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Ciência e gênero, feminismo e história das ciências: entrevista com Evelyn Fox Keller

Science and gender, feminism and history of science: interview with Evelyn Fox Keller

Resumo

A entrevista aborda a trajetória de Evelyn Fox Keller, professora emérita de história e filosofia das ciências do Massachusetts Institute of Technology. Keller reflete sobre seu percurso e sobre os desafios que precisou enfrentar para expandir as fronteiras dos estudos de ciências com seu trabalho pioneiro relacionando linguagem, gênero e ciências, que tem sido muito influente em mudar a visão da história das ciências.

epistemologia feminista; história da biologia; gênero e ciência

Abstract

This interview covers the trajectory of Evelyn Fox Keller, emeritus professor of history and philosophy of science at the Massachusetts Institute of Technology. Keller reflects on her career and the challenges she had to overcome to push back the frontiers of science with her pioneering work on language, gender, and science, which has been very influential in changing views in the history of science.

feminist epistemology; history of biology; gender and science

A preeminente pesquisadora Evelyn Fox Keller, feminista, professora emérita do Massachusetts Institute of Technology (MIT), reconhecida pelos seus trabalhos em ciência e gênero, e filosofia e história da biologia moderna, recebeu-nos no dia 3 de janeiro de 2018 em sua casa em Cambridge, Massachusetts, EUA, onde esta entrevista foi gravada.

Evelyn Fox Keller nasceu em 1936, em Nova York, filha de imigrantes judeus russos (Rachel e Albert Fox), de origens bastante modestas, e irmã de Maurice Fox (1924) e Frances Fox (1932), que também se tornaram eminentes acadêmicos. Keller estudou no sistema público de ensino nova-iorquino até concluir o ensino médio, quando então começou a estudar psicologia no Queens College, porém, terminou por se graduar em física, em 1957, pela Brandeis University. Depois de concluir um mestrado no Radcliffe College (instituição de ensino superior na época voltada somente para mulheres), Keller ingressou na Harvard University, onde obteve o seu doutorado em física, em 1963, com tese em biologia molecular sob a orientação de Matthew Meselson.

Entre 1963 e 1980, Keller assumiu diversas posições docentes e de pesquisa na área da cidade de Nova York (entre as quais na New York University – NYU – e na State University of New York – Suny), e, em especial entre 1963 e 1966, no Courant Institute of Mathematical Sciences da NYU, como cientista assistente de Joseph Bishop Keller, com quem se casou, tendo dois filhos, Jeffrey (1965) e Sarah Keller (1966).

Em 1969, Evelyn, seguindo Joseph, mudou-se para a costa Oeste, onde ele conseguiu um período sabático na Stanford University. Evelyn, cuidando das crianças, e dada essa interrupção na sua trajetória acadêmica, começou a pesquisar na biblioteca, motivada pela sua situação, estatísticas a respeito das mulheres na ciência ao longo do século XX. Ela apresentaria os seus resultados nos anos posteriores.

Keller já havia publicado, ao final da década de 1970, relevantes trabalhos em física teórica, biologia molecular e biologia matemática (incluindo o chamado modelo Keller-Segel para quimiotaxia), quando passou a se interessar por questões políticas, sociais e de psicanálise, trajetória que a levaria da física teórica e da biologia molecular à filosofia e história das ciências, e à crítica cultural.

Sua pesquisa realizada em Stanford resultou em suas primeiras comunicações públicas a respeito desses assuntos e em seu primeiro artigo (Keller, out. 1974). Em 1977, publicou também um ensaio e relato pessoal, “The anomaly of a woman in physics” (Keller, 1977KELLER, Evelyn F. The anomaly of a woman in physics. In: Ruddick, Sara; Daniels, Pamela (org.). Working it out: 23 women writers, artists, scientists, and scholars talk about their lives and work. New York: Pantheon, 1977. p.77-91.), a respeito das dificuldades enfrentadas como doutoranda mulher na Harvard University (como expressa na máxima, “o pessoal é político”, é quando começa a se engajar).

Entre 1982 e 1987, Keller assumiu inúmeras posições acadêmicas, tanto permanentes como de pesquisadora visitante, incluindo Northeastern University, Cornell University, University of Maryland e Princeton University, e, em 1988, tornou-se professora em estudos das mulheres ( women’s studies ) – ou estudos feministas – na Universidade da Califórnia em Berkeley. O seu primeiro livro, A feeling for the organism , traduzido para quase uma dezena de línguas, foi uma biografia da geneticista Barbara McClintock (Keller, 1983KELLER, Evelyn F. A feeling for the organism: the life and work of Barbara McClintock. London: W.H. Freeman, 1983.). As suas principais teses sobre gênero e ciências, no entanto, seriam publicadas dois anos depois em seu livro, tornado clássico, Reflections on gender and science (Keller, 1985KELLER, Evelyn F. Reflections on gender and science. New Haven: Yale University Press, 1985.). Ao longo de sua profícua carreira, Keller publicou (e editou) mais de uma dúzia de livros e mais de uma centena de artigos.

Entre 1979 e 1984, ela já havia sido pesquisadora visitante ( visiting fellow ) no programa de Ciência, Tecnologia e Sociedade do MIT quando, em 1992, assumiu na instituição uma posição permanente, na qual trabalhou até se aposentar (tendo entrementes trabalhado como pesquisadora visitante em inúmeras instituições de prestígio como o California Institute of Technology e o Instituto Max Planck para História das Ciências em Berlim).

Os prêmios que recebeu ao longo de sua brilhante trajetória não são poucos, incluindo a prestigiosa MacArthur Fellowship (1992) e o famoso prêmio John Desmond Bernal (2011), tendo sido, poucos meses após essa entrevista, novamente galardoada com um prêmio dos mais distintos em estudos de ciências, a saber, o prêmio Dan David (dividido, em 2018, com Lorraine Daston e Simon Schaffer).

Doutora Keller, obrigado por nos conceder esta entrevista. É sabido que a senhora nasceu em 1936 e foi criada na cidade de Nova York. Os seus pais eram imigrantes judeus russos de origens modestas e sem nenhuma formação acadêmica.

Eu diria de origens bastante modestas!

E, mesmo assim, tanto a senhora quanto seus irmãos, Maurice, biólogo molecular e geneticista, e Frances, professora de ciência política e sociologia, atingiram preeminência acadêmica. Qual foi o fator de maior influência que os levou a procurar carreiras acadêmicas?

É uma pergunta que me fazem com frequência, parece ser uma questão que salta aos olhos na minha trajetória. Minha resposta é que o sucesso acadêmico era para nós a única saída, a nossa única rota de fuga. Tivemos uma infância muito difícil. Os meus pais viviam sob um estresse enorme, tanto sob o ponto de vista econômico quanto de outros modos. E nós tivemos a sorte de crescer dentro do sistema de escolas públicas da cidade de Nova York, que era fabuloso! Eu acho que hoje ele não tem a mesma reputação, mas, na época, era, realmente, um refúgio para aqueles que pudessem tirar o melhor proveito dele, um refúgio para todos os tipos de crianças imigrantes. Eu acredito que é por isso que se encontram tantos acadêmicos preeminentes vindos daquele sistema. Foi essa a razão, e não os meus pais.

Os seus irmãos, ao que parece, também tiveram um papel importante na sua trajetória intelectual, tanto na introdução à psicanálise quanto às ciências naturais. O seu irmão lhe passava livros de ciências, de autores como George Gamow e Isaac Asimov.

Exato!

E foi a sua irmã, certa feita, retornando da universidade onde estudava em Chicago, que lhe apresentou pela primeira vez o conceito de “inconsciente”, quando a senhora tinha 11 ou 12 anos?

Sim! Eu tinha entre 13 e 14 anos de idade. Ela me falou sobre psicanálise. Ela própria não tinha muito interesse, mas eu amei a ideia de “inconsciente”. Eu passava muito tempo nas bibliotecas apenas passeando, folheando livros, lendo isso aqui e acolá, pois, como falei, o sistema público nova-iorquino de escolas era maravilhoso. Quando ingressei no Queens College, já tinha interesse em estudar psicanálise (tendo me inscrito em psicologia), mas, por gostar de matemática, resolvi também cursar uma matéria de cálculo. O professor que lecionava cálculo era Banesh Hoffmann, um físico e matemático britânico bastante conhecido por haver trabalhado com [Albert] Einstein. Ele era um professor brilhante e estava sempre à procura de novos talentos. Assim, no primeiro dia de aula da disciplina, ele lançava umas perguntas difíceis. Eu, então, levantei a minha mão e respondi às perguntas. Assim, ao final da aula, quando os estudantes já estavam saindo da sala de aula, ele me chamou e perguntou: “Qual é o seu curso?”. Eu respondi: “Psicologia”. No que ele me questionou: “Por que você não faz matemática?”. Eu disse: “Porque eu não quero ser contadora”. No que ele respondeu: “E o que você acha de física?”. Eu respondi: “O que é isso?”. De fato, o meu irmão havia me dado esses livros de ciências, mas até então eu não os havia lido. E foi assim que eu comecei a lê-los e a gostar de ciências. Eu não fui dessas crianças que gostava de ciências desde pequena. Eu estava cursando psicologia. Eu era uma espécie de boêmia. Todos os meus amigos eram artistas. Mas, aí, em uma festa, eu me lembro, alguém me perguntou: “Qual é o seu curso?”. Eu respondi: “Eu estou estudando psicologia, mas talvez eu mude para física”.

E, assim, a senhora mudou do Queens College para a Brandeis University?

Correto.

E, ainda assim, mantinha planos de se tornar uma psicanalista, depois da graduação em física na Brandeis University?

Sim.

Até o seu último ano de graduação, quando, então, mudou de ideia enquanto escrevia o seu trabalho de conclusão de curso sobre a formulação lagrangeana de Feynman da mecânica quântica.

Correto.

A senhora escreveu esse trabalho de conclusão de curso sob a orientação de Silvan Samuel Schweber. E sabemos que, além de físico teórico, Schweber tornou-se um importante historiador das ciências. A senhora teve, durante o período em que trabalhava com ele em física teórica, alguma influência no que tange à história das ciências?

Não. Eu ainda não tinha interesse em história das ciências nessa época. De todo modo, depois que segui para o meu doutorado, perdi o contato com o Sam [Schweber]. Depois do doutorado, eu me mudei para Nova York, me casei, tive filhos, me separei, e, muito tempo depois, tendo me mudado para Cambridge, reencontrei o Sam. Eu estava na biblioteca quando alguém me perguntou se eu precisava de ajuda. Eu reconheci a voz dele. Era o Sam! Eu adorava o Sam. Mas foi depois de seguirmos caminhos diferentes que nós nos reencontramos. Na época, eu ainda não era uma historiadora das ciências. Ele estava muito à frente de mim nesse sentido. Mas, de todo modo, ele não me influenciou em história das ciências (nem eu a ele).

E depois da graduação na Brandeis University, a senhora queria fazer o doutorado no Caltech com Richard Feynman?

Correto.

De toda forma, o Caltech não admitia mulheres naquela época e a senhora acabou indo para Harvard?

Sim.

A senhora publicou, muitos anos depois, em 1977, um ensaio, “The anomaly of a woman in physics” (Keller, 1977KELLER, Evelyn F. The anomaly of a woman in physics. In: Ruddick, Sara; Daniels, Pamela (org.). Working it out: 23 women writers, artists, scientists, and scholars talk about their lives and work. New York: Pantheon, 1977. p.77-91.), sobre a sua experiência como doutoranda em física na Universidade de Harvard. Como essa experiência influenciou o futuro de sua carreira?

A experiência foi muito desconcertante, incrivelmente solitária, uma experiência dolorosa. As pessoas não falavam comigo. Eu me lembro de um domingo, enquanto andava ao longo do rio Charles e vejo um homem que me diz: “Eu sei quem você é!”. Ele sabia tudo sobre mim: as matérias que eu estava cursando, os meus colegas de classe em cada matéria, o que as pessoas diziam a meu respeito. Eu estava sendo vigiada. Eu era observada. Eu era uma anomalia. Era terrível. Eu não tinha amigos e eu apenas queria ser normal.

E a senhora acabou escrevendo uma tese sobre biologia molecular com Matthew Meselson. Como foi essa transição da física teórica para a biologia molecular? Encontrou um ambiente mais satisfatório e confortável na biologia molecular do que na física teórica?

Minha experiência na Universidade de Harvard foi muito dolorosa, de modo que, finalmente, decidi que aquilo não poderia mais continuar. No entanto, eu não sabia o que fazer. Eu estava sendo bancada por uma bolsa da National Science Foundation (NSF) e, portanto, não poderia, simplesmente, desistir. No entanto, como poderia concluir a minha tese de doutorado se ninguém no departamento de física conversava comigo? Inicialmente, considerei que, talvez, o professor Paul Martin fosse o professor mais amigável do departamento. Assim, o procurei em seu gabinete e falei sobre meu interesse em escrever minha tese de doutorado sob sua orientação. Ao que me respondeu: “Volte para casa e aprenda a fazer contas”. Então, cortei essa opção. Não havia ninguém com quem eu pudesse trabalhar. Eles não me aceitavam. Ninguém conversava comigo. Eu não sabia o que fazer. O meu irmão, então um jovem biólogo molecular recém-formado, estava indo para Cold Spring Harbor (NY), o centro da nascente biologia molecular, no verão. Ele, recém-casado, com sua esposa e um bebê, me disse que eu poderia ir com eles para Cold Spring Harbor, visto que havia uma cama extra no quarto do bebê, e eu poderia fazer o que quisesse. Eu me inscrevi, a princípio, em um círculo de leituras sobre os fundamentos da mecânica quântica. E foi assim que fui seduzida pela biologia molecular, visto que todos eram tão amigáveis, todos estavam felizes com a minha presença em seus laboratórios.

Max Delbrück estava em Cold Spring Harbor nesse verão?

Sim. Delbrück estava lá e me passava pequenos problemas para resolver. Foi como estar no paraíso. Uma maravilha! Eu terminei por trabalhar nos experimentos do Frank [William Stahl] e ele me apresentou a Matthew Meselson, que estava indo trabalhar na Universidade de Harvard no início daquele ano letivo.

E foi também quando a senhora se encontrou com Barbara McClintock?

Eu não me lembro de haver conversado com ela na época, mas, sim, ela estava lá e eu a via em Cold Spring Harbor. A imagem dela me apavorava pois ela parecia tão sozinha. Ela era tão solitária.

Entre 1963 (após a defesa da tese de doutorado em biologia molecular) e 1980, a senhora teve uma série de cargos de ensino e pesquisa na área ao redor da cidade de Nova York. E a biologia molecular/matemática?

Primeiro, eu voltei para a física – física teórica. Eu me mudei para Nova York e assumi um trabalho para ensinar física. Por volta dessa época, eu soube que um novo programa estava sendo criado pelo Instituto Sloan Kettering e pela Cornell Medical School, liderado por um amigo do meu marido, um biólogo matemático. Ele sugeriu que eu me juntasse a eles nesse programa. Eu disse: “Por que não? Eu tenho as habilidades necessárias”. Foi quando comecei a trabalhar com biologia matemática. No entanto, por cerca de dois anos, antes de trabalhar nisso na NYU, eu escrevi alguns artigos sobre física – dinâmica não linear, sistemas termodinâmicos fora do equilíbrio e assim por diante. Publiquei alguns artigos e me tornei respeitável nesses domínios. Porém, depois que migrei para a biologia matemática, comecei numa área totalmente distinta.

Foi por volta dessa época que a senhora começou a sua colaboração com Lee Segel, que resultou em conhecidas publicações?

Exato. Eu já havia publicado um ou dois artigos na área antes de Lee Segel chegar em seu ano sabático no Instituto Sloan Kettering e na Cornell Medical School. Nós rapidamente nos entendemos e começamos uma colaboração criando dois projetos juntos. E então escrevemos essas conhecidas publicações. São três artigos que se tornaram clássicos (Keller, Segel, 1970aKELLER, Evelyn F.; SEGEL, Lee A. Initiation of slime mold aggregation viewed as an instability. Journal of Theoretical Biology, n.26, p.399-415, 1970a., 1970bKELLER, Evelyn F.; SEGEL, Lee A. Conflict between positive and negative feedback. Nature, n.277, p.13-65, 1970b., 1971KELLER, Evelyn F.; SEGEL, Lee A. A model for chemotaxis. Journal of Theoretical Biology, n.30, p.225-234, 1971.).

E o que aconteceu com essa colaboração?

Lee Segel chegou da RPI (Rensselaer Polytechnic Institute) para se juntar a nós no Instituto Sloan Kettering e na Cornell Medical School por apenas um ano, durante o seu período sabático. Depois, eu também me mudei para a Califórnia para acompanhar meu marido (Joseph Bishop Keller), que estava de mudança para a Stanford University. Nessa época, nós já tínhamos dois filhos. Lee, por sua vez, começou a correr o país divulgando o trabalho fruto de nossa colaboração. Ele estava ficando cada vez mais animado com a resposta ao nosso trabalho, enquanto eu passava meu tempo na cozinha e trocando fraldas, visitando a biblioteca apenas no meu tempo livre. Então me interessei pela questão das mulheres na ciência. Por que havia tão poucas mulheres nas ciências? Comecei a perder o interesse em fazer ciência. O meu trabalho com Lee foi divertido, mas eu estava perdendo o interesse. Justamente no momento em que Lee estava ficando a cada dia mais e mais motivado. Não me ocorreu à época que havia uma conexão entre essas coisas. Resolvi escrever ao (psicólogo) Erick Erickson: “O que há de errado comigo, que estou perdendo o interesse em ciências, ao passo que Lee está ficando mais interessado na carreira científica?”. E eu descobrindo todas essas mulheres que passaram pelas mesmas experiências e acabaram desistindo de carreiras científicas. Por que as mulheres estão desistindo de seguir carreiras científicas?

É a partir desse ponto que a senhora começa a transição entre fazer ciência e pensar sobre o que acontece na produção do conhecimento científico?

É preciso delinear alguns detalhes primeiro. Eu já havia deixado a unidade de biologia matemática do Instituto Sloan Kettering há um ano quando consegui esse trabalho na NYU. Eu estava ensinando no departamento de matemática.

E depois de um ano na NYU, começou a trabalhar em paralelo no programa de estudos das mulheres?

Na verdade, isso foi depois que eu fui para a Suny, em Purchase. Portanto, depois do Instituto Sloan Kettering, eu passei pela NYU por um tempo e, apenas depois disso, me mudei para a Suny. A Suny era uma universidade muito interdisciplinar, possibilitando que eu lecionasse esse primeiro curso de estudos das mulheres. Eu já tinha passado um ano em Stanford, ocasião em que coletei aqueles dados sobre as mulheres na ciência. Assim, lecionei uma disciplina sobre o problema das mulheres na ciência, enquanto também contava sobre minha experiência pessoal na Universidade de Harvard – o que foi muito libertador para mim, visto que antes eu não podia falar sobre esse assunto. Nessa época, fui convidada a dar uma série de seis aulas na University of Maryland a respeito do meu trabalho em biologia matemática. E, como eu lecionava esse curso sobre mulheres na ciência, senti que não poderia ignorar esse fato na minha exposição em Maryland – a diferença que fazia ser uma mulher na ciência. E foi assim que nasceu meu artigo “Women in science: an analysis of a social problem” (Keller, 1974KELLER, Evelyn F. Women in science: an analysis of a social problem. Harvard Magazine, p.14-19, out. 1974.), que foi uma transcrição da minha exposição em Maryland. Eu submeti esse trabalho à Harvard Magazine . O trabalho foi publicado, e essa foi a minha primeira publicação fora das hard sciences . Eu senti que essa foi uma coisa muito corajosa a se fazer à época, e esse foi o meu primeiro passo.

A senhora não acha que, ao falar sobre sua própria experiência como doutoranda na Universidade de Harvard, de alguma maneira, ilustrava o aforisma “o pessoal é político”?

Exato! Certamente eu já conhecia o aforisma “o pessoal é político” e, de fato, pensava nesses termos – depois de tantos anos pensando que todos os problemas que encontrei na Universidade de Harvard ocorreram por minha culpa, como se as minhas dificuldades nessa universidade fossem meramente problemas pessoais. Por causa desse curso (em Maryland), depois de me culpar por todos esses anos, comecei a entender que isso não era apenas um problema pessoal, mas que era um problema político. O meu primeiro artigo, “Women in science” (Keller, 1974KELLER, Evelyn F. Women in science: an analysis of a social problem. Harvard Magazine, p.14-19, out. 1974.), não era pessoal – de fato, não era nada pessoal –, mas esse artigo me permitiu escrever o segundo artigo, “The anomaly of a woman in physics” (Keller, 1977KELLER, Evelyn F. The anomaly of a woman in physics. In: Ruddick, Sara; Daniels, Pamela (org.). Working it out: 23 women writers, artists, scientists, and scholars talk about their lives and work. New York: Pantheon, 1977. p.77-91.).

É verdade que foi por causa do feedback de alguém a respeito desse seu segundo artigo que veio a sugestão para que escrevesse sobre Barbara McClintock? Como surgiu a ideia de escrever uma biografia dela?

Sim. Já haviam passado cerca de dois anos desde que escrevi “The anomaly of a woman in physics” (Keller, 1977KELLER, Evelyn F. The anomaly of a woman in physics. In: Ruddick, Sara; Daniels, Pamela (org.). Working it out: 23 women writers, artists, scientists, and scholars talk about their lives and work. New York: Pantheon, 1977. p.77-91.) quando um amigo me apresentou a McClintock. Na época, eu estava muito envolvida com uma série de grupos feministas de conscientização. Estava muito envolvida com a teoria feminista – o próprio feminismo, que eu considerava um movimento político (sob outro nome), ou seja, uma outra forma de fazer política. As questões a respeito do significado do conceito de gênero, o impacto que as noções de gênero tinham na sociedade, na vida das pessoas, ou seja, de modo geral, todas essas coisas estavam “no ar”, havia muito interesse em pesquisar a questão das mulheres. Assim, um dia fui ao cinema assistir a um documentário maravilhoso sobre Antonia Brico, uma mulher regente de orquestra sinfônica (Antonia..., 1974ANTONIA: a portrait of the woman. Direção: Judy Collins, Jill Godmilow. EUA: Rocky Mountain Films, 1974. (58 min.)). Eu me lembro de, na época, ficar remoendo: “Como ninguém ainda fez um filme sobre mulheres cientistas?”. Voltei para casa pensando nisso, que seria algo interessante a ser feito. Já em casa, meu telefone toca. Eu atendo, e uma pessoa que eu nem conhecia me disse: “Eu acabei de ler o seu artigo, ‘The anomaly’, e estava pensando que alguém deveria escrever um artigo sobre Barbara McClintock”. Eu pensei: “Bingo!”. E respondi: “Eu acho que alguém deveria fazer um filme sobre Barbara McClintock”. E então eu escrevi a alguém da NSF que eu conhecia, sugerindo que alguém fizesse um filme sobre a Barbara (mas não eu!). E me responderam: “Por que você não faz o filme?”. Eu disse: “Porque eu não sou cineasta”. Depois, pensei, eu posso não fazer um filme, mas talvez escreva um artigo. Então liguei para um amigo, que era muito amigo da Barbara, e perguntei a ele o que achava de eu escrever um artigo sobre ela e se ele poderia nos apresentar. Ele achou uma ótima ideia e me disse que ficaria feliz em me apresentar a ela. Assim, comecei a entrevistar Barbara, a estudar os seus trabalhos, tentando escrever um artigo, o que acabou se tornando um livro ( A feeling for the organism: the life and work of Barbara McClintock , de 1983).

A senhora já pensava também, por volta dessa época, nas temáticas que desenvolveria em Reflections on gender and science (Keller, 1985KELLER, Evelyn F. Reflections on gender and science. New Haven: Yale University Press, 1985.)?

É preciso voltar um pouco no tempo, fazer uma cronologia. Em 1974, lecionei aquele curso que se tornou o artigo “Women in science”. Na época, eu ensinava em Purchase, e, um dia, estava dirigindo, indo para a Suny (por volta de 1976-1977), enquanto me perguntava sobre o porquê de haver tão poucas mulheres em carreiras científicas. Eu cogitava que, de alguma maneira, esse fato se relacionava com a associação, tão generalizada, entre ciência e características masculinas, em oposição às características femininas. Eu me perguntava: Qual a origem dessas crenças? – e notei que esse já era um tipo distinto de questões, que me conduziam para a psicologia. E pensei: Talvez eu tenha uma resposta para essas questões! É essa a origem de Reflections on gender and science (Keller, 1985KELLER, Evelyn F. Reflections on gender and science. New Haven: Yale University Press, 1985.). Por volta de 1976-1977, eu já tinha até um título na cabeça, Gender and science . No entanto, já tendo esse projeto em mente, surgiu a ideia de escrever a história de Barbara McClintock. Eu pensei que poderia ser uma distração, mas, ao fim e ao cabo, decidi colocar o primeiro projeto de lado para escrever a biografia. Afinal, de início seria apenas um artigo! Também pensei que isso poderia me ajudar a me reposicionar (profissionalmente). Nessa época, eu já pensava em um nome para a minha nova carreira, a minha nova identidade profissional – uma nova área que poderia se chamar psicossociologia da ciência. O termo não “pegou”, mas era assim que eu pensava aquilo que estava fazendo. Assim, em 1979, me candidatei a uma bolsa ( fellowship ) para escrever essa biografia no programa de Ciência, Tecnologia e Sociedade (STS Program) do MIT. E foi assim que me mudei para Cambridge.

Na época em que assumiu a posição de pesquisadora visitante (visiting fellow) no STS Program do MIT, em 1979, Thomas Kuhn havia acabado de assumir também a posição de professor de filosofia no MIT.

Graças a mim.

A senhora pode nos contar essa história?!

O meu irmão estava no MIT e era muito amigo do reitor, Walter Rosenbluth. Na época, Jerome B. Wiesner era o presidente do MIT. Eu morava em Nova York, em 1978, quando conheci o Tom [Thomas Kuhn]. Nós éramos membros dos mesmos comitês consultivos (na NYU) e acabamos nos tornando bons amigos. Nessa época, Thomas havia se divorciado e estava morando em Nova York. Assim, ele não queria voltar para Princeton (onde estava a sua ex-esposa). No entanto, também não queria se mudar para a NYU. Ele estava preocupado, sem saber para onde ir. Além disso, ele havia sido barrado em Harvard por Holton.

A senhora quer dizer Gerald Holton?!

Sim. Gerald Holton impediu que Thomas fosse para Harvard. Então, eu estava visitando o meu irmão em sua casa, em 1978, quando Walter Rosenbluth apareceu para tomar um café. Eles estavam falando sobre ciência, tecnologia e sociedade (CTS). Eu entrei na conversa, enquanto falavam a respeito de um livro de CTS. Eu disse a Walter: “Eu peço a vocês que não percam tempo e tragam Kuhn para cá”. E assim eles fizeram, e Kuhn veio para o MIT.

E como foi a sua interação com Thomas Kuhn nos anos 1980, enquanto a senhora desenvolvia as suas reflexões sobre gênero e ciência?

Ele era um fã e me dava todo apoio. No entanto – sabe? –, Thomas era uma pessoa difícil – e a noção dele de “dar apoio” a alguém não era exatamente a mesma da maioria das pessoas. O que eu mais queria no mundo, nesse ponto, era um trabalho em CTS. Eu precisava deixar Purchase (Suny), onde lecionava na década de 1970. Eu não sabia para onde ir ou como sair de lá. Esperava que a minha fellowship no programa de CTS no MIT me levasse a uma posição permanente – o que não aconteceu. E uma das razões por que isso não ocorreu foi porque Tom Kuhn insistiu com o chefe do departamento de CTS do MIT que, embora eu fosse a pessoa mais inteligente do programa de CTS, eu jamais poderia ter uma posição permanente no programa. Por quê? Porque, segundo ele, eu trabalhava com essas coisas estranhas. Essa era a noção dele de “dar apoio”.

Na década de 1990, parece que a senhora passou por uma transição, deixando de pensar em termos exclusivos de ciência e gênero, passando a focalizar mais amplamente o papel da linguagem e das metáforas. É o que aparece no seu livro Secrets of life, secrets of death (Keller, 1992KELLER, Evelyn F. Secrets of life, secrets of death. New York: Routledge, 1992.). O que a levou a fazer essa transição?

No auge do meu trabalho em ciência e gênero, eu estava dando palestras pelo país inteiro, quando recebi um convite para dar uma palestra na University of Cincinnati. Embora tenha sido um convite do Programa em Estudos das Mulheres, por alguma razão a palestra aconteceu no auditório do Departamento de Física. Assim, o auditório estava cheio de físicos. Na hora das perguntas, alguém se levantou e me perguntou: “Você está falando apenas sobre linguagem. Você não está falando sobre o que os cientistas fazem, mas somente sobre como os cientistas falam. Como aquilo que os cientistas falam se relaciona com aquilo que os cientistas fazem?”. Eu me senti surpresa, porque isso parecia tão óbvio para mim. No entanto, eu pensei: “Será que é tão óbvio?”. Decidi então que eu precisava responder a essa questão.

É essa a razão de recorrer à teoria dos atos de fala de John Langshaw Austin em seu livro Refiguring life: metaphors of twentieth century biology (Keller, 1995KELLER, Evelyn F. Refiguring life: metaphors of twentieth century biology. New York: Columbia University Press, 1995.)? Ou seja, uma tentativa de relacionar aquilo que os cientistas falam com aquilo que os cientistas fazem?

Na verdade, eu mesma não levei muito a sério aquela minha referência à teoria dos atos de fala de Austin. No entanto, certamente foi muito sério o meu engajamento com o questionamento: de que forma a maneira como falamos influencia aquilo que fazemos? Tentei responder a essa questão naquele trabalho.

Em seu livro de 2000, The century of the gene, a senhora expressa um ceticismo a respeito do reducionismo e do determinismo genético (a mesma ideia já contestada no trabalho de Barbara McClintock e que chamou a sua atenção), parecendo que é mais simpática a teorias mais sistêmicas e holísticas, em que se interage com e se entende tanto a ordem quanto a contingência. A interação entre o sistema e o ambiente. Não é um tema comum que percorre todo o seu trabalho? A mesma dicotomia reaparece no seu The mirage of a space: between nature and nurture (Keller, 2010KELLER, Evelyn F. The mirage of a space: between nature and nurture. Durham: Duke University Press, 2010.).

Sim. Tenho dito que sempre estive em busca de uma epistemologia relacional, por meio de todo o meu trabalho. Estou escrevendo as minhas memórias e, ao final, tenho um ou dois parágrafos sobre essa reflexão. Vou reproduzir esse trecho como parte da minha resposta: “Finalmente, à medida que me aproximo do fim da minha carreira, começo a refletir sobre os temas comuns que atravessaram virtualmente todos os meus trabalhos, seja em teoria feminista, em história e filosofia das ciências ou em biologia teórica. Recordo uma palestra recente que dei, intitulada ‘Getting beyond genes, neurons, and individual minds’, 1 1 O título da palestra se refere ao congresso de mesmo nome, “Getting beyond genes, neurons, and individual minds”, que Evelyn Keller organizou na Universidade de Minnesota, em Minneapolis (EUA), nos dias 18, 19 e 20 de abril de 2003. na qual apresentei as evidências em genética, em neurociências, em psicologia do desenvolvimento, e assim por diante, da crescente inadequação tanto de modelos reducionistas atomistas quanto dos esforços tradicionais de construir todos a partir de partes, e, ao mesmo tempo, as evidências da atualidade dos temas da interatividade e da construção de partes a partir de todos, assim como das evidências ostensivas de que se deve melhor situar traços individuais a partir de dinâmicas sociais, ou seja, de modo mais genérico, deve-se pensar uma causalidade de cima para baixo. É uma perspectiva especialmente atraente para mim porque está de acordo com grande parte dos meus esforços. Assim, se eu fosse identificar um único tema unificador correndo ao longo de toda a minha trajetória intelectual, desde o meu trabalho em biologia matemática, passando por meu trabalho em gênero e ciência (no qual, provavelmente, é especialmente evidente), esse tema unificador seria uma persistente busca por uma epistemologia relacional.”

REFERÊNCIAS

  • ANTONIA: a portrait of the woman. Direção: Judy Collins, Jill Godmilow. EUA: Rocky Mountain Films, 1974. (58 min.)
  • KELLER, Evelyn F. The mirage of a space: between nature and nurture. Durham: Duke University Press, 2010.
  • KELLER, Evelyn F. The century of the gene. Cambridge: Harvard University Press, 2000.
  • KELLER, Evelyn F. Refiguring life: metaphors of twentieth century biology. New York: Columbia University Press, 1995.
  • KELLER, Evelyn F. Secrets of life, secrets of death. New York: Routledge, 1992.
  • KELLER, Evelyn F. Reflections on gender and science. New Haven: Yale University Press, 1985.
  • KELLER, Evelyn F. A feeling for the organism: the life and work of Barbara McClintock. London: W.H. Freeman, 1983.
  • KELLER, Evelyn F. The anomaly of a woman in physics. In: Ruddick, Sara; Daniels, Pamela (org.). Working it out: 23 women writers, artists, scientists, and scholars talk about their lives and work. New York: Pantheon, 1977. p.77-91.
  • KELLER, Evelyn F. Women in science: an analysis of a social problem. Harvard Magazine, p.14-19, out. 1974.
  • KELLER, Evelyn F.; SEGEL, Lee A. A model for chemotaxis. Journal of Theoretical Biology, n.30, p.225-234, 1971.
  • KELLER, Evelyn F.; SEGEL, Lee A. Initiation of slime mold aggregation viewed as an instability. Journal of Theoretical Biology, n.26, p.399-415, 1970a.
  • KELLER, Evelyn F.; SEGEL, Lee A. Conflict between positive and negative feedback. Nature, n.277, p.13-65, 1970b.

NOTA

  • 1
    O título da palestra se refere ao congresso de mesmo nome, “Getting beyond genes, neurons, and individual minds”, que Evelyn Keller organizou na Universidade de Minnesota, em Minneapolis (EUA), nos dias 18, 19 e 20 de abril de 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2021
  • Aceito
    27 Out 2021
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