Acessibilidade / Reportar erro

Demografia da guerra: mortalidade em Porto Alegre na Guerra dos Farrapos, 1835-1845

Demographics of war: mortality in Porto Alegre during Guerra dos Farrapos, 1835-1845

Resumo

Este artigo apresenta resultados de análises relativas aos impactos da Guerra dos Farrapos (1835-1845) sobre a mortalidade na população de Porto Alegre, a partir, principalmente, da utilização de assentos de batizado e de óbito, comparando os períodos anterior e posterior ao conflito, abrangendo os anos entre 1825 e 1854. Destacam-se as perturbações nos primeiros cinco anos da guerra (1835-1840), quando a cidade enfrentou cercos impostos pelos rebeldes. Os resultados, baseados no cálculo da mortalidade infantil, entre outros indicadores, evidenciam, além das dificuldades de abastecimento e agravamento das condições sanitárias, uma grave crise de mortalidade causada por epidemia de escarlatina que atingiu duramente crianças livres e escravizadas.

demografia histórica; mortalidade; população livre; população escravizada; Guerra dos Farrapos

Abstract

This article presents an analysis of the impacts of the Guerra dos Farrapos (1835-1845) on the mortality of the population of Porto Alegre, drawing primarily on baptism and death records, comparing the periods before and after the conflict, ranging from 1825 to 1854. Anomalies can be noted in the first five years of the war, when the city was under siege from the rebels. The results, based on a calculation of infant mortality and other indicators, show not only that there were supply difficulties and deteriorated sanitary conditions, but also that mortality levels surged in response to a scarlet fever epidemic, which hit free and enslaved children particularly hard.

historical demographics; mortality; free population; enslaved population; Guerra dos Farrapos

Há alguns anos foi publicado nos Annales de Démographie Historique um número especial sobre a população na época da Grande Guerra (1914-1918). Na introdução do fascículo, Olivier Faron (2002)FARON, Olivier. Guerre(s) et démographie historique. Annales de Démographie Historique, Paris, n.103, p.5-9, 2002. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-annales-de-demographie-historique-2002-1.htm. Acesso em: fev. 2018.
https://www.cairn.info/revue-annales-de-...
fez uma breve discussão focalizando a questão da(s) guerra(s) e a demografia histórica. Ainda que a atenção estivesse voltada para uma guerra em particular, não deixa de ser desafiadora a pergunta que abria suas considerações: quais são as consequências demográficas de uma guerra? Questão ampla, com inumeráveis respostas, sem dúvida.

Ainda que Faron lembrasse que os efeitos das guerras variam de acordo com a intensidade do conflito, apontava que há elementos comuns entre eles: o desaparecimento dos jovens do sexo masculino, o desequilíbrio na razão de sexos, a multiplicação de viúvas e órfãos.

Além desses efeitos mais óbvios, Faron (2002FARON, Olivier. Guerre(s) et démographie historique. Annales de Démographie Historique, Paris, n.103, p.5-9, 2002. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-annales-de-demographie-historique-2002-1.htm. Acesso em: fev. 2018.
https://www.cairn.info/revue-annales-de-...
, p.5) adverte que uma guerra pressupõe perturbações profundas nas condições gerais de vida da população, sendo muitas vezes acompanhadas de surtos epidêmicos, que se tornam tão ou mais importantes quando atacam populações enfraquecidas por privações e sofrimentos.

Tais considerações constituíram o ponto de partida para este texto, cujo objetivo é analisar os impactos que a Guerra dos Farrapos teve na mortalidade da população da cidade de Porto Alegre. O longo conflito desenrolou-se entre 1835 e 1845 e insere-se na conjuntura de instabilidade que marcou a transição do Primeiro para o Segundo Reinado.

Essa guerra recebeu e ainda recebe a atenção de gerações de historiadores, principalmente sul-rio-grandenses, que revisitam a temática considerando, sobretudo, os aspectos políticos e militares da luta, bem como as tensões e os conflitos engendrados entre o Império brasileiro e as recém-instaladas repúblicas platinas.

Como a historiografia tem apontado, além da Guerra dos Farrapos, a região conviveu com uma sucessão de conflitos e combates que marcaram a história do atual estado do Rio Grande do Sul. Trabalhos mais recentes não têm se furtado a dar sua contribuição aos estudos sobre essa temática, que tem sido alavancada pelas novas abordagens, fontes e metodologias que são incorporadas, conquanto o aspecto político-militar continue a predominar. Nessa linha de análise destacam-se os estudos que procuram refletir sobre a presença constante e latente do clima de conflito e guerra que perpassou o território.

Exemplar, nesse sentido, é Continente em armas: uma história da guerra no sul do Brasil, coletânea publicada em 2010. Na apresentação da obra lembrava-se que, “inegavelmente”, aqueles que povoaram as terras ao sul de Laguna e ao norte do rio da Prata, genericamente denominada “Continente”, desde muito cedo se envolveram em “contendas que se associavam ao uso da violência física” (Neumann, Grijó, 2010NEUMANN, Eduardo Santos; GRIJÓ, Luís Alberto. O Continente em armas: uma história da guerra no sul do Brasil. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010., p.19). Apesar disso “e espantosamente”, não havia uma publicação que tratasse o tema de forma direta e aprofundada. A coletânea reúne, de acordo com os organizadores, Eduardo Neumann e Luiz Alberto Grijó, contribuições de especialistas em diversos períodos e temáticas da história do Rio Grande do Sul, que escreveram sobre os conflitos armados que irromperam na região entre os séculos XVIII e XX.

Nos últimos anos outras publicações que estudaram a capitania-província de São Pedro nos Setecentos e Oitocentos continuaram a abrir espaço para o estudo dos conflitos, especialmente a Guerra dos Farrapos. Destaca-se nessa linha a coletânea O império e a fronteira: a província de São Pedro no Oitocentos (Neumann, Grijó, 2014NEUMANN, Eduardo Santos; GRIJÓ, Luiz Alberto (org.). O império e a fronteira: a província de São Pedro no Oitocentos. São Leopoldo: Oikos, 2014.), que trouxe duas contribuições bastante interessantes sobre o conflito, pois ampliam o espectro das análises. A primeira incorpora a participação indígena no episódio (Neumann, 2014NEUMANN, Eduardo Santos. “O serviço das armas”: a participação indígena na Guerra dos Farrapos (1835-1845). In: Neumann, Eduardo S.; Grijó, Luiz Alberto (org.). O Império e a fronteira: a província de São Pedro no Oitocentos. São Leopoldo: Oikos, 2014. p.39-57.), e a segunda aborda a imprensa legalista durante a guerra (Klafke, 2014KLAFKE, Álvaro. A imprensa legalista na Guerra dos Farrapos. In: Neumann, Eduardo Santos; Grijó, Luiz Alberto (org.). O império e a fronteira: a província de São Pedro no Oitocentos. São Leopoldo: Oikos, 2014. p.141-167.).

Mais recentemente, outra contribuição foi publicada no livro O Rio Grande do Sul revisitado: novos capítulos, organizado por Eduardo Neumann e Carla Brandalise (2019)NEUMANN, Eduardo Santos; BRANDALISE, Carla (org.). O Rio Grande do Sul revisitado: novos capítulos. Porto Alegre: Martins Livreiro Editora, 2019.. Aí destacamos o trabalho de Daniela Valandro de Carvalho (2019)CARVALHO, Daniela Vallandro. A guerra civil farroupilha aos rés do chão: experiências negras de recrutamento, guerra, escravidão (Rio Grande de São Pedro, c.1835-1850). In: Neumann, Eduardo Santos; Brandalise, Carla (org.). O Rio Grande do Sul revisitado: novos capítulos. Porto Alegre: Martins, 2019. p.119-150. sobre as experiências negras de recrutamento, guerra e escravidão no conflito dos Farrapos.

Aqui cabe ressaltar, no entanto, que as contribuições de Neumann (2014)NEUMANN, Eduardo Santos. “O serviço das armas”: a participação indígena na Guerra dos Farrapos (1835-1845). In: Neumann, Eduardo S.; Grijó, Luiz Alberto (org.). O Império e a fronteira: a província de São Pedro no Oitocentos. São Leopoldo: Oikos, 2014. p.39-57., relativas aos indígenas, e de Carvalho (2019)CARVALHO, Daniela Vallandro. A guerra civil farroupilha aos rés do chão: experiências negras de recrutamento, guerra, escravidão (Rio Grande de São Pedro, c.1835-1850). In: Neumann, Eduardo Santos; Brandalise, Carla (org.). O Rio Grande do Sul revisitado: novos capítulos. Porto Alegre: Martins, 2019. p.119-150., sobre os negros, dão pistas importantes para o estudo desses segmentos populacionais, embora a questão demográfica não seja o eixo das análises.

De outra parte, o trabalho de José Iran Ribeiro (2011)RIBEIRO, José Iran. As doenças e as dietas na construção da alteridade entre os integrantes do exército imperial brasileiro durante a Guerra dos Farrapos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.18, n.3, p.661-675, 2011. sobre as práticas alimentares e a incidência de doenças entre os milhares de brasileiros que foram convocados pelo exército imperial contra o exército dos Farrapos coloca temas interessantes e que contribuem para a análise de outras facetas do conflito farroupilha.

Fica claro, no entanto, que a perspectiva dos impactos demográficos dos conflitos e das guerras sobre a população não tem sido objeto de maior atenção. Foi justamente esse aspecto que atraiu nosso interesse, no âmbito de estudos mais amplos que estão em curso. Projetos de pesquisa que têm como foco a freguesia Nossa Senhora da Madre de Deus, que dá origem à cidade de Porto Alegre,1 1 Ana Silvia V. Scott: “Livres, libertos e escravos: dinâmica da população e da família no Brasil Meridional 1772-1872”, Chamada CNPq n.12/2017 – Produtividade em Pesquisa, Processo n.305928/2017-1; Dario Scott: Livres e escravos: população e mortalidade na Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1872). Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Demografia/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, 2020 (Bolsa Capes). permitem incursões na temática da “demografia da Guerra dos Farrapos”, analisando, nesta oportunidade, elementos relativos à componente demográfica da mortalidade naquele contexto específico.

A cidade de Porto Alegre, ao longo das lutas, permaneceu fiel aos imperiais, recebendo por isso o título de “leal e valorosa”, concedido pelo imperador dom Pedro II, em 1841.2 2 Decreto n.103, de 10 de outubro de 1841. Esse fato teve repercussões fundamentais para a cidade e para sua população, uma vez que, durante os anos da guerra, enfrentou três cercos impostos pelos rebeldes farroupilhas, que se estenderam entre 1836 e 1840. A cidade sitiada enfrentou o primeiro cerco entre junho e setembro de 1836; o segundo, entre maio de 1837 e fevereiro de 1838; e, finalmente, o terceiro, entre junho de 1838 e dezembro de 1840 (Franco, 2011FRANCO, Sergio da Costa. Porto Alegre sitiada. Porto Alegre: Cidade, Letra & Vida, 2011.). Do ponto de vista estratégico, o prolongado sítio de Porto Alegre pode ser entendido como um fracasso militar dos farroupilhas, afinal, depois de ter sido tomada pelos rebeldes em 20 de setembro de 1835, a cidade foi reconquistada pelas forças imperiais em 15 de junho de 1836, e assim permaneceu até o final da guerra.

No entanto, do ponto de vista dos impactos sobre a cidade, esses episódios tiveram desdobramentos demográficos significativos com relação à população que vivenciou a longa luta, especialmente durante os períodos em que a cidade esteve sitiada, no decorrer dos primeiros cinco anos da guerra.

Assim, na linha do que propõe Faron, o objetivo primordial do trabalho foi analisar os distúrbios aos quais a população da cidade foi submetida, tanto em relação à guerra em si como no que diz respeito aos problemas adicionais gerados a partir do fato de Porto Alegre ter se mantido do lado das forças imperiais.

Tais elementos constituem o foco e emergiram no contexto de outros trabalhos sobre aquela população. Cada vez mais cresceu o interesse pela discussão sobre a “demografia da guerra”.3 3 Além da questão da mortalidade, destacada nesta oportunidade, estamos analisando os impactos da guerra sobre a fecundidade legítima e a nupcialidade, que serão apresentados oportunamente. Em nenhum dos trabalhos anteriores, os autores analisaram especificamente os impactos demográficos, numa conjuntura bélica, para os habitantes daquela localidade. Essa é a contribuição principal do artigo, que se valeu, além dos registros paroquiais, de outras fontes para discutir, de forma inédita, a variável mortalidade de livres e escravizados, comparada aos comportamentos relativos aos períodos anterior e posterior à guerra.

Materiais e métodos

A fonte básica da pesquisa mais ampla é composta pelos registros paroquiais de batizado, casamento e óbito. As séries contínuas e praticamente completas estão em bom estado de conservação, e suas informações foram inseridas no software Nacaob (Scott, Scott, 2009SCOTT, Ana Silvia Volpi; SCOTT, Dario. Nacaob: una opción informatizada para historiadores de la familia. In: Celton, Dora; Ghirardi, Mónica; Carbonetti, Adrián (org.). Poblaciones históricas: fuentes, métodos y líneas de investigación. Rio de Janeiro: Alap, 2009. p.171-185.), que sistematiza os dados de forma padronizada. O banco de dados completo abrange as séries paroquiais desde 1772 (ano de criação da Freguesia da Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre) até 1872, ano do primeiro recenseamento geral da população brasileira, único realizado durante a vigência da escravidão.

Para essa reflexão optou-se por fazer um recorte temporal que permite conhecer a situação da população, em relação aos batizados e óbitos de livres e escravos, dez anos antes do conflito (1825-1834), no período da guerra propriamente dito (1835-1845), que se subdivide em dois momentos (1835-1840 e 1840-1845), e nos anos que sucederam o conflito (1846-1854). A análise parte da exploração do movimento geral de batizados e óbitos.

Os dados foram complementados, na medida do possível, com documentação administrativa, produzida no âmbito dos relatórios dos presidentes da província do Rio Grande do Sul,4 4 O nome oficial da terra rio-grandense, a partir da Independência, é Província do Rio Grande do Sul, consagrado na Constituição Imperial de 25 de março de 1824 (Silva, 1968, p.110). disponíveis no site do Center for Research Libraries e que abrangem, no período de estudo, 1829, 1830, 1831, 1832, 1835, 1837, 1846, 1847, 1848, 1849, 1850, 1851, 1852, 1853, 1854. Em diversos desses relatórios é possível encontrar informações estatísticas sobre a província e a cidade de Porto Alegre, assim como elementos de cunho qualitativo para contextualizar o período. As estatísticas arroladas foram utilizadas para obter uma aproximação em relação à população total.

Em relação aos óbitos, especificamente, foi aplicada a metodologia proposta por Jacques Dupâquier para analisar as eventuais crises de mortalidade. A proposta de Dupâquier (1979)DEL PANTA, Lorenzo; LIVI BACCI, Massimo. Chronology, intensity and diffusion of mortality in Italy, 1600-1850. In: Charbonneau, Hubert; Larose, André (ed.). The great mortalities: methodological studies of demographic crises in the past. Liège: Iussp, 1979. p.69-81. mede a intensidade da mortalidade de um ano relacionando-a com a média aritmética dos dez anos anteriores e o desvio-padrão do mesmo período. Considera-se um ano de crise aquele no qual o índice ultrapasse o valor 1.

Como a precisão do indicador pode ser afetada pela conjuntura anterior, Dupâquier propõe uma escala de magnitude das crises.5 5 Para uma explicação mais detalhada, sugere-se a leitura de Pollero (2016), sobretudo o anexo V, p.538-568, no qual a autora faz uma análise aprofundada das metodologias utilizadas para estimar crises de mortalidade. O Quadro 1 apresenta a proposta de classificação do autor, para tipificar a escala e a magnitude das crises, variando entre “crise menor” e “catástrofe”.

Quadro 1
: Escala de intensidade pelo método de Dupâquier

Resultados e discussão

A freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre, apesar de seu início modesto, foi marcada, nas décadas sucessivas à sua criação, por grande dinamismo populacional e econômico. A posição de porto fluvial colocava a localidade como porta de acesso ao interior do Continente do Rio Grande de São Pedro e, mais tarde, à província do Rio Grande do Sul, propiciando grande movimento de pessoas, de embarcações, assim como a intensa circulação de mercadorias. Nesse contexto entende-se a presença importante de contingente populacional masculino, em que se destacavam os militares, os marinheiros e os comerciantes. Para mais, é importante ressaltar a presença significativa do segmento dos escravizados, que girou em torno de 30% do total da população. Esse contingente expressivo de escravizados remonta já aos anos finais do século XVIII e ao início do XIX, como apontou Gomes (2012)GOMES, Luciano da Costa. Uma cidade negra: escravidão, estrutura econômico-demográfica e diferenciação social na formação de Porto Alegre, 1772-1802. Porto Alegre: UFRGS, 2012..

No fim do século XVIII, a freguesia se consolidava como núcleo urbano, embora estivesse cercada de arredores rurais. Vale lembrar que em 1773 a freguesia recém-criada (desmembrada de Viamão) foi alçada a capital do Continente, devido aos desdobramentos relacionados às lutas contra a invasão dos castelhanos (invasão e tomada da vila de Rio Grande em 1763, e reconquista daquela vila pelos portugueses em 1776). No contexto belicoso e de luta entre as coroas ibéricas, foi construída uma linha de fortificações, que demarcou os limites internos de Porto Alegre, definindo o que se caracterizaria como a “zona urbana”. Tal fortificação murada foi demolida depois do fim da Guerra dos Farrapos.

A freguesia foi elevada, “de direito”, a vila em 1809 e, em 1822, à condição de cidade, refletindo a importância que conquistou no contexto territorial do Brasil Meridional (Scott, Scott, 2015SCOTT, Ana Silvia Volpi; SCOTT, Dario. Casamentos entre desiguais no Brasil Meridional (1772-1845). In: Ghirardi, Mónica; Scott, Ana Silvia Volpi (ed.). Familias históricas: interpelaciones desde perspectivas Iberoamericanas a través de los casos de Argentina, Brasil, Costa Rica, España, Paraguay y Uruguay. São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2015. p.37-79.). O testemunho do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, que esteve na então vila de Porto Alegre no início da década de 1820, é ilustrativo: “Pode ser considerada como principal entreposto da Capitania ... os negociantes adquirem quase todas as mercadorias no Rio de Janeiro e as distribuem nos arredores da cidade; em troca, exportam, principalmente, couros, trigo e carne-seca; é, também, de Porto Alegre que saem todas as conservas exportadas da província” (Saint-Hilaire, 2002SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 2002., p.46).

Isabelle (2006)ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2006. foi outro viajante francês que deixou escritas suas impressões sobre Porto Alegre, às vésperas da Guerra dos Farrapos. Chegando à cidade em 20 de março de 1834, também fez referência à população da cidade, estimada entre 12 e 15 mil habitantes. Chamava a atenção ainda para a “população flutuante de estrangeiros”, que vinham de toda a parte para comerciar na cidade. A rua da Praia foi descrita como a “mais comercial; encontram-se, ali, as lojas e as principais casas de negócio” (p.240). Embora os dados de população mencionados possam estar superestimados, os relatos demonstram que Porto Alegre era um núcleo populacional de importância na província, fosse do ponto de vista administrativo, econômico ou comercial.

Apesar da estimativa sobre o tamanho da população apontada por Isabelle, não é fácil ter certeza sobre o total de habitantes. Os dados são problemáticos por conta do uso de critérios diferentes para a contagem, assim como pela lacuna de informações, sobretudo aquelas relativas ao período da Guerra dos Farrapos. Por isso, foi necessário um grande esforço para estimar o número de habitantes da freguesia da Madre de Deus, a partir dos dados fragmentados e lacunares disponíveis.6 6 Entre outros estudos, Magda Ganz (2004, p.23-24) faz uma análise dos testemunhos dos viajantes e menciona que os dados para esse período são muito problemáticos. Aponta, no entanto, que o levantamento populacional de 1856 para a cidade de Porto Alegre teria uma boa qualidade de informações.

Para começar essa discussão, há que chamar a atenção para as dificuldades inerentes aos distintos enquadramentos administrativos, como “freguesia” e “distrito”. A primeira refere-se à divisão da administração eclesiástica e administrativa (devido ao padroado régio) que registrava, nos respectivos livros, os assentos de batismo, casamento e óbito. Correspondia ao território e à jurisdição de uma igreja matriz e suas capelas filiais.

No entanto, os dados sobre a população apresentados nos relatórios dos presidentes da província indicam que a população estava organizada em distritos. A Constituição Imperial de 1824 previu a instituição desse ordenamento, e a Justiça de Paz foi criada em outubro de 1827, sendo promulgada a Lei Orgânica das Justiças de Paz, criando em cada freguesia um juiz de paz e um suplente (Coda, 2012CODA, Alexandra. O juiz de paz na esfera criminal: Porto Alegre (1832-1841). Trabalho de Conclusão de Curso (História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012., p.19).7 7 “Art. 1º Em cada uma das freguesias e das capelas filiais curadas, haverá um juiz de paz e um suplente para servir no seu impedimento, enquanto não se estabelecerem os distritos, conforme a nova divisão estatística do Império” (disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38396-15-outubro-1827-566688-publicacaooriginal-90219-pl.html. Acesso em: 1 jul. 2020). Portanto, parte-se do princípio de que o primeiro distrito corresponde à freguesia Madre de Deus, isto é, a freguesia que deu origem à cidade.

É importante lembrar também que a Madre de Deus foi desmembrada, dando origem às freguesias de Nossa Senhora do Rosário de Porto Alegre e Nossa Senhora das Dores de Porto Alegre, por meio do decreto regencial, sem número, de 24 de outubro de 1832. Entretanto, a subdivisão de 1832 não teve efeito imediato, uma vez que os assentos paroquiais das novas freguesias passaram a ser assentados nos livros das respectivas igrejas anos mais tarde. No caso da igreja do Rosário, os assentos iniciam em 1844, e, na igreja das Dores, em 1859. Portanto, admite-se que os fregueses (os moradores da freguesia) continuaram a ser dependentes da matriz, e lá seguiram sendo registrados (Rubert, 1998RUBERT, Arlindo. História da Igreja no RS. v.2. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 1998., p.112-118).

Seguindo a mesma lógica, essas duas novas freguesias devem ter dado origem ao segundo e terceiro distritos, respectivamente. Assim, essas mudanças administrativas acarretam problemas para estimar o total da população da freguesia da Madre de Deus.

Feitas essas advertências, e com base nos dados coletados em fontes variadas, foi organizada a Tabela 1. Apresentam-se as estimativas que se valeram dos números arrolados ao longo de aproximadamente um século (1779-1872), reunindo dados disponíveis nos mapas de população, róis de confessados de 1779 a 1814 (período colonial), nos relatórios dos presidentes de província (período imperial) e/ou nas estimativas para a população da Madre de Deus/primeiro distrito de Porto Alegre. Não há, como se percebe, dados estatísticos consistentes sobre a população para o período em foco (1825-1854), por isso, a Tabela 1 apresenta os dados disponíveis e ajustados (quando necessário) para o período de quase um século a partir das informações encontradas para a província, reunidas em publicação da Fundação de Economia e Estatística (FEE, 1981FEE, Fundação de Economia e Estatística. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981.), que têm como origem os relatórios de presidentes da província.

Tabela 1
: Evolução da população da freguesia da Madre de Deus, 1779-1872

Naquela publicação encontramos informações importantes, como o quadro da população livre de 1846 (FEE, 1981FEE, Fundação de Economia e Estatística. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981., p.60), no qual se informa que, para o primeiro distrito, haveria 6.752 habitantes (3.303 homens e 3.449 mulheres).8 8 Uma indicação dos problemas são as observações na coluna lateral do mesmo quadro, que admitem que os cálculos foram feitos para corrigir os valores para se chegar à estimativa da população total da província (total da população livre indicado no quadro foi de 147.846, e o total da população livre, corrigido, foi de 179.363). Para 1847 temos informações sobre a população livre segundo o sexo, mas, naquela oportunidade, foi apresentada também a informação por grupos etários (homens e mulheres até 10 anos, até 20, daí em diante, até 110). Para o primeiro distrito seriam 2.541 homens e 2.653 mulheres, totalizando 5.194 habitantes (FEE, 1981FEE, Fundação de Economia e Estatística. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981., p.61).

O relatório de 1848 apresenta mais um quadro da população “pelas listas eclesiásticas”. No entanto, as colunas indicam para os municípios o número de casamentos, batizados e óbitos (os dois últimos divididos em livres/libertos e escravos, por sexo e, na coluna final, a “população calculada”), sem outros elementos para se determinar a origem/fonte do cálculo (FEE, 1981FEE, Fundação de Economia e Estatística. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981., p.62), apontando que a freguesia da Nossa Senhora da Madre de Deus (incluindo a Nossa Senhora das Dores de Porto Alegre) teria população “calculada” em cerca de 15.389 habitantes. No quadro, a freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Porto Alegre, já efetivamente desmembrada, teria população calculada de 11.114 habitantes.

Para 1848, foi possível comparar os dados coletados nos registros paroquiais da freguesia, arrolados no Nacaob, e o total de assentos paroquiais de batizados, casamentos e óbitos, arrolados na estatística elaborada no relatório da presidência da província em 1848 (Tabela 2). As informações foram cotejadas para verificar a compatibilidade dos números. As diferenças foram pouco significativas, sugerindo que o problema é mais grave no que diz respeito aos dados informados sobre a população total, e não ao assentamento dos registros paroquiais.

Tabela 2
: Comparação entre Dados Relatório de 1848 e Dados Nacaob 1848 (Assentos paroquiais, batizado, casamento e óbito), Madre de Deus

Tudo indica que os dados sobre o total da população devem estar sujeitos a muita imprecisão porque em vários relatórios há recorrentes referências a enormes dificuldades e problemas para a coleta das informações. No entanto, mais do que buscar a “precisão” do número de habitantes, os dados podem nos dar pistas para analisar as tendências gerais que marcaram o período estudado, sobretudo as informações para as décadas de 1840 e 1850.

As informações veiculadas nos relatórios dos presidentes de província para 1846, 1847, 1848 e 1858, período posterior à guerra, dão indicadores interessantes quando se examina, por exemplo, a razão de sexos.

Nitidamente, um dos impactos do conflito foi uma inversão no padrão de desequilíbrio em favor dos homens livres e escravizados que marcava a população nas primeiras décadas do século XIX. Ou seja, até 1814, havia sobrepopulação masculina, característica mais acentuada entre os escravizados, como seria de esperar, mas que ocorria também entre a população livre.

A guerra, como mencionado, impacta as proporções entre os sexos (Faron, 2002FARON, Olivier. Guerre(s) et démographie historique. Annales de Démographie Historique, Paris, n.103, p.5-9, 2002. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-annales-de-demographie-historique-2002-1.htm. Acesso em: fev. 2018.
https://www.cairn.info/revue-annales-de-...
). Embora, com os dados disponíveis, seja difícil calcular com rigor a razão de sexo, fato é que ela teve uma inflexão, e, entre a população livre, virou em favor das mulheres, já que foram registrados 96 homens para cada cem mulheres (1846 e 1847), caindo ainda mais em 1848 e 1858, atingindo o patamar mais baixo de 92 homens para cada cem mulheres. É plausível aceitar que essa alteração seja um resultado direto da guerra.

Por outro lado, apontou também a diferença na razão de sexos entre os distintos segmentos populacionais (livres e escravizados), revelando a supremacia dos cativos do sexo masculino sobre as mulheres, na razão de 156 homens para cem mulheres. Esses índices nos dão elementos para advogar a recuperação econômica da província, recompondo a superioridade numérica dos escravizados sobre as escravizadas, que havia marcado o panorama dos anos iniciais do século XIX. De fato, os índices encontrados para o período posterior à Guerra dos Farrapos igualaram a razão de sexos para os cativos que havia sido registrada em 1814 (156), sendo que, para a população livre, essa razão atingia 122.

Essas considerações revelam a necessidade de não apenas se fazer acurada crítica às fontes de cunho quantitativo, como também de buscar fontes qualitativas capazes de corroborar/confrontar as informações que permitem refletir sobre essa população e o contexto mais amplo em que estava inserida, como a pacificação da província, assim como a provável entrada de escravos adultos, às vésperas do final do tráfico atlântico, em 1850.

Colocadas essas reflexões e ponderações, passemos à exploração agregada dos dados coletados nos assentos paroquiais, disponíveis no Nacaob, para a Madre de Deus entre 1825 e 1854.

O gráfico apresentado na Figura 1 situa o contexto geral de batizados e óbitos para todo o período em destaque, sem distinção da condição jurídica dos indivíduos. Trata-se do total de 34.262 registros, sendo 16.666 batizados e 17.596 óbitos.

Figura 1
: Gráfico do movimento de batizados e óbitos entre população total, 1825-1854 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de batizados e óbitos tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)

Ao longo do período 1825-1854, desconsiderando a variável migração, o crescimento vegetativo foi negativo, isto é, temos mais óbitos do que batizados registrados. A situação não se alterou quando se analisou apenas os anos do conflito, entre 1835 e 1845: foram registrados 13.986 assentos no total, sendo 6.450 de batizados e 7.536 de óbitos. Em termos mais abrangentes, o que chama a atenção na Figura 1 é que o impacto do conflito no movimento de batizados e de óbitos não foi homogêneo. Salientamos, sobretudo, o pico da mortalidade em 1837.

A Figura 2 apresenta a informação desagregada dos batizados, por condição jurídica,9 9 Cabe destacar que na categoria “livres” estão considerados os assentos relativos a forros também, por conta da pouca expressão numérica que apresentaram. e verifica-se que eles se mantêm numa faixa, até 1835, em torno de setecentos batizados ao ano. A partir daí o montante começa a cair, atingindo o ponto mais baixo em 1839 (501 batizados).

Figura 2
: Gráfico do movimento anual de batizados por condição jurídica, Madre de Deus de Porto Alegre, 1825-1854 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de batizados tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)

Entre 1839 e 1843, o número dos batizados assentados na igreja cresceu, indicando recuperação em relação ao período anterior. Como se observa, no entanto, essa recuperação perdeu força a partir de 1844. Creditamos essa nova inflexão à efetiva divisão da freguesia, já que parte dos registros paroquiais passou a ser assentado na igreja de Nossa Senhora do Rosário de Porto Alegre (Rubert, 1998RUBERT, Arlindo. História da Igreja no RS. v.2. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 1998., p.113).

Os dados da Tabela 3 mostram que, ao longo dos anos de cerco, houve alteração dos percentuais de crianças batizadas em relação à condição jurídica. Para o período, a média foi de 64,1% de batizados de crianças livres e 35,1% de crianças escravizadas. Houve, no entanto, oscilação mais significativa entre 1840-1844, período pós-cerco, quando o batizado de crianças cativas caiu para 31,9%, e o das livres subiu para o patamar mais elevado, alcançando 68,1%.

Tabela 3
: Batizados por condição jurídica, 1825-1854

Na sequência, entre 1845-1849, pelo contrário, houve um aumento significativo dos batizados de escravizados, que chegou perto de 42% do total, em comparação aos 58% de crianças livres. Esse dado reforça a hipótese da recuperação econômica, uma vez que, entre os escravos batizados na paróquia da Madre de Deus, houve aumento do registro de batizados de escravizados maiores de 10 anos, fato que também pode ter sido estimulado pela conjuntura que precedeu o fim do tráfico atlântico, em 1850.

A tendência de aumento dos batizados de cativos maiores de 10 anos foi identificada a partir de 1815 até 1819, quando saltou de menos de 3% para 17%. Entre 1825 e 1829, havia ultrapassado os 30% dos cativos batizados na freguesia cuja idade havia sido informada. A Tabela 4 revela as mudanças ocorridas, considerando apenas os assentos de batizados para os quais a idade foi declarada, entre 1825 e 1854 (5.529 assentos, dos 5.987 registrados).

Tabela 4
: Batizados de escravizados maiores de 10 anos, 1825-1854

É possível argumentar que o aumento da entrada de cativos adultos batizados na freguesia (acentuado entre 1825 e 1829) esteja ligado à conjuntura que antecede a lei de 7 de novembro de 1831, que pretendia pôr fim ao tráfico atlântico de escravos. No período do conflito, houve queda acentuada do batizado de cativos, que, no entanto, foi retomado com força a partir de 1845. A análise dos dados desagregados por ano mostrou que, em 1845, mais de 38% dos cativos batizados na Madre de Deus tinham mais de 10 anos, e, três anos mais tarde, 1848, às vésperas da Lei Eusébio de Queiróz, nada menos de 49% dos assentos de batizados de escravizados diziam respeito a indivíduos maiores de 10 anos.

Em relação aos óbitos, a Figura 3, revela uma situação muito interessante. A curva da mortalidade vinha com uma tendência de elevação, especialmente em 1827, 1828, com pico em 1829. Nos primeiros anos da década de 1830, os níveis voltaram a uma relativa “normalidade”, para, então, explodir em 1837. No período seguinte os dados ainda mantêm níveis altos, embora, na sequência (1844), verifique-se que o número de óbitos começou a diminuir. Novamente, acredita-se que a queda se deva à efetiva divisão da freguesia da Madre de Deus.

Figura 3
: Gráfico do movimento anual de óbitos por condição jurídica, Madre de Deus de Porto Alegre, 1825-1854 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de óbitos tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)

O que está por trás da perturbação no movimento anual de óbitos? Sabe-se que em populações pré-transicionais (Notestein, 1945NOTESTEIN, Frank Wallace. Population: the long view. In: Schultz, Theodore W. (ed.). Food for the world. Chicago: University of Chicago Press, 1945. p.36-57.; Chesnais, 1986CHESNAIS, Jean-Claude. La transition démographique: étapes, formes, implications économiques. Étude de séries temporelles (1720-1984) relatives à 67 pays. Présentation d’un Cahier de l’INED. In: Population, 41e année, n.6, p.1059-1070, 1986. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/pop_0032-4663_1986_num_41_6_17679. Acesso em: jul. 2020.
https://www.persee.fr/doc/pop_0032-4663_...
),10 10 Sociedades pré-transicionais são assim concebidas e entendidas a partir da teoria da transição demográfica (TTD). Argumenta-se que a transição demográfica constituiu uma ruptura com o “Antigo Regime Demográfico” (característico das sociedades tradicionais e agrárias) que seria sucedido pelo “Regime Demográfico Moderno”, típico das sociedades modernas e industrializadas. O regime antigo seria de alta pressão (altas taxas de mortalidade e de natalidade), enquanto o regime moderno seria da baixa pressão (baixas taxas de mortalidade e de natalidade). Assim, as sociedades pré-transicionais seriam caracterizadas por altas taxas de natalidade e de mortalidade. Nesse contexto, as altas taxas de mortalidade estariam atreladas, sobretudo, às doenças infectocontagiosas predominantes e às recorrentes epidemias que fustigariam aquelas populações. normalmente, a alta dos óbitos é o resultado de epidemias, o que, consequentemente, geraria uma crise de mortalidade. Raquel Pollero (2016POLLERO, Raquel. Historia demográfica de Montevideo y su campaña (1757-1860). Montevideo: UdelaR, 2016., p.337) define o que se entende por crise de mortalidade em populações pré-transicionais:

Essas crises de mortalidade consistem em aumento significativo de óbitos que ocorrem de forma abrupta e por um período relativamente curto (alguns meses, alguns anos), produzidos por uma causa que normalmente não é encontrada na população. A origem dessas crises tem sido amplamente estudada nas sociedades do Antigo Regime. Atualmente há consenso que os fatores determinantes das crises são, basicamente, doenças − epidemias −, guerras e crises de subsistência − fome.

Teriam sido registradas crises na Madre de Deus de Porto Alegre?

Para verificar possíveis altas nos óbitos, relacionadas a crises de mortalidade, aplicamos a metodologia proposta por Jacques Dupâquier (1979)DUPÂQUIER, Jacques. L’analyse statistique des crises de mortalité. In: Charbonneau, Hubert; Larose, André (ed.). The great mortalities: methodological studies of demographic crises in the past. Liège: Iussp, 1979. p.83-84.. A título de exemplo, lembramos estudos como o de Pollero (2016)POLLERO, Raquel. Historia demográfica de Montevideo y su campaña (1757-1860). Montevideo: UdelaR, 2016., que teve como foco Montevidéu (1757-1860), e David (1992)DAVID, Henrique Manuel P. Rodrigues. As crises de mortalidade no Concelho de Braga (1700-1880). Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1992., que analisou as crises de mortalidade em Portugal (Concelho de Braga, entre 1700 e 1880), utilizando também a mesma metodologia. Como os autores citados, optou-se aqui também pelo emprego da metodologia de Dupâquier, porque ela se mostrou mais sensível para captar os distúrbios que ocorreram na mortalidade da freguesia da Madre de Deus, oferecendo um quadro com mais possibilidades de analisar as variações apresentadas a partir dos óbitos coletados. Seria possível utilizar também, para a análise das crises de mortalidade, a metodologia proposta por Del Panta e Livi Bacci (1979)DEL PANTA, Lorenzo; LIVI BACCI, Massimo. Chronology, intensity and diffusion of mortality in Italy, 1600-1850. In: Charbonneau, Hubert; Larose, André (ed.). The great mortalities: methodological studies of demographic crises in the past. Liège: Iussp, 1979. p.69-81.. Para uma explicação sintética dessa metodologia, ver Pollero (2016POLLERO, Raquel. Historia demográfica de Montevideo y su campaña (1757-1860). Montevideo: UdelaR, 2016., p.344-345) e Scott (2020)SCOTT, Dario. Livres e escravos: população e mortalidade na Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1872). Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 2020..

A Tabela 5 apresenta os resultados relativos à freguesia da Madre de Deus, entre 1825 e 1854. Vale lembrar que em 1855 a cidade foi impactada pela entrada do cólera, aquela tida como a mais terrível epidemia registrada até então. Sobre esse tema Witter (2007)WITTER, Nikelen Acosta. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no Sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. fez uma análise interessante mostrando a magnitude não apenas dos estragos que a doença causou entre a população, como também delineou a trajetória de morte que a epidemia deixou, nos diversos pontos do império, a partir de sua entrada em Belém em maio de 1855.

Tabela 5
: Escala das crises de mortalidade, Madre de Deus, 1825-1855

Os resultados obtidos na Tabela 5 revelam uma sequência de crises que, entretanto, oscilam quanto à intensidade. Nesses episódios, as doenças que mais afligiram os habitantes são as infectocontagiosas,11 11 Doenças infecciosas são transmitidas pela água e pelos alimentos (disenteria, febre tifoide, gastroenterite, cólera), assim como por comunicação aeróbica ou de pessoa a pessoa (escarlatina, tuberculose, difteria, varíola). Outras, por sua vez, podem ser transmitidas por insetos (febre amarela, por exemplo). Além dos estudos de Notestein (1945), as contribuições posteriores de Chesnais (1986) também foram importantes para a discussão mais abrangente sobre as etapas, formas e implicações econômicas da transição demográfica. como seria de esperar em regimes demográficos pré-transicionais, quando predominavam aqueles males (Notestein, 1945NOTESTEIN, Frank Wallace. Population: the long view. In: Schultz, Theodore W. (ed.). Food for the world. Chicago: University of Chicago Press, 1945. p.36-57.; Omran, 1971OMRAN, Abdel-Rahmin. The epidemiologic transition: a theory of the epidemiology of population change. The Milbank Memorial Fund Quarterly, v.49, n.4, p.509-538, 1971.).

No contexto nosológico, houve o predomínio da diarreia e da enterite. Elas foram as responsáveis pelas crises detectadas, associadas também às recorrentes epidemias de varíola e de sarampo, que se fizeram presentes desde os inícios do século XIX e que se repetiram ao longo de praticamente todo o século. Para Rio Grande de São Pedro, assim como para Porto Alegre, há análises importantes sobre a presença da varíola, destacando-se, dentre outros, Miranda (2000)MIRANDA, Márcia Eckert. Continente de São Pedro: administração pública no período colonial. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande, 2000.; Brizola (2014)BRIZOLA, Jaqueline Hasan. A terrível moléstia: vacina, epidemia, instituições e sujeitos: a história da varíola em Porto Alegre no século XIX (1846-1873). Dissertação (Mestrado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.; Alberton (2019)ALBERTON, Mirele. Das providências que se tem dado a respeito da saúde pública: enfermidades e ações de combate à varíola em Porto Alegre no início do século XIX (1800-1835). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação da História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2019. e Kühn e Brizola (2019)KÜHN, Fábio; BRIZOLA, Jaqueline Hasan. Entre vacinas, doenças e resistências: os impactos de uma epidemia de varíola em Porto Alegre no século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.26, n.2, p.537-554, 2019..

Apesar disso, no período aqui estudado, a pior crise de mortalidade, até a chegada da epidemia de cólera no Rio Grande do Sul (1855-1856), ocorreu em 1837, na primeira fase da Guerra dos Farrapos, enquanto a cidade esteve sitiada.

A vilã foi a escarlatina, como indicam as causas de óbito registradas nos assentos de óbitos analisados. É curioso o fato de que encontramos uma única menção clara a essa epidemia de escarlatina em Porto Alegre, quando Flores (2002)FLORES, Moacyr. República Rio-Grandense: realidade e utopia. Porto Alegre: EDPUCRS, 2002. refere notícia veiculada em 9 de dezembro de 1837, no jornal O Artilheiro, publicado em Porto Alegre entre 1837 e 1838. Naquele jornal, Claude Dubreuil fazia várias considerações sobre a sociedade farroupilha, afirmando que a mocidade do período era “debochada e corrompida e que as ‘crianças bebiam cachaça contra a escarlatina’, fumavam cigarro ou charuto a conversar com sua manceba ou a jogar” (Flores, 2002FLORES, Moacyr. República Rio-Grandense: realidade e utopia. Porto Alegre: EDPUCRS, 2002., p.122-123; destaques nossos). Não foram encontradas, até o momento, outras menções explícitas ou estudos que façam referência a essa violenta epidemia de escarlatina que atacou a população da cidade. No entanto, João da Cunha Lobo Barreto, major do exército imperial, que redigiu uma das primeiras memórias sobre o conflito (1838), menciona que muitas famílias da região da campanha haviam se refugiado na capital e que uma “epidemia” devastava a população. Talvez isso explique inclusive um dos vetores da transmissão da doença, por meio desses “refugiados” (Barreto, 1935BARRETO, João da Cunha Lobo. Revolução de 1835: apontamentos sobre a revolução do Rio Grande do Sul até o deplorável ataque do Rio Pardo. Publicações do Arquivo Nacional, n.31, p.271-354, 1935.).

A epidemia atingiu, de forma dura, a população livre e escrava. Foram registrados 451 óbitos de escravos, sendo que 126 (27,9%) deles faleceram por conta da doença; entre 718 óbitos de livres registrados no mesmo ano, 263 morreram de escarlatina (36,6%), indicando que a doença pesou mais entre a população livre (ou, pelo menos nesse grupo, o eventual subregistro foi menor).

Os meses mais intensos da mortalidade por escarlatina foram entre julho e agosto, durante o inverno, exatamente dentro do intervalo de tempo do segundo cerco à cidade, que foi imposto pelos revoltosos entre maio de 1837 e fevereiro de 1838.

Os óbitos por escarlatina se concentraram no grupo etário até 14 anos, atingindo, assim, de maneira mais dura, a população mais jovem. Esses óbitos somaram nada menos do que 87,7% dos casos entre a população livre e a escravizada. Por outro lado, se examinarmos a faixa até 4 anos de idade, morreram 62,5% (sendo 60,8% de crianças livres e 65,9% de crianças escravas). As crianças, livres e cativas, foram as grandes vítimas da epidemia, embora as crianças escravizadas tenham sido as mais atingidas, quando se examina a distribuição por faixa etária até os 4 anos de idade.

É interessante notar que Pollero, ao estudar a mortalidade em Montevidéu, detectou também uma grave epidemia de escarlatina em 1836, entre os meses de fevereiro e abril. Infelizmente, os assentos paroquiais da localidade não informam nem a idade nem a causa do óbito naquele período (Pollero, 2016POLLERO, Raquel. Historia demográfica de Montevideo y su campaña (1757-1860). Montevideo: UdelaR, 2016., p.195-196). De todo modo, afirma a autora: “A escarlatina é uma doença infecciosa causada por um estreptococo transmitido por contágio, geralmente pelas vias respiratórias, e seu tratamento eficaz é com antibióticos. Para a ciência do século XIX ... a explicação da epidemia encontrava-se nas causas locais: ‘o ar é o veículo dos agentes miasmáticos epidêmicos’” (Pollero, 2010POLLERO, Raquel. Cien años de enfermedad y mortalidad en Montevideo (1760-1860). In: Jornadas de Investigación de la Facultad de Ciencias Sociales, 9. Montevideo: UdelaR, 13-15 set. 2010., p.20; destaques no original).

Não se pode descartar o fato de que outro vetor daquela doença que se espalhou em Porto Alegre também tenha sido trazido das paragens montevideanas, pois, conforme afirma Pollero (2010)POLLERO, Raquel. Cien años de enfermedad y mortalidad en Montevideo (1760-1860). In: Jornadas de Investigación de la Facultad de Ciencias Sociales, 9. Montevideo: UdelaR, 13-15 set. 2010., durante muito tempo Montevidéu era abastecida de gêneros por meio de carregamentos vindos do Rio Grande e da Patagônia. Vários estudos sobre o Rio Grande do Sul também têm apontado os vínculos comerciais existentes entre a província e o Uruguai (Leitman, 1979LEITMAN, Spencer Lewis. Raízes socioeconômicas da Guerra dos Farrapos: um capítulo da história do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1979.; Berute, 2016BERUTE, Gabriel Santos. A economia do Rio Grande do Sul em tempos de guerra (Porto Alegre e Rio Grande, primeira metade do século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, n.150, p.11-32, 2016.). É possível que, junto com o comércio, que ligava o Rio Grande de São Pedro ao Uruguai, tenha vindo também a escarlatina.

Os tempos difíceis enfrentados pela população de Porto Alegre, por conta do cerco e das epidemias, continuaram. No ano seguinte, a população também foi castigada por outra crise de mortalidade, dessa feita sendo acometida por diarreia, enterite e varíola.

Toda essa conjuntura ligada aos transtornos da guerra, somada às dificuldades com o abastecimento de gêneros alimentícios e com problemas de limpeza urbana, certamente criou as condições para as altas taxas de óbitos.

Aqui são ilustrativas as discussões que tiveram lugar na Câmara de Porto Alegre. Em 29 de abril de 1837, repercutiam entre os vereadores as preocupações com o abastecimento da população, apontando a necessidade de adotar medidas preventivas para evitar a falta de charque, carne verde, farinha e outros gêneros. Em 10 de maio, os vereadores registravam que o charque estava escasso e que o seu preço havia duplicado. Por conta disso, pediam para embargar a saída de quaisquer embarcações carregadas daquele produto. Na sessão de 16 de junho, reiterava-se a necessidade de garantir o abastecimento de gêneros de primeira necessidade, como também a lenha, que estava em “grandíssima falta”. Além do desabastecimento, outro grave problema que resultava do cerco era o da limpeza urbana, que fez os vereadores aprovarem medida dispondo sobre os locais adequados para o depósito do lixo na orla do lago Guaíba (Franco, 2011FRANCO, Sergio da Costa. Porto Alegre sitiada. Porto Alegre: Cidade, Letra & Vida, 2011.).

A partir de dezembro de 1840, o conflito entrou numa segunda fase, quando Porto Alegre viu-se livre do cerco imposto pelas tropas farrapas. Apesar disso, as doenças infectocontagiosas continuaram a atingir a população, que seguia sendo acometida pela disenteria, pelo sarampo e pelo tétano. Essas enfermidades foram recorrentes ao longo do período analisado, compondo o quadro da “mortalidade ordinária”, isto é, aquela que marcava o cotidiano da população. Ela se contrapunha à “mortalidade de crise”, que resultava de aumento significativo e brusco dos óbitos, por um período relativamente curto, tendo como determinantes as enfermidades, as guerras e as crises de subsistência (Pollero, 2016POLLERO, Raquel. Historia demográfica de Montevideo y su campaña (1757-1860). Montevideo: UdelaR, 2016., p.337).

Todos esses determinantes estão presentes na conjuntura que se abateu sobre a cidade de Porto Alegre, gerada pela Guerra dos Farrapos. E eles se constituíram no contexto explicativo da explosão da epidemia de escarlatina que teve grande impacto na população da freguesia analisada.

A regularidade e a riqueza de informações que caracterizam as séries de assentos de batizados e óbitos foram fundamentais também para calcular uma variável demográfica da maior relevância, que é a taxa de mortalidade infantil (TMI), isto é, a razão entre o número de óbitos de crianças de 0 a 1 ano e o total de nascimentos, multiplicados por mil. Esse é um dos principais indicadores das condições de vida de uma população.

No caso das populações pré-transicionais, os estudos existentes para diferentes regiões indicam que, para o período analisado, a TMI giraria em torno de trezentos óbitos por mil nascimentos (Scott, 2020SCOTT, Dario. Livres e escravos: população e mortalidade na Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1872). Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 2020.). Contudo, numa sociedade em que ainda vigorava a escravidão, admite-se que a TMI para a população escravizada poderia alcançar patamares ainda mais elevados.

Para a Madre de Deus de Porto Alegre, entre 1825 e 1854, a TMI foi de 331,6 óbitos por mil nascidos vivos, valor compatível com sociedades em que vigia o Antigo Regime Demográfico. No entanto, como podemos observar na Tabela 6, as taxas variaram bastante e foram substancialmente mais elevadas entre a população escravizada.

Tabela 6
: Taxa de mortalidade infantil, crianças livres e escravizadas, 1825-1854

Desagregando a TMI por condição jurídica, ao longo de todo o período, verifica-se que, para as crianças livres, a taxa se situou em 298,8 óbitos por mil nascimentos, enquanto para a população escravizada ela ficou em 397,6 óbitos por mil nascimentos. Em ambos os casos, foi no intervalo entre 1835 e 1839, quando se registra a epidemia de escarlatina, que os valores subiram muito, inclusive com uma TMI mais elevada para as crianças livres, quando comparadas às escravizadas. No entanto, aqui não é possível descartar a possibilidade de sub-registro em relação aos óbitos dos pequenos cativos.

De outra parte, chama também a atenção a altíssima TMI para o grupo das crianças escravizadas entre 1825 e 1829. Tal resultado pode estar ligado ao fato de a população escravizada ser comparativamente mais reduzida que a população livre; esse fato, somado à possibilidade de sub-registro, pode gerar distorções nos cálculos.

De toda forma, esses cálculos trazem resultados inéditos para Porto Alegre, comprovando que, de fato, a mortalidade entre as crianças era muito elevada.

A recomposição desse quadro vivenciado pela população porto-alegrense ao longo da Guerra dos Farrapos, no que diz respeito aos impactos demográficos, em especial sobre a mortalidade causada por doenças, privações e desabastecimento (e menos pelas baixas entre soldados), repete-se em outras populações que enfrentaram situações de combates e lutas.

O estudo sobre a demografia do Paraguai, nos anos da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), trouxe contribuições importantes, para estimar não apenas o crescimento daquela população e o número de mortes entre militares (que, segundo o estudo, tem sido frequentemente superestimado), mas também as mortes relacionadas às doenças que acometiam tanto a população civil quanto a militar (Reber, 1988REBER, Vera B. The demographics of Paraguay: a reinterpretation of the Great War, 1864-70. The Hispanic American Historical Review, v.68, n.2, p.289-319, 1988.).

Como aconteceu em Porto Alegre, no Paraguai, doenças como sarampo, varíola, febre amarela e cólera também dizimaram a população no período do conflito. Da mesma forma, as doenças respiratórias, a disenteria ou a diarreia também contribuíram para a elevada mortalidade, revelando muita semelhança em relação ao que foi registrado para Porto Alegre. Tais doenças foram a causa da maioria dos óbitos também nos momentos de guerra que concorriam para piorar, substancialmente, as já difíceis condições sanitárias e de vida da população (Reber, 1988REBER, Vera B. The demographics of Paraguay: a reinterpretation of the Great War, 1864-70. The Hispanic American Historical Review, v.68, n.2, p.289-319, 1988.).

Considerações finais

O território do Continente do Rio Grande de São Pedro, e, mais tarde, da província do Rio Grande do Sul, foi marcado por uma sucessão de conflitos e guerras que certamente impactaram a vida de sua população, como apontou Olivier Faron (2002)FARON, Olivier. Guerre(s) et démographie historique. Annales de Démographie Historique, Paris, n.103, p.5-9, 2002. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-annales-de-demographie-historique-2002-1.htm. Acesso em: fev. 2018.
https://www.cairn.info/revue-annales-de-...
. Além dos resultados comuns a todas as guerras, como desaparecimento dos jovens do sexo masculino, desequilíbrio na razão de sexos, multiplicação de viúvas e órfãos, os conflitos e guerras pressupõem perturbações profundas nas condições gerais de vida da população.

No caso selecionado e na medida das possibilidades das fontes, foram analisados os impactos e desdobramentos da Guerra dos Farrapos na cidade de Porto Alegre. Entre tantas lutas, esse conflito foi escolhido por ter trazido, de fato, transtornos, privações e mudanças que foram sentidos por sua população, quando a cidade permaneceu fiel ao Império e vivenciou três momentos de sítios impostos pelos revoltosos, ao longo da primeira metade da guerra (1836-1840). Problemas de abastecimento, escassez e carestia de gêneros foram reportados, especialmente por Sergio da Costa Franco (2011)FRANCO, Sergio da Costa. Porto Alegre sitiada. Porto Alegre: Cidade, Letra & Vida, 2011., ao estudar o período em que a cidade ficou sitiada, tendo como desdobramento, também, a elevação da taxa de mortalidade infantil entre crianças livres e escravizadas. Também os relatórios dos presidentes da província fizeram menção aos necessitados, especialmente viúvas e órfãos da guerra, que receberam ajuda do imperador dom Pedro II, quando ele esteve no Rio Grande do Sul, logo após o cessar das lutas (Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, 1846PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO DO RIO GRANDE DO SUL. Relatorio com que abrio a primeira sessão ordinária da segunda legislatura da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul. No 1º de março de 1846. Exmo. Sr. Conde de Caxias, Presidente da mesma província. Porto Alegre: Typographia de I. J. Lopes, 1846. RPP Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/relatorios-presidentes-provincias-brasileiras/252263. Acesso: 1 jul. 2020.
http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-di...
).

No que diz respeito ao “desaparecimento dos jovens” e “ao desequilíbrio na razão de sexos”, não foi possível examinar com mais acuidade, já que os dados não permitiram elaborar pirâmides etárias, apesar dos procedimentos aplicados para calcular e/ou estimar a população total.12 12 Para uma discussão mais aprofundada sobre os procedimentos e métodos demográficos aplicados para calcular a população total, veja-se Scott (2020). De toda forma, os dados apontaram uma inflexão importante na razão de sexos, exatamente no período posterior ao término do conflito.

Deve-se considerar ainda que, embora Porto Alegre tenha enfrentado o cerco, o palco dos combates não foi a cidade. As principais batalhas ocorreram nas regiões de Triunfo, Taquari, Rio Pardo e Bagé. Não se registrou, nos assentos de óbito, a informação sobre a morte de soldados, portanto é difícil calcular o percentual de óbitos que resultaram diretamente dos choques entre imperiais e rebeldes para a freguesia.

A análise empreendida e os resultados contribuem para os estudos no campo da demografia histórica, especialmente na discussão da mortalidade diferencial, incluindo a mortalidade infantil. É fato reconhecido pela literatura que a mortalidade é a variável menos estudada no conjunto da produção brasileira. A aplicação de métodos e procedimentos da demografia permitiu avançar não apenas na análise da mortalidade, como também discutir os impactos da guerra, que colocou a cidade sob o sítio dos inimigos, agravando de forma sensível os indicadores demográficos e as condições sanitárias e de vida dos seus habitantes, independentemente de sua condição jurídica. Os dados apontaram ainda que a população enfrentou várias crises de mortalidade, entre elas aquela causada por uma grave epidemia de escarlatina, que não havia sido tratada pela historiografia. Além do mais, a discussão relativa à intensidade dessas crises também é uma importante contribuição.

Por outro lado, a exploração das séries de registros paroquiais revelou outros desdobramentos que afetaram a vida de homens, mulheres e crianças, muito além das duras privações, das doenças e das epidemias. A guerra teve impactos importantes e que se fizeram sentir também na nupcialidade e na fecundidade (Scott, 2022SCOTT, Ana Silvia Volpi. Reconhecer e legitimar filhos naturais entre a população livre na Porto Alegre Oitocentista. In: Karsburg, Alexandre; Vendrame, Maíra I.; Carneiro, Deivy (org.). Práticas de micro-história: diversidade de temas e objetos de um método historiográfico. São Leopoldo: Oikos, 2022. p.119-136.). Fica, portanto, o desafio de aprofundar a análise dos comportamentos demográficos em tempos de guerras, tema que não tem merecido a atenção dos historiadores demógrafos no Brasil.

Figura 4
: Gráfico da distribuição mensal dos óbitos por escarlatina, 1837 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de óbitos tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem aos colegas Paulo Roberto S. Moreira e Gabriel S. Berute a disponibilização do quadro estatístico de 1856 e de material bibliográfico, respectivamente. Agradecem ainda ao CNPq e Capes o apoio financeiro recebido (Bolsa de Produtividade em Pesquisa e Bolsa de Doutorado).

REFERÊNCIAS

  • ALBERTON, Mirele. Das providências que se tem dado a respeito da saúde pública: enfermidades e ações de combate à varíola em Porto Alegre no início do século XIX (1800-1835). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação da História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2019.
  • BARRETO, João da Cunha Lobo. Revolução de 1835: apontamentos sobre a revolução do Rio Grande do Sul até o deplorável ataque do Rio Pardo. Publicações do Arquivo Nacional, n.31, p.271-354, 1935.
  • BERUTE, Gabriel Santos. A economia do Rio Grande do Sul em tempos de guerra (Porto Alegre e Rio Grande, primeira metade do século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, n.150, p.11-32, 2016.
  • BRIZOLA, Jaqueline Hasan. A terrível moléstia: vacina, epidemia, instituições e sujeitos: a história da varíola em Porto Alegre no século XIX (1846-1873). Dissertação (Mestrado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.
  • CARVALHO, Daniela Vallandro. A guerra civil farroupilha aos rés do chão: experiências negras de recrutamento, guerra, escravidão (Rio Grande de São Pedro, c.1835-1850). In: Neumann, Eduardo Santos; Brandalise, Carla (org.). O Rio Grande do Sul revisitado: novos capítulos. Porto Alegre: Martins, 2019. p.119-150.
  • CHESNAIS, Jean-Claude. La transition démographique: étapes, formes, implications économiques. Étude de séries temporelles (1720-1984) relatives à 67 pays. Présentation d’un Cahier de l’INED. In: Population, 41e année, n.6, p.1059-1070, 1986. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/pop_0032-4663_1986_num_41_6_17679 Acesso em: jul. 2020.
    » https://www.persee.fr/doc/pop_0032-4663_1986_num_41_6_17679
  • CODA, Alexandra. O juiz de paz na esfera criminal: Porto Alegre (1832-1841). Trabalho de Conclusão de Curso (História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
  • DAVID, Henrique Manuel P. Rodrigues. As crises de mortalidade no Concelho de Braga (1700-1880). Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1992.
  • DEL PANTA, Lorenzo; LIVI BACCI, Massimo. Chronology, intensity and diffusion of mortality in Italy, 1600-1850. In: Charbonneau, Hubert; Larose, André (ed.). The great mortalities: methodological studies of demographic crises in the past. Liège: Iussp, 1979. p.69-81.
  • DUPÂQUIER, Jacques. L’analyse statistique des crises de mortalité. In: Charbonneau, Hubert; Larose, André (ed.). The great mortalities: methodological studies of demographic crises in the past. Liège: Iussp, 1979. p.83-84.
  • FARON, Olivier. Guerre(s) et démographie historique. Annales de Démographie Historique, Paris, n.103, p.5-9, 2002. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-annales-de-demographie-historique-2002-1.htm Acesso em: fev. 2018.
    » https://www.cairn.info/revue-annales-de-demographie-historique-2002-1.htm
  • FEE, Fundação de Economia e Estatística. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEE, 1981.
  • FLORES, Moacyr. República Rio-Grandense: realidade e utopia. Porto Alegre: EDPUCRS, 2002.
  • FRANCO, Sergio da Costa. Porto Alegre sitiada. Porto Alegre: Cidade, Letra & Vida, 2011.
  • GANZ, Magda. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
  • GOMES, Luciano da Costa. Uma cidade negra: escravidão, estrutura econômico-demográfica e diferenciação social na formação de Porto Alegre, 1772-1802. Porto Alegre: UFRGS, 2012.
  • ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2006.
  • KLAFKE, Álvaro. A imprensa legalista na Guerra dos Farrapos. In: Neumann, Eduardo Santos; Grijó, Luiz Alberto (org.). O império e a fronteira: a província de São Pedro no Oitocentos. São Leopoldo: Oikos, 2014. p.141-167.
  • KÜHN, Fábio; BRIZOLA, Jaqueline Hasan. Entre vacinas, doenças e resistências: os impactos de uma epidemia de varíola em Porto Alegre no século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.26, n.2, p.537-554, 2019.
  • LEITMAN, Spencer Lewis. Raízes socioeconômicas da Guerra dos Farrapos: um capítulo da história do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  • MIRANDA, Márcia Eckert. Continente de São Pedro: administração pública no período colonial. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande, 2000.
  • NEUMANN, Eduardo Santos. “O serviço das armas”: a participação indígena na Guerra dos Farrapos (1835-1845). In: Neumann, Eduardo S.; Grijó, Luiz Alberto (org.). O Império e a fronteira: a província de São Pedro no Oitocentos. São Leopoldo: Oikos, 2014. p.39-57.
  • NEUMANN, Eduardo Santos; BRANDALISE, Carla (org.). O Rio Grande do Sul revisitado: novos capítulos. Porto Alegre: Martins Livreiro Editora, 2019.
  • NEUMANN, Eduardo Santos; GRIJÓ, Luiz Alberto (org.). O império e a fronteira: a província de São Pedro no Oitocentos. São Leopoldo: Oikos, 2014.
  • NEUMANN, Eduardo Santos; GRIJÓ, Luís Alberto. O Continente em armas: uma história da guerra no sul do Brasil. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.
  • NOTESTEIN, Frank Wallace. Population: the long view. In: Schultz, Theodore W. (ed.). Food for the world. Chicago: University of Chicago Press, 1945. p.36-57.
  • OMRAN, Abdel-Rahmin. The epidemiologic transition: a theory of the epidemiology of population change. The Milbank Memorial Fund Quarterly, v.49, n.4, p.509-538, 1971.
  • POLLERO, Raquel. Historia demográfica de Montevideo y su campaña (1757-1860). Montevideo: UdelaR, 2016.
  • POLLERO, Raquel. Cien años de enfermedad y mortalidad en Montevideo (1760-1860). In: Jornadas de Investigación de la Facultad de Ciencias Sociales, 9. Montevideo: UdelaR, 13-15 set. 2010.
  • PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO DO RIO GRANDE DO SUL. Relatorio com que abrio a primeira sessão ordinária da segunda legislatura da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul. No 1º de março de 1846. Exmo. Sr. Conde de Caxias, Presidente da mesma província. Porto Alegre: Typographia de I. J. Lopes, 1846. RPP Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/relatorios-presidentes-provincias-brasileiras/252263 Acesso: 1 jul. 2020.
    » http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/relatorios-presidentes-provincias-brasileiras/252263
  • REBER, Vera B. The demographics of Paraguay: a reinterpretation of the Great War, 1864-70. The Hispanic American Historical Review, v.68, n.2, p.289-319, 1988.
  • RIBEIRO, José Iran. As doenças e as dietas na construção da alteridade entre os integrantes do exército imperial brasileiro durante a Guerra dos Farrapos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.18, n.3, p.661-675, 2011.
  • RUBERT, Arlindo. História da Igreja no RS. v.2. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 1998.
  • SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 2002.
  • SCOTT, Ana Silvia Volpi. Reconhecer e legitimar filhos naturais entre a população livre na Porto Alegre Oitocentista. In: Karsburg, Alexandre; Vendrame, Maíra I.; Carneiro, Deivy (org.). Práticas de micro-história: diversidade de temas e objetos de um método historiográfico. São Leopoldo: Oikos, 2022. p.119-136.
  • SCOTT, Ana Silvia Volpi; SCOTT, Dario. Casamentos entre desiguais no Brasil Meridional (1772-1845). In: Ghirardi, Mónica; Scott, Ana Silvia Volpi (ed.). Familias históricas: interpelaciones desde perspectivas Iberoamericanas a través de los casos de Argentina, Brasil, Costa Rica, España, Paraguay y Uruguay. São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2015. p.37-79.
  • SCOTT, Ana Silvia Volpi; SCOTT, Dario. Nacaob: una opción informatizada para historiadores de la familia. In: Celton, Dora; Ghirardi, Mónica; Carbonetti, Adrián (org.). Poblaciones históricas: fuentes, métodos y líneas de investigación. Rio de Janeiro: Alap, 2009. p.171-185.
  • SCOTT, Dario. Livres e escravos: população e mortalidade na Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1872). Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 2020.
  • SILVA, Riograndino Costa. Notas à margem da história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1968.
  • WITTER, Nikelen Acosta. Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no Sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007.

NOTAS

  • 1
    Ana Silvia V. Scott: “Livres, libertos e escravos: dinâmica da população e da família no Brasil Meridional 1772-1872”, Chamada CNPq n.12/2017 – Produtividade em Pesquisa, Processo n.305928/2017-1; Dario Scott: Livres e escravos: população e mortalidade na Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1872). Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Demografia/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, 2020 (Bolsa Capes).
  • 2
    Decreto n.103, de 10 de outubro de 1841.
  • 3
    Além da questão da mortalidade, destacada nesta oportunidade, estamos analisando os impactos da guerra sobre a fecundidade legítima e a nupcialidade, que serão apresentados oportunamente.
  • 4
    O nome oficial da terra rio-grandense, a partir da Independência, é Província do Rio Grande do Sul, consagrado na Constituição Imperial de 25 de março de 1824 (Silva, 1968SILVA, Riograndino Costa. Notas à margem da história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1968., p.110).
  • 5
    Para uma explicação mais detalhada, sugere-se a leitura de Pollero (2016)POLLERO, Raquel. Historia demográfica de Montevideo y su campaña (1757-1860). Montevideo: UdelaR, 2016., sobretudo o anexo V, p.538-568, no qual a autora faz uma análise aprofundada das metodologias utilizadas para estimar crises de mortalidade.
  • 6
    Entre outros estudos, Magda Ganz (2004GANZ, Magda. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004., p.23-24) faz uma análise dos testemunhos dos viajantes e menciona que os dados para esse período são muito problemáticos. Aponta, no entanto, que o levantamento populacional de 1856 para a cidade de Porto Alegre teria uma boa qualidade de informações.
  • 7
    “Art. 1º Em cada uma das freguesias e das capelas filiais curadas, haverá um juiz de paz e um suplente para servir no seu impedimento, enquanto não se estabelecerem os distritos, conforme a nova divisão estatística do Império” (disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38396-15-outubro-1827-566688-publicacaooriginal-90219-pl.html. Acesso em: 1 jul. 2020).
  • 8
    Uma indicação dos problemas são as observações na coluna lateral do mesmo quadro, que admitem que os cálculos foram feitos para corrigir os valores para se chegar à estimativa da população total da província (total da população livre indicado no quadro foi de 147.846, e o total da população livre, corrigido, foi de 179.363).
  • 9
    Cabe destacar que na categoria “livres” estão considerados os assentos relativos a forros também, por conta da pouca expressão numérica que apresentaram.
  • 10
    Sociedades pré-transicionais são assim concebidas e entendidas a partir da teoria da transição demográfica (TTD). Argumenta-se que a transição demográfica constituiu uma ruptura com o “Antigo Regime Demográfico” (característico das sociedades tradicionais e agrárias) que seria sucedido pelo “Regime Demográfico Moderno”, típico das sociedades modernas e industrializadas. O regime antigo seria de alta pressão (altas taxas de mortalidade e de natalidade), enquanto o regime moderno seria da baixa pressão (baixas taxas de mortalidade e de natalidade). Assim, as sociedades pré-transicionais seriam caracterizadas por altas taxas de natalidade e de mortalidade. Nesse contexto, as altas taxas de mortalidade estariam atreladas, sobretudo, às doenças infectocontagiosas predominantes e às recorrentes epidemias que fustigariam aquelas populações.
  • 11
    Doenças infecciosas são transmitidas pela água e pelos alimentos (disenteria, febre tifoide, gastroenterite, cólera), assim como por comunicação aeróbica ou de pessoa a pessoa (escarlatina, tuberculose, difteria, varíola). Outras, por sua vez, podem ser transmitidas por insetos (febre amarela, por exemplo). Além dos estudos de Notestein (1945)NOTESTEIN, Frank Wallace. Population: the long view. In: Schultz, Theodore W. (ed.). Food for the world. Chicago: University of Chicago Press, 1945. p.36-57., as contribuições posteriores de Chesnais (1986)CHESNAIS, Jean-Claude. La transition démographique: étapes, formes, implications économiques. Étude de séries temporelles (1720-1984) relatives à 67 pays. Présentation d’un Cahier de l’INED. In: Population, 41e année, n.6, p.1059-1070, 1986. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/pop_0032-4663_1986_num_41_6_17679. Acesso em: jul. 2020.
    https://www.persee.fr/doc/pop_0032-4663_...
    também foram importantes para a discussão mais abrangente sobre as etapas, formas e implicações econômicas da transição demográfica.
  • 12
    Para uma discussão mais aprofundada sobre os procedimentos e métodos demográficos aplicados para calcular a população total, veja-se Scott (2020)SCOTT, Dario. Livres e escravos: população e mortalidade na Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1872). Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 2020..

Errata

  • Errata

    No artigo “Demografia da guerra: mortalidade em Porto Alegre na Guerra dos Farrapos, 1835-1845” (http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702022000200006), de Ana Silvia Volpi Scott e Dario Scott, publicado em História, Ciências, Saúde – Manguinhos , v.29, n.2, mar.-jun. 2022, transcrevemos valores errados no eixo x dos gráficos presentes nas Figuras 1, 2 e 3. Pedimos desculpas aos autores e leitores e transcrevemos abaixo as correções.
    • Na página 407, onde se lê:
    Figura 1
    Gráfico do movimento de batizados e óbitos entre população total, 1825-1854 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de batizados e óbitos tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)
    ▶ leia-se:
    Figura 1
    Gráfico do movimento de batizados e óbitos entre população total, 1825-1854 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de batizados e óbitos tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)
    • Na página 408, onde se lê:
    Figura 2
    Gráfico do movimento anual de batizados por condição jurídica, Madre de Deus de Porto Alegre, 1825-1854 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de batizados tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)
    ▶ leia-se:
    Figura 2
    Gráfico do movimento anual de batizados por condição jurídica, Madre de Deus de Porto Alegre, 1825-1854 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de batizados tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)
    • Na página 410, onde se lê:
    Figura 3
    Gráfico do movimento anual de óbitos por condição jurídica, Madre de Deus de Porto Alegre, 1825-1854 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de óbitos tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)
    ▶ leia-se:
    Figura 3
    Gráfico do movimento anual de óbitos por condição jurídica, Madre de Deus de Porto Alegre, 1825-1854 (Fonte: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Assentos de óbitos tabulados com o Nacaob, extração em janeiro de 2018)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2020
  • Aceito
    13 Out 2020
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br