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Dispositivo de Assistência Ventricular Esquerda Seguido de Transplante Cardíaco

Transplante de Coração; Coração Auxiliar; Insuficiência Cardíaca; Choque Cardiogênico

Introdução

A insuficiência cardíaca (IC) é a principal causa de internação cardiovascular no Brasil1Bocchi EA, Marcondes-Braga FG, Ayub-Ferreira SM, Rohde LE, Oliveira WA, Almeida DR, et al; Sociedade Brasileira de Cardiologia. III Diretriz brasileira de insuficiência cardíaca crônica. Arq Bras Cardiol. 2009;93(1 supl.1):1-71.. Estima-se que cerca de 1-2% da população apresente IC, sendo metade desses indivíduos com fração de ejeção reduzida2Braunwald E. Heart failure. JACC Heart Failure. 2013;1(1):1-20..

Nos últimos 30 anos, apesar da melhora substancial no tratamento da IC crônica, a qualidade de vida e as taxas de sobrevida se mantêm limitadas, e parte significativa desses pacientes evolui com refratariedade ao tratamento-padrão e hospitalizações com taxas de óbito ou reinternações em seis meses em torno de 50%2Braunwald E. Heart failure. JACC Heart Failure. 2013;1(1):1-20..

O transplante cardíaco (TC) é considerado o tratamento-padrão em pacientes com IC avançada e refratária, entretanto é um procedimento limitado pelo número de doadores disponíveis e possíveis contraindicações que o inviabilizam, como a hipertensão pulmonar (HP) secundária à IC3Bacal F, Souza-Neto JD, Fiorelli AI, Mejia J, Marcondes-Braga FG, Mangini S, et al. II Diretriz brasileira de transplante cardíaco. Arq Bras Cardiol. 2009;94(1 supl. 1):e16-73..

Desde 1994, após a aprovação nos Estados Unidos do uso de dispositivos de assistência ventricular implantáveis (DAVi) para terapia a longo prazo em pacientes com IC avançada, houve aumento no interesse por esses dispositivos.

A melhora tecnológica dos DAVi, as evidências de melhora de sobrevida e qualidade de vida nos pacientes submetidos ao implante e as limitações do TC tornaram esses dispositivos uma ferramenta importante no tratamento de IC avançada4Kirklin JK, Naftel DC, Kormos RL, Stevenson LW, Pagani FD, Miller MA, et al. Fifth INTERMACS annual report: risk factor analysis from more than 6,000 mechanical circulatory support patients. J Heart Lung Transplant. 2013;32(2):141-56.,5Stewart GC, Stevenson LW. Keeping left ventricular assist device acceleration on track. Circulation. 2011;123(14):1559-68..

No Brasil, a terapia com DAVi para pacientes com IC é incipiente. Descreveremos o primeiro relato nacional na literatura de alta hospitalar após implante de DAVi e subsequente TC.

Relato do Caso

Paciente do sexo masculino, 41 anos de idade, com início de sintomas de IC e diagnóstico de miocardiopatia dilatada idiopática em 2008, permanecendo em classe funcional II de IC da New York Heart Association após otimização de terapia farmacológica. Não apresentava outras comorbidades associadas.

Em 2012, apresentou piora progressiva dos sintoma e sinais de IC, apesar de terapia com enalapril, carvedilol, espironolactona, ivabradina, digoxina e furosemida. Internado por choque cardiogênico, foi iniciada administração de inotrópico e vasodilatador endovenoso, com estabilização de parâmetros hemodinâmicos, porém permanecendo dependente de suporte inotrópico (Classificação INTERMACS 3).

Os parâmetros ecocardiográficos da internação estão detalhados na Tabela 1. Durante avaliação para TC, evidenciou-se HP importante com pressões de artéria pulmonar (PAP) de 96 × 33 (56) mmHg, gradiente transpulmonar de 25 e resistência vascular pulmonar de 6,5 wood, com pouca resposta a vasodilatadores sistêmico e pulmonar, sendo contraindicado para o procedimento e indicado implante de DAVi como terapia de destino.

Tabela 1
Ecocardiograma pré-implante de DAVi

O paciente apresentava poucos marcadores de risco para disfunção de ventrículo direito (VD), uma das principais complicações precoces de implante de DAVi. A pressão venosa central era de 15 mmHg, com insuficiência tricúspide leve. A avaliação ecocardiográfica (Tabela 1) não mostrou dilatação significativa do VD, e os principais parâmetros utilizados na avaliação de função do VD (TAPSE, variação fracional da área e onda S’) mostraram disfunção discreta da câmara.

Em agosto de 2012, foi submetido a implante do DAVi de fluxo contínuo (Berlim Heart INCOR®). Com fluxo do dispositivo em torno de 5 L/min e o manejo hemodinâmico inicial com inotrópicos, vasopressores, oxido nítrico e diuréticos ou cristaloides para ajuste de volemia, manteve parâmetros hemodinâmicos adequados nos pós-operatório. O regime de anticoagulação com heparina não fracionada e antiagregação plaquetária foi iniciado precocemente no primeiro pós-operatório.

No pós-operatório apresentou déficit neurológico focal transitório com tomografias computadorizadas de crânio seriadas sem evidência de alterações estruturais. Cursou ainda com pneumonia associada a ventilação mecânica, necessidade de intubação traqueal prolongada e insuficiência renal aguda (IRA) com necessidade de terapia de substituição renal transitória. Essas complicações foram revertidas totalmente durante a evolução na internação.

Foi reintroduzida terapia para IC com enalapril, betabloqueador, diurético de alça, espironolactona e sildenafil. Foi mantido com varfarina e antiagregação plaquetária com AAS e clopidogrel, e recebeu alta hospitalar após 137 dias do implante, sem dependência funcional e em boas condições clínicas.

Avaliações ecocardiográficas sequenciais após o implante do DAVi não mostraram piora de função ventricular direita. Observou-se, ainda, queda expressiva da pressão sistólica de artéria pulmonar na evolução (Tabela 2), o que eliminou o fator que contraindicara o TC. Após oito meses do implante do dispositivo, o paciente expressou vontade de ser listado em fila de TC.

Tabela 2
Evolução de pressão sistólica pulmonar estimada por ecocardiograma

Na avaliação imunológica do paciente, o painel imunológico (HLA I/II por método de Luminex®), que antes do implante de DAVi era 0%/0%, modificou-se para 0%/23%.

Após inclusão em fila de TC, evoluiu com sinais inflamatórios na região subxifoide e infecção do sistema do dispositivo não resolvida com antibioticoterapia, sendo priorizado em fila de TC por complicação infecciosa do DAVi.

Após cerca de 14 meses do implante, o paciente foi submetido a TC com sucesso, sem disfunção de enxerto ou rejeições agudas. Apresentou complicações infecciosas e IRA revertidas, recebendo alta hospitalar após 75 dias do procedimento. Atualmente, segue em regime ambulatorial e com bom status funcional.

Discussão

O registro INTERMACS (Interagency Registry for Mechanically Circulatory Support) contabiliza cerca de 7.000 DAVi implantados no mundo desde 2006, sendo que após 2010 o número de implantes anual aumentou 10 vezes em relação aos primeiros anos do registro4Kirklin JK, Naftel DC, Kormos RL, Stevenson LW, Pagani FD, Miller MA, et al. Fifth INTERMACS annual report: risk factor analysis from more than 6,000 mechanical circulatory support patients. J Heart Lung Transplant. 2013;32(2):141-56.,5Stewart GC, Stevenson LW. Keeping left ventricular assist device acceleration on track. Circulation. 2011;123(14):1559-68..

Esta é a primeira publicação de um paciente a receber alta hospitalar, no Brasil, após implante de DAVi e subsequente TC. A primeira experiência com assistência circulatória mecânica desenvolvida no Brasil data de 1994, quando um paciente com miocardiopatia chagásica recebeu um dispositivo de assistência circulatória como ponte para transplante6Bocchi EA, Vieira ML, Fiorelli A, Hayashida S, Mayzato M, Leirner A, et al. Perfil hemodinâmico e neuro-hormonal durante assistência circulatória com ventrículo artificial heterotópico seguida de transplante cardíaco. Arq Bras Cardiol. 1994;62(1):23-7..

Os dispositivos de longa permanência são indicados para: planejamento estratégico de longo prazo em pacientes candidatos a TC (ponte para transplante) objetivando melhora da funcionalidade e qualidade de vida, em comparação à longa permanência em fila de transplante; em pacientes em que a candidatura a TC é incerta ou marginal (ponte para candidatura); como terapia de destino para aqueles não candidatos ou na indisponibilidade de TC7Feldman D, Pamboukian SV, Teuteberg JJ, Birks E, Lietz K, Moore SA, et al; International Society for Heart and Lung Transplantation. The 2013 International Society for Heart and Lung Transplantation Guidelines for mechanical circulatory support: executive summary. J Heart Lung Transplant. 2013;32(2):157-87..

Os primeiros dispositivos de longa permanência introduzidos na prática clínica foram pulsáteis. O REMATCH Trial randomizou 129 pacientes com IC CF-IV, não candidatos a TC, para receberem o dispositivo HeartMate XVE™ ou permanecer em terapia medicamentosa padrão. O implante do dispositivo gerou redução de 48% do risco de óbito em um ano8Rose EA, Gelijns AC, Moskowitz AJ, Heitjan DF, Stevenson LW, Dembitsky W, et al; Randomized Evaluation of Mechanical Assistance for the Treatment of Congestive Heart Failure (REMATCH) Study Group. Long-term use of a left ventricular assist device for end-stage heart failure. N Engl J Med. 2001;345(20):1435-43.. O HEARTMATE II Trial randomizou 200 pacientes com IC avançada não elegíveis para TC para receber dispositivo de fluxo contínuo versus fluxo pulsátil. A sobrevida em dois anos foi de 24% no grupo pulsátil versus 58% no grupo fluxo contínuo9Slaughter MS, Rogers JG, Milano CA, Russell SD, Conte JV, Feldman D, et al; HeartMate II Investigators. Advanced heart failure treated with continuous-flow left ventricular assist device. N Engl J Med. 2009;361(23):2241-51..

A maior parte dos implantes de DAVi atualmente é como ponte para TC em pacientes com choque cardiogênico que necessitam de inotrópico, permanecendo estáveis clinicamente (classificação INTERMACS 3) ou com piora clínica progressiva (INTERMACS 2). Nota-se, entretanto, aumento progressivo nos últimos anos do número de implantes em pacientes menos graves e como terapia de destino para aqueles não candidatos a TC4Kirklin JK, Naftel DC, Kormos RL, Stevenson LW, Pagani FD, Miller MA, et al. Fifth INTERMACS annual report: risk factor analysis from more than 6,000 mechanical circulatory support patients. J Heart Lung Transplant. 2013;32(2):141-56..

O paciente descrito foi considerado inicialmente candidato a implante de DAVi como terapia de destino devido a HP importante e contraindicação ao TC. Entretanto, após 120 dias do implante, notou-se redução importante dos valores de PAP, chegando a níveis próximos da normalidade. Essa diminuição de pressões pulmonares em pacientes submetidos a implante de DAVi já foi descrita previamente, sendo que alguns autores defendem o implante de DAVi como terapia para diminuição de pressões pulmonares em possíveis candidatos a TC com HP1010 Beyersdorf F, Schlensak C, Berchtold-Herz M, Trummer G. Regression of "fixed" pulmonary vascular resistance in heart transplant candidates after unloading with ventricular assist devices. J Thorac Cardiovasc Surg. 2010;140(4):747-9..

Apesar da sensibilização imunológica após o implante do DAVi, não ocorreram rejeições agudas após o TC. As transfusões de hemoderivados após o implante podem estar relacionadas com essa posterior sensibilização, entretanto parece existir relação entre implante de DAVi e aloimunização1111 Urban M, Gazdic T, Slimackova E, Pirk J, Szarszoi O, Maly J, et al. Alloimmunosensitization in left ventricular assist device recipients and impact on posttransplantation outcome. ASAIO J. 2012;58(6):554-61..

caso mostra que o implante de DAVi é exequível em pacientes com IC avançada e contraindicação para TC no Brasil. A HP inicial não interferiu no resultado do implante, e a posterior normalização da PAP possibilitou o TC com sucesso.

No Brasil, o número de implantes de DAVi é substancialmente inferior aos implantados nos Estados Unidos e Europa. Apesar das evidências de melhora de sobrevida e qualidade de vida nos pacientes submetidos a implante de DAVi, os custos diretos e indiretos dessa terapia são ainda elevados e o procedimento não é isento de complicações. Faz-se necessária uma avaliação de custo-efetividade para a seleção criteriosa dos pacientes que se beneficiariam dessa terapia no nosso meio, visto a incipiente utilização desses dispositivos no Brasil.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2014
  • Revisado
    02 Jun 2014
  • Aceito
    22 Jul 2014
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