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Caso 4/2017 - Dupla Câmara de Ventrículo Direito, em Dextrocardia e Hipoxemia por Shunt em Nível Atrial, em Menina de 4 Anos de Idade

Palavras-chave:
Dupla Câmara de Ventrículo Direito; Dextrocardia; Hipóxia

Dados clínicos

Gemelar prematura de 33 semanas com peso ao nascer de 1935 g permaneceu internada por um mês com diagnóstico de comunicação interatrial (CIA) + comunicação interventricular (CIV) + persistência do canal arterial (PCA). Manteve-se com menor ganho de peso em relação à média das crianças, mas em plena e semelhante atividade em uso de furosemida e captopril até 3 anos de idade. Tornou-se cianótica recentemente, segundo a mãe.

Exame físico

Eupneica; cianótica discreta; pulsos normais; peso, 11 kg; altura, 89 cm; FC, 100 bpm; Sat O2, 83%. A aorta não era palpada na fúrcula. No tórax, notava-se discreto abaulamento e impulsões sistólicas leves na borda esternal direita (BED). A 1ª bulha era mais intensa na linha hemiclavicular direita (LHCD), sendo a 2ª bulha hiperfonética na BED com maior irradiação para a LHCD. Sopro sistólico de ejeção, rude, 4/6, audível na BED alta e sopro sistólico em regurgitação, suave, 4/6, na BED baixa. O fígado era palpado a 1 cm da borda costal direita.

Exames complementares

Eletrocardiograma: mostrava ritmo sinusal e sinais de acentuada sobrecarga de ventrículo direito (VD). Havia complexos Rs em V1 a V3, rsR´ em V5R e V6R com onda T positiva em V1 a V6 e isoelétrica em V6R, sinais de localização do VD à direita. AP: +60º, AQRS: -150º, AT: +70º (Figura 1).

Figura 1
Radiografia de tórax mostra acentuada cardiomegalia com arco ventricular longo e arredondado à direita em situs solitus (bolha gástrica à esquerda) e trama vascular pulmonar diminuída. Eletrocardiograma salienta sinais de acentuada sobrecarga do VD à direita com onda R preponderante em V6R e onda S em V6 além da onda T positiva em V6 e isoelétrica em V6R.

Radiografia de tórax: mostra área cardíaca aumentada à direita e trama vascular pulmonar diminuída. O arco ventricular é arredondado e longo à direita (Figura1).

Ecocardiograma: (Figura 2) mostrou situs solitus em dextrocardia, com conexões venosas sistêmicas e pulmonares normais, conexões atrioventriculares e ventrículo-arteriais concordantes. Dilatação da veia cava inferior e das veias supra-hepáticas. Comunicação interatrial tipo ostium secundum de 4 mm, com fluxo da direita para a esquerda. Septo ventricular íntegro desviado para a esquerda. Regurgitação tricúspide acentuada. Átrio direito aneurismático com volume de 58 ml/m2. Ventrículo direito com dilatação e hipertrofia acentuadas, com banda moderadora desenvolvida, infundíbulo estreito por hipertrofia e duas câmaras ventriculares com gradiente entre as câmaras de 140 mmHg. Valvas pulmonar e aórtica normais. Cavidades esquerdas eram normais. TP = 20 mm, AP´s = 9 mm. Anel pulmonar = 15 mm e parede anterior do VD = 10 mm.

Figura 2
Ecocardiograma em corte de 4 câmaras em A e em corte transversal em B mostra grande aumento das cavidades cardíacas direitas com septos abaulados para a esquerda e a hipertrofia ventricular acentuada (setas) com a banda divisória das duas câmeras de ventrículo direito, a proximal e a distal em corte subcostal em C. AD: átrio direito; AE: átrio esquerdo; Ao: aorta; VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo; AP: artéria pulmonar.

Diagnóstico clínico

Estenose de via de entrada de VD bicameral com hipóxia discreta por desvio de sangue da direita para a esquerda através de pequena CIA.

Raciocínio clínico

Os elementos clínicos eram compatíveis com cardiopatia congênita cianogênica por hipofluxo pulmonar decorrente de lesão obstrutiva à direita com shunt intercavitário. O local da obstrução pode ser presuntivamente imaginado na via de entrada do VD pela ausculta de sopro sistólico acentuadamente rude e intenso. No entanto, a 2ª bulha hiperfonética fez pensar de imediato em transposição corrigida das grandes artérias, ainda mais em presença de dextrocardia em situs solitus. O eletrocardiograma não era compatível com discordância atrioventricular dado que a onda T tinha orientação do VD à direita (eixo elétrico da onda T à esquerda (+70 graus) e de intensidade maior em V6 que em VR). O ecocardiograma foi decisivo na conclusão e repercussão do defeito. A insuficiência tricúspide acentuada ocasionando átrio direito aneurismático era decorrente da acentuada obstrução intracameral direita. Salienta-se a raridade dessa anomalia em presença de dextrocardia em situs solitus e sem CIV, ademais da acentuada insuficiência tricúspide como lesão evolutiva incomum em obstruções no VD.

Diagnóstico diferencial

O mais provável na diferenciação diagnóstica deste caso era a transposição corrigida das grandes artérias, como foi salientado.

Conduta

Em face da acentuada repercussão do defeito, cirurgia foi realizada de imediato, com resolução da obstrução da via de entrada do VD hipertrófico.

Comentários

A dupla câmara de VD ou estenose de via de entrada de VD constitui-se em rara anomalia congênita na qual uma banda muscular anômala separa esse ventrículo em duas cavidades, sendo a proximal de alta pressão e a distal, de baixa pressão. A obstrução muscular se desenvolve com o tempo, mas raramente se pronuncia na idade adulta. Aceita-se que o músculo hipertrofiado é a trabécula septoparietal ou a septomarginal.

A estenose de via de entrada do VD usualmente, em mais de 95% dos casos, é associada a CIV, cuja posição determina o quadro clínico característico. Assim, quando a CIV se localiza previamente à obstrução, o quadro clínico assemelha-se ao da tetralogia de Fallot e, quando em posição distal, à própria CIV. Importa salientar também que o grau da obstrução e o tamanho da CIV são responsáveis pela magnitude dos quadros descritos.

Desconhecemos na literatura a existência da associação descrita neste caso com dextrocardia em situs solitus e sem CIV, cujo quadro clínico simulava o apresentado por acentuada estenose pulmonar e progressiva insuficiência valvar tricúspide decorrente.11 Amano M, Izumi C, Hayama Y, Onishi N, Tamaki Y, Enomoto S, et al. Surgical outcomes and postoperative prognosis beyond 10 years for double-chambered right ventricle. Am J Cardiol. 2015;116(9):1431-5.,22 Kahr PC, Alonso-Gonzalez R, Kempny A, Orwat S, Uebing A, Dimopoulos K, et al. Long-term natural history and postoperative outcome of double-chambered right ventricle--experience from two tertiary adult congenital heart centres and review of the literature. Int J Cardiol. 2014;174(3):662-8.

References

  • 1
    Amano M, Izumi C, Hayama Y, Onishi N, Tamaki Y, Enomoto S, et al. Surgical outcomes and postoperative prognosis beyond 10 years for double-chambered right ventricle. Am J Cardiol. 2015;116(9):1431-5.
  • 2
    Kahr PC, Alonso-Gonzalez R, Kempny A, Orwat S, Uebing A, Dimopoulos K, et al. Long-term natural history and postoperative outcome of double-chambered right ventricle--experience from two tertiary adult congenital heart centres and review of the literature. Int J Cardiol. 2014;174(3):662-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017
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