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Cardiomiopatia mitocôndrica hipertrófica associada à síndrome de Wolff-Parkinson-White

RELATO DE CASO

Cardiomiopatia mitocôndrica hipertrófica associada à síndrome de Wolff-Parkinson-White

Elsa Silva-Oropeza; Esperanza García Reyes; Lydia Rodríguez Hernández; Luisa Beirana Palencia

Centro Médico Nacional SXXI, IMSS. México, D.F. México - México, México

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Elsa Silva Oropeza, MD, Ejército Nacional 475, 3er piso Col Granada CP 11520 México, D.F., México Email: silva_elsa@terra.com.mx

Atualmente, diversas doenças cardíacas são reconhecidas como de origem genética. As mutações em genes, que codificam várias proteínas do sarcômero com desarranjo miofibrilar e dos miócitos, e a mutação associada à síndrome de Wolff-Parkinson-White, identificada no cromossomo 7q3 como resultado de uma mutação pontual no gene, que codifica uma subunidade reguladora de AMP - proteína quinase ativada, expressa em hipertrofia ventricular, pré-excitação ventricular ou ambas, são dois exemplos de cardiomiopatia hipertrófica familiar 1-3. Outras doenças cardíacas congênitas, nas quais a cardiomiopatia hipertrófica ou dilatada e distúrbios elétricos, podem estar presentes em cerca de 20 a 30% de pacientes, incluem algumas doenças mitocondriais4-6. Apresentamos um caso de uma recém nascida com taquicardia persistente secundaria à síndrome de Wolf-Parkinson-White, na qual hipertrofia importante e outras anormalidades sistêmicas foram atribuídas à doença mitocondrial.

Recém-nascida de 38 semanas de gestação, nascida por cesárea causada por freqüência cardíaca de 300 bpm. Aos 25 dias de idade foi transferida para centro pediátrico, devido à persistente taquicardia apesar do uso de digoxina e propranolol, e apresentar hipertensão sistêmica de 140/80 mmHg. Suspensa a terapia com digoxina, pois 400 mg/m2/dia de propranolol e propafenona não controlaram a taquicardia, foram prescritas hidrazida e furosemida que normalizaram gradualmente a pressão arterial. Eletrocardiograma de superfície e as gravações de Holter demonstraram síndrome de Wolf-Parkinson-White de lado esquerdo, aumento significante atrial e biventricular, e repolarização ventricular anormal (fig. 1). A radiografia de tórax mostrou cardiomegalia moderada e, o ecocardiograma, espessamento importante e universal da parede, sem obstruções do fluxo de saída ventricular, fração de ejeção ventricular esquerda (FEVE) diminuída em 56% e fração de encurtamento (FE) de 24% (fig. 2).



A propafenona foi substituída pela amiodarona i.v. na dosagem diária de até 36,8 mg/kg/dia, e bolus de adenosina de 300 mcg/kg, que controlaram a arritmia transitoriamente. A glicose plasmática, os testes de função tiroideana e hepática foram normais, mas as enzimas séricas encontravam-se elevadas: desidrogenase lática 687 U/L (normal <190); creatina quinase 1612 U/L (normal <232), e aspartato aminotransferase 147 U/L (normal <37). Devido à determinação de lactato sérico anormal (3.8 umol/L, normal <2.0), foi feita biópsia de músculo esquelético para avaliar a atividade enzimática do complexo da cadeia respiratória.

A criança foi transferida para nosso hospital de cardiologia, com 71 dias de vida, apresentando taquicardia de 300 bpm, pressão arterial de 90/60 mm/Hg, cianose leve, diaforese e hepatomegalia 3cm abaixo da reborda costal. Devido a resistência às drogas antiarrítmicas (doses de manutenção da amiodarona 17 mg/kg/dia, e propranolol 1,5mg qid), dados clínicos de insuficiência cardíaca, derrame pericárdico discreto, e disfunção ventricular progressiva (FEVE variando 45-54%, FE 21%), a ablação com cateter de radiofreqüência tornou-se obrigatória.

Submetida a estudo eletrofisiológico após 10 dias, com intubação orotraqueal e uso de midazolam, fentanil e propofol i.v., foram introduzidos 3 cateteres multipolares 5F por acesso femoral percutâneo. Hemorragia na virilha, acidose e hipotermia seguidas de taquicardia ventricular e fibrilação e, finalmente, bloqueio atrioventricular avançado dependente de marcapasso, obrigou-nos a abandonar o procedimento. Marcapasso prévio no ápice ventricular direito demonstrou intervalo atrioventricular extremamente pequeno nos eletrodos sinocoronarianos distais, compatíveis com via acessória atrioventricular esquerda (fig.1). A paciente evolui com disfunção renal, pressão arterial média de 50 mmHg com a infusão de dopamina-dobutamina, além de taquicardia sinusal intermitente e taquicardia atrioventricular reentrante, respondendo mal à adenosina, à infusão de amiodarona. Foi registrado episódio prolongado de convulsão, apesar do uso profilático de fenitoina, e o paciente veio a falecer 48h após o procedimento.

Achados da necropsia parcial (coração e pulmão) incluíram: cardiomegalia (73 g; normal para a idade, 28 g), devido à hipertrofia biventricular, com espessamento médio da parede de 5 mm para o ventrículo direito e 14 mm para o ventrículo esquerdo (normal para a idade, 1,80 mm e 4,43 mm, respectivamente). Coloração com hematoxilina-eosina e PAS revelaram alterações vasculares grosseiras nos miócitos, e descartaram armazenamento lipídico ou de glicogênio. A microscopia eletrônica demonstrou perda extensa de miofibrilas e aumento de mitocôndrias, em número e tamanho, com severas anormalidades morfológicas e irregularidades nas cristas importantes, fragmentadas ou apresentando arranjo periférico ou concêntrico (fig. 3). A análise espectrofotométrica da biópsia de músculo esquelético revelou disfunção na cadeia respiratória causada pela atividade reduzida do complexo I-III: NADH (nicotinamida adenina dinucleotide desidrogenase) - citocromo reductase (3,81 nmol/min/mg, normal 36-68); os complexos I a V foram todos normais.


Discussão

Tradicionalmente, os pacientes com síndrome de Wolf-Parkinson-White não apresentam outras anormalidades cardíacas estruturais, entretanto, a cardiomiopatia hipertrófica já foi descrita, associada à síndrome, como doença reconhecidamente hereditária 1,2. A hipertrofia não é reconhecida geralmente antes de um ano de idade, e o diagnóstico diferencial de cardiomiopatia hipertrófica familiar na infância deve ser feito, incluindo histórico de diabetes, síndrome de Noonan na qual a obstrução do fluxo de saída direito é predominante, e distúrbios metabólicos, como a doneça de Pompe 7. Nenhum destes diagnósticos foi feito em nosso recém-nascido.

Atualmente, diversas doenças mitocondriais importantes são descritas nos orgãos ricos em mitocôndria: cérebro, coração, músculo esquelético, predominantemente envolvidos, secundariamente às mutações do DNA mitocondrial (mtDNA) 4,5. A cardiomiopatia hipertrófica associada à prolifereção mitocondrial é reconhecida como comum em doença de MELAS, uma encefalopatia mitocondrial, com acidose láctica e episódios semelhantes à síncope 6,8,9. Além disso, em duas grandes séries de pacientes com doença de MELAS, a síndrome de Wolf-Parkinson-White também esteve associada6,8.

Apesar de não se ter identificado a mutação de DNA, níveis altos de lactato sérico, convulsões, atividade reduzida do complexo I-III da via de fosforilação oxidativa mitocondrial no músculo esquelético, e elevação das enzimas séricas de miocárdio, provavelmente relacionada ao dano avançado do tecido miocárdio, sustentam essa condição. A manifestação precoce de hipertrofia cardíaca observada em nosso caso poderia ser uma expressão de um nível alto de mtDNA mutante, como descrito em outros casos, nos quais predominantes ou exclusivas anormalidades musculares esqueléticas ou cardíacas acham-se presentes 4,5,9,10.

O estudo eletrofisiológico representa um verdadeiro desafio para o diagnóstico e o tratamento; apesar de ter sustentado a existência de um caminho alternativo, infelizmente, uma necessária tentativa de ablação com cateter de rádio-frequência devido a refratoriedade à medicação e progresso da disfunção cardíaca, não pôde ser realizada, pois assim, teríamos provavelmente conseguido modificar seu resultado clínico, uma vez que a taquicardia persistente contribuiu para o agravamento da disfunção miocárdica, principal problema de sobrevida nesses pacientes 6.

Outras duas síndromes mitocondriais associadas a mutações de mtDNA podem apresentar comprometimento cardíaco: MERRF, o acrônimo de epilepsia miocrônica com ruptura de fibras vermelhas, e a síndrome de Kearns-Sayre. A primeira pode significar clinicamente cardiomiopatia hipertrófica ou cardiomiopatia dilatada, e, a última, que envolve quase exclusivamente bloqueio cardíaco permanente, apesar de a cardiomiopatia ser incomum. É interessante que a síndrome de Wolf-Parkinson-White não foi relacionada a essas síndromes 5,8. Em contraposição, bloqueio atrioventricular transiente, registrado no presente caso, foi atribuído a drogas anestésicas e outras condições clínicas, que tiveram influência sobre o sistema de condução cardíaca.

Em resumo, este é um caso incomum de recém-nascido com cardiomiopatia hipertrófica grave e taquicardia atrioventricular reentrante incontrolável, secundária à síndrome de Wolf-Parkinson-White, na qual as anormalidades da mitocôndria miocárdica e disfunção de diversos orgãos confirmam a doença mitocondrial. Uma avaliação clínica integral da cardiomiopatia hipertrófica atípica deve incluir análise bioquímica e molecular à procura de uma alteração genética.

Referências

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Recebido para Publicação em 10/3/03

Aceito em 13/5/03

  • Endereço para correspondência
    Elsa Silva Oropeza, MD, Ejército Nacional 475, 3er piso
    Col Granada CP 11520 México, D.F., México
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jun 2004
    • Data do Fascículo
      Maio 2004
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