Acessibilidade / Reportar erro

Dilúvio das almas

Deluge of souls

Leite, Tito. São Paulo: Todavia, 2022. 112

Esta resenha apresenta a obra “Dilúvio das Almas”, romance de estreia de Tito Leite, poeta e monge beneditino, que nasceu em Aurora, no Estado do Ceará, em 1980. Mestre em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de outros dois livros de poemas: Digitais do caos (2016); Aurora de Cedo (2019).

O romance conta a história do migrante Leonardo que aos 18 anos deixou sua terra natal, Rio das Almas (CE), e partiu rumo a São Paulo, em busca de trabalho e melhores oportunidades. E após ter passado por diferentes experiências, por vários lugares e morado anos na capital do estado, decidiu voltar à sua cidade no interior do Ceará. Rio das Almas era uma típica cidade do interior, sem muita perspectiva, difícil acesso à saúde, educação, empregos. Era uma cidade com muitas desigualdades, corrupções e violências. O que, para surpresa de Leonardo, não havia mudado após a sua partida. Ao regressar encontrou a pequena cidade da mesma forma que havia deixado. Isso fez com que questionasse seu próprio movimento de retorno.

Os movimentos migratórios internos no Brasil, nos últimos 60 anos, estão fortemente relacionados aos processos de urbanização e industrialização do país. Foram marcados pela intensa mobilidade populacional e inseridos nas distintas etapas econômicas, sociais e políticas experimentadas ao longo desse período (Baeninger, 2012BAENINGER, Rosana. Rotatividade migratória: um novo olhar para as migrações internas no Brasil. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 20, n. 39, p. 77-100, 2012.). Nesse contexto, o destaque maior foi a migração de nordestinos para as cidades localizadas no centro-sul do Brasil, especialmente para a cidade de São Paulo. Temática que guia o enredo do livro.

Tito Leite mesclou elementos de ficção e realidade em sua obra e conseguiu de uma maneira inteligente aproximar o leitor da vivência do migrante nordestino, com reflexões profundas sobre o sentido da vida, pertencimento e retorno ao seu lugar de origem. A linguagem é desenhada em frases curtas, repletas de diálogos internos do narrador com o leitor. O estilo simples de escrita é muito cativante.

O romance é dividido em quatro partes. A primeira delas, “O andarilho invisível”, trata da história do protagonista, um jovem que deixou o semiárido nordestino e foi passando por várias cidades, até chegar em São Paulo. A experiência migratória do protagonista do livro demonstra a difícil realidade dos migrantes, a solidão, a falta de apoio, as humilhações e a percepção preconceituosa e xenofóbica de alguns moradores da capital a respeito dos nordestinos.

Após anos longe de sua terra natal, Leonardo decidiu regressar, mesmo pobre e sem atingir os objetivos que o levaram a migrar. Ele não queria voltar, depois de tanto tempo e sem nenhuma história para contar, mas sentiu a necessidade de rever os seus e por isso decidiu recomeçar a vida em sua cidade natal. Na sequência a história apresenta relatos de sua chegada à cidade de Rio das Almas, as acolhidas e não acolhidas dos familiares e de outras pessoas.

A segunda parte, “Um desafio de martelo com destino”, apresenta as reflexões de Leonardo sobre sua cidade. No tempo em que esteve fora não ocorreram mudanças significativas: “Apenas a cor das paredes”, pensava ele (Leite, 2022LEITE, Tito. O dilúvio das almas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2022., p. 29). Mas, apesar da frustação, sentiu fortemente a acolhida carinhosa de sua mãe: “basta um abraço e me sinto em casa e fico a meditar que a felicidade não se dá na solidão e sim na comunhão” (Leite, 2022LEITE, Tito. O dilúvio das almas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2022., p. 30). E, sobretudo, se indignava com as injustiças, a exploração de minorias, mulheres, dos mais pobres, as mortes violentas, as conivências políticas, os mitos, a inércia da justiça, os movimentos que se repetiam como antigamente, como se fossem os mesmos.

Todavia ele estava diferente. A experiência migratória o ajudou a enxergar as coisas de outro modo. “Melhor caminho é a estrada, o vento frio ou quente da viagem, é bonito enxergar o mundo em nascimento, é como fazer uma leitura das entrelinhas do infinito” (Leite, 2022LEITE, Tito. O dilúvio das almas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2022., p. 43). Essa passagem representa a mudança de perspectiva do personagem, que pode ser ilustrada também pelos desenhos de barcos presentes na capa do livro: ele desde criança sonhava em viajar e conhecer outras cidades. No momento em que retornou à cidade recuperou suas experiências, tudo que aprendeu no caminho, a pessoa que se tornou não cabia mais naquele mundo mítico de Rio das Almas.

Leonardo presenciou, escandalizado, cenas fortes de violências, mortes, falcatruas, naturalizadas pela população. Ele sentiu muitas vezes a vontade de colocar a mochila nas costas e ganhar a estrada novamente, pois a violência atingiu sua família também com a morte do primo. Os fatos eram explicados pelos moradores como se fossem castigos de Deus. Ao mesmo tempo em que desejava sair, dentro dele crescia a curiosidade de ficar na cidade para entender melhor os processos que não compreendia bem antes de sair, mas que agora enxergava com o olhar e a experiência de quem esteve do lado de fora.

Na terceira parte, “Sertão de Romã”, Leonardo além de presenciar as cenas de violência, se envolveu em algumas delas ao tentar denunciar os crimes. Iniciou por conta própria um processo de investigação da classe dominante da cidade. Durante uma discussão num bar, conheceu Simone, uma garota de programa. Simone era uma mulher desafortunada, tinha dois filhos e sofria violência física por parte de seu irmão, mas era uma mulher independente, autônoma em suas relações. Leonardo se apaixonou por ela e tiveram um romance muito envolvente. O local de encontro deles era o açude onde apareciam as “almas penadas”, uma lenda de destaque da cidade.

Na quarta parte, “Sarça Ardente”, Leonardo continuou envolvido em suas investigações, descobriu carros desmontados, plantações de maconha, potes de ouro perto do açude. A violência e os assassinatos constantes faziam com que sentisse falta de quando era migrante, mesmo passando dificuldades em São Paulo: “Saudades de quando eu era apenas um peregrino na terra” (Leite, 2022LEITE, Tito. O dilúvio das almas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2022., p. 85). Nessa parte da narrativa, outros assassinatos aconteceram e o próprio Leonardo passou a ser um dos suspeitos. Ele foi agredido pela polícia, viveu torturas físicas e psicológicas absurdas e foi preso em um quarto escuro para confessar um crime que não cometeu.

Depois disso, Leonardo resolveu arquitetar um plano de vingança, mas acabou se envolvendo em outra briga, dessa vez de acerto de contas com o capanga da cidade, que havia cometido os assassinatos anteriores. Acidentalmente, ao se defender dos ataques do capanga, acabou o matando. Leonardo entrou em desespero, ele se tornaria mais um assassino? Decidiu então fugir, deixar Rio das Almas pela segunda vez, porque não concordava com a vida, com a mesmice e falta de perspectiva daquele lugar. Enquanto fugia, colocou fogo na plantação de maconha do vereador e terminou colocando fim à sua própria vida, porque não aguentava o sentimento de rejeição, de sentir-se estrangeiro em sua terra. Ao tirar sua própria vida e cometer o crime final, o personagem dizia ter, por fim, encontrado sua terra, sua "pátria”. “Hoje eu também morro, já não sou um estrangeiro na minha terra. Já não sou um deslocado. Sou apenas mais um dos seus filhos. Agora estou em casa” (Leite, 2022LEITE, Tito. O dilúvio das almas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2022., p. 110).

A migração de nordestinos para a cidade de São Paulo, e outras capitais do centro-sul do Brasil, é um fenômeno que teve maior intensidade a partir da década de 60 do século XX. Alguns migrantes fugiam da seca que afetava o campo, principal fonte de renda de algumas famílias. E outros partiam em busca de acesso a estudos, melhores condições de vida e sobretudo oportunidades de trabalho. Conforme Marinelli (2007MARINELLI, Edson Bastos. A saga do migrante nordestino em São Paulo. Revista Educação-UNG-Ser, v. 2, n. 1, p. 3-17, 2007., p. 11)

o nordestino migrante, em busca de sua emancipação e de um sentido que oriente sua vida, tem o trabalho como meta, ou seja, a busca por uma colocação torna-se seu objetivo principal, o que será decisivo para mantê-lo em São Paulo ou fazê-lo retornar a seu Estado de origem.

O desfecho final da história de Leonardo é reflexo da violência que tange os migrantes, a violência que os persegue, seja na partida, seja nos caminhos, seja no retorno. Há boa dose de fatalismo na obra, como se um "destino" cruel e fatal esperasse pelo migrante a cada esquina, frustrando seus sonhos e suas esperanças.

O romance escrito por Tito Leite é muito atual. Escrito com lirismo, em um tom, por vezes, filosófico e introspectivo, que contrasta com o extremo realismo das cenas e a secura dos diálogos. Trata de reinventar o próprio passado, retornar para uma mesma realidade com um olhar totalmente diferente. Sobretudo quando o retorno é motivado pelo fracasso. Como nos lembra Cassarino (2013CASSARINO, Jean-Pierre. Teorizando sobre a migração de retorno: uma abordagem conceitual revisitada sobre migrantes de retorno. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 41, p. 21-54, 2013., p. 27), o “return of failure”, seja qual for a motivação do “fracasso” do projeto migratório, envolve com frequência dificuldades na integração do retornado no lugar de origem. Dificuldades financeiras e psicológicas. Ainda assim, o migrante retornado leva consigo um “capital humano” (Cassarino, 2013CASSARINO, Jean-Pierre. Teorizando sobre a migração de retorno: uma abordagem conceitual revisitada sobre migrantes de retorno. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 41, p. 21-54, 2013., p. 42), um conjunto de habilidades adquiridas no decorrer da travessia. No caso do Leonardo, as habilidades adquiridas são um novo olhar para a realidade que permite desnaturalizar as impregnadas violências e injustiças. Ele não enviara remessas aos seus familiares e tampouco regressou com dinheiro. Mas ele voltou com um novo olhar e uma nova consciência. O engajamento na luta contra as injustiças é a remessa mais valiosa em prol de seus familiares. Uma maneira, como diria Sayad (2000SAYAD, Abedelmelek. A noção de retorno na perspectiva de uma antropologia total do ato de migrar. Travessia - Revista do migrante, n. Especial, p. 11-15, 2000., p. 13), para reforçar o pertencimento àquele grupo social do qual se afastou física e geograficamente quando decidiu emigrar, mas nunca afetivamente.

A leitura deste romance, Dilúvio das Almas, é muito sugestiva para todos os estudantes, pesquisadores na temática migratória. Entre os elementos filosóficos, antropológicos e poéticos, há uma reflexão muito profunda sobre a pessoa migrante, o ser, a vivência pessoal de quem passa pela experiência de migrar, de retornar para sua terra natal e reinventar as relações.

Referências bibliográficas

  • BAENINGER, Rosana. Rotatividade migratória: um novo olhar para as migrações internas no Brasil. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 20, n. 39, p. 77-100, 2012.
  • CASSARINO, Jean-Pierre. Teorizando sobre a migração de retorno: uma abordagem conceitual revisitada sobre migrantes de retorno. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 21, n. 41, p. 21-54, 2013.
  • LEITE, Tito. O dilúvio das almas 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2022.
  • MARINELLI, Edson Bastos. A saga do migrante nordestino em São Paulo. Revista Educação-UNG-Ser, v. 2, n. 1, p. 3-17, 2007.
  • SAYAD, Abedelmelek. A noção de retorno na perspectiva de uma antropologia total do ato de migrar. Travessia - Revista do migrante, n. Especial, p. 11-15, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2022
  • Aceito
    20 Ago 2022
Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios SRTV/N Edificio Brasília Radio Center , Conj. P - Qd. 702 - Sobrelojas 01/02, CEP 70719-900 Brasília-DF Brasil, Tel./ Fax(55 61) 3327-0669 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: remhu@csem.org.br