiologia das dilatações cardíacas.

(Acadêmico Luís Felipe Bachur e Dr. Eros Antonio de Almeida)

Referências

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Editor da Seção: Alfredo José Mansur (ajmansur@incor.usp.br)

Editores Associados: Desidério Favarato (dclfavarato@incor.usp.br)

Vera Demarchi Aiello (anpvera@incor.usp.br)

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    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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