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Cardiologia Nuclear em 2020 - Perspectivas da Nova Diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia

Palavras-chave
Doença da Artéria Coronária/diagnóstico por imagem; Imagem de Perfusão Miocárdica/métodos; Prognóstico; Tecnologia Biomédica/tendências; Tomografia Computadorizada por Tomografia de Emissão de Pósitrons/tendências; Tomografia Computadorizada de Emissão de Foton Único/métodos

To get to know, to discover, to communicate.

François Arago

A frase do físico francês François Arago é uma das mais poderosas sínteses da atividade científica, que se inicia com a busca do conhecimento existente, se segue da descoberta de novas informações e culmina com a comunicação destas em ato contínuo. Este fluxo é fundamental para que o progresso científico alcance e transforme a sociedade. Deste modo, na área médica, as diretrizes são consideradas essenciais para organização e norteamento de condutas e de conhecimentos de forma estruturada e dentro de método preestabelecido. A elaboração de diretrizes atualizadas e consistentes é uma das tarefas mais importantes de uma sociedade de especialidade médica e envolve um esforço considerável de múltiplos especialistas no campo do conhecimento, revisores, diagramadores, entre outros. Além de tarefa laboriosa e complexa, a elaboração de recomendações tem contra si o fluxo ininterrupto de publicações que surgem todos os dias e que podem mudar o estado atual do conhecimento. Devemos destacar a amplitude, a atualidade e a extensa aplicabilidade dessa Diretriz de Cardiologia Nuclear11 Mastrocola LE, Amorim BJ, Vitola JV, Brandão SCS, Grossman GB, Lima RSL et al. Atualização da Diretriz Brasileira de Cardiologia Nuclear - 2020. Arq Bras Cardiol. 2020; 114(2):325-429. elaborada em conjunto pela Área de Cardiologia Nuclear do Departamento de Ergometria, Exercício, Cardiologia Nuclear e Reabilitação Cardiovascular (DERC), pelo Departamento de Imagem Cardiovascular (DIC) da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e pela Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN).

Em pouco mais de uma década, o manejo da doença arterial coronariana (DAC) crônica passou por uma modificação paradigmática em direção ao tratamento clínico otimizado que consistentemente reduz a progressão da aterosclerose e previne trombose e síndrome coronariana aguda.22 Stone GW, Hochman JS, Williams DO, Boden WE, Ferguson TB, Harrington RA, et al. Medical therapy with versus without revascularization in stable patients with moderate and severe ischemia the case for community equipoise. J Am Coll Cardiol. 2016; 67(1):81-99. A revascularização miocárdica é indicada em casos agudos, naqueles de mais alto risco e em pacientes cujos sintomas sejam progressivos ou refratários ao tratamento medicamentoso.33 Boden W, O'Rourke R, Teo K, Hartigan, Maron D, Kostuk E., et al. Optimal medical therapy with or without PCI for stable coronary disease. N Engl J Med. 2007;356(15):503-1.,44 Knuuti J, Wijns W, Saraste A, Capodanno D, Barbato E, Funck-Brentano C, et al. 2019 ESC Guidelines for the diagnosis and management of chronic coronary syndromes. Eur Heart J. 2019 Aug 31;pii:ehz425. (Epub ahead of print) A Diretriz em Cardiologia Nuclear da SBC se une à Diretriz de Síndrome Coronariana Crônica, reforçando a importância dos métodos funcionais no diagnóstico da etiologia dos sintomas dos pacientes com suspeita de DAC, na identificação dos pacientes de maior risco, na tomada de decisão terapêutica e no acompanhamento da resposta ao tratamento.44 Knuuti J, Wijns W, Saraste A, Capodanno D, Barbato E, Funck-Brentano C, et al. 2019 ESC Guidelines for the diagnosis and management of chronic coronary syndromes. Eur Heart J. 2019 Aug 31;pii:ehz425. (Epub ahead of print) A dúvida se a revascularização miocárdica deva ser a estratégia inicial de manejo nos pacientes com DAC crônica e isquemia moderada a grave55 Reynolds HR, Picard MH, Hochman JS. Does ischemia burden in stable coronary artery disease effectively identify revascularization candidates? Circ Cardiovasc Imaging. 2015;8(5):1-8. parece ter sido respondida com a apresentação do estudo ISCHEMIA, que não demonstrou benefício da revascularização de rotina, quando adicionada ao tratamento medicamentoso otimizado.66 Maron DJ, Hochman JS, Brien SMO, Reynolds R, Boden WE, Stone GW, et al. International Study of Comparative Health Effectiveness with Medical and Invasive Approaches (ISCHEMIA) trial: rationale and design. Am Heart J. 2018;201:124-35 Entretanto, destacamos o papel da revascularização com relação à melhora de sintomas e de qualidade de vida, o que reforça a importância da tomada de decisão compartilhada e individualizada nos pacientes que se mantêm sintomáticos a despeito do tratamento clínico otimizado. É importante ressaltar que diversas situações excluídas do estudo ISCHEMIA são contempladas em detalhes no texto da Diretriz de Cardiologia Nuclear11 Mastrocola LE, Amorim BJ, Vitola JV, Brandão SCS, Grossman GB, Lima RSL et al. Atualização da Diretriz Brasileira de Cardiologia Nuclear - 2020. Arq Bras Cardiol. 2020; 114(2):325-429. São elas: pacientes com lesão de tronco de coronária, síndrome coronariana aguda recente, angioplastia nos últimos 12 meses, fração de ejeção < 35% e com sintomas progressivos ou instáveis.

É importante ressaltar que a Cardiologia Nuclear não se restringe apenas ao estudo da doença coronariana, mas passou por uma revolução nos últimos anos, com avanços nos equipamentos, softwares e traçadores que a tornam importante no manejo de diversas condições para as quais o cardiologista não dispunha anteriormente de ferramentas para atender suas necessidades. A Diretriz de Cardiologia Nuclear11 Mastrocola LE, Amorim BJ, Vitola JV, Brandão SCS, Grossman GB, Lima RSL et al. Atualização da Diretriz Brasileira de Cardiologia Nuclear - 2020. Arq Bras Cardiol. 2020; 114(2):325-429. faz uma abordagem compreensiva e prática destas novas aplicações para o cardiologista. Na Figura 1 apresentamos algumas das novas aplicações em que a Cardiologia Nuclear tem importante significado prático.

Figura 1
Novas aplicações da medicina nuclear em Cardiologia em que o uso da técnica fornece informações diagnósticas, prognósticas ou guia a tomada de decisão terapêutica.

Entre as novas aplicações da Cardiologia Nuclear destacamos o uso da tomografia computadorizada por emissão de pósitrons (PET-CT) com 18-fluorodesoxiglicose (18F-FDG) e da cintilografia com leucócitos marcados. Estas foram as técnicas de medicina nuclear incluídas nos algoritmos e consensos internacionais de investigação de endocardite infecciosa em próteses valvares e na suspeita de infecção em dispositivos implantáveis como marca-passos e desfibriladores.77 Habib G, Lancelloti P, Antunes M , Bongiorni MG, Casalta JP, Del Zotti et al. et al. Guidelines for the management of infective endocarditis. Eur Heart J. 2015;36(44):3075-123. A Diretriz de Cardiologia Nuclear da SBC aborda, com detalhes, as bases do uso destas técnicas na prática cardiológica moderna.

Outra importante nova recomendação de uso da PET-CT com 18F-FDG contemplada na diretriz é na sarcoidose cardíaca. Além de contribuição decisiva para o diagnóstico de sarcoidose cardíaca,88 Bois JP, Muser D, Chareonthaitawee P. PET/CT Evaluation of Cardiac Sarcoidosis. PET Clin. 2019;14(2):223-32. a PET-CT é crucial para o acompanhamento da resposta ao tratamento, sendo recomendado o seu uso seriado para guiar a administração de imunossupressores e anti-inflamatórios.99 Ramirez R, Trivieri M, Fayad ZA, Ahmadi A, Narula J, Argulian E. Advanced imaging in cardiac sarcoidosis. J Nucl Med. 2019;60(7):892-8.

A Cardiologia Nuclear ganhou grande importância no diagnóstico de amiloidose cardíaca por depósitos de transtirretina. A positividade de uma cintilografia com traçadores ósseos, como o pirofosfato de 99m-tecnécio, na ausência da pesquisa de cadeias leves no sangue e urina, permite o diagnóstico de amiloidose cardíaca por transtirretina e se correlaciona com a biópsia cardíaca, podendo evitar a realização desta. Com o desenvolvimento de tratamentos que retardam o depósito da proteína transtirretina no coração e que reduzem a mortalidade e a morbidade, a cintilografia miocárdica com pirofosfato passou a ter relevância adicional.1010 Gillmore JD, Maurer MS, Falk RH, Merlini G, Damy T, Dispenzieri A, et al. Nonbiopsy diagnosis of cardiac transthyretin amyloidosis. Circulation. 2016;133(24):2404-12.,1111 Treglia G, Glaudemans AWJM, Bertagna F, Hazenbeg BPC, Erba P, Giubbini R, et al. Diagnostic accuracy of bone scintigraphy in the assessment of cardiac transthyretin-related amyloidosis: a bivariate meta-analysis. Eur J Nucl Med Mol Imaging. 2018;45(11):1945-55.

A utilização da cintilografia cardíaca com M-iodobenzilguianidina (123I-MIBG) tem como fundamento a oportunidade única de avaliar o componente autônomo simpático da inervação cardíaca. O comprometimento adrenérgico identificado com esta técnica permite detectar precocemente a cardiotoxicidade ligada ao tratamento do câncer, estratificar o risco de morte súbita em pacientes com insuficiência cardíaca1212 Narula J, Gerson M, Thomas GS, Cerqueira MD, Jacobson AF. (123)I-MIBG imaging for prediction of mortality and potentially fatal events in heart failure: The ADMIRE-HFX Study. J Nucl Med. 2015;56(7):1011-8. e auxiliar no diagnóstico da síndrome de Tako-Tsubo.1313 Sabra MMM, Costa FS, de Azevedo JC, Mesquita CT, Verberne HJ. Myocardial perfusion scintigraphy during chest pain: An atypical presentation of takotsubo cardiomyopathy? J Nucl Cardiol. 2019;26(2):674-6.

Um capítulo moderno e em evolução da Cardiologia Nuclear, abordado na Diretriz da SBC, é a avaliação da microcirculação. Dados do estudo Core 320 e do próprio estudo ISCHEMIA vieram confirmar que um número significativo de pacientes tem angina e isquemia, na ausência de obstruções coronarianas.1414 Schuijf JD, Matheson MB, Ostovaneh MSMR. Ischemia and no obstructive stenosis (INOCA) at CT angiography, ct myocardial perfusion, invasive coronary. Radiology. 2019;(5):1-13. A avaliação destes pacientes com técnicas de PET-CT permitiu identificar a presença de isquemia microvascular como a responsável pela maioria dos casos, o que implica prognóstico adverso e tratamento específico.1515 Bairey Merz CN, Pepine CJ, Walsh MN, Fleg JL. Ischemia and no obstructive coronary artery disease (INOCA): developing evidence-based therapies and research agenda for the next decade. Circulation. 2017;135(11):1075-92. A avaliação da reserva de fluxo por PET-CT é a técnica mais adequada para investigação destes casos, estando recomendada em diretrizes internacionais e na Diretriz da SBC. Com o rápido avanço de máquinas de alta performance com detectores sólidos de cádmio-zinco-telurido (CZT) e softwares aprimorados, as novas câmeras de tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT) permitem imagens de alta qualidade e com baixa exposição à radiação. Trata-se de importante contribuição para avaliação destes casos, com estudos demonstrando a sua validação em comparação com equipamentos de PET-CT.1616 Agostini D, Roule V, Nganoa C, Roth N, Baavour R, Parienti JJ et al. First validation of myocardial flow reserve assessed by dynamic 99mTc-sestamibi CZT-SPECT camera: head to head comparison with 15O-water PET and fractional flow reserve in patients with suspected coronary artery disease. The WATERDAY study. Eur J Nucl Med Mol Imaging. 2018; 45(7):1079-90. O reconhecimento da angina microvascular reforça a importância das técnicas funcionais e de que uma avaliação da DAC centrada na anatomia da doença pode levar a subdiagnóstico nos casos de angina microvascular e a excesso de tratamento nos casos em que as lesões anatômicas não tenham significado funcional.

Uma última parte a se destacar é a interseção das diversas modalidades de imagem com equipamentos híbridos e softwares que permitem obtenção e análise de dados de Cardiologia Nuclear em concomitância com tomografia computadorizada ou ressonância magnética. A integração de informações de exames de diversas modalidades em equipamentos de SPECT-CT, PET-CT e PET-RM potencializa a quantidade e a qualidade de informações disponíveis para os cardiologistas tomarem decisões no manejo de pacientes. Mesmo a integração de informações de exames adquiridos em equipamentos separados pode aumentar o potencial de estratificação de risco e melhorar o manejo dos pacientes.1717 Siqueira FPR, Mesquita CT, Santos AAS, Nacif MS. Relationship between calcium score and myocardial scintigraphy in the diagnosis of coronary disease. Arq Bras Cardiol . 2016;107(4):365-74. Estudos em andamento irão permitir a melhor definição de quais grupos de pacientes irão se beneficiar de modo rotineiro destas estratégias.

Em conclusão, a Cardiologia avançou muito nos últimos anos e, no mesmo passo, a cardiologia nuclear. A nova Diretriz de Cardiologia Nuclear da SBC nos permite o conhecimento de descobertas e publicações mais significativas, de modo estruturado, em recomendações que impactam a prática da Cardiologia moderna.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Fev 2020
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