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Instrumentos de gestão de documentos na legislação brasileira, 1978-2021

Records management instruments in Brazilian legislation - 1978-2021

RESUMO

O artigo, ora apresentado, tem como objetivo aferir como os instrumentos de gestão são referenciados na legislação brasileira, nos âmbitos do Poder Executivo nacional e estaduais. A metodologia empregada nessa pesquisa foi a qualitativa em que se buscou, inicialmente, definir os conceitos e usos apresentados na bibliografia nacional e internacional sobre os instrumentos de gestão de documentos, a saber, plano de classificação e tabela de temporalidade e destinação de documentos. Adotou-se o estudo de multicasos comparados visando, a partir da legislação federal, mais precisamente a partir da Constituição Federal de 1988 e da Lei Federal n° 8.159 de 1991, analisar como os arquivos públicos do Poder Executivo Estadual conceituam e aplicam os instrumentos de gestão de documentos. Utilizou-se da pesquisa documental com o intuito de verificar na legislação a existência dos conceitos dos instrumentos; a determinação de sua elaboração e utilização; o estabelecimento dos procedimentos de produção e responsabilidade das suas respectivas aprovações. Na legislação arquivística do Brasil, nossos resultados permitiram afirmar que houve grande avanço nos últimos anos, no que se refere aos instrumentos de gestão, entretanto, em uma visão geral, o cenário ainda parece aquém do ideal, visto que ainda não se pode contar com uma política arquivística de âmbito nacional, e nem estadual, já que os planos de classificação e as tabelas de temporalidade e destinação de documentos nem sempre são aplicados e utilizados de forma sistemática na administração pública.

Palavras-chave:
Legislação Arquivística; Instrumentos de gestão; Arquivos Públicos; Poder Executivo; Gestão de documentos

ABSTRACT

The article presented here aims to assess how management instruments are referenced in Brazilian legislation, within the scope of the national and state Executive Power. The methodology used in this research was a qualitative one, which initially sought to define the concepts and uses presented in the national and international bibliography on records management instruments, namely, classification scheme and schedule of disposal of records Documental research was used in order to verify the existence of instrument concepts in the legislation; the determination of its elaboration and use; the establishment of production procedures and responsibility for their respective approvals. In terms of archival legislation in Brazil, our results allow us to state that there has been great progress in recent years, with regard to management instruments, however, in a general view, the scenario still seems far from ideal, since one still cannot count on a national archival policy, and not even a state one, since classification scheme and schedule of disposal of records are not always applied and used systematically in public administration.

Keywords:
Archival Legislation; Management instruments; Public Archives; State Executive Branch; Records management

1 Introdução

O presente artigo tem por objetivo verificar como, na legislação brasileira, os instrumentos de gestão, no âmbito nacional e nos executivos estaduais, são citados e entendidos. Acredita-se que a forma como os instrumentos são tratados na legislação pode ser um importante parâmetro para analisarmos a sua importância na Arquivologia brasileira.

O que suscitou a pesquisa foi a necessidade de analisar em que momento o plano de classificação e a tabela de temporalidade e destinação de documentos apareceram na legislação brasileira, no âmbito da Administração Pública Federal e Estadual. Como se sabe, na legislação federal, a primeira menção ocorre em 1996, na Resolução n° 4 do CONARQ, ainda que a Lei Federal de Arquivos tenha sido promulgada em 1991.

A metodologia empregada para a pesquisa foi a qualitativa, a partir de estudos das legislações sobre os instrumentos no que concerne à administração pública dos estados brasileiros. Vai-se verificar: (i) se a legislação apresenta os conceitos dos instrumentos de classificação e temporalidade e destinação de documentos; (ii) se a legislação determina a suas respectivas elaborações e utilizações; assim como (iii) se a legislação determina o processo de aprovação desses instrumentos.

Para analisar esses dados, primeiramente buscou-se fazer um levantamento dos conceitos e usos apresentados na bibliografia nacional e internacional sobre os instrumentos de gestão de documentos, a saber, plano de classificação e tabela de temporalidade e destinação de documentos. Adotou-se o estudo de multicasos comparados visando, a partir da legislação federal, mais precisamente a partir da Constituição Federal de 1988 e da Lei Federal n° 8.159 de 1991, analisar como os arquivos públicos do Poder Executivo Estadual conceituam e aplicam os instrumentos de gestão de documentos. Dessa forma, serão apresentados e interpretados os dados coletados nas próprias legislações estaduais e os dados disponibilizados nos sites dos arquivos e em outras fontes da internet.

Os dados identificados nessa pesquisa foram baseados na forma em que os instrumentos são citados, no âmbito das legislações federal e estadual. Cabe lembrar que o plano de classificação e a tabela de temporalidade e destinação de documentos de arquivos são os instrumentos da gestão de documentos que apoiam e garantem a simplificação e racionalização dos procedimentos de gestão. Eles auxiliam na recuperação dos documentos, preservam a organicidade dos tipos documentais, permitem a eliminação criteriosa dos documentos destituídos de valor e promovem a preservação daqueles de guarda permanente.

Esses instrumentos técnicos aplicados à gestão de documentos devem ser norteadores no estabelecimento das políticas, tanto da classificação quanto da avaliação, e devem atender às demandas do produtor dos documentos, visando apoiar as tarefas arquivísticas rotineiras, sendo necessário que a escolha metodológica seja pensada a partir de tais necessidades.

2 Instrumentos de Gestão de Documentos

Um dos instrumentos de gestão é o plano de classificação, que consiste num

esquema de distribuição de documentos em classes, de acordo com métodos de arquivamento específicos, elaborado a partir do estudo das estruturas e funções de uma instituição e da análise do arquivo ela produzido. Expressão geralmente adotada em arquivos correntes. (Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística,2005)

Por meio desse esquema “se processa a classificação de um arquivo” (Dicionário de Terminologia Arquivística da Associação dos Arquivistas Brasileiros Núcleo de São Paulo). (1996 apud CAMARGO; BELLOTTO, 1996________; BELLOTTO, Heloísa Liberalli (Coord.). Dicionário de terminologia arquivística. São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros, Núcleo Regional de São Paulo; Secretaria de Estado da Cultura, 1996.)

O plano de classificação é o instrumento que materializa e sistematiza cada fundo em seções e séries agrupadas hierarquicamente em torno dos órgãos ou das funções desenvolvidas por uma instituição. (HERRERA, 1991HERRERA, Antonia Heredia. Archivistica General: teoría y práctica. Sevilla, 1991.) O plano é a “representação lógica da estrutura e do funcionamento da organização” de acordo com a metodologia estabelecida, isto é, funcional ou estrutural. (BERNARDES E DELATORRE, 2008, p.19) Em outras palavras, o plano de classificação representa, do ponto de vista intelectual, os documentos e suas respectivas informações de modo a refletir as funções e as atividades exercidas. (PINHO, 2011PINHO, E. M. O plano de classificação de documentos do conselho nacional de arquivos: uma análise crítica. Informação & Informação, v. 16, n. 1, p. 1-20, 2011. Acesso em: 10 set. 2022.)

Levando em consideração tais conceitos, podemos concluir que o plano de classificação, além de ser o produto resultante do processo intelectual classificatório, deve ser entendido como esquema hierarquizado onde estão dispostos os níveis de classificação dos documentos arquivísticos, apresentando a relação existente entres as classes; trata-se, portanto, de um instrumento resultante do processo classificatório.

O objetivo desse instrumento é, certamente, representar a estrutura de um fundo, demonstrando o que Luciana Duranti (1997DURANTI, Luciana. The archival bond. Archives and Museum Informatics. Vancouver (Canadá): Kluwer Academic Publishers, v.11, p. 213-218, 1997.) denomina de vínculo arquivístico1 1 Rede de relações que cada documento tem com os documentos pertencentes ao mesmo conjunto. , isto é, a relação orgânica entre os documentos e as categorias classificatórias responsáveis pela sua produção. Quanto à sua finalidade, um plano de classificação deverá traduzir visualmente as relações hierárquicas e orgânicas entre as classes definidas para a organização da documentação, e deve possuir três qualidades: simplicidade, flexibilidade e expansibilidade. (GONÇALVES 1998, p.23 E 24) Assim, deverá ser capaz de sistematizar cada fundo em seções e séries de modo que as características próprias de cada uma das divisões sejam respeitadas e que façam parte de uma estrutura hierárquica. (Herrera, 1997)

Um plano de classificação, cabe repetir, é o resultado de um processo de classificação e, como tal, exige uma metodologia. Podem-se apontar, pelo menos, três metodologias: a que adota categorias funcionais, a que se baseia nas estruturas de uma organização e a que adota os assuntos no momento de definir seus níveis de classe.

Apesar de ser consensual, entre os autores da Arquivística, no âmbito nacional e internacional, que a melhor metodologia aplicável para a efetivação da classificação seja a funcional, podemos afirmar que, ainda atualmente, existe um número significativo de instrumentos utilizando como base metodológica a noção de “assunto”, principalmente no Brasil. A escolha dessa metodologia, como princípio classificatório, impacta em todo o processo da gestão de documentos, especialmente nos resultados da elaboração da tabela de temporalidade e destinação de documentos, que, para fundamentar a avaliação, necessita dos estudos de classificação.

Outro instrumento de gestão, além do plano de classificação, é a tabela de temporalidade e destinação de documentos. Trata-se de um instrumento de gestão capaz de agrupar e difundir as regras para racionalizar a conservação dos documentos. (COUTURE, 2003COUTURE, Carol. La función valoración em la Archivística contemporânea: uma sinergia entre várias consideraciones complementarias. Tabula: Revista de Archivos de Castilla y Leon / Associación de Archiveros de Castilla y León, Salamanca, n.6, p.23-49, 2003.) Esse instrumento constitui a representação da prática da avaliação arquivística. É um dispositivo no qual se especificam a destinação concedida a cada série, registrando quais serão eliminadas e em que prazo de tempo isso ocorrerá. (MUNDET, 1996 p. 226)

O objetivo principal do produto da avaliação é “fornecer bases para o entendimento, entre a própria repartição e os funcionários de arquivo de custódia sobre o que deve ser feito com os documentos da repartição a que dizem respeito”. (SCHELLENBERG, 2006) Sua função primordial é nortear a execução das atividades de eliminação, transferência e recolhimento de documentos e consequentemente ser o instrumento básico da racionalização da guarda e até mesmo da produção dos documentos. A tabela de temporalidade constitui um mecanismo no qual se determina o ciclo de vida do documento com a função de diminuir o “relativismo e a subjetividade profissional e pessoal no processo avaliativo”. (LOUSADA, 2012LOUSADA, Mariana. A evolução epistemológica do conceito de avaliação documental na arquivística e sua importância para a construção da memória. Revista Ibero Americana de Ciência da Informação, Brasília, v. 5, n. 2, p. 63-78, jul./dez. 2012. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/RICI/article/view/1724/1519. Acesso em 08 set. 2022
https://periodicos.unb.br/index.php/RICI...
, p. 73)

Quanto à metodologia, os princípios de elaboração - que são prévios à avaliação propriamente dita - não têm sido amplamente discutidos na literatura arquivística; na realidade, a discussão gira quase sempre em torno da avaliação. No que diz respeito à elaboração propriamente dita do instrumento de gestão, a recomendação é que se considere a “identificação e análise dos conjuntos documentais à luz da legislação, do funcionamento do órgão e das práticas administrativas”. (CAMARGO, 2001CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Avaliação e destinação de documentos de arquivo: normas e procedimentos. São Paulo, 9 p., out. 2001.) A nosso ver, entretanto, tal recomendação orienta mais para a metodologia de avaliação do que de elaboração da tabela de temporalidade.

Diante do exposto, uma questão pode ser formulada. O que poderia e deveria ser entendido como metodologia de elaboração de tabela de temporalidade: uma metodologia colhida na etapa da classificação, sendo funcional, estrutural ou por assunto; a definição de cabeçalhos; ou uma terceira perspectiva ainda desconhecida? No presente artigo, não se pretende fornecer uma resposta final a essa questão, embora seja pertinente tal indagação, que deverá ser considerada em outra pesquisa.

Segundo Schellenberg (2006), o método escolhido para o processo classificatório proporcionará as bases para a preservação e destruição dos documentos. Nilza Teixeira, pioneira brasileira nesse campo, tem a convicção de que não é possível definir a destinação dos documentos sem que se conheçam as rotinas das funções que lhes deram origem, afirma ainda:

o conhecimento dos documentos produzidos no desempenho das respectivas funções habilita a uma decisão criteriosa e fundamentada quanto à eliminação ou à guarda em caráter temporário ou permanente. (SOARES, 1975SOARES, Nilza Teixeira. Avaliação e seleção de documentos de arquivo: problemas e soluções. Arquivo & Administração. Rio de Janeiro: Associação dos Arquivistas Brasileiros, v.3, n.3, p. 7-14, 1975. p.7)

Conforme vimos, a identificação de séries constitui o último nível no processo de construção de um plano de classificação. É justamente a série que terá sua temporalidade e destinação definidas na tabela. Sendo assim podemos perceber uma relação de dependência entre os instrumentos. Na prática arquivística, a elaboração de um plano de classificação com todos os estudos inerentes à tal fase garante a produção da tabela de temporalidade com rigor científico e longe do senso comum, aproximando-a de decisões mais conscientes e mais objetivas.

Ainda que sejam instrumentos com objetivos diferentes, deveria ser obrigatório que a produção de um dependesse de outro, visto que a classificação é a premissa e a avaliação, a conclusão. Esses dois instrumentos, produzidos a partir de um Programa de Gestão Documentos, permitem não só a racionalização e o controle da produção como também o trâmite dos documentos de acordo com os objetivos para os quais foram produzidos, recebidos e acumulados. Permitem, ainda, a redução do volume documental que não agrega mais valor à instituição que o produziu, assim como agilizam o processo de recuperação dos documentos, além de gerar economia e otimizar recursos (financeiros, humanos e materiais), despendidos no tratamento e armazenamento de informações e documentos não avaliados.

3 A importância da legislação na efetivação da gestão de documentos

A legislação, em seu sentido lato, atua como norma juridicamente válida no qual o objetivo principal é o de reger a sociedade e o Estado no regime democrático. As matérias tratadas pela legislação devem ser pensadas e analisadas de forma criteriosa para que seus efeitos possam estabelecer a disciplina geral e a harmonia necessária a uma sociedade.

No que se refere aos arquivos, a legislação arquivística possui papel de transformá-los em importantes mecanismos de exercício de direitos individuais e coletivos e tem seu marco legal inicial a partir da Constituição de 1988. Essa Carta Magna, ainda em vigor, confere a todos os brasileiros o direito de acessar informações públicas de qualquer natureza, prevendo o dever da administração pública no que se concerne à gestão dos documentos, explicitando em seu artigo 216, parágrafo 2°: “cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”. (BRASIL, 1988)

A Constituição de 1988 foi considerada o primeiro grande marco jurídico para o mundo dos arquivos. É importante salientar que antes existiam legislações que versavam sobre atividades inerentes à gestão de documentos, como avaliação e eliminação de documentos, contudo eram de alcance regional ou apresentadas de forma implícita, como no caso do Decreto nº 82.308, de 25 de setembro de 1978, que tentou instituir pela primeira vez o Sistema Nacional de Arquivo - SINAR. (BRASIL, 1978)

Três anos após a promulgação do dispositivo constitucional, foi aprovada e publicada, em 1991, a Lei de Arquivos. Com o número 8.159, essa lei dispunha sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e outorgava ao Conselho Nacional de Arquivos, já previsto, e ao Arquivo Nacional o papel de “autoridade arquivística” responsável por orientar e capacitar os arquivos públicos e privados, sendo esse último órgão o que encabeçou o desenvolvimento de tal lei. (JARDIM, 2011_________, José Maria. A construção de uma política nacional de arquivos: os arquivos estaduais brasileiros na ordem democrática (1988-2011). Anais do XII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação - ENANCIB, Distrito Federal, 2011. Disponível em:http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/180581. Acesso em: 10 set. 2022.
http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapc...
)

A Lei Federal n° 8.159, de 08 de janeiro de 1991, apresentou conceitos basilares para a Arquivística e demarcou territórios importantes sobre a gestão de documentos, a eliminação, a preservação permanente dos documentos de valor secundário, assim como definiu e separou os arquivos de acordo com os níveis de governo (federal, estadual, municipal) e de acordo com a esfera dos diferentes poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário. Essa lei também criou o mencionado Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) que, como órgão colegiado, teria o poder de definir “a política nacional de arquivos, como órgão central de um Sistema Nacional de Arquivos (SINAR)”. (BRASIL, 1998)

Para uma compreensão da lei, de forma mais aprofundada, iremos realizar uma análise minuciosa de seus termos e seus dispositivos, apresentando seus capítulos, focalizando definições ou menções dos instrumentos de gestão, isto é, o plano de classificação e a tabela de temporalidade e destinação de documentos e suas variações terminológicas.

A Lei Federal n° 8.159 é dividida em cinco capítulos, a saber: I - Disposições Gerais; II - Dos Arquivos Públicos; III - Dos Arquivos Privados; IV - Da Organização e Administração de Instituições Arquivísticas Públicas; V - Do Acesso e do Sigilo dos Documentos Públicos. No capítulo I reforça a obrigatoriedade do Poder Público de realizar a gestão de documentos e promover a proteção deles, com a justificativa de que servem de apoio “à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico e como elementos de prova e informação”. Diferentemente do texto da Constituição de 1988, define o que se entende como “gestão de documentos”. Ademais, define o que é “arquivo” e confere aos brasileiros, também de forma mais explicita, o direito ao acesso à informação ostensiva.

No que concerne à gestão de documentos, a lei a define como:

conjunto de procedimentos e operações técnicas à sua produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento em fase corrente e intermediária, visando a sua eliminação ou recolhimento para guarda permanente. (BRASIL, 1991)

No segundo capítulo, dedicado aos arquivos públicos, a lei traz outras definições, inclusive aquelas que são fundamentais para a gestão de documentos, como a identificação dos arquivos nas fases corrente, intermediária e permanente. Ademais, essa lei determina regras sobre a eliminação de documentos, cuja implementação está atrelada à autorização da instituição arquivística pública, em sua específica esfera de competência, determinando que os arquivos considerados “de guarda permanente” são inalienáveis e imprescritíveis.

Na teoria arquivística, as atividades de eliminação ou preservação de documentos, bem como seus prazos de guarda em arquivos intermediários, são definidas pela tabela de temporalidade e destinação de documentos: “a tabela de temporalidade é o principal instrumentos de destinação. Nela vêm determinados os prazos para transferência, recolhimento e eliminação de documentos”. (CAMARGO, 2001CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Avaliação e destinação de documentos de arquivo: normas e procedimentos. São Paulo, 9 p., out. 2001.)

No Capítulo III da Lei de Arquivos, que trata dos arquivos privados, define-se e delibera-se a respeito da necessidade da promoção do acesso a tais documentos, além de regulamentar o interesse público em relação a arquivos privados. No capítulo destinado a organização e administração de instituições arquivísticas públicas, essa lei determina quem é responsável pelo o quê, designando para cada instituição arquivística pública, em sua específica esfera de competência, suas respectivas responsabilidades, estabelecendo, ainda, a necessidade de criação de legislação específica para os estados, municípios e o distrito federal no que se refere aos “critérios de organização e vinculação dos arquivos estaduais e municipais, bem como a gestão e o acesso aos documentos, observado o disposto na Constituição Federal e nesta lei”. (BRASIL, 1998)

O último Capítulo da Lei de Arquivos, que regulamenta o acesso e o sigilo aos documentos, foi revogado pela Lei Federal n° 11.527 de 18 de novembro de 2011. Nas Disposições Finais, essa lei, conforme mencionado, cria o CONARQ e determina a sua composição, sendo o mesmo presidido pelo Diretor-Geral do Arquivo Nacional e integrado por representantes de instituições arquivísticas e acadêmicas, públicas e privadas.

A lei federal n° 8.159 não cita sequer os instrumentos básicos da gestão de documentos, contudo sentencia que as atividades de produção, avaliação, eliminação, dentre outras, aconteçam. Essa ausência nos causa bastante estranhamento já que sem os instrumentos de gestão não se faz factível realizar, por exemplo, a eliminação de documentos.

Quatro anos após a promulgação da referida lei, ou seja, em 1995, o CONARQ, já como órgão atuante no âmbito das políticas arquivísticas, promulga a sua primeira resolução que dispõe “sobre a necessidade da adoção de planos e/ou códigos de classificação de documentos nos arquivos correntes, que considerem a natureza dos assuntos resultantes de suas atividades e funções”. A tabela de temporalidade não é considerada nesse momento, ainda que na Resolução sejam definidos os arquivos correntes, intermediários, que, por essência, só existem a partir do estudo dos valores primários e secundários. (CONARQ, 1995) No ano seguinte, ainda no contexto do CONARQ, é publicada a Resolução n° 4 de 28 de março de 1996, dispondo do:

Código de Classificação de Documentos de Arquivo para a Administração Pública: Atividades-Meio, a ser adotado como um modelo para os arquivos correntes dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos - SINAR, e aprova os prazos de guarda e a destinação de documentos estabelecidos na Tabela Básica de Temporalidade e Destinação de Documentos de Arquivo Relativos às Atividades Meio da Administração Pública. (CONARQ, 1996, grifo nosso)

Pela primeira vez, em termos legais, os instrumentos de gestão são considerados e devidamente conceituados, sendo o Código de Classificação de documentos de Arquivo o:

instrumento de trabalho utilizado nos arquivos correntes para classificar todo e qualquer documento produzido ou recebido por um órgão no exercício de suas funções e atividades” e que a classificação por assuntos tem como função agrupar os documentos do mesmo “tema”.

A tabela básica de Temporalidade e Destinação de documentos era considerada como o instrumento resultante da avaliação, que possui como objetivo garantir o acesso às informações por meio da qualificação dos prazos de guarda e destinação dos documentos. (CONARQ, 1996, p.11) Sendo assim, nos anos que se seguiram, todas as legislações que tratavam a gestão de documentos como temática mencionavam e destacavam a necessidade dos instrumentos de gestão, conforme o Quadro 1.

Quadro 1
Evolução legislativa federal: decretos, resoluções e portarias

É importante salientar que o Quadro 1 apresenta todas as legislações encontradas no âmbito do Arquivo Nacional e do CONARQ, ignorando o fato de estarem, ou não, revogadas. Tentamos buscar a evolução da inclusão dos instrumentos de gestão em diversas matérias e se recortássemos somente as vigentes não conseguiríamos visualizar tal fato.

O que podemos concluir é que, sim, nos causa um estranhamento o fato de a Lei maior da Arquivologia não tratar dos instrumentos básicos da gestão de documentos, já que são internacionalmente conhecidos e determinados como o nível mais básico de um programa de gestão de documentos, definindo quatro níveis de implantação dos Programas de Gestão de Documentos, sendo o:

Nível mínimo: aqueles países que contam com instrumentos, tais como calendários de conservação ou tabelas de evolução documental, gestão de seus documentos seguindo as previsões inscritas em ditos quadros de classificação, transferindo os documentos com valor permanente aos arquivos Nacionais. (RHOADS, 1989RHOADS, James B. The role of archives and records management in national information systems: a RAMP study / Revised Edition. Paris: Unesco, 1989. - 72 p.)

Desta maneira, percebe-se que, para se sustentar a implantação de um programa de gestão de documentos, é necessário, no mínimo, a elaboração de instrumentos que apoiam as atividades da gestão de documentos, como tabelas de temporalidade e planos de classificação.

Os instrumentos de gestão, após 1995, foram sendo referidos de forma frequente nos registros legais federais. Contudo, alguns pontos nos chamaram atenção, por exemplo, o Decreto n. 4.073, de 3 de janeiro de 2002, que regulamenta a lei, também não define ou determina o uso do conjunto dos referidos instrumentos (BRASIL, 2002). Esse decreto ateve-se apenas a determinar o uso da tabela de temporalidade para embasar a eliminação ou a guarda permanente dos documentos. Todavia, o processo classificatório, base para a avaliação dos documentos, foi completamente ignorado. Os decretos que o seguiram, principalmente os que tratavam das comissões de avaliação de documentos, tentaram corrigir a ausência de menção a esses instrumentos.

Espera-se, de maneira otimista, que tal omissão, quer por esquecimento ou mesmo pelo não reconhecimento da importância dos instrumentos de gestão, seja devidamente corrigida na atualização da Lei de Arquivos, que se encontra em processo de revisão.

4 A situação dos instrumentos de gestão na legislação do poder executivo estadual

A maioria dos arquivos públicos estaduais do Brasil foi fundada ainda no século XIX e início do XX, período em que a gestão de documentos não fazia parte da discussão no âmbito das administrações. O primeiro arquivo estadual foi o do Paraná (1855), fundado ainda no período imperial; um pouco mais tarde, na República Velha, foram fundados os arquivos públicos estaduais da Bahia (1890), de São Paulo (1892), do Pará (1894), de Minas Gerais (1895), do Mato Grosso (1896), do Amazonas (1897), do Rio Grande do Sul (1906), do Espírito Santo (1908), do Piauí (1909) e de Sergipe (1923). A partir da terceira década do século XX, foram criados os arquivos públicos estaduais do Rio de Janeiro (1931), do Ceará (1932), de Pernambuco (1945), de Santa Catarina (1960), de Alagoas (1961), do Acre (1963), da Paraíba (1963), de Goiás (1967), do Maranhão (1974), do Rio Grande do Norte (1978), de Rondônia (1981), do Distrito Federal (1985), de Mato Grosso do Sul (1989) e do Amapá (2002). (JARDIM, 2011_________, José Maria. A construção de uma política nacional de arquivos: os arquivos estaduais brasileiros na ordem democrática (1988-2011). Anais do XII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação - ENANCIB, Distrito Federal, 2011. Disponível em:http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/180581. Acesso em: 10 set. 2022.
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)

Os arquivos públicos estaduais de Roraima e Tocantins (JARDIM, 2011_________, José Maria. A construção de uma política nacional de arquivos: os arquivos estaduais brasileiros na ordem democrática (1988-2011). Anais do XII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação - ENANCIB, Distrito Federal, 2011. Disponível em:http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/180581. Acesso em: 10 set. 2022.
http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapc...
, p. 1588), até o momento, não foram incluídos no Cadastro Nacional de Entidades Custodiadoras de Acervos Arquivísticos - CODEARQ. (CONARQ, 2022)

De pronto podemos perceber que nem a Lei Federal de Arquivos nem a própria Constituição Federal de 1988 tiveram papel preponderante na criação dos arquivos públicos estaduais. Isso se deve, possivelmente, ao fato de, na época, a gestão de documentos ser algo novo; e os arquivos serem essencialmente reconhecidos como “históricos”, não sendo concebidos como parte do ciclo de vida dos documentos, a partir de programas de gestão de documentos.

No âmbito dos estados brasileiros, algumas iniciativas, no que se refere à regulamentação da atividade arquivística, podem ser apontadas mesmo antes da Lei de Arquivos de 1991. Vejam-se tais leis e decretos no Quadro 2.

Quadro 2
Legislações arquivística estaduais antes de 1991

Das dez unidades da federação, que promulgaram algum tipo de legislação sobre a proteção dos documentos de arquivo, todas fizeram por meio da institucionalização de sistemas de arquivos, inclusive no caso da Bahia, que não menciona explicitamente o “sistema de arquivos” na ementa, mas, sim, em artigos específicos da lei. Também salta aos olhos o predomínio de “decretos”, que são atos administrativos do Poder Executivo, sugerindo a baixa representatividade política na criação de tais sistemas. Cabe destacar, ainda, que somente três unidades da federação citaram, em suas respectivas leis de arquivo, os instrumentos de gestão. São Paulo é um desses casos, tendo determinado como obrigação do arquivo público orientar e controlar a elaboração dos planos de destinação, sem citar os termos “tabela de temporalidade¨ e ¨plano de classificação¨. Já o Rio Grande do Sul define e determina o uso e a elaboração do plano de destinação e a tabela de temporalidade no processo de eliminação, ademais atribui como competência o arquivo público orientar a elaboração e aprovar o plano de destinação e a tabela de temporalidade de documentos, assim como o Pará. As outras legislações ou não citaram os instrumentos de gestão ou não disponibilizaram tais informações, como foi o caso da legislação de Pernambuco e da legislação do Rio Grande do Norte, referidas apenas de forma incompleta nas bases de dados do CONARQ. (CONARQ, 2021, p. 14)

Conforme pode ser observado no Quadro 3, dez anos após a promulgação da Lei de Arquivos, o número de publicações de dispositivos legais sobre os documentos arquivísticos é pouco expressivo (Quadro 3). Apesar disso, cabe destacar as iniciativas de Mato Grosso do Sul (1992), Santa Catarina (1993), Paraná (1995), Mato Grosso (1997), Minas Gerais (1998), Rio de Janeiro (1999) e do Distrito Federal (2000).

Quadro 3
Legislações arquivísticas estaduais de 1991 a 2001

No Paraná, a Resolução SEAD (Secretaria de Estado da Administração e da Previdência), n. 3.107, de 25 de setembro de 1995, teve por objetivo definir o Departamento Estadual de Arquivo Público como órgão central da organização de arquivos do Paraná, conceituando a tabela de temporalidade de documentos e atribuindo sua elaboração aos órgãos secundários do Sistema de Arquivos, ou seja, os arquivos setoriais e gerais das secretarias de Estado e demais órgãos da administração direta e indireta do Poder Executivo.

Em Minas Gerais, a promulgação de uma norma, prevendo a aplicação dos instrumentos de gestão de documentos nas atividades-meio do Poder executivo estadual, deu-se nove meses após a criação do Conselho Estadual de Arquivos:

Decreto n. 40.187, de 22 de dezembro de 1998. Dispõe sobre a aprovação do Plano de Classificação de Documentos da Administração Pública do Estado de Minas Gerais, os prazos de guarda e a destinação de documentos estabelecidos na Tabela de Temporalidade a ser adotada para os arquivos correntes dos órgãos e entidades integrantes da Rede Estadual de Arquivos Públicos.

No Mato Grosso, a definição da tabela de temporalidade e do plano de destinação dos documentos de arquivo, além de prevista pelo Decreto n° 1.654 de 29 de agosto de 1997, que dispunha sobre a instituição do Sistema de Arquivos do Estado de Mato Grosso, também previu que o arquivo público orientasse e aprovasse a elaboração desse instrumento. Com exceção do Distrito Federal, que associa a avaliação e a definição sobre a eliminação dos documentos à tabela de temporalidade de documentos do CONARQ, os outros estados apresentam o instrumento da avaliação como base para o processo de avaliação e alguns deles determinam como competência do Arquivo Público a sua elaboração e publicação.

No Rio de Janeiro foi promulgada a Resolução SARE (Secretaria de Administração e Reestruturação do Estado), n° 2.794, de 13 de outubro de 1999, que aprovou o Código de Classificação de Documentos de Arquivos, contudo ainda não possuía uma legislação que tratasse do arquivo de forma geral, como, a Lei de Arquivos. (RIO DE JANEIRO, 2001)

Salvo no caso de Minas Gerais, nenhum desses instrumentos tratou do plano de classificação de documentos enquanto instrumento de gestão. Tal fato pode demonstrar que a questão da eliminação de documentos sempre foi uma preocupação maior no que se refere aos documentos públicos, tanto para a destruição daqueles documentos destituídos de valor quanto para a preservação daqueles que eram considerados “históricos” pelo poder público estadual.

Na década seguinte, isto é, de dos anos 2002 a 2012, podemos observar uma queda na aprovação de legislações que tratam da matéria dos arquivos. Ao todo, foram promulgados dois dispositivos entre leis e decretos. Conforme o Quadro 4 mostra, o Rio de Janeiro, apesar de possuir plano de classificação (1999) e tabela de temporalidade de documentos (2001), editou a lei de arquivos somente em 2009. Já o Amapá edita a legislação, sem, contudo, até os dias atuais, ter conseguido efetivar a gestão documental.

Quadro 4
Legislações arquivísticas estaduais de 2002-2011

De 2013 a aos dias atuais constata-se certa continuidade na produção de instrumentos legais para regular a prática arquivística. Diferentemente dos outros anos, o plano de classificação é citado com mais frequência, demonstrando um amadurecimento na relação da avaliação com a classificação, já que, sem classificar, o processo avaliativo se torna, muitas vezes, terreno pantanoso. O Quadro 5 sintetiza os resultados referentes à última década investigada, em nossa amostragem.

Quadro 5
Legislações arquivísticas estaduais de 2012-2021

Conforme pode ser percebido, dos quatro estados citados, somente o Amazonas possui instrumentos de gestão, os outros possuem legislações complexas que determinam a produção dos instrumentos de gestão, todavia, sem conseguir produzi-los.

Um levantamento da incidência temporal da legislação arquivística, no âmbito dos estados brasileiros, aparece no Gráfico 1. Se excluirmos as unidades federativas que não possuem normas relativas à gestão de documentos, é possível afirmar que a maioria só as adquiriu de 2011 em diante, ou seja, cerca de duas décadas após a aprovação da Lei de Arquivos.

GRÁFICO 1
Periodização da legislação arquivística estadual

O estudo realizado considerou apenas as legislações que possuíam algum indício incipiente de política estadual e, consequentemente, registrando como a gestão de documentos estava sendo retratada nos dispositivos legais estaduais. Contudo, assim como no âmbito do CONARQ, os poderes executivos estaduais seguiram editando legislações no que concerne a gestão de documentos e, principalmente, prevendo a elaboração dos instrumentos de gestão. O quadro 6 apresenta, justamente, essa evolução legislativa sobre a gestão de documentos nos estados brasileiros, demonstrando quando foram aprovados os primeiros2 2 Muitos instrumentos de gestão foram sendo atualizados ao longo dos anos, contudo o intuito desta pesquisa é demonstrar a evolução dos primeiros instrumentos, considerou, assim, a primeira existência tanto do plano de classificação quanto da tabela de temporalidade. planos de classificação e as tabelas de temporalidade de documentos.

Quadro 6
Legislações arquivísticas estaduais que mencionam instrumentos de gestão de documentos

Podemos aferir que a publicação dos instrumentos de gestão segue em linha crescente, apesar de ainda não ter alcançado um parâmetro desejável no que se refere a implementação da gestão de documentos. O Gráfico 2 demonstra o crescimento supracitado.

Gráfico 2:
Publicação dos instrumentos de gestão de documentos

Ao longo dos anos, os instrumentos de gestão de documentos, focalizados em nossa pesquisa, apresentam diversidade de terminologia. Encontramos os termos: “plano de destinação”, “tabela de temporalidade”, “tabela de temporalidade de documentos”, “tabela de temporalidade e destinação de documentos” e “tabela básica de temporalidade e destinação de documentos como produto de avaliação”. Para o instrumento resultante do processo classificatório, foram considerados “plano de classificação”, “plano de classificação de documentos” e “código de classificação de documentos”.

Tendo em conta a diversidade terminológica apontada, foi feita uma quantificação das referências a esses instrumentos nas legislações analisadas (Gráfico 3).

Gráfico 3:
Instrumento de gestão de documentos nas legislações estaduais

Três dos estados brasileiros não possuem nenhum tipo de legislação, sendo eles o Acre, Piauí, Roraima. O Gráfico 3, por sua vez, sugere que muito ainda há de se avançar no sentido de incorporação dos instrumentos de gestão na legislação arquivística, pois eles ainda são pouco frequentes.

Conforme se pode perceber, houve um avanço no que se refere ao papel das comissões permanentes de avaliação e seu papel primordial na efetivação da gestão de documentos. Também é importante salientar que, ao longo dos anos, alguns estados promulgaram outras legislações. Nessas novas normas, os instrumentos de classificação e de temporalidade são entendidos como base para a gestão de documento.

5 Considerações finais

No contexto da gestão de documentos e suas funções inerentes, ou seja, a classificação e a avaliação, a Arquivística está sedimentada na tradição legislativa brasileira desde a década de 1980.

Vimos um significativo avanço, na legislação arquivística do Brasil no que diz respeito aos instrumentos de gestão. Entretanto, numa avaliação mais ampla, os resultados ainda estão aquém de um cenário satisfatório, visto que até agora ainda não se pode contar com uma política arquivística de âmbito nacional, em que os planos de classificação e as tabelas de temporalidade e destinação de documentos sejam aplicados e utilizados na administração pública rotineiramente.

Observamos na análise realizada que, apesar do grande avanço legal apontado pela quantidade de leis promulgadas, principalmente no que se refere à gestão de documentos, a concepção patrimonial dos arquivos ainda é latente na realidade brasileira. Tal afirmação se justifica no fato da própria Lei de Arquivos, responsável por tratar dos temas que afetam os arquivos, não citar sequer os instrumentos de gestão como base para a eficácia e eficiência administrativa, para garantir a eliminação consciente e a preservação necessária.

Na análise das legislações pudemos perceber uma questão, que, apesar de um possível desconforto, é necessário ser colocada. Eis a questão: será que o fato da Lei de Arquivos tratar a gestão de documentos como um mero conceito, não atrelando sua existência aos instrumentos de classificação e avaliação para o sucesso de um programa de gestão de documentos, acabou por comprometer a implementação desses programas? Ademais podemos questionar as razões de a Lei de Arquivos, na primeira década de existência, ter sido aquém do esperado, visto que somente sete legislações estaduais de arquivo foram promulgadas. Em que medida a não indicação dos instrumentos de gestão contribuiu para essa situação?

Até os dias atuais ainda existem alguns poucos estados que não possuem nenhuma legislação sobre a gestão de documentos, como é o caso do Acre, Piauí, e Roraima, e há alguns que não realizam o que é determinado pela Constituição, isto é, a gestão dos documentos públicos, já que, apesar de possuírem a legislação que trata do tema, não possuem instrumentos de gestão. Dos 26 Estados brasileiros e o Distrito Federal, 24 possuem legislação arquivística, 12 possuem plano de classificação e tabela de temporalidade, 3 possuem somente a tabela de temporalidade e 12 não possuem nenhum dos instrumentos de gestão.

Acreditamos que a análise realizada é somente a ponta do iceberg de um problema muito maior, no que refere à gestão dos documentos no Brasil, sendo necessário o aprofundamento da discussão, com o objetivo central de entender quais são os fatores que mais dificultam que os estados brasileiros implementem a gestão de documentos, que está no nosso cenário há várias décadas.

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  • 1
    Rede de relações que cada documento tem com os documentos pertencentes ao mesmo conjunto.
  • 2
    Muitos instrumentos de gestão foram sendo atualizados ao longo dos anos, contudo o intuito desta pesquisa é demonstrar a evolução dos primeiros instrumentos, considerou, assim, a primeira existência tanto do plano de classificação quanto da tabela de temporalidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2022
  • Aceito
    25 Nov 2022
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