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Materialidades e cultura científica transnacional dos objetos: o 12º Congresso Internacional de Zoologia, Lisboa, 1935

Materialities and transnational scientific culture of objects: the 12th International Congress of Zoology, Lisbon, 1935

Resumo

O 12º Congresso Internacional de Zoologia realizou-se em Lisboa, em 1935. Da sua memória concreta constam insígnias – estrela-do-mar – e caricaturas de zoólogos. A partir de investigação no Arquivo do Museu Nacional de História Natural e da Ciência/Universidade de Lisboa, pretendemos interrogar a cenografia material, pensada pelo zoólogo Artur Ricardo Jorge pela aproximação epistémica às potencialidades da biografia de objetos científicos. Esta nota de pesquisa pretende deixar a marca de um discurso científico traduzido em materialidades de circulação em espaço público, na Europa globalizante dos anos 1930, com referências de poder científico, no contexto do Estado Novo português, inaugurado, constitucionalmente, em 1933.

história; história da ciência; cultura material científica; Congresso Internacional de Zoologia

Abstract

The material memory of the 12th International Congress of Zoology, held in Lisbon in 1935 includes insignias – the starfish – and caricatures of zoologists. Through an investigation of the archives at the University of Lisbon’s National Museum of Natural History and Science, we intend to investigate the material landscape as conceived by the zoologist Artur Ricardo Jorge by drawing epistemologically on the potentialities of the biography of scientific objects. This research note reveals a scientific discourse translated into materialities circulated in public spaces in the globalized Europe of the 1930s, with references from scientific power, in the context of Portugal’s Estado Novo regime, enshrined in its 1933 constitution.

history; history of science; material culture of science; International Congress of Zoology

Os estudos de história da ciência e de novas agendas têm conduzido os investigadores da área a rumarem por novos caminhos, novos arquivos e novas epistemologias de construção de conhecimento. A entrada de património científico na investigação para a construção de redes, trocas e circulação de conhecimento tem galvanizado investigadores e também novos públicos, na medida em que desafia historiografias tradicionais, rompe fronteiras de saberes estabelecendo pontes entre as histórias de objetos e a criatividade artística ( Alberti, 2005ALBERTI, Samuel. Objects and the museum. Isis, v.96, n.4, p. 559-571, 2005. ; Arnoldi, 2016ARNOLDI, Mary Jo (ed.). Engaging Smithsonian objects through science, history, and the arts. Washington: Smithsonian Institution Scholarly Press, 2016. ; Chatterjee, 2009CHATTERJEE, Helen. J. Staying essential: articulating the value of object based learning. University Museums and Collections Journal, 2009. Disponível em: https://edoc.hu-berlin.de/handle/18452/9349 . Acesso em: 30 jan. 2018.
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; Chatterjee, Hannan, Thomson, 2015; Chatterjee et al., 2017CHATTERJEE, Helen et al. Non-clinical community interventions: a systematized review of social prescribing schemes. Arts and Health, v.10, n.2, p.1-27, 2017. ). A biografia de objetos implica interrogar coleções de arquivos e de museus ( Poulter, 2013POULTER, Emma K. Silent witness: tracing narratives of empire through objects and archives in the West African collections at the Manchester Museum. Museum History Journal, v.6, n.1, p.6-22, 2013. ), uma metodologia que abre novas questões para a história da ciência (Pereira, Nunes, 2019; Pereira, Lopes, Nunes, 2019; Armbruster, Lorre, Pereira, 2021PEREIRA, Elisabete Jesus. Using object biographies to reveal how our pasts are interconnected. The Hague: EuroClio – European Association of History Educators; Evens Foundation, 2021. ).

O processo que transforma os objetos comuns ou utilitários de outros tempos em objetos científicos, integrados em coleções de museus, ou valorizados a partir dos seus arquivos, tem constituído um tema de estudo profícuo para as ciências sociais, onde incluímos as novas abordagens de história da ciência. A descoberta desses objetos permite complementar biografias de intelectuais, de cientistas, de diretores, funcionários de museus e laboratórios, descobrindo atores que participam nos processos de construção de coleções e de conhecimento científico. A história enriquece-se e amplia-se, tornando-se mais inclusiva porque tem atores ignorados, por exemplo, caricaturistas ou desenhadores-fazedores de estrelas-do-mar, insígnias materiais duráveis e móveis: objeto de um tempo de triunfo de ideologia nacional, em tempo de Congresso Internacional de Zoologia (CIZ) na capital do Império, Lisboa, 1935 ( Saldanha, 2014SALDANHA, Ana Rita. Práticas, redes e produções científicas dos naturalistas do Museu Bocage na Europa entre guerras (1914-1945): o património documental do Arquivo Muhnac-UL. 2v. Relatório de estágio (Mestrado em Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural) – Universidade de Évora, Évora, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/10174/14538 . Acesso em: 30 out. 2021.
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; Nunes, Saldanha, 2016). As biografias de objetos (Gosden, Marshall, 1999; Joy, 2009JOY, Jody. Reinvigorating object biography: reproducing the drama of object lives. World Archaeology, v.41, n.4, p.540-556, 2009. ; Pereira, 2018PEREIRA, Elisabete Jesus. Colecionismo arqueológico e redes de conhecimento: atores, coleções, objetos (1850-1930). Lisboa: Caleidoscópio; Casal de Cambra: Direção Geral do Património Cultural, 2018. ; Armbruster, Lorre, Pereira, 2021PEREIRA, Elisabete Jesus. Using object biographies to reveal how our pasts are interconnected. The Hague: EuroClio – European Association of History Educators; Evens Foundation, 2021. ) promovem o conhecimento sobre o passado, inspirando imaginação no presente e desafios para o futuro (Lourenço, Neto, 2011; Lourenço, 2015LOURENÇO, Marta. Scientific collections, museums and heritage: creating connections and engaging society through history. Sartoniana, n.28, p.109-128, 2015. ; Lopes, Pereira, 2019).

Num tempo global consideramos inspirador olhar para a produção de materialidades científicas do CIZ 1935, em Lisboa. A marca gráfica de estrela-do-mar, como imagem oficial de todo o suporte visual, decorrente da realização e da prática do congresso (XII Congrès..., 1936) foi encontrada no espólio sobrevivente ao grande incêndio de março de 1977, no Museu de História Natural da Faculdade de Ciências de Lisboa, esquecido dentro de baús, por um tempo de amnésia científica, recuperado por um tempo de investigação de Ana Rita Saldanha (2014)SALDANHA, Ana Rita. Práticas, redes e produções científicas dos naturalistas do Museu Bocage na Europa entre guerras (1914-1945): o património documental do Arquivo Muhnac-UL. 2v. Relatório de estágio (Mestrado em Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural) – Universidade de Évora, Évora, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/10174/14538 . Acesso em: 30 out. 2021.
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. Nesta descoberta inusitada encontrava-se a coleção de originais de caricaturas encomendadas pelo coordenador do 12º CIZ – Artur Ricardo Jorge (1886-1975) – a artistas dos anos 1930 ( Hovorkova, 2013HOVORKOVA, Nataliya. As caricaturas de Teixeira Cabral no seu contexto histórico: início da sua carreira e contribuição da sua actividade artística para a arte nos anos 30 do século XX. Lisboa: Dissertação (Mestrado em Arte Contemporânea) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2013. ; Nunes, Saldanha, 2016) que navegavam entre o modernismo e o traço de caricatura crítica, decorrente da genealogia de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), caricaturista do nono Congresso União Internacional das Ciências Pré-históricas e Proto-históricas, realizado em Lisboa em 1880.

O nosso foco de interesse materializa-se nestes objetos do 12º CIZ, em 1935, que nos conduz a circuitos de navegação, atendendo ao mapeamento geográfico dos congressistas que aportaram a Lisboa. Ousadia de ler objetos com novos significados, na senda da leitura de Mark Thurner (2015)THURNER, Mark. An old new world for the history of historiography. Storia della Storiografia, v.67, n.1, p.29-50, 2015. , numa globalização de motor europeu, Portugal levou a insígnia marítima aos quatro cantos de mundo; e hoje com o olhar de século XXI, enxerga esse símbolo do mar como um património material do 12º CIZ. Mas também um património científico imaterial, o conjunto de emoções afetivas de cientistas, de sentir os traços de uma cultura portuguesa de matriz marítima combinada com a memória histórica do país anfitrião, com uma tradição de caricatura científica, a que se associou o programa de turismo científico do congresso ( Saldanha, 2014SALDANHA, Ana Rita. Práticas, redes e produções científicas dos naturalistas do Museu Bocage na Europa entre guerras (1914-1945): o património documental do Arquivo Muhnac-UL. 2v. Relatório de estágio (Mestrado em Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural) – Universidade de Évora, Évora, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/10174/14538 . Acesso em: 30 out. 2021.
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).

Numa outra incursão metodológica, olhámos para a plataforma Hoslac (History of Science in Latin America and the Caribbean): um “banco de dados interpretativos de fontes primárias sobre a história da ciência na América Latina e no Caribe”, 1 1 No original: “a comprehensive database of primary sources on the history of science in Latin America and the Caribbean”. Disponível em: https://mypages.unh.edu/hoslac/home . Acesso em: 10 abr. 2022. como um potencial de futuro, para dar visibilidade às descobertas do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, da Universidade de Lisboa (Muhnac-UL); visualizamos e comparámos imagens de significado marítimo diferenciado para os povos de América do Sul e Caribe que podem corresponder a um mesmo arquétipo seminal marítimo identificador da zoologia, no contexto de Portugal nos anos 1930.

Apontar novas vidas para objetos que se encontravam esquecidos em arquivos de museus, a partir de duas das taxinomias de materialidades físicas distintas, gizadas por Artur Ricardo Jorge: ícone representativo de zoologia marítima e o suporte visual diferenciado dos congressistas, pelo traço criativo e interpretativo de traços do modernismo estético de então, disseminados na imprensa da época, além da exposição de caricaturas no espaço científico do congresso ( Saldanha, 2014SALDANHA, Ana Rita. Práticas, redes e produções científicas dos naturalistas do Museu Bocage na Europa entre guerras (1914-1945): o património documental do Arquivo Muhnac-UL. 2v. Relatório de estágio (Mestrado em Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural) – Universidade de Évora, Évora, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/10174/14538 . Acesso em: 30 out. 2021.
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). Estes objetos e coleções conduzem-nos à valorização de património que dá novas luzes à história da ciência transnacional (Francis, Slack, Edwards, 2011; Lourenço, 2006LOURENÇO, Marta. O património da ciência: importância para a pesquisa. Museologia e Património, v.2, n.1, p.47-53, 2006. , 2010LOURENÇO, Marta. O Museu de Ciência da Universidade de Lisboa: património, coleções e pesquisa. In: Granato, Marcus; Lourenço, Marta (coord.). Coleções científicas luso-brasileiras: patrimônio a ser descoberto. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, 2010. p.257-276. , 2015LOURENÇO, Marta. Scientific collections, museums and heritage: creating connections and engaging society through history. Sartoniana, n.28, p.109-128, 2015. ). Nas novas agendas de história da ciência cruzadas é pertinente divulgar, em suportes de acesso aberto, materiais que durante muito tempo não foram considerados como dignos de uma história da ciência endógena. Tal como Mark Thurner (2015)THURNER, Mark. An old new world for the history of historiography. Storia della Storiografia, v.67, n.1, p.29-50, 2015. nos desafia a romper fronteiras de teoria e de territórios de história, também a história da ciência global, descentralizada, dá-nos a oportunidade de focar elementos que foram já olhados como periféricos e alegóricos à zoologia, com cruzamentos possíveis entre ciência e arte (Lourenço, Neto, 2011). O tempo virtual da plataforma Hoslac é uma proposta agregadora para a construção de contributos transdisciplinares para a história da ciência, valorizando as periferias do habitual centro de produção de conhecimento, tirando partido da metodologia transnacional decorrente do formato open database archive .

Com uma especial acutilância percorremos a seção “Muesums and collections” do site da Hoslac. 2 2 Disponível em: https://mypages.unh.edu/hoslac/book/museums-and-collections-1500-2000 . Acesso em: 10 abr. 2022. Dois campos de materialidades existem sobre a nossa mesa de trabalho ( Saldanha, 2014SALDANHA, Ana Rita. Práticas, redes e produções científicas dos naturalistas do Museu Bocage na Europa entre guerras (1914-1945): o património documental do Arquivo Muhnac-UL. 2v. Relatório de estágio (Mestrado em Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural) – Universidade de Évora, Évora, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/10174/14538 . Acesso em: 30 out. 2021.
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):

  1. Collection Maritime Zoology in Congress: estrela-do-mar em diferentes formatos e usos de prática de congresso;

  2. Visual Collection, Zoological Scientist: a coleção de 45 caricaturas de zoólogos presentes e caricaturados por três artistas.

Um destaque para a cenografia e circulação de objetos científicos, para além do mainstream institucional de uso de ideologia colonial de Estado Novo português ( Nunes, 2012NUNES, Maria de Fátima. Cientistas em acção: congressos, práticas culturais e científicas (1910-1940). In: Neto, Vitor (ed.). República, universidade e academia. Coimbra: Editora da Universidade de Coimbra, 2012. p.291-312. , 2016NUNES, Maria de Fátima. Ciência e cultura, coleções e museus: olhares sobre um “Portugal e a cultura europeia” no século XX. Revista de História das Ideias, v.34, p.267-286, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/10174/20050 . Acesso em: 30 out. 2021.
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). Importa renovar a importância dos museus de história natural, com o potencial estratégico dos fundos de arquivos, como propõe Maria Margaret Lopes (2016LOPES, Maria Margaret (coord.). Gender, collecting practices, museums. Host: Journal of History of Science and Technology, v.10, n.1, 2016. Disponível em: http://www.degruyter.com/view/j/host.2016.10.issue-1/issue-files/host.2016.10.issue . Acesso em: 30 out. 2021.
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; Ogilvie, 2016OGILVIE, Brian. Scientific archives in the age of digitization. Isis, v.107, n.1 , p.77-85, 2016. ). Entramos na dinâmica do 12º CIZ, no território do Velho Mundo, ressaltando ligações entre a política científica e a política ideológica do ambiente do congresso, quando o tema “Descobrimentos” não era negociável estar ausente no coletivo dos congressistas e no espaço público do parlamento zoológico em périplo internacional. O símbolo tinha que ser marítimo e deveria acompanhar toda a publicitação e prática do congresso ( Byrne et al., 2011BYRNE, Sarah et al. (ed.). Unpacking the collection: networks of material and social agency in the museum. New York: Springer, 2011. ).

Lisboa, palco de zoologia

Fixado o itinerário narrativo do congresso ( Saldanha, 2014SALDANHA, Ana Rita. Práticas, redes e produções científicas dos naturalistas do Museu Bocage na Europa entre guerras (1914-1945): o património documental do Arquivo Muhnac-UL. 2v. Relatório de estágio (Mestrado em Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural) – Universidade de Évora, Évora, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/10174/14538 . Acesso em: 30 out. 2021.
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; Nunes, Saldanha, 2016) olhemos a insígnia zoológica de um Portugal de 1935, complementada em leituras de ciência e arte com as caricaturas que voaram pelas páginas dos jornais que faziam a cobertura jornalística do evento internacional ocorrido em Lisboa, capital de um império de muitos séculos que preparava a cenografia monumental da Exposição do Mundo Português de 1940 ( Neto, 2017NETO, Teresa, Arquiteturas expositivas e identidade nacional: pavilhões de Portugal em exposições internacionais, 1915-1970. Lisboa: Caleidoscópio, 2017. ). A cenografia gráfica de elementos marítimos estabelecia um franco diálogo com os congressistas internacionais, não apenas em fotografia de postura científica institucional, mas em versão da caricatura individual, com a captação de trejeitos científicos que os faziam reconhecer transnacionalmente no cenário da zoologia mundial.

O 12º CZI chega a Lisboa pela mão de Artur Ricardo Jorge ( Nunes, 2016NUNES, Maria de Fátima. Ciência e cultura, coleções e museus: olhares sobre um “Portugal e a cultura europeia” no século XX. Revista de História das Ideias, v.34, p.267-286, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/10174/20050 . Acesso em: 30 out. 2021.
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), para ser alocado no Museu Bocage – Museu Nacional de História Natural, designação de 1926, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no eixo da Academia das Ciências de Lisboa, alinhando em direção à baixa pombalina por meio da Sociedade de Geografia de Lisboa (Pina, Nunes, 2012NUNES, Maria de Fátima. Cientistas em acção: congressos, práticas culturais e científicas (1910-1940). In: Neto, Vitor (ed.). República, universidade e academia. Coimbra: Editora da Universidade de Coimbra, 2012. p.291-312. ). Espaços científicos e culturais que permitem também biografias espaciais (Lopes, Pereira, 2019; Nunes, 2020b), e que enquadraram a sociabilidade científica da realização do 12º CIZ, no eixo de transição urbanística de Lisboa Colina da Ciência versus Lisboa, Ciência e Império, respirando símbolos visuais conectados com imaginário dos Descobrimentos portugueses.

Para além destas materialidades, o fundo documental do Arquivo do Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa tem um património de 28 pastas, núcleos documentais relativos à preparação, realização e publicações do congresso: “correspondência”; “notícias”; “fotografia”; “impressos e publicações (com dossier de recortes de imprensa nacional e internacional)”; “memorabilia e desenhos [com 45 caricaturas de congressistas, encomendadas a Ressano Garcia (1880-1947) e a António Teixeira Cabral (1910-1980)”, a este grupo juntou-se o caricaturista Joaquim Gonçalves Rodrigues (Quim) (1906-1944)]; alvo de exposição na Galeria da Faculdade de Medicina, no Campo de Santana, que havia acolhido em 1906 o Congresso Internacional de Medicina (Nunes, 2020a). Artur Ricardo Jorge concebeu um “projeto artístico”, uma forma de conjugar um espaço de saber científico com o da criatividade artística, com um toque de sociabilidade vivencial e recreativa, no sentido que Sandra Jurgens (2016)JURGENS, Sandra Vieira. Instalações provisórias: independência, autonomia, alternativa e informalidade: artistas e exposições em Portugal no século XX. Lisboa: Documenta, 2016. nos propõe como consumo artístico, em espaço público e expositivo como as Figuras 2 e 3 exemplificam.

Figura 2
Richard B. Goldschmidt (1878-1958); em 1935, ainda participou como membro do Kaiser Wilhelm-Institut für Biologie, Berlim. Caricatura. Richard Benedict Goldschmidt Arnaldo Ressano Garcia, 1935. 12º Congresso Internacional de Zoologia. Fundo Museu Nacional de História Natural e da Ciência. UL 22242 (Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Lisboa)

Figura 3
Martha Geiringer (1912-1943), em 1935, em representação do Biologische Versuchsanstalt der Akademie der Wissenschaften, Viena, Áustria. Devido à origem judia, morreu no campo de concentração de Auschwitz, 1943. Caricatura de Martha Geiringer. António Teixeira Cabral, 1935. 12º Congresso Internacional de Zoologia. Fundo Museu Nacional de História Natural e da Ciência. UL 2224 (Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Lisboa)

Essas imagens reproduzidas corporizam, nestas notas de investigação, a ideia de utilidade para a história e para a história da ciência do uso de objetos esquecidos, podendo vir a ganhar nova vida relacional com visibilidade narrativa e digital para historiadores e cientistas sociais.

Considerações finais

A imaginária de reconstituição cenográfica estabelece pontes entre investigadores e públicos virtuais (Wood, Latham, 2013; Ogilvie, 2016OGILVIE, Brian. Scientific archives in the age of digitization. Isis, v.107, n.1 , p.77-85, 2016. ; Visser, 2017VISSER, Jasper. The museum as a center for social innovation. History News: American Association for State and Local History, v.72, p.9-13, 2017. ) e deve ser adensada pelo uso informativo de história biográfica de objetos de museu – arquivo, em plataformas de visualização, atrás sugeridas. No caso que seguimos – insígnias e caricaturas – foi possível entender o papel das periferias, na zoologia, como parte de uma história da ciência global, salientando o papel da circulação e trocas científicas, combinando ciência com cultura artística, nacionalismo e ideologia, em modo de estética modernista. Ciência e cenografia conjugavam os objetivos de Artur Ricardo Jorge e do Estado português, na fase seminal do Estado Novo de 1933. Os suportes visuais do congresso evidenciavam um comprometimento com o nacionalismo marítimo, mas afastou-se da Cruz de Cristo das caravelas e das naus portuguesas quinhentistas. A escolha de uma estrela-do-mar para unificar a simbologia congressista, ombreando com a galeria pública de caricaturas de congressistas zoólogos, foi idealizada com função cultural, artística e científica do zoólogo organizador, evidenciando parte da sua inquietação intelectual ao conceber um cenário que cumpria os imaginários épicos, mas com outra linguagem! Estrela-do-mar e caricaturas fazem parte de um discurso científico e intelectual de compromisso no fascismo português. Artur Ricardo Jorge assumiu-se como o maestro do congresso de 1935, traçando um discurso público, visualmente rico e coerente, não se deixando pressionar pela estética dos tempos de patriotismo e de nacionalismo da política do Portugal de Salazar!

Figura 1
Estrela-do-mar presente em toda a documentação oficial do congresso: a materialização marítima. Insígnia de participante de nacionalidade portuguesa no 12º Congresso Internacional de Zoologia. Fundo Museu Nacional de História Natural e da Ciência, UL 22280 (Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Lisboa)

AGRADECIMENTOS

Este trabalho beneficiou do uso da infraestrutura Portuguese Research Infrastructure of Scientific Collections (Prisc) e do PTDC/FER-HFC/2793/2020: “Transnational materialities (1850-1930): reconstituting collections and connecting histories” (Transmat). Fundação para a Ciência e a Tecnologia – Portugal.

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NOTAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    2 Jul 2021
  • Aceito
    29 Nov 2021
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