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Caso 4/98 - Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia

Correção Anatomoclínica

Correlação Anatomoclínica

(Caso 4/98 - Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia)

Criança de 11 anos, do sexo masculino, cor parda, natural e procedente do interior de Minas Gerais, nascido de parto normal a termo, após gravidez sem intercorrências e sem passado mórbido até há seis meses, quando teve um episódio de desmaio e o exame médico detectou sopro cardíaco. Há cerca de dois meses, apresentou forte dor precordial e cansaço, sendo transferido para hospital de Belo Horizonte, tendo sido encaminhado ao Instituto Dante Pazzanese (São Paulo), com diagnóstico de insuficiência aórtica por aneurisma de seio de Valsalva e medicado com captopril e furosemida. O exame físico mostrou criança com desenvolvimento normal, sem sinais de insuficiência cardíaca, com artérias subclávias e aorta palpáveis, mas sem deformidades precordiais. A pressão arterial era de 120 x 30 x 0mmHg e o ritmo cardíaco regular, com freqüência de 90s/m; havia sopro sistólico (+/3+) ejetivo em focos da base e 3º espaço intercostal esquerdo e sopro diastólico (++/3+) em focos aórtico e aórtico acessório; a 2ª bulha era normal. O restante do exame físico foi normal. O eletrocardiograma (ECG) mostrou ritmo sinusal e sobrecarga do ventrículo esquerdo (VE). A radiografia de tórax mostrou aumento da área cardíaca (++/3+) às custas do VE, com tronco pulmonar retificado e desenho vascular pulmonar normal. O ecocardiograma evidenciou situs solitus, concordância atrioventricular e ventrículo-arterial, levoposição e retorno venoso normal; aumento importante do VE, com fração de ejeção de 68%, além de aumento moderado do átrio esquerdo, refluxo valvar mitral discreto e espessamento valvar aórtico com refluxo de grau acentuado. Detectou-se grande aneurisma de seio de Valsalva, apresentando continuidade com a via de saída do VE. Como o paciente evoluía com episódios de precordialgia e síncope, foi indicado tratamento cirúrgico, após exame hemodinâmico para melhor caracterização das alterações anatômicas. O cateterismo cardíaco detectou insuficiência aórtica acentuada e VE com volume diastólico aumentado e hipocontratilidade difusa. A massa aneurismática, que se salientava na via de saída do VE, não tinha relação com a aorta, mas sim com o próprio ventrículo, e era multiloculada (fig. 1A e B). Após uma das injeções de contraste no VE, a criança apresentou assistolia, sendo imediatamente intubada e massageada, recebendo as drogas habituais para o quadro, além da instalação de marcapasso. Apesar de todas as medidas realizadas em tempo adequado, não se conseguiu recuperação dos batimentos cardíacos.


Discussão

Trata-se de criança com 11 anos de idade, portadora de insuficiência aórtica de instalação recente, cujo quadro clínico já se iniciou com duas síncopes, denotando uma situação clínica grave, provavelmente causada por bloqueio atrioventricular, porém sem relato de alteração no ECG. Cremos que três aspectos devem ser considerados na discussão deste caso: a etiologia do processo, a conduta terapêutica mais adequada e o evento final com óbito no laboratório de hemodinâmica.

As causas de insuficiência aórtica na faixa etária do paciente incluem, em nosso meio, obrigatoriamente, a deformidade reumática, especialmente se houver acometimento multivalvar, como a associação de insuficiência mitral, do presente caso. No entanto, a informação de que não havia história mórbida pregressa torna esta etiologia menos provável, pois não coincide com o curso habitual da cardiopatia reumática, cuja evolução por surtos, dificilmente, passa despercebida. Os processos congênitos que cursam com insuficiência aórtica precoce, como as deformidades valvares ou as deficiências da septação aorto-pulmonar, não se enquadram aqui, pela óbvia discrepância de sua história natural com a deste paciente. Outras cardiopatias congênitas que causam insuficiência aórtica tardia, por vícios hemodinâmicos (ou deformidades adquiridas), devem ser consideradas. As primeiras definições morfológicas da cardiopatia desta criança apontavam um aneurisma de seio de Valsalva, como causa da insuficiência aórtica. Estes aneurismas podem surgir em defeitos septais ventriculares, especialmente de localização subaórtica e amplos, com desabamento de um dos folhetos valvares, que se complicam com infecção secundária; dado interessante que afasta esta hipótese é o achado da radiografia de tórax sem sinais de hiperfluxo pulmonar (o paciente tinha tronco pulmonar retificado e desenho vascular pulmonar normal), obrigatórios nesta cardiopatia. Aneurisma de seio de Valsalva é relacionado a processos infecciosos, com excessão apenas de quadros degenerativos arteriais, cujo paradigma é a síndrome de Marfan. Infecções, especialmente granulomatosas, mas também inespecíficas, são relacionadas à formação destes aneurismas, mas não é habitual que tenham curso clínico inaparente e, na maioria dos casos, complicam deformidade prévia da valva aórtica. Já aneurismas ventriculares são mais freqüentemente vistos, como complicação de necrose isquêmica do miocárdio em coronariopatas, mas, é claro, que este mecanismo é excepcional na faixa etária deste paciente. Na infância, os episódios de infarto do miocárdio costumam se originar em acidentes embólicos, geralmente acompanhando enfermidades do coração, que permitam a formação de trombos nas câmaras esquerdas. Causas menos comuns de aneurisma ventricular são inflamações necrotizantes do miocárdio, que costumam fornecer sinais clínicos precedentes. Miocardiopatias primárias, caracterizadas por deficiente formação do músculo cardíaco, são muito raramente descritas como causa de aneurismas ventriculares e têm um curso clínico caracterizado por manifestações arrítmicas, que causam bastante desconforto aos pacientes; nestes casos, embora múltiplos, os aneurismas costumam ser uniloculares, ao contrário dos infecciosos que tendem a formar múltiplas cavidades intercomunicantes. Por fim, alguns aneurismas ventriculares e/ou aórticos são relacionados a trauma torácico, seja este perfurante ou não. O trauma pode ser antigo, sendo esquecido pelo paciente que não o menciona durante o interrogatório médico.

A abordagem terapêutica deste paciente é eminentemente cirúrgica, como mostra a própria evolução clínica. Por isto, cremos que uma melhor caracterização morfológica da lesão seria desejável antes se de proceder a cirurgia, o que justificaria o uso de métodos não invasivos de análise por imagem, como a ressonância magnética e a medicina nuclear. Esta insistência na busca de definição morfológica mais precisa justifica-se, porque é previsível um ato cirúrgico laborioso, no qual as condutas devem ser rapidamente definidas, já que se trabalha com um ventrículo bastante comprometido. Em presença de aneurismas ventriculares, é importante determinar sua posição em relação aos anéis valvares e se as valvas são anatomicamente deformadas ou têm lesão apenas por dilatação anular. Se o aneurisma não está comprometendo a valva ou seu aparelho de sustentação, e se não há deformidade valvar grave, a plastia ventricular e valvar pode ser suficiente para contornar o distúrbio. Mas, em casos de aneurismas subanulares, em que as lesões ventriculares costumam comprometer o anel valvar e determinar distorções incontornáveis de folhetos valvares, pode ser impossível a obtenção de uma plastia ventricular satisfatória e a troca valvar é inevitável. Mesmo assim, a cirurgia está indicada, porque a colocação de uma prótese reduz o número dos defeitos que atua na deterioração da função cardíaca, podendo resultar em melhora do desempenho futuro. A análise da ventriculografia esquerda deste doente preocupa-nos em relação aos resultados cirúrgicos; a complexidade das lesões miocárdicas e sua relação com diversas estruturas da base do coração, permite prever uma correção tecnicamente complicada.

Finalmente, devemos comentar um pouco sobre o óbito deste paciente. Complicações fatais durante exame hemodinâmico são infreqüentes e, por isso mesmo, sempre merecem muita atenção. De forma geral, o óbito durante ou logo após estes exames se dá por traumas, tromboembolismo, arritmias graves, sobrecarga hemodinâmica insustentável e processos alérgicos. Traumas englobam perfurações cardíacas ou arteriais, estas últimas com rotura transmural ou dissecção. Este grupo de acidentes costuma ser identificado durante o próprio exame, especialmente se está se usando meio de contraste. O destacamento de material trombótico pode ser uma intercorrência grave, dependendo do território em que se instale. Tromboembolia coronária e cerebral, embora excepcionais, são causa de necrose miocárdica aguda ou de quadros convulsivos e paralisantes. É excepcional que os quadros arrítmicos sejam intratáveis, especialmente, porque o paciente tem diferentes parâmetros cardíacos monitorados e é mantido sob condições de intervenção imediata. A sobrecarga hemodinâmica por injeção de contraste é verificada principalmente em recém-nascidos, cujo volume sangüíneo sofre alterações significativas com adição mesmo de pequenas quantidades; mas, em pacientes maiores, o grau de disfunção ventricular pode ser de tal monta que não exista reserva para suportar até pequenos volumes, de forma abrupta. O tipo de parada cardíaca deste paciente, imediatamente após injeção de contraste na raiz aórtica, pode sugerir a presença de um processo alérgico desencadeando o quadro. Mas, comprometimento ventricular, como ocorre em outras situações, deve ter sido o principal obstáculo à recuperação deste coração.

Em resumo, apesar das várias considerações etiológicas apresentadas, não há subsídios suficientes para permitir a determinação de qualquer etiologia neste caso, sendo mais prudente ater-se à associação mais freqüente nas lesões com esta morfologia, ou seja, com processo inflamatório.

(Dra. Mabel Moura Barros Zamorano)

Hipóteses diagnósticas - Aneurismas ventriculares múltiplos com insuficiência aórtica e mitral, mais provavelmente, causados por processo infeccioso valvar e/ou miocárdico.

Necropsia

No exame necroscópico chama a atenção a deformidade da base do coração, associada a importante dilatação do VE. A deformidade é ocasionada por abaulamentos parietais interpostos entre a artéria pulmonar e o apêndice atrial esquerdo que, além de deslocar a via de saída do ventrículo direito (VD), distende as artérias coronárias descendente anterior e circunflexa, assim como seus respectivos ramos (fig. 2). Estes abaulamentos, que se projetam para cima comprimindo a aorta ascendente e a artéria pulmonar, correspondem a múltiplas cavidades intercomunicantes da parede anterior alta do VE (fig. 3), as quais ocupam uma área de 6,0x5,5x3,0cm e convergem para um único orifício de comunicação com o ventrículo. O óstio dos aneurismas tem bordos fibróticos, mede 2,5cm e se localiza abaixo da valva aórtica em continuidade com o anel, ao nível dos folhetos coronários direito e esquerdo (fig. 4). A valva aórtica mostra espessamento moderado de suas válvulas, as quais não se coaptam devido à distensão anular e à retração fibrótica. A valva mitral tem cúspides bem conservadas e alguma dificuldade à sua coaptação se deve à deformidade do ventrículo. As valvas do lado direito têm aspecto normal, apesar da distorção desta câmara, cujo infundíbulo e abaulado pelas projeções aneurismáticas do VE.




No exame macroscópico da cavidade torácica, evidenciam-se ainda lesões nodulares de até 2,0cm de diâmetro, firmes e esbranquiçadas, duas em pulmão direito e uma em pulmão esquerdo; este último tem também retração apical. Os linfonodos do hilo pulmonar e pericardíacos são aumentados e têm superfície de corte de aspecto necrótico com pontos calcificados. Na cavidade abdominal são dados positivos do exame macroscópico, apenas ascite moderada e múltiplas nodulações hepáticas esbranquiçadas, que não ultrapassam 0,4cm de diâmetro.

A microscopia revelou lesões granulomatosas necróticas disseminadas, predominantes no miocárdio do 1/3 superior do septo interventricular (inclusive a região do nó atrioventricular), mas se estendendo ao miocárdio dos dois ventrículos e ao pericárdio (fig. 5). Inflamação granulomatosa também foi detectada no fígado e linfonodos torácicos. Em várias dessas lesões, a pesquisa de microorganismos foi negativa, mas foram detectados escassos bacilos álcool-ácido-resistentes (BAAR) em alguns granulomas ganglionares e miocárdicos. Nos pulmões, havia dois tipos de lesão: granulomas subpleurais colonizados por Cryptococcus neoformans e outros centrais, produtivos ou necróticos, mas sem microorganismos demonstráveis (fig. 6).



Apesar da demonstração limitada de BAAR, parece-nos adequado o diagnóstico de tuberculose disseminada, uma vez que granulomas sem agente etiológico demonstrável são mais prováveis em tuberculose que em criptococose, que são as duas enfermidades envolvidas neste caso. Desta forma, com base nos achados macro e microscópicos, nossas conclusões diagnósticas tiveram a formulação abaixo.

(Dra. Mabel Moura Barros Zamorano)

Diagnósticos anatomopatológicos - 1) Tuberculose produtivo-caseosa disseminada, acometendo: a) miocárdio e pericárdio, formando pseudo-aneurismas inflamatórios da parede anterior do VE, com óstio subanular aórtico; insuficiência aórtica grave com lesões retráteis cicatriciais dos folhetos valvares; distensão dos ramos da coronária esquerda; deslocamento e compressão da via de saída do VD; b) pulmões; c) linfonodos torácicos; d) fígado. 2) criptococose pulmonar.

Comentários

Alguns aspectos deste caso merecem comentário adicional: a ocorrência de processo infeccioso extenso sem expressão clínica mais significativa até o estabelecimento de seqüela cardíaca grave, a associação de duas infecções granulomatosas, a etiologia tuberculosa e sua relação com a formação de pseudo-aneurismas ventriculares e o caráter primário ou secundário da valvopatia aórtica.

Pelo que se pôde deduzir dos informes clínicos, a enfermidade deste paciente seguia um curso no mínimo oligossintomático, até que se formou lesão anatômica insustentável, que estabeleceu sintomatologia grave, sugestiva de bloqueio no sistema de condução. Miocardite necrotizante englobando a área do nó atrioventricular, reforçou esta possibilidade. A extensão das lesões anatômicas permitiu-nos compreender o curso inexorável e o controle clínico impossível desta cardiopatia. Quanto à cirurgia, mesmo sendo a única forma de tratamento com possibilidade de beneficiar este paciente, certamente seria tecnicamente difícil e com previsão reservada de seus resultados, tanto pela extensão das lesões anatômicas quanto pela vigência de processo infeccioso ativo.

Duas enfermidades granulomatosas coexistiam no doente: a criptococose (ou torulose) e a tuberculose. A primeira é uma micose causada pelo Cryptococcus neoformans, mais conhecida em sua apresentação cérebro-meníngea, embora a infecção primária seja pulmonar. A lesão pulmonar não costuma se expressar clinicamente, sendo na maioria dos casos achado casual, durante toracotomia ou necropsia. Mesmo assim, esta lesão focal tem potencial de disseminação para determinar doença difusa ou, mais freqüentemente, limitada ao sistema nervoso central. Embora possa ocorrer em indivíduos sadios, a criptococose tem sido mais observada em portadores de alguma deficiência imunológica ou de doença sistêmica grave, daí sua associação com a tuberculose neste doente. No presente estudo, a detecção de Cryptococcus neoformans foi limitada e sem maior significado patogênico. A tuberculose, ao contrário, era enfermidade disseminada, provavelmente a partir da contaminação de gânglios torácicos por lesão pulmonar. É interessante que, embora constituindo porta de entrada com focos inflamatórios ativos de duas infecções, os pulmões tinham lesões esparsas e pequenas, dificilmente detectáveis ao estudo radiológico simples do tórax. A tuberculose foi definida pela demonstração de BAAR em granulomas de linfonodos e miocárdio, mas não conseguimos demonstrá-los no fígado e nos pulmões. Apesar disto, a morfologia das lesões granulomatosas, aliada à pobreza de bacilos que pode acompanhar esta enfermidade, permite-nos concluir, com razoável segurança, que se trata de processo patológico único.

A miocardite tuberculosa pode ser resultado de disseminação hematogênica ou da infecção por contigüidade, a partir de pericardite. Neste caso, como havia tuberculose ganglionar torácica extensa, a infecção cardíaca poderia ter se estabelecido pela propagação pericárdica de lesão nos linfonodos mediastinais posteriores ou no próprio linfonodo cardíaco; outra possibilidade, é a instalação de um foco infeccioso anular aórtico, a partir de disseminação hematogênica do agente etiológico. Porém, seja qual for a via de instalação no coração, é notória a agressividade da infecção neste paciente, comportamento que nos leva a deduzir que se trata de organismo sem as defesas habituais na nossa população, por ausência de vacinação, por falta de transmissão materna de anticorpos ou pela permanência isolada do contato com grupos populacionais resistentes. A tuberculose é descrita como uma das causas de necrose miocárdica com desenvolvimento de lesões pseudo-aneurismáticas subanulares e de bloqueios do sistema de condução, como acontece neste caso. A hipótese clínica de síncope por bloqueio atrioventricular é respaldada pelo acometimento inflamatório deste sistema, mas devemos recordar que não existe uma correlação clínico-morfológica perfeita, o que torna possível a ausência de distúrbio de condução no traçado eletrocardiográfico.

Embora menos provável, não é impossível que o paciente fosse portador de valvopatia aórtica prévia sem maior manifestação clínica. Já a possibilidade desta valvopatia aórtica ter sido complicada por endocardite tuberculosa, com extensão anular e miocárdica, é excepcionalmente rara.

(Dra. Mabel Moura Barros Zamorano)

Comentário Editorial

A lesão neste caso bastante interessante foi originalmente classificada como aneurisma de seio de Valsalva. Posteriormente, verificou-se que o óstio situava-se abaixo da valva; assim, o aneurisma pode ser considerado subvalvar. Na verdade, ambos os tipos de lesão estão relacionados à mesma estrutura anatômica - o esqueleto fibroso do coração. A despeito de serem consideradas por muitos autores entidades mórbidas distintas, os dois tipos de lesão cavitária diferem apenas pela posição do óstio, situada poucos milímetros acima ou abaixo, de modo a que se localize dentro de algum seio de Valsalva da valva aórtica ou abaixo dele. O esqueleto fibroso envolve também a valva mitral, que pode ter aneurisma em seu anel.

A depender de relações anatômicas que variam de caso para caso, a parede das lesões cavitárias do esqueleto fibroso do coração pode ser constituída pelas três camadas da parede cardíaca - caso em que as lesões são classificadas como aneurismas verdadeiros - ou por capa de fibrose, quando são chamadas de pseudoaneurismas.

Tanto com relação ao lugar do óstio, quanto com relação à estrutura da parede, é importante salientar que, qualquer que seja a nomenclatura adotada, essas lesões podem ser consideradas variantes de uma mesma doença, em que, provavelmente, ocorre alteração, congênita ou adquirida, do esqueleto fibroso do coração. Este tem, assim, fragilidade anormal, tornando-se susceptível a desenvolver as referidas lesões 1.

Aneurismas subvalvares foram descritos, originalmente, em população negra, especialmente na África 2. Posteriormente, surgiram casos em brancos residentes naquele continente. A doença acometeu também pessoas de qualquer raça, em outras regiões do mundo, inclusive no Brasil, cuja primeira série foi relatada em negros na Bahia 3. Em muitos casos, a causa não fica determinada. Daí a hipótese de que possa haver uma fraqueza congênita do esqueleto fibroso, talvez ligada a um componente genético racial. Nos casos de doença adquirida, foram considerados fatores etiológicos, entre outros, a endocardite infecciosa; iatrogenia, em casos nos quais as cavidades surgiram após manipulação cirúrgica, especialmente troca valvar; doenças do colágeno; doença reumática; sífilis; outras doenças infecciosas 1.

Tuberculose foi diagnosticada em alguns dos raros pacientes com esses aneurismas 2,4,5, mesmo porque estes ocorrem mais em países com incidência relativamente alta dessa doença infecciosa. A relação de causa-e-efeito foi por vezes levantada 4, mas só, excepcionalmente, se verificou a presença de inflamação granulomatosa no coração 2,6. O presente relato corresponde, provavelmente, à primeira vez em que foi conseguida a demonstração do bacilo ácool-ácido resistente na lesão.

O diagnóstico das lesões cavitárias do esqueleto fibroso do coração depende hoje, fundamentalmente, de métodos de análise de imagens. O tratamento é eminentemente cirúrgico e visa à prevenção do embolismo e à correção da disfunção valvar 7. Se possível, deve ser feita a exérese da lesão. Quando particularidades anatômicas impedem essa conduta, deve-se tentar ao menos proceder ao fechamento do óstio.

Neste paciente, o aparecimento concomitante de duas doenças infecciosas, em especial da micose profunda, levanta a questão se o paciente não seria portador de algum tipo de deficiência imunológica. Infelizmente, como só a necropsia revelou a existência das infecções, não foi feita em vida, investigação nesse sentido. Por esses mesmos motivos, deve-se ainda considerar a hipótese de que a microbactéria causadora da doença tenha sido não-tuberculosa.

(Dr. Paulo Sampaio Gutierrez)

Editor da Seção: Alfredo José Mansur

Editores Associados: Desidério Favarato

Vera Demarchi Aiello

Editora Convidada: Mabel Moura Barros Zamorano

Correspondência: Alfredo José Mansur - Incor - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo, SP

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2002
  • Data do Fascículo
    Ago 1998
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