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Cardiomiopatia dilatada em crianças: existe um preditor ecocardiográfico de prognóstico?

EDITORIAL

Cardiomiopatia dilatada em crianças – Existe um preditor ecocardiográfico de prognóstico?

Samira Saady Morhy

Incor e Hospital das Clínicas da FMUSP São Paulo, SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dra. Samira Saady Morhy Incor - Av. Dr. Eneas C. Aguiar, 44 – 05403-000 São Paulo – SP E-mail: eco_samira@incor.usp.br

A cardiomiopatia dilatada é a forma mais comum das cardiomiopatias, com incidência anual de 2 a 8 casos por 100.000 nos Estados Unidos e Europa e prevalência estimada de 36 indivíduos por 100.000, considerando todas as faixas etárias1.

A verdadeira prevalência na população em geral é difícil de se verificar, principalmente pelas diferenças em relação aos critérios de inclusão de miocardite, fibroelastose endocárdica e outros tipos de cardiomiopatia secundária. Quando considerada no sentido abrangente, incluindo miocardite e fibroelastose endocárdica, a cardiomiopatia dilatada representa de 2% a 7% das crianças com doença cardíaca avaliadas no Hospital for Sick Children in Toronto 2.

Em adultos, a forma mais comum de miocardiopatia dilatada é a idiopática (47%)3. Em crianças menores de 2 anos, Matitiau e cols encontraram 45% com miocardite, 25% com fibroelastose endocárdica e o restante idiopática4. Em 1588 neonatos avaliados em Toronto, 28 (1,8%) apresentaram miocardiopatia, sendo 14 fibroelastose endocárdica, 11 cardiomiopatia idiopática e 3 miocardite2. No Royal Brompton Hospital foram observados 40 novos casos de miocardiopatia dilatada idiopática, em um período de 10 anos, embora, na evolução alguns mostraram se tratar de miocardite, e, outros, de fibroelastose endocárdica1.

Preditores de evolução - As quatro possibilidades de evolução da miocardiopatia dilatada em crianças são: resolução completa, melhora porém com disfunção residual, transplante cardíaco e óbito. Trabalhos na literatura demonstram que aproximadamente um terço tem resolução completa, um terço melhora, permanecendo com disfunção e um terço morre, sendo a mortalidade maior nos primeiros dois anos da doença4-7. Estudos demonstram sobrevida em 1 ano variando de 63% a 79%, em 5 anos de 34% a 66%, e em 10 anos de 50%1,7-11. No entanto, ainda não há um parâmetro preditor de mortalidade que seja observado, de forma consistente, nos estudos até agora realizados.

A idade na apresentação clínica da doença, como preditor de mortalidade é um fator controverso. Taliercio e cols.8, Griffin e cols.7 e Burch e cols.9 relataram que a apresentação da doença em crianças maiores que 2 anos de idade tem pior prognóstico, o que não foi observado em outras séries 5,6,10,11.

Griffin e cols.7 e Chen e cols.10 foram os únicos autores que estudaram a história familiar como fator preditivo de pior evolução, encontrando forte correlação com a mortalidade. Alterações eletrocardiográficas como hipertrofia ventricular esquerda e alterações no segmento ST e onda T, não demonstraram ter correlação com a evolução4,10,12, porém Greenwood e cols.5 encontraram desvio do eixo do QRS para esquerda como preditor de óbito. A presença de arritmias, independente do uso de medicação anti-arrítmica, foi relacionada com pior prognóstico em dois estudos6,7, porém Friedman e cols.13 não confirmaram este resultado.

Dados hemodinâmicos, obtidos pelo cateterismo cardíaco, como a pressão diastólica final do ventrículo esquerdo, foi um preditor encontrado por Lewis & Chabot11. Os não-sobreviventes apresentaram valores médios de 29,5 mmHg contra 15 mmHg no grupo sobrevivente. Porém, outros trabalhos não demonstraram a influência da pressão diastólica final do ventrículo esquerdo na evolução4,10. Evidências histológicas de processo inflamatório miocárdico foram relacionadas com melhor evolução4,10,12, enquanto que a presença de fibroelastose endocárdica foi associada com óbito4,10,14.

Avaliação ecocardiográfica - A ecocardiografia já mostrou ser um método fundamental no diagnóstico e acompanhamento pacientes com cardiomiopatia dilatada. Através de suas diferentes modalidades como: modo-M, bidimensional, Doppler, mapeamento do fluxo em cores e mais recentemente modo-M em cores e Doppler tecidual, importantes informações podem ser acrescentadas no manejo clínico destes pacientes.

Azevedo e cols.14 apresentam nesta publicação um estudo sobre a utilização da ecocardiografia como preditor de morte em crianças com cardiomiopatia dilatada, no qual uma das principais características é o significativo tamanho da amostra de pacientes, 148 crianças, contrastando com a média dos trabalhos na literatura de 52 crianças4-8,10-14,16,17, sendo superado apenas por Greenwood e cols9, que estudaram 161 crianças, porém sem avaliação ecocardiográfica.

Azevedo e cols15 estudaram 12 parâmetros ecocardiográficos obtidos pelo modo-M: dimensão do átrio esquerdo, relação átrio esquerdo/aorta, relação átrio esquerdo/superfície corpórea, dimensões sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo e suas relações com a superfície corpórea, massa do ventrículo esquerdo e a relação com a superfície corpórea, dimensão do ventrículo direito, fração de ejeção e percentagem de encurtamento do ventrículo esquerdo. Além disto, foi avaliada a presença e gravidade da insuficiência das valvas atrioventriculares e pulmonar. Todas as variáveis estudadas demonstraram diferença significante entre o grupo sobrevivente e não-sobrevivente. Demonstraram também que a relação diâmetro átrio esquerdo/aorta, a fração de ejeção do ventrículo esquerdo e a presença de insuficiência mitral moderada/grave foram preditores ecocardiográficos independente de morte.

Na literatura, entretanto, estudos avaliando parâmetros ecocardiográficos no momento do diagnóstico, como preditores de evolução da doença, também apresentam resultados variáveis. Azevedo e cols.15 e Chen e cols.10 encontraram menor percentagem de encurtamento (DD%) com médias de 14,5% e 11,5%, respectivamente, nos não-sobreviventes do que nos sobreviventes (médias de 26% e 20,9%). Diferentemente, nos trabalhos de Wiles e cols.6, Taliercio e cols.8, Lewis & Chabot11 e Lewis16, o DD% não foi fator preditivo de óbito.

Lewis16 estudando 72 crianças com cardiomiopatia dilatada observou que apesar do DD% obtido no primeiro exame não ser preditivo de evolução, durante o acompanhamento, de no mínimo um mês, o DD% menor que 15% era associado com taxas de sobrevida significativamente menores (1 ano= 46% e 5 anos= 29%) quando comparada com DD% maior que 15% (1 ano= 97% e 5 anos= 90%).

Azevedo e cols.15 observaram que a fração de ejeção foi um preditor independente de morte. Exceto Matitiau e cols.4, que também corroboram com estes resultados, nenhum outro trabalho utilizou este índice, provavelmente devido à limitação do cálculo da fração de ejeção com base em medidas obtidas pelo modo-M.

Quando estudaram a massa ventricular esquerda, Azevedo e cols.15 encontraram valores significantemente menores no grupo sobrevivente (média de 80,5 g), do que nos não sobreviventes (média de 149,43 g), assim como a relação massa/superfície corpórea (sobreviventes= 123 g/m2; não-sobreviventes= 203g/m2). De forma semelhante, Kimball e cols.17 observaram que na evolução, os pacientes mais sintomáticos apresentavam aumento da massa ventricular esquerda. Porém, estas diferenças entre sobreviventes e não-sobreviventes, durante a evolução, não foram observadas por Lewis16.

Assim como Azevedo e cols.15, que relataram a presença de insuficiência mitral moderada/importante como marcadora de óbito, Taliercio e cols.8 observaram a presença de refluxo mitral importante apenas nos pacientes que morreram.

Um resultado muito interessante observado por Azevedo e cols.15 foi em relação as pressões sistólica e diastólica do ventrículo direito aumentadas e a dilatação do ventrículo direito. Nos pacientes que não sobreviveram, a pressão sistólica foi significativamente maior (média de 45 mmHg) quando comparada com as dos sobreviventes (33 mmHg), o mesmo observado com a pressão diastólica (não-sobreviventes= 25,5 mmHg; sobreviventes=14 mmHg).

Existe um preditor ecocardiográfico de evolução? - Com base nesta revisão da literatura, podemos observar que em todos os trabalhos em que foram pesquisados preditores ecocardiográficos de evolução, não foram utilizadas técnicas ecocardiográficas mais recentes, como: Doppler pulsátil da valva mitral e veia pulmonar18, Doppler tecidual19, índice de performance miocárdica20 e velocidade de propagação do fluxo transvalvar mitral pelo color modo-M19, já utilizadas em pacientes adultos18,20 ou em crianças com outras cardiopatias. Estes parâmetros deverão ser empregados em crianças com cardiomiopatia dilatada, para se verificar seus verdadeiros valores como preditores de evolução.

Mais recentemente, a ecocardiografia sob estresse com dobutamina tem sido utilizada para avaliar reserva contrátil miocárdica em pacientes com miocardiopatia dilatada (adolescentes e adultos), porém o seu valor prognóstico não foi relevante21.

A ecocardiografia tem fornecido informações detalhadas sobre o diagnóstico e gravidade dos pacientes com cardiomiopatia dilatada, porém, infelizmente, devido ao pequeno número de pacientes estudados, não há, no momento, como identificar parâmetros preditivos de evolução. Garsony22, em 1991, comentou da importância do desenvolvimento de um estudo multicêntrico para se obter informações confiáveis, em que decisões de conduta, como tratamento clínico e transplante cardíaco, possam ser tomadas com maior segurança.

Referências

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Recebido para Publicação em maio/04

Aceito em maio/04

  • Endereço para correspondência
    Dra. Samira Saady Morhy
    Incor - Av. Dr. Eneas C. Aguiar, 44 – 05403-000
    São Paulo – SP
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    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2004
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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