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Resistência à proteína C ativada e doença arterial isquêmica em jovem

Resumos

A avaliação da resistência à ação da proteína C ativada (rPCA), causada por mutação no fator V (fator V de Leiden), é fator de risco importante para tromboembolia venosa, cujo papel como geradora de obstruções arteriais in situ é um tema ainda controverso. O caso clínico de um jovem com história de coronariopatia, múltiplas lesões cerebrovasculares e doença arterial periférica é relatado. A investigação diagnóstica apontou a rPCA como possível etiologia.

Trombofilia; fator V; coagulação sanguínea; resistência a proteína C; arteriopatias oclusivas


The assessment of activated protein C resistance (APCR) caused by mutations in factor V (factor V Leiden) is an important risk factor for venous thromboembolism, of which role as the originator of arterial obstructions in situ is still a controversial subject. The clinical case of a young patient with history of coronariopathy, multiple cerebrovascular lesions and peripheral artery disease is reported. The diagnostic investigation showed APCR as the possible etiology.

Thrombophilia; factor V; blood coagulation; protein C resistance; arterial occlusive diseases


RELATO DE CASO

Resistência à proteína C ativada e doença arterial isquêmica em jovem

Igor Alexandre Côrtes de MenezesI; Rafael Fernandes RomaniI; Yuki Schneider AokiI; João Caetano AbdoI; Mauricio CarvalhoI, II

IHospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná

IIPontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR, Brasil

Correspondência Correspondência: Mauricio Carvalho Hospital de Clínicas da UFPR Rua General Carneiro, 181 Departamento de Clínica Médica - 10º andar 80060-900 - Curitiba - Paraná - Brasil E-mail: carvalho@mais.sul.com.br

RESUMO

A avaliação da resistência à ação da proteína C ativada (rPCA), causada por mutação no fator V (fator V de Leiden), é fator de risco importante para tromboembolia venosa, cujo papel como geradora de obstruções arteriais in situ é um tema ainda controverso. O caso clínico de um jovem com história de coronariopatia, múltiplas lesões cerebrovasculares e doença arterial periférica é relatado. A investigação diagnóstica apontou a rPCA como possível etiologia.

Palavras-chave: Trombofilia, fator V, coagulação sanguínea, resistência a proteína C, arteriopatias oclusivas.

Introdução

Trombofilias podem ser conceituadas como defeitos da hemostasia, herdados ou adquiridos, que ocasionam hipercoagulabilidade. Dentre os mais citados, destacam-se o anticorpo anticardiolipina, o anticoagulante lúpico, as deficiências de proteínas C e S, o fator V de Leiden (FVL) e a mutação G20210A do gene da protrombina.

O FVL provém da mutação do fator V, que leva à resistência à ação da proteína C ativada (rPCA) e à consequente maior formação de trombina1. É considerado uma das anormalidades mais comuns do sistema de coagulação, com prevalência de 3%-5% na população caucasiana2. Sua detecção é obtida idealmente por reação em cadeia da polimerase (PCR) e polimorfismo de restrição. Pode também ser avaliado por método coagulométrico, mais disponível clinicamente e com excelente sensibilidade e especificidade, quando comparado à técnica de PCR3.

Diversos estudos comprovaram a associação da rPCA com o embolismo venoso. Entretanto, sua relação com eventos arteriais isquêmicos ainda é bastante controversa, apesar de muitos pesquisadores se debruçarem sobre o tema há mais de 10 anos1.

O objetivo do presente estudo é relatar o caso clínico de um paciente com eventos arteriais isquêmicos múltiplos (coronariopatia, doença cerebrovascular e doença arterial periférica), sem fatores de risco tradicionais e com rPCA.

Relato do caso

Vigilante de 38 anos, casado, pardo, natural de Iguatu, município do Ceará, e procedente de Curitiba, Paraná, subitamente apresentou, em 1999, aos 29 anos de idade, dificuldade de fala, queda para o lado esquerdo do corpo, tonturas e desorientação. Foi tratado como portador de acidente vasculoencefálico criptogênico, com recuperação neurológica total. Em 2005, realizou tomografia de crânio que revelou áreas hipodensas em cerebelo, lobo occipital, cápsula interna e região talâmica (Figura1).


O paciente permaneceu assintomático até abril de 2007, quando apresentou dor torácica retroesternal intensa e queimação. Foi realizada cinecoronariografia, que demonstrou lesão crítica no primeiro ramo diagonal da artéria descendente anterior, sendo submetido à colocação de stent. Em novembro de 2007, o paciente fez ecocardiografia transesofágica, que revelou prolapso de valva mitral e tricúspide com refluxo mínimo, ventrículo esquerdo com relaxamento, dimensão interna, contratilidade segmentar e global normais. Um teste perfusional ecocardiográfico com microbolhas foi realizado. Na preparação do contraste, juntou-se 9 ml de água destilada a 1 ml de ar ambiente em uma seringa, cujo conteúdo, após ser agitado, foi injetado no acesso venoso. O teste foi considerado negativo, já que não houve o aparecimento de microbolhas dentro de três ciclos cardíacos no interior do átrio direito ou esquerdo após a injeção.

Em agosto de 2008, foi detectada uma assimetria de pulsos em membros superiores e inferiores, sendo o paciente, então, internado no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Relatava hipertensão arterial sistêmica e dislipidemia diagnosticadas há 4 meses, controladas com captopril e sinvastatina, respectivamente. O paciente usava também AAS e propranolol.

O homem negava ter casos semelhantes ou outras doenças familiares, tabagismo ou uso de drogas ilícitas. Apresentava-se em bom estado geral, com IMC de 24, pressão arterial de 110/60 mmHg e frequência cardíaca de 72 bpm. O exame do precórdio foi normal. Havia diminuição da amplitude do pulso braquial e ausência de pulso radial e pedioso à esquerda. O enchimento capilar estava lentificado em mão e pé esquerdos. O exame neurológico demonstrava alterações campimétricas nasais do olho direito e temporais do olho esquerdo.

Hemograma, dosagem de eletrólitos, creatinina e enzimas hepáticas foram realizados, apresentando-se dentro da normalidade. O colesterol total, HDL, LDL e os triglicerídios foram, respectivamente, de 143, 38, 83 e 109 mg/dL. Durante a internação, foi realizada arteriografia cerebral e detectou-se estenose crítica de artéria vertebral esquerda (Figura 2). O US vascular mostrou discreto hipofluxo em artérias subclávia, braquial e ulnar à esquerda e ausência de fluxo em terços médio e distal de artérias radial e tibial anterior esquerdas, sugestivos de oclusão.


Pesquisa de anticoagulante lúpico, antitrombina III, anticardiolipina, crioglobulinas, dosagem de fibrinogênio, proteína C, proteína S, homocisteína e teste de falcização foram solicitadas, apresentando resultados negativos ou normais, sem exceção. A pesquisa de rPCA foi realizada com teste de ensaio funcional coagulométrico (Coatest APC Resistance, Diapharma, E.U.A.), com diluição em plasma deficiente em FV, e foi considerado positivo. O resultado observado foi maior do que 120 segundos.

O paciente recebeu alta hospitalar com anticoagulação a longo prazo com varfarina.

Discussão

A presença do FVL e consequente rPCA aumenta muito o risco de eventos trombóticos venosos. Tal impacto foi, primeiramente, demonstrado no Leiden Thrombophilia Study, que revelou risco quase 7 vezes maior de trombose venosa. A confirmação veio em outro estudo prospectivo, com 14.916 pacientes, que apurou risco relativo de 2,7 para tromboses venosas1.

Como em outras trombofilias, a rPCA desencadeia quadros veno-obstrutivos em concomitância a cenários clínicos, tais como pós-operatório, trauma, gravidez/puerpério ou queimaduras1,2. O tabagismo e os anticonceptivos orais também têm se mostrado fatores coadjuvantes importantes. Nenhum fator ou cenário clínico desencadeante foi identificado no caso do paciente aqui relatado.

Após a publicação de dois casos de IAM em pacientes jovens, homozigóticos para o FVL, e outros casos relacionados à doença cerebrovascular1, diversos investigadores sugeriram a associação com eventos trombóticos arteriais.

Um estudo experimental demonstrou que animais homozigóticos e heterozigóticos para o FVL apresentavam aumento significativo de trombose carotídea após injúria físico-química4. Gluek e cols.5, em estudo caso-controle, sugeriram associação entre trombofilia e eventos tromboembólicos arteriais, com maior prevalência nos homens. Van de Water e cols.6 encontraram maior prevalência de FVL em pacientes infartados, com menos de 50 anos de idade e com coronárias normais ou próximas do normal, quando comparados a pacientes que apresentavam estenose grave de coronárias.

É sugerido ainda que a rPCA, concomitante a situações como hiper-homocisteinemia7 ou diabetes8, pode ser fator de risco para isquemia cerebral1. Além disso, já foram relatados casos de doença arterial periférica isquêmica em pacientes com FVL.

Entretanto, grandes estudos, como o Copenhagen City Heart Study1, não evidenciaram associação entre rPCA e IAM ou doença cerebrovascular. Da mesma maneira, Ercan e cols.9 não encontraram relação entre IAM e FVL, ao avaliar uma população com maior prevalência de fatores de risco clássicos para aterosclerose. Por fim, um recente estudo prospectivo, que acompanhou 542 pacientes durante 11 anos, demonstrou não haver relação entre a presença do FVL e o aumento no risco de eventos cardiovasculares recorrentes após IAM10.

A ausência de dados definitivos da associação FVL-rPCA, como etiologia de doença arterial isquêmica in situ, prejudica o desenvolvimento de estudos sobre o curso natural da doença e a busca por tratamentos efetivos. Em relação a tromboses venosas, existe benefício comprovado da anticoagulação com cumarínicos, com aproximadamente 90% de redução de risco11. O tratamento de pacientes assintomáticos geralmente não é indicado.

No caso relatado, optou-se por anticoagulação a longo prazo com varfarina. Contudo, ressalta-se a importância da individualização terapêutica, avaliando-se os benefícios e os conhecidos riscos da anticoagulação oral.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 17/03/09; revisado recebido em 16/06/09; aceito em 17/07/09.

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  • Correspondência:

    Mauricio Carvalho
    Hospital de Clínicas da UFPR
    Rua General Carneiro, 181
    Departamento de Clínica Médica - 10º andar
    80060-900 - Curitiba - Paraná - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Aceito
      17 Jul 2009
    • Revisado
      16 Jun 2009
    • Recebido
      17 Mar 2009
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