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Informação e empreendedorismo: estudos de caso com acadêmicos brasileiros e canadenses

Information and entrepreneurship: a case study with Brazilian and Canadian academic

RESUMO

Este artigo traz a informação e o empreendedorismo acadêmico como temáticas centrais, pesquisadas à luz da Biologia do Conhecer. Objetiva identificar onde está situada a informação que dá suporte à mentalidade empreendedora de acadêmicos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no Brasil, e Western University, no Canadá, caracterizando os ambientes familiar e acadêmico aos quais estão expostos. Baseada em dois estudos de caso, a pesquisa tem característica qualitativa e descritiva, e os dados foram coletados a partir de entrevistas estruturadas que consideraram a história de vida de sete professores da UFMG e sete ex-alunos da Western University. As principais evidências são de que a informação determinante da mentalidade empreendedora foi construída a partir de dois fatores em interação: as características biológicas dos sujeitos de pesquisa, abertos à iniciativa empreendedora, e a influência primeira do ambiente familiar, seja através de experiências de vida ou memórias de palavras e atitudes dos pais e familiares. O ambiente acadêmico também se mostrou relevante, podendo incentivar ou se apresentar como barreira ao empreendedorismo. Destaca-se a relevância da educação empreendedora, fundamental para a formação do sujeito cognoscente e decisor, em constante interação com outros sujeitos e ambientes.

Palavras-chave:
Uso de informação; Mentalidade empreendedora; Empreendedorismo Acadêmico; Empresa de Base Tecnológica

ABSTRACT

This article brings information and academic entrepreneurship as central themes, researched in the light of the Biology of Knowing. It aims to identify where is located the information that supports the entrepreneurial mindset of academics at the Federal University of Minas Gerais (UFMG), in Brazil, and Western University, in Canada, characterizing the family and academic environments to which they are exposed. Based on two case studies, the research has a qualitative and descriptive characteristic, and data were collected from structured interviews that considered the life stories of seven UFMG professors and seven Western University alumni. The primary evidence is that the determinant information of the entrepreneurial mentality was built from two factors in interaction: the biological characteristics of the research subjects, open to the entrepreneurial initiative, and the primary influence of the family environment, whether through life experiences or memories of words and attitudes of parents and relatives. The academic environment was also relevant, being able to encourage or act as a barrier to entrepreneurship. The relevance of entrepreneurial education is highlighted, fundamental for the formation of the knowing and decision-making subject, in constant interaction with other subjects and environments.

Keywords:
Use of information; Entrepreneurial mindset; Academic Entrepreneurship; Technology-Based Company

1 Introdução

O tema empreendedorismo ganhou relevância global e destaque, nos últimos anos, como alavanca de desenvolvimento econômico e social, e suas atividades são associadas principalmente à geração de emprego e renda. “As empresas ganham escala e, com elas, crescem também as pessoas, o mercado e as possibilidades de transformação da sociedade” (ENDEAVOR, 2014, p.11).

Um dos grandes desafios do empreendedorismo no Brasil é a criação de negócios de algo valor agregado, Empresas de Base Tecnológica (EBTs) ou com diferenciais em inovação, afinal, “mesmo a empresa mais estabelecida enfrenta o imperativo de investir em inovação, a menos que fique obsoleta” (RIES, 2011RIES, Eric. The lean startup: how today’s entrepreneurs use continuous innovation to create radically successful of businesses. New York: Crown Business, 2011., p. 24, tradução nossa).

No Brasil, “pouco mais de 10% dos empreendedores iniciais indicam que seu produto e tecnologia são novos no local onde atuam” (GEM, 2019). Esta realidade dos negócios de baixa competitividade no país traz à tona a importância do incentivo ao empreendedorismo baseado no conhecimento, o que pode ser representado por inúmeras iniciativas, tais como ações governamentais para fomentar a transferência de tecnologia das universidades para o mercado, o que ocorre no contexto do empreendedorismo acadêmico e das EBTs. Ou mesmo o estímulo à criação e ao desenvolvimento de spin-offs e empresas startups, caracterizadas pelo seu alto potencial de impacto, escala e risco, e assim conceituadas por Eric Ries, empreendedor e um dos maiores expoentes globais do assunto: “uma startup é uma instituição humana criada para desenvolver um novo produto ou serviço sob condições de extrema incerteza” (RIES, 2011RIES, Eric. The lean startup: how today’s entrepreneurs use continuous innovation to create radically successful of businesses. New York: Crown Business, 2011., p. 27, tradução nossa). Muitas startups também surgem nos ambientes acadêmicos, a partir do potencial de uma inovação desenvolvida na pesquisa.

Essa interação governo-academia-mercado focada no desenvolvimento por meio da geração de negócios de impacto, quando executada de forma coordenada, caracteriza a chamada Hélice Tríplice, vinculada a estudos sobre inovação e empreendedorismo. A Hélice Tríplice é considerada por Etzkowitz e Zhou (2017ETZKOWITZ, Henry; ZHOU, Chunyan. Hélice Tríplice: inovação e empreendedorismo universidade-indústria-governo. Estud. av., São Paulo, v. 31, n. 90, p. 23-48, 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142017000200023&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 fev. 2020
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) a chave para o crescimento econômico e o desenvolvimento social baseados no conhecimento.

Indo além dos estudos sobre empreendedorismo e empreendedorismo acadêmico, o presente artigo visa analisar os aspectos que influenciam a mentalidade empreendedora dos entrevistados. Por mentalidade empreendedora, adota-se neste trabalho o entendimento de que empreender tem mais relação com o modo de ser do empreendedor do que com seu saber, tal como apontam Dolabela (2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p.) e Schaefer e Minello (2017SCHAEFER, Ricardo; MINELLO, Italo Fernando. Mentalidade Empreendedora: O Modo de Pensar do Indivíduo Empreendedor. Revista de Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, v. 6, n. 3, p.495-524, 2017. Disponível em: https://www.regepe.org.br/regepe/article/view/422/pdf. Acesso em: 16 fev. 2020.
https://www.regepe.org.br/regepe/article...
). Para Dolabela (2003), o empreendedor não pode ser construído, mas apenas motivado a se construir e orientado por aquilo que ama, por seus sonhos e propósitos.

É o que Filion (1993FILION, Louis Jacques. Visão e relações: elementos para um metamodelo empreendedor. Revista de Administração de Empresas, v. 33, n. 6, pp. 50-61, 1993.) chama de visão empreendedora, acreditando que essa visão fornece ao empreendedor um referencial que o ajuda a chegar aonde deseja e motivar outras pessoas da organização a trabalharem pelo mesmo propósito. O autor também aponta outras características ligadas à mentalidade empreendedora, tais como energia, liderança e o estabelecimento de relações para promover a evolução da visão, exigindo do gestor habilidades para analisar, imaginar e se comunicar.

Quando se trata da questão indivíduo e meio interagindo de forma contínua e simultânea, a principal referência teórica deste trabalho está nos estudos de Maturana (2004MATURANA, Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2004. 283 p.), responsável pela articulação de ideias entre fisiologia e comportamento, o que foi nomeado Biologia do Conhecer. Adotar esta abordagem, a partir da história de vida dos sujeitos escolhidos - empreendedores do ambiente acadêmico -, considera que indivíduo e meio interagem em um processo contínuo e inseparável, construindo juntos determinada realidade. O ambiente analisado, no caso, não é apenas o acadêmico; a pesquisa também busca evidenciar a influência de um ambiente de informação anterior, o familiar, também determinante para a constituição dos indivíduos investigados. Os estudos de Nassif (2019NASSIF, Mônica Erichsen. Crença e tomada de decisão: perspectiva de análise do comportamento gerencial para o estudo de uso de informação. Ciência da Informação (online), Brasília, v.48, n.2, p. 17-24, 2019., p.19) no campo da Ciência da Informação também são usados como referência teórica por considerarem a perspectiva biológica e a abordagem cognitiva do sujeito:

As possibilidades cognitivas - experiências - do indivíduo residem tanto na sua determinação estrutural e biológica, que se modifica continuamente, quanto nas suas interações com o meio. Outro aspecto fundamental na abordagem cognitiva situada e incorporada relaciona-se com o fato de que aquilo que o sujeito conhece, as experiências que vivencia e os resultados das experiências têm uma relação intrínseca com as emoções - fator totalmente desconsiderado pelas primeiras abordagens cognitivas (NASSIF, 2019NASSIF, Mônica Erichsen. Crença e tomada de decisão: perspectiva de análise do comportamento gerencial para o estudo de uso de informação. Ciência da Informação (online), Brasília, v.48, n.2, p. 17-24, 2019., p. 19).

Da mesma forma que Maturana (2004MATURANA, Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2004. 283 p.) e Nassif (2019NASSIF, Mônica Erichsen. Crença e tomada de decisão: perspectiva de análise do comportamento gerencial para o estudo de uso de informação. Ciência da Informação (online), Brasília, v.48, n.2, p. 17-24, 2019.), o neurocientista António Damásio (2004DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 358 p.) amplia os estudos acerca da compreensão do indivíduo informacional considerando aspectos que envolvem o meio, os sentimentos e as emoções como determinantes do comportamento social. “As emoções são um meio natural de avaliar o ambiente que nos rodeia e reagir de forma adaptativa” (DAMÁSIO, 2004DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 358 p., p. 62). Segundo o autor, “cada dia que passa acumulam-se mais dados sobre o fato de que os sentimentos, bem como os apetites e as emoções que os causam, desempenham um papel decisivo no comportamento social” (2004, p. 149-150).

A escolha da abordagem do sujeito deste trabalho considera “os escassos estudos cognitivos e comportamentais relacionados às necessidades e usos de informação por parte de decisores”, conforme destaca Nassif (2019NASSIF, Mônica Erichsen. Crença e tomada de decisão: perspectiva de análise do comportamento gerencial para o estudo de uso de informação. Ciência da Informação (online), Brasília, v.48, n.2, p. 17-24, 2019.). Segunda a autora, existe uma lacuna na literatura relacionada às ações dos sujeitos considerando que apresentam características comportamentais intrínsecas e sociais que determinam suas decisões. Essas características dizem respeito à história de vida do decisor, suas relações e afetos, bem como as tarefas que desenvolve associadas a situações de decisão. “As características dizem respeito também às emoções que determinam as atitudes desses decisores, ligadas aos seus valores, e, sobretudo, às suas crenças” (NASSIF, 2019NASSIF, Mônica Erichsen. Crença e tomada de decisão: perspectiva de análise do comportamento gerencial para o estudo de uso de informação. Ciência da Informação (online), Brasília, v.48, n.2, p. 17-24, 2019., p. 18).

Aspectos subjetivos do sujeito também são destacados nos estudos de Choo (2003CHOO, Chun Wei. A organização do conhecimento: como as organizações usam a informação para criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. Tradução Eliana Rocha. São Paulo: Editora Senac, 2003.), segundo o qual a informação e o insight nascem no coração e na mente dos indivíduos; quanto ao comportamento informacional, a busca e o uso da informação constituem um processo socialmente desordenado, com contingências cognitivas, emocionais e situacionais. Assim, este trabalho parte da posição de que o usuário da informação é uma pessoa cognitiva e perceptiva; de que a busca e o uso da informação constituem um processo dinâmico que se estende no tempo e no espaço; e de que o contexto em que a informação é usada determina de que maneiras e em que medida ela é útil (CHOO, 2003CHOO, Chun Wei. A organização do conhecimento: como as organizações usam a informação para criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. Tradução Eliana Rocha. São Paulo: Editora Senac, 2003., p. 83).

Neste artigo, são considerados sujeitos empreendedores do ambiente acadêmico de duas universidades: a Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, em Belo Horizonte, Minas Gerais, no Brasil, e a Western University, em London, Ontário, no Canadá, onde foi realizado o programa de doutorado sanduíche durante o ano de 2021 e com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001.

O trabalho visa responder à seguinte pergunta de pesquisa: onde está situada a informação que dá suporte à mentalidade empreendedora de alunos e professores empreendedores egressos da UFMG e Western University? O trabalho considera que os indivíduos participantes da amostra, enquanto sujeitos cognoscentes: possuem subjetividades, características biológicas únicas e um arcabouço de experiências que influenciam seus modos de ser e de viver; e estão expostos a influências do meio, caracterizados pelo ambiente familiar e pelo ambiente de empreendedorismo acadêmico no qual estão inseridos. A investigação também objetiva descrever, a partir da história de vida, o contexto familiar dos entrevistados e o contexto acadêmico ao qual estão expostos, considerando o nível de incentivo às práticas de empreendedorismo.

2 REVISÃO DE LITERATURA

Promover a educação para desenvolver as competências empreendedoras e a mentalidade dos cidadãos tornou-se uma missão importante na agenda política educacional (LAALO; HEINONEN, 2016). Segundo as autoras:

Desde 2006 que o sentido de iniciativa e empreendedorismo é reconhecido como uma das oito competências-chave para a aprendizagem ao longo da vida definidas pela União Europeia. As competências-chave são consideradas necessárias para a realização e desenvolvimento pessoal, inclusão social, cidadania ativa e emprego e, portanto, necessárias para todos os membros de uma sociedade baseada no conhecimento (LAALO; HEINONEN, 2016, p. 697).

De acordo com Hisrich, Peters e Shepherd (2014HISRICH, Robert; PETERS, Michael; SHEPHERD, Dean. Empreendedorismo. 9 ed. AMGH Editora, 2014. 472 p.), devido à complexidade e dinamismo das organizações atuais, caracterizadas por mudanças rápidas, substanciais e descontínuas, os gestores precisam ter a mentalidade empreendedora, o que significa a possibilidade de detectar, agir e se movimentar rapidamente, mesmo sob condições incertas, repensando continuamente as ações, estratégias, estrutura, sistemas, cultura organizacional e recursos disponíveis.

Nesta perspectiva, a mentalidade empreendedora vai além de situações em que o indivíduo é dono de um negócio e diz respeito também a ambientes de intraempreendedorismo. “A ideia do intraempreendedorismo contra-argumenta a teoria de que os empreendedores têm necessariamente de abrir seu próprio negócio, ou que eles simplesmente nascem com as características empreendedoras, herdadas de forma hereditária”, afirmam Ferreira, Shigaki e Gonçalves (2022FERREIRA, Frederico Leocádio; SHIGAKI, Helena Belintani; GONÇALVES, Carlos Alberto. Potencial empreendedor interno sob o prisma do mindset de crescimento e dos Cinco Grandes Traços De Personalidade: Proposição de um modelo teórico. Desenvolvimento Em Questão 20.58 (2022): E11628. Web.). Para os autores, uma organização pode investir no comportamento empreendedor dos seus colaboradores, estimulando-os a criar algo novo.

Conforme Schaefer e Minello (2017SCHAEFER, Ricardo; MINELLO, Italo Fernando. Mentalidade Empreendedora: O Modo de Pensar do Indivíduo Empreendedor. Revista de Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, v. 6, n. 3, p.495-524, 2017. Disponível em: https://www.regepe.org.br/regepe/article/view/422/pdf. Acesso em: 16 fev. 2020.
https://www.regepe.org.br/regepe/article...
):

Os modelos mentais, moldados desde a infância com a educação, experiências vivenciadas e relações sociais vividas, definem o modo de percepção e entendimento das coisas, impulsionando a ação empreendedora. São dinâmicos, gerativos e atuam a partir de dimensões dos modelos mentais, tais como conhecimentos constituídos, habilidades emocionais, mente linear, relacionamentos, comunicação, estratégias, criatividade e vocação. Podem se modificar e evoluir a partir da interação entre o ambiente, a cognição e o comportamento do empreendedor (SCHAEFER; MINELLO, 2017SCHAEFER, Ricardo; MINELLO, Italo Fernando. Mentalidade Empreendedora: O Modo de Pensar do Indivíduo Empreendedor. Revista de Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, v. 6, n. 3, p.495-524, 2017. Disponível em: https://www.regepe.org.br/regepe/article/view/422/pdf. Acesso em: 16 fev. 2020.
https://www.regepe.org.br/regepe/article...
, p. 518).

A partir da sistematização teórica proposta por Mocelin e Azambuja (2017MOCELIN, Gustavo; AZAMBUJA, Lucas. Empreendedorismo intensivo em conhecimento: elementos para uma agenda de pesquisas sobre a ação empreendedora no Brasil. Sociologias, Porto Alegre, v.19, n. 46, p.30-75, set/dez 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/15174522-019004602. Acesso em: 06 dez. 2022.
https://doi.org/10.1590/15174522-0190046...
, p. 47), o processo de ação empreendedora tende a ser desempenhado por agentes com determinado perfil e trajetória, que favorecem a iniciativa empreendedora, que emerge a partir de capacidades adquiridas e de acesso a redes e recursos variados. Para os autores, teoricamente, pode-se considerar que a qualidade desses fatores indica o nível de sofisticação do empreendedorismo a ser desempenhado pela massa potencial de empreendedores disponíveis em um contexto. Segundo a teoria da ação empreendedora (McMULLEN; SHEPHERD, 2006McMULLEN, Jeffery; SHEPHERD, Dean. Entrepreneurial action and the role of uncertainty in the theory of the entrepreneur. Academy of Management Review, v. 31, p. 132-52, 2006.), o reconhecimento de uma oportunidade percorre duas etapas básicas, identificação e avaliação. A tomada de decisão, conforme Hastie (2001), refere-se a como as pessoas combinam desejos (utilidades, valores pessoais, objetivos, fins) e crenças (expectativas, conhecimentos, meios) para escolher um curso de ação.

Para Dolabela (2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p.), o empreendedor não pode ser construído, mas apenas motivado a se construir. Na mesma linha conceitual, Schaefer e Minello (2017SCHAEFER, Ricardo; MINELLO, Italo Fernando. Mentalidade Empreendedora: O Modo de Pensar do Indivíduo Empreendedor. Revista de Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, v. 6, n. 3, p.495-524, 2017. Disponível em: https://www.regepe.org.br/regepe/article/view/422/pdf. Acesso em: 16 fev. 2020.
https://www.regepe.org.br/regepe/article...
, p. 517) também destacam que “o empreendedorismo tem sido investigado e descrito não mais como uma forma de saber, mas sim como uma forma de ser”. Então:

Essa forma empreendedora de ser está relacionada com a visão de mundo e de si mesmo do indivíduo empreendedor; seu estilo de vida, protagonismo e liderança diante das situações; padrões de entendimento e reação perante ambiguidades, incertezas e oportunidades, aceitando o risco e o fracasso de suas ações; capacidade de organizar e reorganizar os recursos que tem a disposição; orientação e capacidade de gerar inovação e mudanças em si mesmo e no contexto em que vive; busca da autorrealização (SCHAEFER; MINELLO, 2017SCHAEFER, Ricardo; MINELLO, Italo Fernando. Mentalidade Empreendedora: O Modo de Pensar do Indivíduo Empreendedor. Revista de Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, v. 6, n. 3, p.495-524, 2017. Disponível em: https://www.regepe.org.br/regepe/article/view/422/pdf. Acesso em: 16 fev. 2020.
https://www.regepe.org.br/regepe/article...
, p. 517).

A mentalidade empreendedora proposta por Shaefer e Minello (2017) e voltada à ação empreendedora é constituída a partir de modelos mentais que são moldados desde a infância, com base na educação recebida, experiências e relações vividas. Os autores consideram que esses modelos mentais são dinâmicos e gerativos, e evoluem a partir da interação entre ambiente, cognição e comportamento. Os autores também pontuam a dimensão humanista da ação empreendedora e a visão como seu componente estruturante, e que aqui poderia ser entendida como a visão empreendedora proposta por Filion (1993FILION, Louis Jacques. Visão e relações: elementos para um metamodelo empreendedor. Revista de Administração de Empresas, v. 33, n. 6, pp. 50-61, 1993.).

Ao que Shaefer e Minello (2017) chamam de componente estruturante que leva à ação empreendedora e ao que Dolabela (2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p.) atribui o nome de sonho, não no seu sentido romântico, mas no que se refere à capacidade de o empreendedor formular projetos e realizá-los, Filion (1993FILION, Louis Jacques. Visão e relações: elementos para um metamodelo empreendedor. Revista de Administração de Empresas, v. 33, n. 6, pp. 50-61, 1993.) chama de visão empreendedora. O autor acredita que a visão fornece ao empreendedor um referencial que o ajuda a chegar aonde deseja, e motivar outras pessoas da organização a trabalharem pelo mesmo propósito. Filion (1993) também aponta outras características ligadas à mentalidade empreendedora, tais como energia, liderança e o estabelecimento de relações para promover a evolução da visão, exigindo do gestor habilidades para analisar, imaginar e se comunicar.

Dolabela (2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p.) acredita que, para se colocar em uma “situação empreendedora”, o indivíduo deve estar envolvido por uma emoção capaz de produzir comportamentos empreendedores, como é o caso da busca da realização do sonho. “Ora, somos comprometidos quando algo nos fascina, diante de algo que amamos, que desejamos, que sonhamos” (DOLABELA, 2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p., p. 59). Para o mesmo autor (2009, p. 140), “o conhecimento empreendedor é decorrente da capacidade de se renovar (estabelecer novas relações entre conhecimentos preexistentes para gerar o novo)”.

De acordo com Filion (1999FILION, Louis Jacques. Empreendedorismo: empreendedores e proprietários-gerentes de pequenos negócios. Revista de administração, v;34. n.2, p.5-28, 1999.), quando as pessoas se tornam empreendedoras, a natureza da atividade leva-as a praticar e desenvolver certas características, como, por exemplo, a tenacidade e a criatividade. Da mesma maneira, ao realizarem novos projetos, os empreendedores mantêm-se em constante processo de aprendizagem e evolução, para assegurar a realização de seus desejos. “Entretanto, essa característica não é só de empreendedores, mas também de várias outras categorias de líderes e pessoas bem-sucedidas” (FILION, 1999FILION, Louis Jacques. Empreendedorismo: empreendedores e proprietários-gerentes de pequenos negócios. Revista de administração, v;34. n.2, p.5-28, 1999., p. 11).

Os autores Dolabela (2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p.), Schaefer e Minello (2017SCHAEFER, Ricardo; MINELLO, Italo Fernando. Mentalidade Empreendedora: O Modo de Pensar do Indivíduo Empreendedor. Revista de Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, v. 6, n. 3, p.495-524, 2017. Disponível em: https://www.regepe.org.br/regepe/article/view/422/pdf. Acesso em: 16 fev. 2020.
https://www.regepe.org.br/regepe/article...
) acreditam que empreender é um processo essencialmente humano, que necessita de uma maior investigação nas várias esferas científicas, tendo em vista seu potencial de impacto social e econômico. Para Dolabela (2003), o saber empreendedor ultrapassa o domínio de conteúdos científicos, técnicos, instrumentais; é uma ação associada ao potencial do indivíduo para formular um sonho e buscar a sua realização.

2.1 O sujeito cognoscente e o ambiente analisados sob a perspectiva da Biologia do Conhecer

É impossível tentar compreender as dimensões do indivíduo empreendedor e a formação da sua mentalidade empreendedora sem considerar a influência do meio na sua constituição, conforme ressaltado por Filion (1999FILION, Louis Jacques. Empreendedorismo: empreendedores e proprietários-gerentes de pequenos negócios. Revista de administração, v;34. n.2, p.5-28, 1999.). Para Dolabela (2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p., p. 24), “o espírito empreendedor é um potencial de qualquer ser humano e necessita de algumas condições indispensáveis para se materializar e produzir efeitos”. A partir desta ótica, o autor destaca a relevância do contexto para o desenvolvimento do empreendedor.

Quando analisamos o empreendedor à luz da Ciência da Informação e enquanto sujeito, trazemos para a pesquisa as pontuações de Nassif (2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), segundo a qual, nos estudos de usuários, é preciso que se considere não somente o indivíduo e o meio, mas ambos, simultaneamente, em interação todo o tempo. Em seus estudos no campo, a autora analisa a perspectiva de influência do meio sobre os indivíduos a partir da teoria de Maturana (2004MATURANA, Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2004. 283 p.). O autor considera a análise dos sistemas biológicos e propõe a articulação de ideias entre fisiologia e comportamento conhecida como Biologia do Conhecer. “Como no caso das interações celulares nos metacelulares, é evidente que, do ponto de vista da dinâmica interna de um organismo, o outro representa uma fonte de perturbações” (2004, p. 200). Segundo Maturana (2004), a riqueza ou diversidade dessas interações recorrentes é o que individualiza o sujeito.

Trazer a teoria que Maturana (2004MATURANA, Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2004. 283 p.) propõe, cujos princípios firmam-se na Biologia, para o campo da Ciência da Informação, para Nassif (2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), abre a possibilidade de discutir a informação como a perturbação do meio, que pode ou não ser aceita pela estrutura do indivíduo. Esse mesmo sujeito produz sua resposta, com base em sua “predisposição emocional em aceitar tal perturbação, bem como a sua história de vida e os vários domínios de ação por onde transita” (NASSIF, 2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 151). A Biologia do Conhecer, como abordagem cognitiva, considera o indivíduo se modificando continuamente, tanto em sua estrutura biológica como nas suas interações.

De acordo com Nassif (2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 45), “o indivíduo só conhece algo quando interage com esse algo. Desta forma, os indivíduos têm histórias diferentes porque interagem com o meio de formas diferentes”. Na mesma direção, sobre a apropriação do conhecimento de forma particular, para Dolabela (2009DOLABELA, Fernando. Quero construir a minha história. Rio de Janeiro: Sextante, 2009. 203 p., p. 140), o conhecimento tem a peculiaridade de ser único, porque é impregnado dos valores do indivíduo ou do grupo que o produziu.

A Biologia do Conhecer, quando define o conhecer humano como uma ação efetiva congruente com o meio, considerando as experiências do ser humano individual e social, leva-nos a refletir sobre o que temos discutido também, no âmbito da Ciência da Informação, sobre o conhecimento. O conhecimento não é, como até então se pensava, algo que adquirimos por intermédio de algo externo a nós. Se assumimos a nossa biologia, compreendemos que não adquirimos conhecimento, mas conhecemos a todo instante. Conhecemos algo quando interagimos de forma congruente com esse algo. E nós interagimos com esse algo congruentemente para “incorporarmos” o conhecimento sobre ele, considerando a nossa ontogenia e a nossa filogenia (NASSIF, 2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 46-47).

Para Nassif (2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 45), “o ser humano é, ao mesmo tempo, social e individual: ao mesmo tempo em que vive em contínua interação com o ser dos outros, vive uma deriva de experiências individuais intransferíveis”. Essas experiências prévias estão diretamente ligadas ao conjunto de crenças de cada indivíduo. Enquanto seres em ação congruente com o meio e com os outros, somos dotados de outros elementos subjetivos que Damásio (2004DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 358 p., p. 189) também traz para a análise: “a emoção e o sentimento desempenham papel principal no comportamento social”.

Tal como ressaltam Cunha, Amaral e Dantas (2015CUNHA, Murilo Bastos da; AMARAL, Sueli Angélica do; DANTAS, Edmundo Brandão. Manual de estudo de usuários da informação. São Paulo, SP: Atlas, 2015. 448p., p. 55-56), “vivemos uma nova realidade, onde a informação é cada vez mais enfatizada pela ação constante da subjetividade humana em seus desejos e demandas em relação à informação”. Os fatores cognitivos envolvidos nos processos de busca e uso da informação também foram citados por Alvarenga (2003ALVARENGA, Lídia. Representação do conhecimento na perspectiva da Ciência da Informação em tempo e espaços digitais. Encontros Bibli: Revista Eletrônica de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Florianópolis, v.8, n.15, 2003. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/eb/article/view/1518-2924.2003v8n15p18/5233. Acesso em: 16 fev. 2020.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/eb/...
, p. 24). Conforme a autora, “o ato de interpretar é inerente a qualquer abordagem aos conhecimentos, qualquer que seja o grau de suposta clareza com que esses tenham sido produzidos”.

“A predisposição emocional para que o indivíduo conheça algo é também um fator preponderante que não estamos levando em conta quando tratamos sobre aprendizagem e conhecimento” (NASSIF, 2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 47). Da mesma forma, Ritchie (2003RITCHIE, Jane. The applications of qualitative methods to social research. In: ______. Qualitative research practice: a guide for social science students and researchers. London: SAGE Publications, 2003. 352 p.) alerta que, ao desconsiderar aspectos afetivos, especialistas em informação negligenciam um dos principais elementos que direcionam o uso da informação. De acordo com Nassif (2013NASSIF, Mônica Erichsen. O decisor como usuário da informação: relações entre a gestão da informação e do conhecimento, cognição e perspectivas futuras. Perspectivas em Gestão & Conhecimento, João Pessoa, v.3, Número Especial, p. 163-172, out. 2013.), os estudos contemporâneos no campo da Ciência da Informação trouxeram à tona a necessidade de se considerar o decisor como sujeito cognoscente que apresenta características comportamentais intrínsecas e sociais.

Essas características dizem respeito à história de vida do decisor, às relações que estabelece e como as estabelecem, as tarefas que desenvolve associadas às situações de decisão, bem como as emoções que determinam as suas atitudes, ligadas aos seus valores e, sobretudo, às suas crenças (NASSIF, 2013NASSIF, Mônica Erichsen. O decisor como usuário da informação: relações entre a gestão da informação e do conhecimento, cognição e perspectivas futuras. Perspectivas em Gestão & Conhecimento, João Pessoa, v.3, Número Especial, p. 163-172, out. 2013., p. 170).

Também para Choo (2003CHOO, Chun Wei. A organização do conhecimento: como as organizações usam a informação para criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. Tradução Eliana Rocha. São Paulo: Editora Senac, 2003.), as atitudes do indivíduo influenciam o uso da informação, o que é fruto da educação, do treinamento, da experiência passada e das suas preferências pessoais. Para ele, o uso da informação, sob a ótica do usuário e suas características subjetivas, é um processo confuso, desordenado, sujeito aos caprichos da natureza humana, como qualquer outra atividade. Segundo o autor, o estudo das necessidades e dos usos da informação é transdisciplinar, ligando áreas como a Psicologia Cognitiva, estudos de Comunicação, difusão de inovações, economia, armazenamento de informações, teoria organizacional e Antropologia Social. Conforme o autor, um modelo de uso da informação deve englobar a totalidade da experiência humana: pensamentos, sentimentos, ações e ambiente.

Em seus estudos, Choo (1998CHOO, Chun Wei (ed.). Information management for the intelligent organization: the art of scanning the environment. Hedford: New Jersey; Learned Information, 1998. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=IDlDwy9UfmsC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_vpt_buy#v=twopage&q&f=false. Acesso em: 14 nov. 2022.
https://books.google.com.br/books?id=IDl...
) considerou que o comportamento informacional como um todo é influenciado pela situação-problema (dimensões organizacionais internas e externas, com suas normas e incertezas), pelos papéis organizacionais dos gestores e por seus traços pessoais. “Os traços gerenciais referem-se a características pessoais como a especialização funcional do gestor ou seu estilo cognitivo” (CHOO, 1998CHOO, Chun Wei (ed.). Information management for the intelligent organization: the art of scanning the environment. Hedford: New Jersey; Learned Information, 1998. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=IDlDwy9UfmsC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_vpt_buy#v=twopage&q&f=false. Acesso em: 14 nov. 2022.
https://books.google.com.br/books?id=IDl...
, p. 65, tradução nossa). O autor destaca que os gestores - nesta tese representados pelos empreendedores entrevistados - não apenas consomem informação, como também são criadores de informação e conhecimento, e é nessa função que eles aceleram o processo de aprendizagem organizacional.

3 Procedimentos metodológicos

Os entrevistados selecionados para participar deste trabalho foram escolhidos por amostragem não probabilística, sendo eles, necessariamente, alunos e professores empreendedores egressos da UFMG e Western University. De acordo com Malhotra (2006MALHOTRA, Naresh. Pesquisa de marketing: uma orientação aplicada. Tradução Laura Bocco. 4 ed. Porto Alegre: Bookman, 2006. 720 p.), a amostragem não probabilística confia no julgamento pessoal do pesquisador, que pode, arbitrária ou conscientemente, decidir os elementos a serem incluídos na amostra. A partir da familiarização com os projetos desenvolvidos nos campi dessas universidades, e da interação com seus responsáveis, os potenciais entrevistados para a amostra foram indicados e qualificados. Os sujeitos selecionados declararam enquadrar-se em pelo menos um dos seguintes critérios: ter participado de algum programa de incubação ou aceleração na universidade; ter constituído uma empresa a partir de um projeto acadêmico, podendo ela estar ativa ou não; ter recebido algum tipo de financiamento para levar sua pesquisa acadêmica ao mercado; ter sido reconhecido pelo mérito de seu projeto de empreendedorismo acadêmico; ou ser um promotor do tema empreendedorismo acadêmico na sua universidade.

Todos os participantes assinaram previamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), declarando-se cientes sobre os riscos da pesquisa, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UFMG sob o número de parecer 4.330.556. A pesquisa somente foi autorizada pela Western University após a aprovação das diretrizes do projeto pelo Escritório de Ética em Pesquisa Humana da universidade, que se orientou a partir dos documentos apresentados e aprovados pelo Comitê de Ética da UFMG, e após a apresentação de conclusão do certificado do curso em ética de pesquisa com seres humanos, conforme as normas do Governo Canadense (Tri-Council Policy Statement: Ethical Conduct for Research Involving Humans Course on Research Ethics).

Em cada uma das duas universidades, a amostra escolhida foi de sete entrevistados, perfazendo o total de 14 sujeitos analisados nesta pesquisa. Tanto no Brasil como no Canadá, buscou-se constituir uma amostra diversificada, com entrevistados do sexo feminino e masculino, profissionais jovens e maduros, e oriundos de escolas bastante diferentes, tais como: Química, Física, Ciência da Computação, Engenharias, Ciências Biológicas, Psicologia, Administração de Empresas, Música, Bioquímica e Ciências da Saúde. Todas as entrevistas, em função da pandemia mundial de Covid-19, foram realizadas por videoconferência, com a ferramenta Google Meet, e tiveram duração que variou de 42 minutos, a mais curta, a duas horas e 24 minutos, a mais longa. Todos os entrevistados mantiveram a câmera aberta durante toda a entrevista, com exceção de dois entrevistados brasileiros. A pesquisa possui um total de 20 horas e 15 minutos de gravações. As conversas estão arquivadas em áudio, foram transcritas para análise e traduzidas do inglês, como foram realizadas, no caso das entrevistas feitas no Canadá.

As respostas dos entrevistados às questões da pesquisa, apuradas na fase de coleta de dados, foram minuciosamente organizadas em unidades de análise - sentenças, frases, parágrafos ou textos completos das entrevistas - para que pudessem ser tratadas em planilhas à luz da técnica de análise de conteúdo de Bardin (1977BARDIN Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977.), que objetiva dar sentido aos documentos que embasam uma pesquisa científica qualitativa. Importante apontar que, assim como afirma Campos (2004CAMPOS, Claudinei José Gomes. Rev Bras Enferm, Brasília (DF) 2004 set/out;57(5):611-4, p. 612), “a técnica de análise de conteúdo refere-se ao estudo tanto dos conteúdos nas figuras de linguagem, reticências, entrelinhas, quanto dos manifestos”. Assim, além das falas propriamente ditas dos entrevistados, nesta pesquisa foram considerados aspectos humanos subjetivos, captados, por exemplo, através da entonação de voz, expressão facial e gesticulação dos sujeitos, bem como o contexto social e histórico sob o qual seus discursos foram produzidos.

Considerando, portanto, os paradoxos da análise de entrevistas e, numa tentativa de se preservar o que Bardin (1977BARDIN Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977., p. 90) classifica como “a equação particular do indivíduo”, ao mesmo tempo podendo inferir algo a partir dessas falas, o processo de codificação das unidades de análise considerou categorias de conteúdos organizados conforme as questões da entrevista estruturada, e, para a interpretação dos resultados, os dados foram agrupados conforme sua frequência, ou seja, a “repetição de conteúdos comuns à maioria dos respondentes” (Campos, 2004CAMPOS, Claudinei José Gomes. Rev Bras Enferm, Brasília (DF) 2004 set/out;57(5):611-4, 614).

A escolha pela técnica de entrevista baseada na história de vida tópica, focada no aspecto específico da vivência do entrevistado em empreendedorismo, trouxe para a análise informações relacionadas a memórias, experiências e sentimentos que permearam a trajetória dos sujeitos da pesquisa. A técnica de entrevista baseada em história de vida tópica, usada por exemplo na tese de Ramos (2017RAMOS, Rubem Borges Teixeira. Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades: um estudo etnometodológico sobre o leitor e a leitura de histórias em quadrinhos de super-heróis da Marvel e da DC Comics. 2017. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), no âmbito da Ciência da Informação, busca identificar algum episódio marcante que tenha ocorrido com o entrevistado e o uso do conhecimento adquirido para suas ações futuras. Algumas perguntas tiveram essa abordagem e a intenção de evidenciar fatos ou pessoas determinantes para a jornada empreendedora. Além disso, na elaboração do roteiro de entrevista, foram consideradas as questões levantadas por Nassif (2019NASSIF, Mônica Erichsen. Crença e tomada de decisão: perspectiva de análise do comportamento gerencial para o estudo de uso de informação. Ciência da Informação (online), Brasília, v.48, n.2, p. 17-24, 2019., p. 23) sobre a necessidade de se contemplar, nos estudos de usuários, “fatores que determinam como e por que os gestores escolhem determinadas fontes e conteúdos e o quanto essas escolhas são determinadas por aspectos considerados subjetivos, como as crenças”.

Para avaliar a adequação do roteiro de entrevista aos objetivos propostos da pesquisa, foi realizado um pré-teste com um empreendedor selecionado na UFMG conforme os cinco critérios descritos anteriormente. Esta primeira entrevista foi realizada em dezembro de 2020, por videoconferência. O instrumento de pesquisa confirmou-se adequado e, como os dados apurados também se mostraram satisfatórios, esta entrevista foi incluída como parte da tese. Na sequência, as entrevistas foram realizadas no Canadá, na Western University, durante o período de outubro de 2021 a janeiro de 2022. As demais entrevistas realizadas no Brasil, na UFMG, ocorreram no período de junho a agosto de 2022 - todas também por videoconferência. Aqui, vale ressaltar que o calendário de entrevistas foi interrompido algumas vezes em função da pandemia: o programa de doutorado sanduíche teve atraso de um ano e alguns entrevistados solicitaram remarcações em função de casos de Covid-19.

Foram feitas 20 perguntas para cada um dos entrevistados, sendo feitas elucidações sempre que necessário, bem como intervenções para clarificar as respostas. As perguntas foram divididas em três blocos, conforme os seguintes objetivos: dados de identificação do entrevistado, contexto acadêmico e mentalidade empreendedora; história de vida do entrevistado, memórias, crenças e experiências, bem como suas conexões com o empreendedorismo; fontes de informação, comportamento informacional, interações sociais e visão de futuro. As perguntas da pesquisa, organizadas conforme os três blocos mencionados, foram desmembradas em 32 categorias de conteúdos ou unidades de análise, conforme a tabela a seguir.


Categorias de conteúdos para análise de dados

Na análise de dados, feita à luz da literatura apresentada, não há a intenção de se comparar os dois países, em termos de resultados obtidos, apenas correlacioná-los, ponderando suas especificidades e complexidades. Vale ressaltar isso pela distinção dos ambientes analisados - UFMG, no Brasil, e Western University, no Canadá -, seja em termos de localização, história, cultura, inovação, estrutura organizacional, parcerias e investimentos recebidos, dentre outros fatores, e pelas diferenças de características das duas amostras de empreendedores, professores, no caso da UFMG, e ex-alunos, no caso da Western University.

4 Apresentação e análise de resultados

Na narrativa de suas histórias de vida, os entrevistados do Brasil e do Canadá foram convidados a relatar as conexões de suas experiências com o empreendedorismo. A maioria destacou a influência de seus pais de forma bem consistente, seja através do reconhecimento ao incentivo deles ao trabalho, do exemplo marcante enquanto profissionais que trabalharam duro ou mesmo em função da motivação que deram aos participantes da pesquisa enquanto crianças. Os pais foram mencionados por cinco entrevistados brasileiros e por seis entrevistados canadenses. O contexto familiar no qual cresceram, que pode ser na pesquisa caracterizado como um ambiente de desenvolvimento da mentalidade empreendedora, também foi bastante destacado por esses entrevistados, que relataram dificuldades pelas quais os pais passaram, a origem humilde, as características das suas cidades, situações desafiadoras e que envolveram doenças graves que tiveram, perdas financeiras e toda sorte de ensinamentos que receberam, valores e crenças que construíram.

Quando buscamos entender a história de vida dos empreendedores participantes desta pesquisa, na maior parte das vezes, dois sujeitos roubam a cena: as menções ao pai ou à mãe. Há sempre elementos marcantes envolvendo a infância, sejam em memórias e experiências positivas ou não. Essas evidências estão de acordo com Schaefer e Minello (2017SCHAEFER, Ricardo; MINELLO, Italo Fernando. Mentalidade Empreendedora: O Modo de Pensar do Indivíduo Empreendedor. Revista de Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, v. 6, n. 3, p.495-524, 2017. Disponível em: https://www.regepe.org.br/regepe/article/view/422/pdf. Acesso em: 16 fev. 2020.
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), segundo os quais o modelo mental do empreendedor é moldado desde a infância, modifica-se e evolui, influenciado pelo ambiente, a cognição e o próprio comportamento humano. São por essas razões que que Dolabela (2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p.) ressalta a relevância da educação empreendedora desde a “tenra idade”. Abaixo, alguns trechos destacados dos relatos dos entrevistados na UFMG:

Meus pais são imigrantes e não tiveram a chance de estudar. A filosofia do meu pai era trabalhar. Com 12 anos, eu estudava à noite e tive vários subempregos. Trabalhei em padaria, oficina mecânica, escritório, o que foi muito legal, eu gostava (Entrevistado 1).

Meu pai trabalhava numa siderúrgica. A influência daquela grande empresa na nossa porta é algo que me marcou muito. A cidade, a vida das pessoas, o salário e a sobrevivência estavam associados a ela. Minha mãe era diretora de colégio e trouxe esses valores de estudar muito, querer ser professora (Entrevistada 2).

Na minha cidade, todos eram pequenos empreendedores; meu pai tinha uma fábrica de doce. Isso ajuda a gente a tomar certas atitudes (Entrevistada 3).

O meu pai foi dono de cinema, fazendeiro, não era bom administrador, perdeu tudo. A minha mãe foi uma mulher extremamente batalhadora e dedicou a vida a criar os sete filhos costurando. Foi uma guerreira, a inspiração profissional da minha vida toda (Entrevistado 5).

Eu tive poliomielite e com isso muitas cirurgias. A mais pesada e mais difícil foi com 14 anos. Meus pais foram extremamente importantes nesse processo. Meu pai era médico, me ajudou muito na doença, cuidou muito desse lado, então, essa herança vem de lá, do berço, a persistência e coragem (Entrevistado 7).

Esses relatos reforçam a relevância do ambiente familiar na constituição da mentalidade empreendedora, deixando claro que as informações, experiências e valores adquiridos ao longo da história de vida têm papel determinante nas ações e decisões desses sujeitos de pesquisa. Essa perspectiva corrobora com as afirmações de Nassif (2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), que ressalta o lado humano dos usuários de informação, que vivem uma sequência de experiências pessoais e intransferíveis, ao mesmo tempo em que seguem se modificando nas interações com o meio e outros indivíduos. Da mesma maneira que Choo (2003CHOO, Chun Wei. A organização do conhecimento: como as organizações usam a informação para criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. Tradução Eliana Rocha. São Paulo: Editora Senac, 2003.) sustenta em seus estudos, o processo de busca e uso de informação é nitidamente permeado por questões subjetivas, aspecto ressaltado também por Wilson (1997WILSON, Tom D. Information behaviour: an interdisciplinary perspective. Information Processing and Management, v. 33, n. 4, p.551-572,1997.) e Cunha, Amaral e Dantas (2015CUNHA, Murilo Bastos da; AMARAL, Sueli Angélica do; DANTAS, Edmundo Brandão. Manual de estudo de usuários da informação. São Paulo, SP: Atlas, 2015. 448p.).

A Entrevistada 3 disse que quem mais influenciou sua trajetória empreendedora foi seu orientador de doutorado: “Com quase 80 anos, ele continua trabalhando, não para. Muito ativo. Só de ver o jeito dele, me deu vontade de empreender”. No entanto, a Entrevistada 3 relatou a iniciação precoce no empreendedorismo aos 14 anos, criando uma escola dentro de casa e, inclusive, citando o exemplo dos pais empreendedores que abriram um negócio bem-sucedido a partir de uma enchente, após os 50 anos. Dessa maneira, a informação que dá suporte à mentalidade empreendedora também parece ser anterior à experiência no ambiente acadêmico. Na universidade, ao que tudo indica, o caminho empreendedor passou a ser “sedimentado” a partir de referências inspiradoras. Assim como afirma Wilson (1997WILSON, Tom D. Information behaviour: an interdisciplinary perspective. Information Processing and Management, v. 33, n. 4, p.551-572,1997.), esse processo de uso de informação não é linear: os usuários tomam decisões pautadas por motivações preexistentes. Da mesma forma, Spiegel e Caulliraux (2016SPIEGEL, Thaís; CAULLIRAUX, Heitor. Efeitos da experiência no processo decisório: uma investigação a partir dos elementos da cognição. Ciências & Cognição, v. 21, n. 1, p. 074-099, 2016.) relatam as implicações da experiência no processo cognitivo do gestor, apontando, dentre outras questões, que o registro das experiências na memória influencia inconscientemente o processo de tomada de decisão.

Já no caso do Entrevistado 4, a referência familiar não ficou tão evidente, ao contrário. Segundo ele, por mais que tivesse uma vida confortável trabalhando para uma grande empresa, se “desgastava” com tarefas repetitivas no trabalho e mudou um pouco a história da família, de funcionários públicos: “Quando eu abri uma empresa, minha esposa achou um absurdo. Depois fui reconhecido”. O Empreendedor 6 também não trouxe elementos familiares vinculados a situações de empreendedorismo.

Em termos de importantes lições aprendidas ao longo da vida, o Entrevistado 7 demonstrou sabedoria ao afirmar: “A vida ensina todo dia”. Ele trouxe uma questão fundamental, muito comum nas histórias de todos os empreendedores: gostar do que faz. “Eu gosto do que eu faço, muito. Gostar do que faz é fundamental, ter prazer em fazer”. Talvez por este motivo, assim como ele, que tem planos de trabalho até os 95 anos (“eu tenho um acordo com meus médicos”), os empreendedores entrevistados não têm planos de parar. Há sempre um projeto na pauta, seja ligado à ciência ou algo pessoal. Esse exemplo vai totalmente ao encontro da afirmativa de Dolabela (2009DOLABELA, Fernando. Quero construir a minha história. Rio de Janeiro: Sextante, 2009. 203 p., p. 132): “É difícil encontrar um empreendedor que queira se aposentar ou que espere ansiosamente pelo fim de semana para se desvencilhar do trabalho. E não são poucos os que raramente tiram férias”.

Alguns entrevistados pontuaram valores que consideram “a base”, como honestidade, ética e trabalho duro (citados por dois empreendedores). No caso do Entrevistado 1, ficou clara a importância para ele de ser “útil pro mundo”. Ao mesmo tempo, ele valoriza a “sensação de aproveitar o tempo e fazer algo legal”, que o acompanha sempre: “Essa questão de querer muito, sonhar e estruturar, isso dá significado pra vida. Deixar uma marca, é bem isso, ter a sensação de que eu aproveitei a minha vida”. Para a Entrevistada 3, “a gente leva rasteira muito frequentemente. Eu resolvi seguir o caminho inverso. Eu aprendi que, se puder ajudar uma pessoa, eu ajudo, o tempo inteiro. Isso tem um retorno impressionante”. A Entrevistada 2 disse que seu grande aprendizado é “vamos resolver os conflitos pra gente realizar alguma coisa que preste”.

A relação dos entrevistados com a questão dos valores, muitos deles assimilados no ambiente familiar, corrobora com o fato de que os sujeitos enquanto gestores apresentam características comportamentais intrínsecas e sociais que determinam suas decisões, tal como afirma Nassif (2019NASSIF, Mônica Erichsen. Crença e tomada de decisão: perspectiva de análise do comportamento gerencial para o estudo de uso de informação. Ciência da Informação (online), Brasília, v.48, n.2, p. 17-24, 2019., p. 18): “As características dizem respeito também às emoções que determinam as atitudes desses decisores, ligadas aos seus valores, e, sobretudo, às suas crenças”.

Em relação às motivações para empreender e o propósito de vida, quatro dos sete entrevistados mencionaram o foco no outro, na sociedade, no impacto, na mudança que o país precisa. “Entendi que o empreendedorismo era um elemento central da educação dos alunos, é o que vai fazer o Brasil mudar de cara” (Entrevistado 1). Para a Entrevistada 2, “o propósito tem a ver com o sentimento de querer dar uma contribuição. Uma palavra-chave pra mim é contribuição”. Já a Entrevistada 3: “Gosto de usar o conhecimento criado na universidade como um produto importante para a sociedade, uma inovação. Trazer um benefício para a população de maneira geral é o que mais me toca”. Conforme o Entrevistado 4, o que o motiva no empreendedorismo é “fazer a roda continuar girando, as pessoas terem uma vida melhor, conseguirem dar certo, serem felizes”. Os demais entrevistados apontaram motivações relacionadas a satisfação pessoal em gerar inovação ou lidar com desafios que não são bem definidos e respostas que não são conhecidas.

As histórias de vida dos empreendedores canadenses são distintas, claro, mas possuem um forte elemento em comum quando comparadas às histórias dos entrevistados brasileiros: o encorajamento dado pelos pais para que, desde crianças, acreditassem em si mesmos e tomassem suas próprias decisões, sendo permitido errar e sendo o fracasso compreendido como parte do processo. A forte influência dos pais percebida nas respostas mostra quão assertiva foi a participação da família na formação da mentalidade empreendedora dos entrevistados, indo ao encontro das recomendações de Dolabela (2009DOLABELA, Fernando. Quero construir a minha história. Rio de Janeiro: Sextante, 2009. 203 p., p. 133), que é contundente ao afirmar que empreendedorismo se aprende em casa, “diz respeito à cultura” e que, pela sua natureza, torna-se compulsória a participação dos pais no desenvolvimento empreendedor dos filhos. Os depoimentos a seguir mostram a força dos pais na influência da carreira desses empreendedores:

Acho que meus pais me incentivaram a ser um empreendedor, mas eles não perceberam isso. Minha mãe nunca dizia ‘não faça isso’. Ela sempre dizia: ‘é sua escolha, você precisa tomar suas próprias decisões’ (Entrevistada 1).

Minha mãe e meu pai foram muito intencionais em me deixar seguir esse caminho (da Música). Eles não falaram ‘oh, ela nunca vai conseguir um emprego’. Sempre foi meio que ‘oh, você será a próxima Céline Dion’ (Entrevistada 3).

Eu diria que a maior influência na minha vida foi provavelmente da minha mãe em termos de trabalho duro. Ela sempre dizia ‘coma tudo que está no seu prato, tem gente em uma situação pior, você tem sorte’ (Entrevistada 5).

Acho que meus pais não eram muito rígidos, eram tolerantes, tenho muita sorte. O apoio que eles me deram é toda a razão pela qual estou aqui. Não conseguiria sem eles (Entrevistado 6).

Meus pais, quando eu cometia erros financeiros, estavam lá para ajudar. Ter a segurança psicológica para poder encontrar meu próprio caminho e cometer meus próprios erros foi incrível em minha vida (Entrevistado 7).

Alguns pais foram identificados também como empreendedores, porém, a maior influência não está necessariamente nesta experiência, tal como ilustra este depoimento: “Havia vários empreendedores na minha família, mas minha avó foi a influência mais forte. Ela nunca foi empreendedora, mas era uma pessoa que via oportunidades e fazia algo” (Entrevistada 3). A entrevistada contou que, em um episódio da infância, seu tio estava tentando vender um barco sem sucesso. A avó a chamou e, secretamente, pintaram o barco do tio, que foi vendido logo em seguida. Especialmente no que diz respeito aos estudos de Dolabela (2009DOLABELA, Fernando. Quero construir a minha história. Rio de Janeiro: Sextante, 2009. 203 p., p. 133), este relato demonstra que “empreendedorismo aprende-se muito mais pelo que não é dito, mas feito” e que “valores e crenças são transferidos por outros canais além da razão”. O exemplo também corrobora com a afirmação de Dolabela (2003) e Schaefer e Minello (2017SCHAEFER, Ricardo; MINELLO, Italo Fernando. Mentalidade Empreendedora: O Modo de Pensar do Indivíduo Empreendedor. Revista de Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, v. 6, n. 3, p.495-524, 2017. Disponível em: https://www.regepe.org.br/regepe/article/view/422/pdf. Acesso em: 16 fev. 2020.
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), segundo os quais empreender tem mais relação com o modo de ser do que com o saber.

Em termos de lições aprendidas ao longo da vida, os entrevistados canadenses citaram ensinamentos importantes que trazem consigo: ter consideração pelas pessoas (duas citações), estar aberto a oportunidades e aceitar novos pontos de vista (duas citações), aprender a correr riscos, ser honesto, dosar o trabalho com a vida pessoal, ter momentos de reflexão, ser humilde e estar satisfeito com o que se tem. A fala do Entrevistado 6 é bastante significativa neste sentido: “Aprendi que coragem anda de mãos dadas com humildade, e você não pode realmente ter uma sem a outra”. Fica nítida, portanto, a experiência dos entrevistados associada a suas emoções, que determinam atitudes baseadas em valores, tal como pontua Nassif (2019NASSIF, Mônica Erichsen. Crença e tomada de decisão: perspectiva de análise do comportamento gerencial para o estudo de uso de informação. Ciência da Informação (online), Brasília, v.48, n.2, p. 17-24, 2019.), e crenças, assim definidas por Krueger Jr. (2007, p. 124): “suposições fortes e profundamente arraigadas que sustentam nossa criação de sentido e nossa tomada de decisão”.

Outro aspecto abordado na entrevista foi a motivação para empreender. Os entrevistados canadenses citaram questões ligadas à sustentabilidade e ao impacto na vida das pessoas (três citações); à geração de empregos que têm significado e à criação de algo novo. Dois empreendedores relataram que seus negócios começaram a partir da solução de problemas pessoais, como a busca de alimentos mais saudáveis e a busca de tratamento médico para doenças degenerativas. Os entrevistados citaram aspectos pessoais, como: “Eu não quero desperdiçar minha vida, eu quero fazer coisas grandes e legais” (Entrevistada 1).

Todos os entrevistados conectaram a questão do empreendedorismo com seu propósito de vida: “Ideias é o que me motiva, nunca é sobre ficar rico. Isso é um efeito de fazer aquilo que eu realmente amo” (Entrevistado 4). Para os empreendedores participantes da pesquisa, os produtos do seu trabalho devem, em alguma medida, melhorar o planeta em termos de sustentabilidade e gerar soluções que garantam maior qualidade de vida para as pessoas: “Eu quero impactar, ajudar as pessoas. Se alguém me oferecer um trabalho que é apenas um trabalho, eu não vou querer” (Entrevistada 5); “Eu me preocupo em contribuir para que a tecnologia solucione problemas” (Entrevistado 6).

A técnica de entrevista baseada na história de vida tópica dos empreendedores mostrou-se bastante efetiva para trazer à análise as informações necessárias para cumprir os objetivos propostos para esta tese. Em vários momentos, foram observadas as características subjetivas do indivíduo apontadas por Bardin (1977BARDIN Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977.), tais como pausas nas falas, respiros profundos, diferentes entonações de voz, gesticulações e até mesmo foram registrados momentos em que os entrevistados se mostraram emocionados ao trazerem para o contexto da entrevista memórias afetivas, sobretudo, relacionadas à família. Essas evidências reforçam o papel dessas referências pessoais na constituição da mentalidade empreendedora dos entrevistados tanto no Brasil como no Canadá.

No que diz respeito aos Cinco Grandes Traços de Personalidade e os fatores identificados por Costa e McCrae (1992) - extroversão, amabilidade, abertura, conscienciosidade e neuroticismo -, nota-se a prevalência dos entrevistados nos grupos de abertura, no caso brasileiro, e extroversão, no caso canadense, embora muitos tenham se identificado com outras características da taxonomia. Nenhum deles, entretanto, citou o neuroticismo como seu traço de personalidade. Esses traços biológicos somados às características do meio - familiar e acadêmico - parecem ter uma relação complementar e simbiótica. Quando o empreendedor tem características natas e encontra o estímulo no seu ambiente, certamente, apresenta melhores condições de se desenvolver de forma estruturada. Nem só a natureza, nem só o meio, mas ambos e em interação, tal como afirmam Nassif (2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.) e Maturana (2004MATURANA, Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2004. 283 p.).

Absolutamente todos os entrevistaram disseram perceber oportunidades para novos negócios no seu ambiente, mesmo que não tomem a iniciativa dessas ações, o que confirma a natureza empreendedora desses sujeitos de pesquisa.

Alguns valores foram ressaltados pelos entrevistados em diversos momentos do roteiro de entrevista. Dentre eles, as palavras mais frequentes foram persistência e resiliência, corroborando com os estudos do campo sobre a mentalidade empreendedora. Da mesma maneira, os entrevistados dos dois países demonstram confiança na descrição da sua visão de futuro e como pretendem alcançar seus sonhos (FILION, 1993FILION, Louis Jacques. Visão e relações: elementos para um metamodelo empreendedor. Revista de Administração de Empresas, v. 33, n. 6, pp. 50-61, 1993.), reforçando suas intenções de prosseguirem sendo protagonistas de seu futuro, contribuindo e fazendo o que amam (DOLABELA, 2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p.).

5 Os ambientes de empreendedorismo acadêmico

Em relação aos ambientes de empreendedorismo acadêmico das duas universidades analisadas, vale ressaltar que ambas estão classificadas entre as dez melhores instituições de ensino dos seus respectivos países, sendo absolutamente reconhecidas pela alta excelência da produção científica e a geração de inovações, o que se reflete no número de patentes envolvidas. No entanto, estruturalmente, pelas características culturais, sociais e econômicas, as diferenças entre os dois ambientes são absolutamente grandes quanto às ações voltadas ao empreendedorismo acadêmico.

No caso da UFMG, considerando que o ambiente acadêmico não oferece grandes incentivos à prática empreendedora, era esperada a referência a fatores anteriores ou externos à universidade, frutos das experiências pessoais e profissionais, intransferíveis, como afirma Nassif (2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), influenciadas continuamente pela estrutura biológica, interações sociais e meio. Dentre os sete entrevistados brasileiros, cinco fizeram menções claras a seus pais no que diz respeito a memórias relacionadas ao empreendedorismo. Outro aspecto que se sobressaiu é o fato de que três deles (Entrevistados 1, 5 e 7) tiveram experiências internacionais de doutorado e pós-doutorado, o que se mostrou bastante contundente para que decidissem a investir em seus negócios. A decisão, no entanto, não pode ser atribuída ao ambiente acadêmico das universidades no exterior apenas; os mesmos três entrevistados mencionaram situações da infância correlacionadas às características empreendedoras que herdaram. “Essa herança vem de lá, do berço, a persistência e coragem” (Entrevistado 7).

Quando analisado o ambiente de empreendedorismo da universidade canadense, uma das primeiras surpresas que tive foi me deparar com uma obra no centenário campus da Western: um prédio novo e moderno para abrigar, exclusivamente, os programas de empreendedorismo e inovação. Paralelamente a esse investimento que demonstra a relevância do tema para a centenária universidade, ficou evidente também o protagonismo da escola de negócios da Western, a Ivey Business School, na coordenação dos programas de empreendedorismo para todas as escolas dentro da universidade. Há esforços claros e coordenados para buscar o envolvimento desses grupos menos tradicionais na temática do empreendedorismo.

A maior surpresa com as respostas dos entrevistados, sem dúvida, aconteceu com os participantes da amostra no Canadá. Embora a Western University possua um dos mais avançados programas de empreendedorismo acadêmico do mundo e com significativo impacto no contexto de negócios, uma das primeiras evidências observadas é que a mentalidade empreendedora dos entrevistados também parece ter sido formada anteriormente ao ingresso na universidade. A partir da história de vida dos sujeitos analisados, das emoções e crenças expressas por meio de suas falas, e valores ressaltados ao longo das entrevistas, ficou clara a forte influência dos pais e familiares na constituição desses sujeitos de pesquisa. Chama a atenção a resposta da maioria dos participantes da amostra canadense - seis de sete entrevistados - quando afirmam que, mesmo sendo relevante para sua formação, a universidade não foi a responsável pela decisão de empreender. Quatro dos sete entrevistados já possuíam alguma experiência com negócios antes ou atitude empreendedora ao ingressar na universidade. É inegável, porém, que a riqueza do ambiente acadêmico, de forma adicional, contribuiu para que esses empreendedores pudessem se profissionalizar e alçar voos ainda maiores a partir do conhecimento e apoio adquiridos.

6 Conclusões

Na busca pela compreensão da mentalidade empreendedora na perspectiva da Ciência da Informação, a grande surpresa da pesquisa está no encontro de similaridades ao analisar o comportamento de sujeitos de realidades tão distantes. Com base nas respostas dos participantes desta pesquisa, é possível inferir que a informação determinante para a decisão de empreender não está situada no ambiente acadêmico, onde, especialmente no caso da universidade canadense, são desenvolvidas uma série de iniciativas voltadas à formação de novos empreendedores. A informação que dá suporte à mentalidade empreendedora de alunos e professores empreendedores egressos da UFMG e Western University, em ambos os estudos de caso, está situada, conforme a maioria dos respondentes, no ambiente familiar. É neste espaço onde primeiro apreendemos valores, onde emoções e experiências permanecem vivas na memória, onde se formam crenças que nos sustentam durante toda a jornada.

Os resultados da pesquisa chamam a atenção pela similaridade de respostas baseadas em memórias afetivas, emoções e crenças que nos fazem semelhantes enquanto seres humanos. Nesse sentido, a gama de informações evidenciada e mais diretamente relacionada à construção da mentalidade empreendedora vem de experiências anteriores à universidade e muito conectadas aos valores familiares, o demonstra a relevância dessas informações que fazem parte da história de vida dos sujeitos de pesquisa. As emoções ao relatarem essas memórias foram percebidas em ambos os grupos e foram pontos de destaque nas entrevistas, representadas por pausas, sorrisos, momentos de seriedade e até mesmo trechos em que os entrevistados se mostraram sensibilizados ao narrarem determinados fatos.

O encorajamento para empreender, na maior parte das vezes, é fruto de um conjunto de valores repassados no ambiente familiar e que não necessariamente têm a ver com a experiência de ter um negócio. Dos 14 entrevistados, apenas cinco relataram experiências de empreendedorismo no núcleo familiar (dois casos brasileiros e três casos canadenses). Em seus relatos, os entrevistados ressaltaram a importância do encorajamento que tiveram desde crianças para perseguirem seus sonhos, trabalharem duro e não se intimidarem frente aos fracassos, que acabaram sendo percebidos como oportunidades de crescimento em suas vidas. Especialmente no caso canadense, os depoimentos demonstram que a cultura de aceitar o erro é mais naturalmente apreendida e repassada de pai para filho.

Ficou evidente também que esses sujeitos buscam ser melhores pessoas e profissionais de forma contínua, aprendendo ao máximo com pares e outros empreendedores mais experientes, referências importantes para a tomada de decisão. Dessa forma, os entrevistados demonstram comprometimento para o que Dolabela (2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p.) chama de motivação para se construir enquanto empreendedor e a confiança em fontes de informação próximas (CHOO, 2003CHOO, Chun Wei. A organização do conhecimento: como as organizações usam a informação para criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. Tradução Eliana Rocha. São Paulo: Editora Senac, 2003.).

Os relatos das experiências não somente dos entrevistados, mas também dos profissionais da UFMG e Western University envolvidos com a temática do empreendedorismo e que me receberam para conversas informais sobre os desafios desta pesquisa e as ações realizadas nas universidades, fica claro que os ambientes familiar e acadêmico, enquanto estimuladores do empreendedorismo, podem e devem ser “terrenos férteis”. No entanto, as “sementes” só irão vingar se forem de “boa qualidade”, se assim podemos dizer numa metáfora com as pessoas que possuem ou estão aptas a desenvolverem habilidades empreendedoras.

Dessa maneira, tanto os aspectos biológicos quanto as características do meio são condicionantes para a formação de empreendedores, num processo contínuo e não linear, em constante mutação, carregado de influências mútuas e muitas vezes subjetivas, arraigadas na memória, fruto de experiências, emoções e sonhos (CHOO, 2003CHOO, Chun Wei. A organização do conhecimento: como as organizações usam a informação para criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. Tradução Eliana Rocha. São Paulo: Editora Senac, 2003.; DAMÁSIO, 2004DAMÁSIO, Antônio. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 358 p.; FILION, 1993FILION, Louis Jacques. Visão e relações: elementos para um metamodelo empreendedor. Revista de Administração de Empresas, v. 33, n. 6, pp. 50-61, 1993.; KRUEGER JR, 2007KRUEGER JR, Norris. What Lies Beneath? The Experiential Essence of Entrepreneurial Thinking. Entrepreneurship Theory and Practice, v. 31, n.1, p. 123-138, 2007.; NASSIF, 2002NASSIF, Mônica Erichsen. A informação e o conhecimento na Biologia do Conhecer: uma abordagem cognitiva para os estudos sobre inteligência empresarial. 2002. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.; ROCHA, PAULA, DUARTE, 2016ROCHA, Janicy Pereira; PAULA, Cláudio Paixão Anastácio de; DUARTE, Adriana Bogliolo Sirihal. A Cognição Distribuída como referencial teórico para os estudos de usuários da informação. Informação & Sociedade: Estudos, (UFPB. Online), v. 26, p. 91-105, 2016.; SPIEGEL, CAULLIRAUX, 2016SPIEGEL, Thaís; CAULLIRAUX, Heitor. Efeitos da experiência no processo decisório: uma investigação a partir dos elementos da cognição. Ciências & Cognição, v. 21, n. 1, p. 074-099, 2016.; WILSON, 1997WILSON, Tom D. Information behaviour: an interdisciplinary perspective. Information Processing and Management, v. 33, n. 4, p.551-572,1997.). A pesquisa deixou evidente que os empreendedores realmente têm características comuns, porém, não limitantes para o exercício da atividade. É possível “se construir” (DOLABELA, 2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p.). Do ponto de vista de ambientes, o que primeiro “causa perturbação” (NASSIF, 2002; MATURANA, 2004MATURANA, Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2004. 283 p.) enquanto informação que dá suporte à mentalidade empreendedora é o ambiente familiar, onde se formam os valores e crenças que os indivíduos carregam por toda a vida. É nesse contexto em que a informação é processada, mesmo que inconscientemente, através de palavras ou mesmo de forma simbólica nos silêncios e atitudes dos pais, exemplos que permanecem cristalizados nas memórias e são cruciais no momento em que o sujeito age como decisor.

As respostas obtidas nesta pesquisa mostram que a relevância da informação ultrapassa suas formas objetificadas em fontes, acervos, documentos, depoimentos, teorias gerenciais ou aulas sobre empreendedorismo. A informação que dá suporte à mentalidade empreendedora, em primeira instância, é construída através das nossas relações, a partir de estímulos e motivações que recebemos dos nossos pais e familiares próximos, dos valores construídos e das crenças formadas com essas experiências, o que reforça a importância das convicções de Dolabela (2003DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora. São Paulo: Editora de Cultura, 2003. 144 p., p. 15): “A educação empreendedora deve começar na mais tenra idade, porque diz respeito à cultura, que tem o poder de induzir ou de inibir a capacidade empreendedora”. É nesse sentido que a informação e o insight nascem no coração e na mente dos indivíduos (CHOO, 2003CHOO, Chun Wei. A organização do conhecimento: como as organizações usam a informação para criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. Tradução Eliana Rocha. São Paulo: Editora Senac, 2003.), em casa, muito antes de nos aventurarmos mundo afora.

7 Considerações Finais

Se o empreendedorismo é relevante para o contexto socioeconômico mundial, a Ciência da Informação, por meio dos resultados desta pesquisa, vem reforçar a necessidade de que se invista na educação empreendedora desde a infância, dentro de casa, onde a informação está localizada e é determinante para a constituição da mentalidade empreendedora. Aqui, cabe esclarecer, não se trata de ensinar técnicas gerenciais e estimular a abertura de empresas; estamos tratando de valores como persistência e resiliência, e de uma cultura que entende que errar é parte do processo humano, motivando esses sujeitos a seguirem em frente sendo protagonistas de suas vidas.

Da mesma maneira que ficou evidenciada a importância do ambiente familiar na formação da mentalidade empreendedora, o ambiente acadêmico também se mostrou crucial para dar sustentação ao desenvolvimento de empreendedores e de negócios com maior valor agregado e maior índice de sucesso. No caso dos entrevistados brasileiros, evidenciou-se a relevância da internacionalização da pesquisa e da experiência em ambientes de empreendedorismo mais avançados. Muitas das ideias de negócios foram amadurecidas no doutorado ou pós-doutorado realizados no exterior, mostrando a importância deste intercâmbio para o amadurecimento da cultura empreendedora no Brasil. O próprio modelo de educação empreendedora observada na Western University, onde as ações são coordenadas entre atores do ambiente interno e agentes que compõem a Hélice Tríplice, é referência sólida não só para as universidades brasileiras, mas para todo o mundo, tendo em vista as ações desenvolvidas, as parcerias formadas, os valores de investimentos alcançados, os resultados de negócios obtidos e o impacto gerado.

Enquanto meio, tanto o ambiente familiar quanto o acadêmico, que aqui também pode ser compreendido como as escolas em geral, desde a educação infantil, podem ser determinantes para a promoção ou a inibição da mentalidade empreendedora. Portanto, é muito importante que pais e educadores tenham a dimensão de seus papeis na formação de indivíduos capazes de buscarem novos conhecimentos e se aprimorarem de forma contínua, acreditando em si mesmos e dispostos a darem contribuições significativas para a sociedade.

Como contribuição para a literatura acadêmica, esta pesquisa visa ampliar os estudos na Ciência da Informação que têm foco no sujeito cognoscente, considerando que ele tem características biológicas únicas, influencia e é influenciado pelos seus meios, e está em constante processo de (auto)construção. A pesquisa também traz novos olhares sobre a informação, considerando que ela nem sempre está explícita ou objetificada em fontes tradicionais: a informação está presente não apenas no ambiente, mas também na mente dos indivíduos, em um sistema de trocas constante e que tem como base um complexo arcabouço de experiências, memórias, valores, emoções e crenças - tudo isso provocando atitudes e decisões.

Espera-se também que a pesquisa seja útil e possa contribuir para a formação de novos empreendedores no Brasil, especialmente, considerando a referência de um ambiente de excelência em educação empreendedora como o Canadá. Que o trabalho possa oferecer subsídios, sobretudo, para ampliar a reflexão sobre a importância das Empresas de Base Tecnológica no país, trazendo insights para universidades, professores, alunos, governos e empresas.

É preciso considerar as limitações da pesquisa, tendo em vista que estudos de caso devem ser prudentes e não são modelos para conclusões generalizadas. Assim, para pesquisas futuras em Ciência da Informação, sugere-se a continuidade da investigação de sujeitos empreendedores no ambiente acadêmico, considerando novas abordagens e especificidades não contempladas nesta pesquisa, como por exemplo uma amostra com alunos que tenham tido o gatilho de empreendedor dentro da universidade e que reconhecem a influência da informação do meio acadêmico como determinante para sua decisão.

Sugere-se também maior atenção na pesquisa científica ao empreendedorismo feminino, pela sua relevância, particulares e desafios. As mulheres são minoria na jornada empreendedora de forma global e muitas vezes são desencorajadas por informações do seu meio. Também se revela significativa a abordagem de pesquisas que envolvam crianças e jovens, tendo em vista que a informação recebida nesta fase da vida parece ser determinante para a formação da mentalidade empreendedora. Não há dúvidas de que a realidade brasileira pode ser alavancada através da educação de base de qualidade, que deveria incluir em sua estrutura a promoção da educação empreendedora.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2022
  • Aceito
    27 Dez 2022
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