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Educação em sexualidade na Europa e as sexualidades interseccionais do Brasil

Sexuality education in Europe and the intersectional sexualities of Brazil

Resumo:

No presente artigo, temos por objetivo investigar a política europeia de educação em sexualidade com base nos Standards for Sexuality Education in Europe e tecer breves considerações sobre sua adequação à realidade brasileira sob o critério formal, relativo às leis educacionais brasileiras; e material, relativo à sua capacidade de representar uma noção interseccional de sexualidade vivenciada no Sul Global de origens coloniais. A investigação utilizou método dialético, tendo por base metodologia exploratória, e constatamos que o modelo europeu sugere uma abordagem abrangente da sexualidade, que vai além das questões de saúde sexual e reprodutiva, e propõe o questionamento das normas e relações de poder que constituem social, política, cultural e historicamente o gênero e a sexualidade. Todavia, para uma implementação no Brasil pós-colonial, é preciso observar uma noção ainda mais abrangente, incorporando a relação da sexualidade com outros marcadores sociais, a exemplo de raça e classe.

Palavras-chave:
Educação em sexualidade; Comprehensive Sexuality Education; Standards for Sexuality Education; Interseccionalidade

Abstract:

This article aims to investigate the European policy on sexuality education based on the Standards for Sexuality Education in Europe and to make brief considerations about its adequacy to the Brazilian reality under the formal criteria, related to the Brazilian educational laws; and material, related to its ability to represent an intersectional notion of sexuality experienced in the Global South of colonial origins. The investigation used a dialectical method, based on exploratory methodology, and found that the European model suggests a comprehensive approach to sexuality that goes beyond issues of sexual and reproductive health and proposes the questioning of the norms and power relations that constitute social, political, culturally and historically gender and sexuality. However, for an implementation in post-colonial Brazil, it is necessary to observe an even broader notion, incorporating the relationship of sexuality with other social markers, such as race and class.

Keywords:
Sexuality Education; Comprehensive Sexuality Education; Standards for Sexuality Education; Intersectionality

Considerações Iniciais

Diferente do Brasil, onde o debate sobre educação em sexualidade tem sido sufocado com falácias e fake news, experiências internacionais têm indicado novas perspectivas para se (re)pensar como educar em sexualidade sem desconsiderar o melhor interesse de crianças e adolescentes, preparando-os para escolhas saudáveis, conscientes e sem violência, a partir da cooperação dos pais e do reconhecimento da escola como espaço potencial para difusão de informações cientificamente adequadas sobre os temas, conforme a idade do destinatário.

A partir dos Standards for Sexuality Education in Europe, publicados em 2010 pelo escritório europeu da Organização Mundial de Saúde (OMS), é estruturada proposta de política institucional sobre o tema para toda a Europa, a Comprehensive Sexuality Education (CSE)1 1 Ressalta-se que, inicialmente, os Standards referem-se a uma proposta de educação holística em sexualidade, a Holistic Sexuality Education (HSE), conteúdo que é bastante abordado em todo o material. Todavia, em 2016, foi decidida a substituição dessa terminologia pela CSE, para acompanhar as demais organizações internacionais. Nas publicações, HSE e CSE são tratadas como sinônimos. (WHO; BZGA, 2010WHO; BZGA. WORLD HEALTH ORGANIZATION; BUNDESZENTRALE FÜR GESUNDHEITLICHE AUFKLÄRUNG. Standards for Sexuality Education in Europe: a framework for policy makers, educational and health authorities and specialists. Cologne: BZgA and the WHO Regional Office for Europe, 2010. Disponível em Disponível em https://www.bzga-whocc.de/en/publications/standards-in-sexuality-education/ . Acesso em 04/05/2020.
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), ou educação em sexualidade abrangente. Dividido em duas partes, o documento inicialmente aborda características da CSE (contexto de surgimento, propósitos, conceitos, justificativas, princípios, público-alvo e competências) e encerra com a apresentação de matriz pedagógica para a educação em sexualidade com a distribuição dos conteúdos por idade, classificando-os entre “informação”, “habilidade” e “atitudes” (WHO; BZGA, 2010).

Os Standards defendem a difusão dessas informações de forma compreensiva, sem julgamento, adequada à idade e cientificamente completa (WHO; BZGA, 2016WHO; BZGA. WORLD HEALTH ORGANIZATION; BUNDESZENTRALE FÜR GESUNDHEITLICHE AUFKLÄRUNG. Policy Brief No.1. Sexuality Education: what is it? Cologne: BZgA and the WHO Regional Office for Europe, 2016. Disponível em Disponível em https://www.bzga-whocc.de/fileadmin/user_upload/Dokumente/Sexuality_education_Policy_brief_No_1.pdf . Acesso em 04/05/2020.
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).

No que se refere ao território europeu, trata-se de contexto no qual a educação em sexualidade,2 2 A utilização da terminologia “educação em sexualidade” em detrimento de educação sexual, como é comumente tratada no Brasil, tem por objetivo acompanhar os debates internacionais e difundir a ideia de que a educação em/para a sexualidade precisa ir além da abordagem das questões relativas à reprodução, incorporando um caráter integral e abrangente, tal como sugerido pela UNESCO e pelos Standards. a Sexuality Education (SE), é predominantemente obrigatória nas escolas primárias e secundárias, especialmente em se tratando da União Europeia (UE) (EU, 2013EU. EUROPEAN UNION. Policies for Sexuality Education in UE: note. Brussels: European Union, 2013. Disponível em Disponível em https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/note/join/2013/462515/IPOL-FEMM_NT(2013)462515_EN.pdf . Acesso em 04/05/2020.
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). Historicamente, foi a Suécia, em 1955, o primeiro país europeu a torná-la, por meio de lei, obrigatória em todas as escolas (WHO; BZGA, 2010).

Desde sua criação, os Standards têm sido empregados para a implementação de conteúdos relativos à interpretação abrangente da sexualidade como educação formal nos currículos escolares europeus (BZGA, 2018BZGA. BUNDESZENTRALE FÜR GESUNDHEITLICHE AUFKLÄRUNG. Sexuality Education in Europe and Central Asia: state of the art and recent developments. Cologne: BZgA and IPPF EN, 2018. Disponível em Disponível em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000183281_por . Acesso em 04/05/2020.
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).

Inclusive, em 2017, o Reino Unido - que até então adotava a política de respeitar a autoridade local sobre a decisão de fornecer ou não a SE nas escolas públicas - reconheceu a educação em sexualidade legalmente como um “Statutory Subject”, tornando-a obrigatória em todas as escolas públicas e, também, em particulares (BZGA, 2018).

O texto está dividido em duas partes. Com base nos Standards3 3 Importante destacar que a apresentação dos Standards se restringe a suas características e elementos principais, não contemplando, portanto, a “Matrix da educação em sexualidade”. Foge às forças desse trabalho tecer comentários acerca do modelo adotado para distribuição dos conteúdos, conforme os critérios etários pedagogicamente estabelecidos. A adoção de uma política de educação em sexualidade demanda e é resultado do envolvimento de diferentes áreas, dentre elas o direito. O presente estudo tem por objetivo tecer considerações jurídicas sobre a proposta, especialmente no que se refere aos critérios formal e material estabelecidos. e em demais documentos internacionais que abordam e monitoram a proposta, apresentamos, inicialmente, as características e diretrizes gerais da política europeia, seguidas das conclusões e recomendações aos países europeus que já a implementaram.

Por fim, analisamos brevemente a adequação da CSE à realidade brasileira; sob o critério formal, com base nas leis nacionais, e material, tomando como referencial crítico a teoria feminista negra da interseccionalidade, em razão de sua capacidade de traduzir a construção social, política, cultural, histórica etc. do gênero e da sexualidade no Sul Global (Boaventura SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa. “Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 23-71.).

Trata-se de pesquisa exploratória que usa de método dialético (Cléber PRODANOV; Ernani FREITAS, 2013PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de Freitas. Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2 ed. Novo Hamburgo: Editora da Universidade Feevale, 2013.) para apresentar características, relações, possíveis transformações e contradições entre os Standards e a realidade brasileira, com o intento de descobrir de que forma e sob que circunstâncias experiências internacionais de formalização da educação em sexualidade, a exemplo da europeia, podem contribuir para o debate científico brasileiro, a partir da produção teórica de parâmetros metodológicos para futuras comparações de políticas públicas.

1 Educação em sexualidade na Europa: da criação dos Standards ao monitoramento da proposta

Estabelecer uma política institucional para instrumentalizar uma proposta como a de educar em/para sexualidade é um processo complexo. Não importa o lugar. Muitos países europeus, mesmo com leis regulamentando a obrigatoriedade da educação em sexualidade, precisaram dedicar anos até a efetiva integração desses assuntos nos currículos escolares. Antes disso, foi preciso estabelecer diretrizes, criar manuais e materiais de orientação, e promover a formação de profissionais da educação (WHO; BZGA, 2010).

Outro desafio à implementação da proposta refere-se à resistência social. Sem qualquer pretensão de aprofundamento nos debates que concernem às influências políticas, religiosas, médicas, familiares e jurídicas que exercem poder sobre a sexualidade, o desenho de estratégias de implementação também precisa levar em conta cenários mais ou menos conservadores com relação à temática, especialmente considerando o surgimento de movimentos conservadores e ultraconservadores e políticos de extrema direita em várias localidades, a exemplo do Brasil.

A existência de uma política educacional envolvendo o tema, em âmbito da Região Europeia, representa o reconhecimento da sexualidade naquele espaço como um “[...] aspecto fundamental da vida humana: possui dimensões físicas, psicológicas, espirituais, sociais, econômicas, políticas e culturais” (UNESCO, 2010UNESCO. UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade: uma abordagem baseada em evidências para escolas, professores e educadores em saúde. Vol. I - Razões em favor da educação em sexualidade. Unesco Digital Library. Paris, 2010. Disponível em Disponível em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000183281_por . Acesso em 04/05/2020.
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, p. 2).

Ao compreender a inerência dos direitos da sexualidade à existência humana e, como tal, sexualidade como sendo direito humano, o sistema internacional europeu demonstra operar para a garantia da observância do Artigo (Art.) 14 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950, que versa sobre igualdade e proibição de discriminações (CEDH, 1950CEDH. CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS. Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Roma, 1950.).

Sobre o contexto de criação da política de educação em sexualidade europeia, documentos e iniciativas antecederam a elaboração dos Standards. Em 2001, foi publicada uma estratégia de dez anos, demonstrando a necessidade de que países europeus educassem seus adolescentes em sexualidade para proteção da saúde reprodutiva e sexual, a Sexual and Reproductive Health (SRH), sugerindo, ainda, que houvesse regulamentação legal da proposta (WHO; BZGA, 2010).

Em 2006, foi organizada uma conferência para discutir estratégias e apresentar iniciativas de sucesso. No mesmo período, foram publicados documentos que, futuramente, viriam a ser complementados para dar origem aos Standards (WHO; BZGA, 2010).

Em 2009, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) publicou um guia técnico para implementação da proposta em nível global, tornando-se referencial para a criação de políticas públicas em diferentes países da África, América Latina e Caribe, além dos países europeus que apresentaremos adiante (UNESCO, 2019).

A Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade, publicada originalmente pela UNESCO, em 2010, e reiteradamente revisada desde então, inicia a formulação internacional da CSE, fundada na ideia de que uma educação efetiva em/para sexualidade precisa iniciar na primeira infância e progredir até a adolescência e juventude, a partir da construção de conhecimentos e habilidades que são apropriados para cada fase e que se formam no decorrer de um longo processo educacional, como qualquer outro assunto que também componha o currículo (UNESCO, 2015UNESCO. UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Comprehensive Sexuality Education: a global review. Section for Health and Global Citizenship Education. Unesco Digital Library. Paris, 2015. Disponível em Disponível em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000235707 . Acesso em 04/05/2020.
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). Nesse sentido,

define-se educação em sexualidade como uma abordagem apropriada para a idade e culturalmente relevante ao ensino sobre sexo e relacionamentos, fornecendo informações cientificamente corretas, realistas, e sem pré-julgamento. A educação em sexualidade fornece oportunidades para explorar os próprios valores e atitudes e para desenvolver habilidades de tomada de decisão, comunicação e redução de riscos em relação a muitos aspectos da sexualidade (UNESCO, 2010, p. 2).

Além de esboçar as primeiras definições da proposta, a Orientação Técnica também apresenta informações sobre o status da educação em sexualidade em âmbito global, reunindo contribuições que serviriam à construção das justificativas e estratégias dos Standards. Nesse sentido,

apesar da necessidade clara e premente de uma educação em sexualidade efetiva na escola, na maioria dos países do mundo ela ainda não está disponível. Existem muitas razões para isto, incluindo a resistência ‘percebida’ ou ‘antecipada’, resultante de mal entendidos sobre a natureza, propósito e efeitos da educação em sexualidade. Evidências sugerem que muitas pessoas, incluindo funcionários do ministério de educação, diretores de escolas e professores, podem não estar convencidas da necessidade de fornecer educação em sexualidade, ou têm relutância em fazê-lo, porque lhe faltam confiança e habilidades para isso. Os valores pessoais ou profissionais de professores também podem estar em conflito com os temas que lhes pedem para abordar, ou não há nenhuma orientação clara sobre o que e como ensinar (UNESCO, 2010, p. 9).

A partir da análise de 87 programas de educação em sexualidade de países em desenvolvimento (29), dos Estados Unidos (47) e de outros países desenvolvidos (11), a UNESCO também verificou o impacto da educação em sexualidade no comportamento sexual das crianças e adolescentes, concluindo que 70% dos programas implementaram a proposta por meio de currículos escolares; mais de um terço (37%) dos programas retardaram o início de relações sexuais; cerca de um terço (31%) dos programas diminuiu a frequência de relações sexuais; e mais de um terço (44%) dos programas diminuíram o número de parceiros sexuais (UNESCO, 2010).

Separadamente, em razão dos critérios da pesquisa, também foram analisados 11 (onze) programas de abstinência (nos quais práticas de abstinência sexual são tomadas como principal estratégia de formação em/para a sexualidade), dos quais 02 (dois) tiveram impacto no retardamento sexual, enquanto 09 (nove) não revelaram nenhum impacto (UNESCO, 2010).

Assim, em 2010, os Standards for Sexuality Education in Europe são publicados após um período de dois anos de preparação, abordando o contexto de surgimento, propósitos, conceitos, justificativas, princípios, público-alvo e tópicos-chave, com temas que interessam ao debate do assunto (WHO; BZGA, 2010).

Há, também, a definição de quais informações crianças e adolescentes de diferentes idades precisam saber e entender no que se refere a gênero, diversidade e sexualidade; quais situações ou desafios precisam estar aptos a lidar conforme cada idade e quais valores precisam absorver para que se desenvolvam positivamente e saudavelmente no que se refere à sexualidade (WHO; BZGA, 2010).

Os Standards propõem que a educação em sexualidade vá além da abordagem das temáticas de saúde sexual (gravidez precoce, ISTs etc.), coadunando-os com o pensamento de Guacira Lopes Louro (2019LOURO, Guacira Lopes. “Pedagogias da Sexualidade”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. 4 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 9-42., p. 11), para quem “[...] a sexualidade não é apenas uma questão pessoal, mas é social e política; o segundo, ao fato de que a sexualidade é ‘aprendida’, ou melhor, é construída, ao longo de toda a vida, de muitos modos, por todos os sujeitos”.

No que diz respeito à elaboração de políticas públicas, os Standards são apresentados tanto como primeiro passo para a implementação da educação em sexualidade, quanto também enquanto ferramenta de aperfeiçoamento para iniciativas já existentes, podendo ser adaptados conforme as necessidades do local onde estiverem sendo aplicados (WHO; BZGA, 2010).

Diferentes materiais (guia de implementação, orientação para políticas públicas, diretrizes para formação de professores, avaliações, relatórios etc.) têm sido publicados, desde então, para dar suporte aos Standards, possibilitando a análise de diferentes vieses do modelo europeu de educação em sexualidade (WHO; BZGA, 2010).

Retomando-se a apresentação dos Standards como justificativas à proposta de implementação de uma educação formal em CSE, são citados os efeitos da globalização; o aumento dos índices de migração, levando novas populações com diferentes origens culturais e religiosas para a Europa; o crescimento das novas mídias, especialmente com a internet e as plataformas de comunicação móvel; o surgimento e disseminação do HIV/AIDS; preocupações com o abuso sexual de crianças e adolescentes; as novas manifestações da sexualidade e comportamentos sexuais entre jovens (WHO; BZGA, 2010).

Os Standards defendem que a educação formal em sexualidade é o melhor espaço para alcançar a maior parte do público-alvo, crianças e adolescentes em formação. Para tanto, adotam princípios estruturantes que estabelecem que a CSE deve ser: 1) apropriada à idade em relação ao nível de desenvolvimento e entendimento do público destinatário, culturalmente e socialmente responsiva e sensível ao gênero e correspondente à realidade da vida dos jovens; 2) baseada em uma abordagem sexual e reprodutiva de direitos humanos; 3) baseada em um conceito holístico de bem-estar, que inclui saúde; 4) firmemente baseada na igualdade de gênero, autodeterminação e aceitação da diversidade; 5) iniciada com o nascimento; 6) entendida como uma ferramenta para construção de uma sociedade justa e empática, capacitando indivíduos e comunidades; 7) baseada em informações cientificamente precisas (WHO; BZGA, 2010).

Sem a pretensão de esgotar os interesses exploratórios no conteúdo dos Standards e demais documentos europeus, considerando, contudo, visitadas as principais características da proposta, passamos à apresentação de evidências consolidadas sobre educação em sexualidade em nível global, a partir de relatórios da UNESCO; e sobre o modelo europeu, a partir de relatórios de monitoramento da CSE na Europa, apresentados em ordem cronológica de surgimento e abrangência.

Em perspectiva global, o Relatório Comprehensive Sexuality Education: a global review, publicado pela UNESCO, em 2015, destaca a disparidade (gap) entre os níveis de implementação e monitoramento das políticas globais em comparação às políticas regionais, a exemplo da própria Europa, demonstrando que a atribuição do caráter de obrigatoriedade à CSE teve impacto positivo nos índices de implementação (UNESCO, 2015).

A revisão global dos currículos demonstrou a necessidade de maior atenção para abordagens que alcancem outros tópicos-chave além das noções de SRH, especialmente no que se refere à influência das normas de gênero, religião e cultura na construção da sexualidade (UNESCO, 2015).

Quando é dedicada exclusivamente à informação sobre conteúdos de saúde sexual e reprodutiva, deixando de abordar os diferentes aspectos da construção social, política, cultural, histórica etc. do gênero e da sexualidade, a CSE passa a ser considerada não efetiva, mesmo quando alcança resultados positivos quanto à redução dos casos de ISTs e gravidez precoce, por exemplo. A CSE, portanto, deve abordar tanto questões de saúde sexual reprodutiva, quanto práticas reguladoras da sexualidade (UNESCO, 2015).

De forma geral, o material faz constatações pertinentes que podem contribuir para o debate do tema, dentre elas: os jovens têm aumentado a exigência pelo respeito ao seu direito de receber educação em sexualidade, a SE; para serem eficazes, os conteúdos da CSE precisam corresponder às reais necessidades da realidade desses jovens; temas de gênero e direitos deverão ser consistentemente fortalecidos nos currículos, incluindo pautas de pessoas que vivem e convivem com o HIV e de outras populações de interesse (UNESCO, 2015).

Além disso, o Relatório reconhece que oferecer educação em CSE de alta qualidade demanda formação e capacitação técnica adequadas; que o engajamento dos pais e das comunidades nos processos de implementação é essencial; e que cada vez mais países têm buscado a implementação da CSE nos territórios nacionais, valendo-se das evidências e orientações internacionais acumuladas (UNESCO, 2015).

Documento mais recente da UNESCO, de 2019, o Facing the facts: the case for comprehensive sexuality education reconhece que as principais barreiras enfrentadas para implementação da proposta atualmente referem-se à oposição ou resistência social com base em normas e relações de poder e limitações operacionais (UNESCO, 2019UNESCO. UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Facing the facts: the case for comprehensive sexuality education. Unesco Digital Library, 2019. Disponível em Disponível em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000368231?posInSet=3&queryId=ee62c76a-5b69-40a1-b56a-eb9d0198d283 . Acesso em 04/05/2020.
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).

Os efeitos negativos da oposição social, seja como resistência ou backlash, podem alcançar diferentes atores indispensáveis ao sucesso da iniciativa, tal como formuladores de políticas públicas, funcionários públicos e engajamento de profissionais da educação, motivação dos alunos e cooperação dos pais (UNESCO, 2019).

As barreiras operacionais incluem treinamento, orientação e suporte insuficientes a educadores para aplicação do modelo de CSE e o uso de métodos pedagógicos baseados em evidências, além da falta de acesso a currículos apropriados e treinamentos que abranjam ampla gama dos tópicos-chave e falta de investimentos financeiros (UNESCO, 2019).

Já sobre os relatórios europeus, estudo de 2015, intitulado Evaluation of holistic sexuality education: a European expert group consensus agreement, teve por objetivo iniciar a discussão sobre critérios avaliativos para aferir a qualidade e efetividade dos modelos de CSE. O estudo estabelece que a CSE, enquanto proposta educacional, objetiva principalmente preparar educandos “[...] para relacionamentos e vidas sexuais consensuais, voluntários, iguais, prazerosos, seguros e satisfatórios”4 4 Versão original: […] for consensual, voluntary, equal, pleasurable, safe and satisfactory relationships and sexual lives. (Evert KETTING et al., 2015KETTING, Evert; FRIELE, Minou; MICHIELSEN, Kristien. “Evaluation of Holistic Sexuality Education: A European expert group consensus agreement”. The European Journal of Contraception & Reproductive Health Care, 2015. Disponível em Disponível em http://icrhb.org/sites/default/files/Ketting_Evaluation%20HSE_2015.pdf . Acesso em 04/05/2020.
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, p. 10-11), sendo recomendada a sua constante avaliação.

O estudo aponta que, à época de sua publicação, havia pouca literatura sobre avaliação da educação em sexualidade, em geral, na Europa; a maior parte existente referia-se ao impacto desse tipo de educação na formação dos educandos, às falhas de programas e avaliação de iniciativas de implementação, demonstrando a necessidade de verificar se o transcurso do tempo, bem como recentes movimentos migratórios para a Europa e o contexto pandêmico, interferiram nos tipos de estudos atualmente produzidos sobre o tema.

Além disso, o estudo de 2015 destacava que os critérios de avaliação existentes na literatura enfocavam predominantemente os impactos da CSE no que tange à saúde pública (questões de saúde sexual e reprodutiva), não sendo apresentados critérios no que se refere ao bem-estar sexual e à construção de uma sexualidade positiva, que também são partes essenciais da proposta da CSE (KETTING et al., 2015KETTING, Evert; FRIELE, Minou; MICHIELSEN, Kristien. “Evaluation of Holistic Sexuality Education: A European expert group consensus agreement”. The European Journal of Contraception & Reproductive Health Care, 2015. Disponível em Disponível em http://icrhb.org/sites/default/files/Ketting_Evaluation%20HSE_2015.pdf . Acesso em 04/05/2020.
http://icrhb.org/sites/default/files/Ket...
).

Os resultados ainda demonstram que nem as poucas iniciativas até então implementadas observavam todas as diretrizes da CSE, indicando a necessidade da criação de novas estruturas de avaliação, com novos indicadores aptos a verificar o impacto não apenas em termos de saúde sexual e reprodutiva, mas também no que diz respeito à construção social, cultural, política, histórica etc. do gênero e da sexualidade (KETTING et al., 2015KETTING, Evert; FRIELE, Minou; MICHIELSEN, Kristien. “Evaluation of Holistic Sexuality Education: A European expert group consensus agreement”. The European Journal of Contraception & Reproductive Health Care, 2015. Disponível em Disponível em http://icrhb.org/sites/default/files/Ketting_Evaluation%20HSE_2015.pdf . Acesso em 04/05/2020.
http://icrhb.org/sites/default/files/Ket...
). Nesse sentido, concluem:

Além do impacto na saúde, a qualidade dos programas de SE e sua implementação também merecem atenção e devem ser avaliados. Para ser aplicável à HSE (sic), os critérios de avaliação precisam cobrir mais do que os aspectos típicos da saúde pública (KETTING et al., 2015KETTING, Evert; FRIELE, Minou; MICHIELSEN, Kristien. “Evaluation of Holistic Sexuality Education: A European expert group consensus agreement”. The European Journal of Contraception & Reproductive Health Care, 2015. Disponível em Disponível em http://icrhb.org/sites/default/files/Ketting_Evaluation%20HSE_2015.pdf . Acesso em 04/05/2020.
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, p. 1, tradução do autor).5 5 Versão original: Aside from the health impact, the quality of SE programmes and their implementation also deserve attention and should be evaluated. To be applicable to HSE, the evaluation criteria need to cover more than the typical public health aspects.

O Relatório Sexuality Education in Europe and Central Asia: state of the art and recent developments, publicado em 2018, apresenta o resultado de um estudo realizado com 25 países selecionados entre Europa e Ásia Central, para verificar o progresso da proposta desde o ano 2000, a partir da integração da sexualidade nos currículos educacionais em contextos escolares formais. Como resultado, constatou-se que 21 dos 25 países possuíam lei, política ou estratégia exigindo ou apoiando a proposta de implementação; levando à conclusão de que a educação em sexualidade é norma na Região Europeia (BZGA, 2018).

Constatou-se, também, que os Standards têm sido amplamente utilizados. Dos 25 países analisados: em 8 (oito), serviram para informar os políticos e outros tomadores de decisão e desenvolver ou adaptar currículos; em 4 (quatro), serviram apenas para o desenvolvimento ou adaptação de currículos; em 2 (dois), serviram apenas para informar políticos e outros tomadores de decisão (BZGA, 2018).

Para melhor apresentação dos resultados obtidos, apresenta-se versão traduzida e adaptada da tabela extraída do Relatório da OMS (Tabela 1) para verificação dos itens de avaliação, conforme cada um dos 25 países envolvidos no estudo.

Tabela 1:
Principais Informações sobre Educação em Sexualidade, de acordo com o Relatório Sexuality Education in Europe and Central Asia: state of the art and recent developments

Dentre as principais conclusões do relatório, está o rápido progresso no desenvolvimento e implementação da educação em sexualidade nas escolas formais da União Europeia desde 2000. Em 15 dos 25 países incluídos na pesquisa, existe uma base legal para a educação em sexualidade; em 10, evidencia-se uma abordagem integral e abrangente da sexualidade, em conformidade à CSE; e em quatro há uma tendência para torná-la mais abrangente, aproximando-a, assim, do modelo CSE (BZGA, 2018).

Além disso, evidenciou-se que a educação em sexualidade na Região Europeia é quase sempre integrada ao ensino de outros conteúdos (como biologia e ciências da natureza, habilidades para a vida ou educação em saúde); programas independentes são raros. Em 11 dos 25 países, é obrigatória aos educandos; em 7 (sete) países é parcialmente obrigatória (ou seja, não em todas escolas); e em apenas 4 (quatro) é opcional (BZGA, 2018).

No que se refere à resistência à proposta de se educar em sexualidade, em cerca de metade dos países da Região Europeia ainda existe séria oposição, com base no argumento de “incentivo precoce à prática sexual”, o que, segundo o estudo, não é suportado pelos resultados, que atestaram o retardamento do início das atividades sexuais em países com educação em sexualidade bem desenvolvida (BZGA, 2018).

Em países com CSE totalmente desenvolvidas, jovens tendem a mencionar particularmente a escola como fonte de informações seguras sobre sexualidade e as taxas de nascimento entre adolescentes tendem a ser baixas (BZGA, 2018).

Como recomendações, o estudo destaca que as experiências em educação em sexualidade na Região Europeia são muito maiores que em outras partes do mundo, razão pela qual sugere o aumento das publicações em plataformas internacionais. No mesmo sentido, destaca que, em vários países europeus, a educação em sexualidade começa na primeira infância, onde tende a focar no conhecimento do corpo humano, suas funções e, posteriormente, nas mudanças durante a puberdade e relacionamentos humanos, destacando que essa educação deve iniciar antes de haver contato/início das práticas sexuais (BZGA, 2018).

Sobre a participação dos pais, o relatório europeu enfatiza que

a educação sexual nas escolas complementa os esforços dos pais e cria um ambiente protetor para todos os jovens. Ela preenche uma lacuna se os pais estiverem ausentes, não se sentirem competentes ou não puderem ou não desejarem fornecer as habilidades e conhecimentos para proteger a saúde sexual reprodutiva e os direitos dos jovens de promoverem relações sociais e emocionais mais saudáveis6 6 Versão original: Sexuality education in schools complements the efforts of parents and creates a protective environment for all young people. It fills a gap if parents are absent, do not feel competent or are unable or unwilling to provide the life skills and knowledge to protect young people’s SRH and rights and to foster healthier social and emotional relations. (BZGA, 2018, p. 186, tradução do autor).

Ao investigar as principais características da política europeia de educação em sexualidade, percebemos que a criação dos Standards e instituição do modelo de CSE foram essenciais para dar início à formalização da proposta na Região Europeia. A criação e, desde então, o monitoramento da proposta representam um conjunto de informações que, junto a resultados de relatórios, podem ser tanto utilizados para revisão dos currículos europeus e implementação de programas nos países onde ainda não existam, quanto para iniciar/fomentar debates em contextos onde ela é mais incipiente, como o caso do Brasil.

De forma geral, a educação abrangente em sexualidade, a CSE europeia, propõe englobar tanto assuntos referentes à saúde sexual pública, quanto temas relativos à construção social, política, cultural, histórica etc. do gênero e da sexualidade, aqui entendidos em seus mais diferentes aspectos e contextos, mas, sobretudo, em uma perspectiva de que direitos da sexualidade são direitos humanos.

Mais do que meramente ser implementada, para ser efetiva, a CSE representa um modelo educacional que propõe observar tanto a preocupação com a vida sexual e reprodutiva saudável, consciente e não violenta de crianças e adolescentes, como também a sexualidade a partir de diferentes normas e relações de poder, problematizando-as.

Assim, a fim de aproximar o modelo de CSE da realidade brasileira, o próximo item propõe destacar a necessidade de que um modelo de educação em sexualidade atento aos desafios da sociedade brasileira observe uma noção ainda mais abrangente de sexualidade, incorporando os recortes já sugeridos no modelo europeu e, ainda, a relação da sexualidade com outros marcadores sociais, a exemplo de raça e classe.

2 Revisão dos Standards a partir do Sul: construindo um modelo abrangente para o Brasil

Apresentadas breves considerações acerca do modelo europeu de educação em sexualidade, o presente item tem por objetivo propor reflexões sobre uma possível aplicação dos Standards no Brasil, especialmente considerando que o documento - ainda que consista em referencial internacional de diretrizes e orientações para elaboração de políticas públicas em nível global - reflete a realidade dos países europeus.

Com base em estudos decoloniais que denunciam a colonialidade do saber, entendemos que a “importação” acrítica do conhecimento produzido em sociedades metropolitanas muitas vezes resulta no apagamento de epistemologias locais ou, mesmo, na incapacidade das epistemologias do norte de corresponderem às realidades do Sul Global, apontando a necessidade de constante revisão dos saberes produzidos.

No que se refere aos saberes produzidos sobre direitos humanos, Santos (2019SANTOS, Boaventura de Souza. “Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento”. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MARTINS, Bruno Sena (Orgs.). O Pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 39-61.) aponta a limitação dos direitos humanos convencionais que se fundam em uma ideia de dignidade hegemônica.

À medida que estão restritos a validações universais, os direitos humanos convencionais acabam por não considerar os contextos sociais, políticos e culturais que distinguem as sociedades - bem como as relações de poder e instâncias envolvidas nos processos de emancipação desses direitos. Passam a ser empregados, então, duplos critérios na avaliação da observância dos direitos humanos: um para as sociedades metropolitanas e outro para as sociedades coloniais. Nesse sentido,

ora, enquanto discurso de emancipação, os direitos humanos foram historicamente concebidos para vigorar apenas do lado de cá da linha abissal, apenas nas sociedades metropolitanas. Tenho vindo a defender que essa linha abissal, que produz exclusões radicais, longe de ter sido eliminada com o fim do colonialismo histórico, continua sob outras formas (neocolonialismo, racismo, xenofobia, permanente estado de exceção na relação com terroristas, trabalhadores imigrantes indocumentados, candidatos a asilo ou mesmo cidadãs comuns vítimas das políticas de austeridade ditadas pelo capital financeiro) (SANTOS, 2019SANTOS, Boaventura de Souza. “Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento”. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MARTINS, Bruno Sena (Orgs.). O Pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 39-61., p. 41).

Ao identificar exclusões e suas matrizes coloniais, Santos (2019SANTOS, Boaventura de Souza. “Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento”. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MARTINS, Bruno Sena (Orgs.). O Pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 39-61.) postula que a consagração dos direitos humanos no Sul Global é mais problemática em comparação ao Norte Global, pois, tradicionalmente, as sociedades coloniais localizadas ao Sul (elemento não necessariamente geográfico, segundo o autor) têm resistido às “[...] sistemáticas opressões do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado”.

Propõe, com isso, a ressignificação da emancipação dos direitos humanos a partir de uma perspectiva não hegemônica, que reflita a realidade das sociedades não metropolitanas e afastando-se dos universalismos.

Em razão de tratar-se de sociedade pós-colonial, entendemos que um modelo de educação em sexualidade para o Brasil precisa considerar uma noção ainda mais abrangente de sexualidade do que aquela que é reconhecida pelos Standards, incorporando a relação da sexualidade com outros marcadores sociais, a exemplo de raça e classe; além de questões de saúde sexual e reprodutiva e a sexualidade a partir de diferentes normas e relações de poder, como já sugere o modelo europeu.

A fim de verificar as condições de adequação dos Standards à realidade brasileira, foram eleitos para análise o critério de adequação formal, referente à verificação da legalidade da proposta dos Standards perante as legislações nacionais que abordam a temática, com o propósito de observar se há lei nacional que respalde uma política semelhante; e o critério de adequação material, referente à noção de sexualidade abrangente da proposta, ocasião em que se observa como o documento poderia incorporar outras interseccionalidades que, combinadas às opressões de gênero e sexualidade no Brasil, particularizam a experiência social, cultural, econômica, laboral etc. em nível local e em relação a outros países, especialmente de contextos mais desenvolvidos, como o caso da Região Europeia.

2.1 Critério de adequação formal

O critério de adequação formal refere-se à compatibilidade legal entre a proposta dos Standards e as leis brasileiras criadas a partir do sistema educacional delineado pela Constituição de 1988 (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em 04/05/2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
), investigando-se se existem embasamentos legais para a criação de uma política semelhante no Brasil.

Nesse sentido, é possível identificar fundamentos legais à educação em sexualidade: no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990BRASIL. Lei nº 8.069/1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Senado Federal, 1990. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm . Acesso em 04/05/2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), que reconhece a dignidade sexual (Título Seção V-A) e o Direito à Informação (Art. 71) às crianças e adolescentes; nas Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996BRASIL. Lei nº 9.394/1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Senado Federal, 1996. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm . Acesso em 04/05/2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI...
), que atribuem aos currículos escolares a função de difundir valores fundamentais ao interesse social (Art. 27, I) e estabelece o respeito à liberdade e apreço à tolerância como uma das diretrizes do ensino (Art. 3º, IV); nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em que “orientação sexual” é trazida como tema transversal, sugerindo a abordagem de temas relativos a “Corpo: matriz da sexualidade, relações de gênero, prevenções das doenças sexualmente transmissíveis”, transversalizados às disciplinas do currículo (BRASIL, 1997BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos Temas Contemporâneos Transversais. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível em Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf . Acesso em 04/05/2020.
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
).

Há referência expressa à educação em sexualidade no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), que prevê como uma de suas ações programáticas:

9. fomentar a inclusão, no currículo escolar, das temáticas relativas a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiências, entre outros, bem como todas as formas de discriminação e violações de direitos, assegurando a formação continuada dos(as) trabalhadores(as) da educação para lidar criticamente com esses temas (BRASIL, 2007BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007. Disponível em Disponível em http://portal.mec.gov.br/docman/2191-plano-nacional-pdf/file . Acesso em 04/05/2020.
http://portal.mec.gov.br/docman/2191-pla...
, p. 33).

No mesmo sentido, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) relaciona as questões de gênero, sexualidade e educação aos objetivos relativos: à saúde de adolescentes, ao enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, à afirmação da diversidade para construção de uma sociedade igualitária, à garantia do respeito à livre orientação sexual e à identidade de gênero, ao fortalecimento dos instrumentos de prevenção à violência, entre outros (BRASIL, 2009BRASIL. Decreto nº 7.037/2009. Aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3 e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 2009. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/cciviL_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm . Acesso em 04/05/2020.
http://www.planalto.gov.br/cciviL_03/_At...
).

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, por sua vez, estabelecem que saúde, sexualidade e gênero “[...] devem permear o desenvolvimento dos conteúdos da base nacional comum e da parte diversificada do currículo” (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC/SEB/DICEI, 2013. Disponível em Disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13448-diretrizes-curiculares-nacionais-2013-pdf&category_slug=junho-2013-pdf&Itemid=30192 . Acesso em 04/05/2020.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
, p. 115).

Em que pese a exclusão dos termos “gênero” e “orientação sexual” da versão final do Plano Nacional de Educação (PNE) vigente, o documento estabelece, nas diretrizes do Art. 2º, entre outras, a ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação e a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental (BRASIL, 2014BRASIL. Lei nº 13.005/2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Brasília: Senado Federal, 2014. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm . Acesso em 04/05/2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

É possível identificar referência à abordagem transversal das questões de gênero e sexualidade, também, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que define o conjunto progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo da educação básica (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Educação. Guia de implementação da Base Nacional Comum Curricular: orientações para o processo de implementação da BNCC. Brasília: MEC, 2020. Disponível em Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/implementacao/guia_BNCC_2018_atualizacao_2020_cap_1_ao_6_interativo_28.pdf . Acesso em 04/05/2020.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/imag...
), desde a educação infantil.

Segundo a BNCC, consistem em objetivos de aprendizagem e desenvolvimento: aos bebês (zero a 1 ano e 6 meses), o reconhecimento do próprio corpo; às crianças bem pequenas (1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses), a percepção de que as pessoas têm características físicas diferentes, respeitando essas diferenças; às crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses), o desenvolvimento de empatia com o próximo e o interesse e respeito por diferentes culturas e modos de vida, bem como a valorização das características de seu corpo, adoção de hábitos de autocuidado e o respeito às características dos outros (crianças e adultos) com os quais convivem (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/SEB, 2017. Disponível em Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br . Acesso em 04/05/2020.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br...
).

No ensino fundamental, a BNCC estabelece como competências específicas para a disciplina de educação física, dentre outras: a identificação das formas de produção dos preconceitos, compreensão de seus efeitos e combate a posicionamentos discriminatórios em relação às práticas corporais e aos seus participantes, e o reconhecimento das práticas corporais como elementos constitutivos da identidade cultural dos povos e grupos (BRASIL, 2017).

A disciplina de ciências da natureza tem como competências específicas “[...] o respeito a si próprio e ao outro, acolhendo e valorizando a diversidade de indivíduos e de grupos sociais, sem preconceitos de qualquer natureza” (BRASIL, 2017, p. 324) e o conhecimento, apreciação, e cuidado de si, do próprio corpo e bem-estar, estabelecendo habilidades específicas sobre saúde sexual reprodutiva a partir do 8º ano (BRASIL, 2017).

Às disciplinas de ciências humanas foi atribuída como competência, também, a compreensão de si e do outro como identidades diferentes, de forma a exercitar o respeito à diferença em uma sociedade plural, além de promoção dos direitos humanos (BRASIL, 2017).

Com isso, há proposta de identificação das diferenças étnico-raciais e étnico-culturais e desigualdades sociais entre grupos em diferentes territórios na disciplina de geografia, 5º ano (BRASIL, 2017); proposta de identificação e descrição das práticas e papéis sociais em diferentes comunidades na disciplina de história, 2º ano (BRASIL, 2017); proposta de associar a noção de cidadania com os princípios de respeito à diversidade, à pluralidade e aos direitos humanos na disciplina de história, 2º ano (BRASIL, 2017); e há proposta de descrever e analisar os diferentes papéis sociais das mulheres no mundo antigo e nas sociedades medievais e, ainda, a identificação dos legados da escravização no Brasil, com discussão da importância de ações afirmativas, ambos na disciplina de história, 8º ano (BRASIL, 2017).

A disciplina de história, no 9º ano, também é responsável por: identificar transformações ocorridas no debate sobre as questões da diversidade no Brasil durante o século XX e compreender o significado das mudanças de abordagem em relação ao tema; relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais; relacionar a Carta dos Direitos Humanos ao processo de afirmação dos direitos fundamentais e de defesa da dignidade humana; discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) e identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI (BRASIL, 2017).

Para o ensino médio, as competências específicas incluem investigar e discutir o uso indevido de conhecimentos das ciências da natureza na justificativa de processos de discriminação, segregação e privação de direitos individuais e coletivos (BRASIL, 2017); identificar, analisar e discutir circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos (BRASIL, 2017).

De acordo com a BNCC, o aluno do ensino médio também deve ser capaz de analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação e identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos (BRASIL, 2017).

Considerando apresentado um breve apanhado das leis nacionais afins à proposta do presente estudo, com base no critério formal, é possível evidenciar a priori similaridades entre a previsão da abordagem dos temas conforme os documentos oficiais brasileiros.

Diferencia-se, contudo, o caráter mandatório da educação em sexualidade em grande parte da Europa e a organização dos Standards como um modelo de CSE, destacando-se que a proposta pedagógica trazida como matriz no documento não foi apreciada. Em que pese a obrigatoriedade da inserção da História e Cultura Afro-brasileira nos currículos brasileiros, decorrente da criação da Lei nº 10.639/03 (BRASIL, 2003BRASIL. Lei nº 10.639/2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. 2003. Disponível em Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm . Acesso em 04/05/2020.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
), não se pode afirmar que há vinculação legal para a abordagem conjunta de ambos os temas.

De forma geral, é possível vislumbrar correspondência entre os Standards (WHO; BZGA, 2010) e o que se tem estabelecido nas leis educacionais brasileiras. Os primeiros resultados reforçam os reflexos positivos da proposta no que se refere à saúde sexual e reprodutiva e denotam a necessidade de que haja o enfrentamento à discriminação e às desigualdades fundadas em gênero e sexualidade, coadunando com os dispositivos legais nacionais.

2.2 Critério de adequação material

Para análise quanto à adequação material dos Standards, propomos a construção de reflexões sobre uma noção abrangente de sexualidade que corresponderia à realidade pós-colonial brasileira.

À luz da teoria da interseccionalidade (Kimberlé CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2002000100011&lng=en&nrm=iso . Acesso em 04/05/2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), ao versar sobre saúde sexual e reprodutiva e problematizar normas e relações de poder (como já sugerido pelo modelo educacional europeu), uma eventual implementação dos Standards no Brasil precisaria também ser construída considerando outros marcadores sociais que, ao interagirem com gênero e sexualidade, particularizam experiências, especialmente quando envolvem raça e classe.

Em verdade, Louro (2019LOURO, Guacira Lopes. “Pedagogias da Sexualidade”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. 4 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 9-42., p. 39) expande raça e classe como únicos marcadores para se pensar sexualidade, quando afirma que “[...] nossas identidades de raça, gênero, classe, geração ou nacionalidade estão imbricadas com nossa identidade sexual, e esses vários marcadores sociais interferem na forma de viver a identidade sexual”.

Na tentativa de encontrar referência à própria interseccionalidade ou o reconhecimento de outros marcadores, como raça e classe, nos Standards, com a adoção das categorias (PRODANOV; FREITAS, 2013PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de Freitas. Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2 ed. Novo Hamburgo: Editora da Universidade Feevale, 2013.) “race” (raça), “poverty” (pobreza); “class” (classe); “ethnic” (étnico) para verificação do conteúdo, não foi possível identificar na proposta da CSE referência a uma abordagem abrangente da sexualidade que também inclua raça e classe (WHO; BZGA, 2010).

Percebemos, assim, que, em que pese o caráter de abordagem abrangente da sexualidade defendido pelos Standards, contemplando temáticas de saúde sexual reprodutiva e relativos à construção social, política, cultural, histórica etc. do gênero e da sexualidade, não se evidenciou, na proposta, sugestão de abordagem também em relação a outras interseccionalidades.

Há, contudo, menção a outros recortes da diferença na justificativa de criação, quando é feita referência aos processos de migração que a Europa vivenciou nos últimos anos e no público-alvo em que estão incluídos os migrantes, bem como outras minorias culturais (WHO; BZGA, 2010, p. 28).

Mesmo para o continente europeu, uma releitura dos Standards a partir da interseccionalidade poderia trazer benefícios. Em um contexto de intensificação das migrações, as tensões dentro do continente europeu exigem que o tema da sexualidade seja articulado com conceitos e teorias, tal como a interseccionalidade, que permitam uma compreensão da complexidade das relações sociais em contexto contemporâneo.

Para melhor entender a interseccionalidade no que propõe, é preciso destacar sua origem na atuação social e teorização, produzidas a partir do feminismo negro. Em perspectiva teórica e metodológica, a interseccionalidade aparece relacionada à justiça social, podendo servir como ferramenta de investigação sobre a influência das relações interseccionais de poder nas relações sociais e nas experiências individuais. A interseccionalidade também se sustenta na concepção de que categorias de raça, classe, gênero, sexualidade, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária, entre outras, são inter-relacionadas e se afetam mutuamente (Patricia Hill COLLINS; Sirma BILGE, 2020COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade [recurso eletrônico]. Tradução de Rane Souza. São Paulo: Boitempo, 2020.).

Tendo sido construída a partir da perspectiva feminista negra, a interseccionalidade possibilita também descrever a vulnerabilidade estrutural que racismo, sexismo, entre outras formas de violência, impõem a mulheres negras brasileiras desde o período colonial até os dias de hoje. Nesse sentido:

Não obstante, o mito da democracia racial e a história específica do Brasil, com escravidão, colonialismo, ditadura e instituições democráticas, moldaram padrões distintos de relações interseccionais de poder quanto a raça, gênero e sexualidade. Encontros sexuais, consensuais e forçados, entre populações de ascendência africana, indígena e europeia geraram um povo com variadas texturas de cabelo, cores de pele, formas físicas e cores de olhos, além de uma série de termos complexos e historicamente voláteis para descrever as misturas resultantes. A cor da pele, a textura do cabelo, as características faciais e outros aspectos físicos tornaram-se marcadores raciais de fato para a distribuição de educação, emprego e outros bens sociais (COLLINS; BILGE, 2020COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade [recurso eletrônico]. Tradução de Rane Souza. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 41).

Com base nos pensamentos apresentados acima, entendemos, então, que a abordagem educacional da sexualidade precisa ser interseccional no Brasil, pois as opressões do gênero se combinam a outras vulnerabilidades desde a formação colonial.

Para implementação dos Standards no Brasil, portanto, parece pertinente que a política inclua não somente a proposta de educação em sexualidade, abordando temas de saúde sexual reprodutiva e da construção social, política, cultural e histórica do gênero e da sexualidade, mas amplie a noção de abrangente para incluir também outros marcadores sociais da diferença que particularizam experiências, especialmente considerando as heranças discriminatórias decorrentes das matrizes coloniais.

Por outro lado, para se pensar a concretização de uma educação em sexualidade verdadeiramente interseccional, debate basilar ainda se centra na necessidade de reivindicar categorias explícitas sobre gênero, diversidade e sexualidade em leis e documentos oficiais, bem como na formação docente, no currículo escolar, nos materiais didáticos. A partir dessa categoria explícita, o aspecto da interseccionalidade passa ser mais alcançável. Por ora, gênero e sexualidade têm sido categorias não nomeadas.

Considerações finais

Na tentativa de apresentar as principais características e evidências acumuladas pela política dos Standards europeia, entendemos que a noção de educação em sexualidade adotada é abrangente à medida que estabelece a educação em/para sexualidade além de suas implicações sobre saúde sexual e reprodutiva, englobando a necessidade de problematização das normas e relações de poder, o que demonstra a preocupação com os aspectos sociais, políticos, culturais etc. do gênero e da sexualidade.

No que se refere aos problemas de saúde sexual pública (ISTs, precocidade do início da vida sexual, índices de natalidade entre jovens etc.), o conhecimento que chega pela educação em sexualidade tem promovido o retardamento do início das atividades sexuais nos países europeus em que é bem desenvolvida. A escola se tornou o principal referencial informativo sobre a sexualidade nos países em que a educação em sexualidade abrangente é aplicada (BZGA, 2018).

Em que pese consistir em modelo referencial de política pública - com estratégias, diretrizes, orientações de implementação e até resultados - que podem ser usados como parâmetros, cogitar a implantação dos Standards, acriticamente e sem considerar a realidade brasileira, é invisibilizar processos distintos de emancipação em direitos humanos que caracterizam o Sul Global.

Para verificar a adequação formal dos Standards às normas brasileiras, foram levantados documentos educacionais brasileiros que sugerem a inclusão das temáticas de gênero e sexualidade em contextos educacionais, a exemplo do PNEDH e da BNCC.

Há referência à abordagem educacional do gênero e da sexualidade nas escolas brasileiras (em alguns casos, sugerindo-se a criação de parâmetros para a inclusão formal nos currículos ou indicando a abordagem transversalizada aos conteúdos de outras disciplinas) em diferentes dispositivos, constatando-se a existência de fundamentos legais para a criação de uma política semelhante.

Por outro lado, o apagamento das categorias de gênero, diversidade e sexualidade em leis e documentos ainda demonstra a necessidade de reivindicá-las expressamente, de forma que sejam nomeadas, bem como verdadeiramente inseridas na capacitação de educadores, materiais didáticos e currículos.

No que se refere à sua adequação material, a interseccionalidade demonstrou a necessidade de se revisar os Standards, ampliando a noção de educação em sexualidade abrangente para incluir também outros marcadores sociais da diferença.

Nesse sentido, atribuir uma perspectiva interseccional à proposta de educação em sexualidade possibilita repensar o gênero e a sexualidade como elementos social, político, cultural e histórico, possibilitando a criação de uma política cujos padrões de efetividade estejam associados ao enfrentamento dos problemas de saúde sexual pública, ao mesmo tempo que conceba uma abordagem do gênero que questione outras matrizes de opressão.

Referências

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  • BRASIL. Lei nº 8.069/1990 Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Senado Federal, 1990. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em 04/05/2020.
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    » https://www.bzga-whocc.de/fileadmin/user_upload/Dokumente/Sexuality_education_Policy_brief_No_1.pdf
  • 1
    Ressalta-se que, inicialmente, os Standards referem-se a uma proposta de educação holística em sexualidade, a Holistic Sexuality Education (HSE), conteúdo que é bastante abordado em todo o material. Todavia, em 2016, foi decidida a substituição dessa terminologia pela CSE, para acompanhar as demais organizações internacionais. Nas publicações, HSE e CSE são tratadas como sinônimos.
  • 2
    A utilização da terminologia “educação em sexualidade” em detrimento de educação sexual, como é comumente tratada no Brasil, tem por objetivo acompanhar os debates internacionais e difundir a ideia de que a educação em/para a sexualidade precisa ir além da abordagem das questões relativas à reprodução, incorporando um caráter integral e abrangente, tal como sugerido pela UNESCO e pelos Standards.
  • 3
    Importante destacar que a apresentação dos Standards se restringe a suas características e elementos principais, não contemplando, portanto, a “Matrix da educação em sexualidade”. Foge às forças desse trabalho tecer comentários acerca do modelo adotado para distribuição dos conteúdos, conforme os critérios etários pedagogicamente estabelecidos. A adoção de uma política de educação em sexualidade demanda e é resultado do envolvimento de diferentes áreas, dentre elas o direito. O presente estudo tem por objetivo tecer considerações jurídicas sobre a proposta, especialmente no que se refere aos critérios formal e material estabelecidos.
  • 4
    Versão original: […] for consensual, voluntary, equal, pleasurable, safe and satisfactory relationships and sexual lives.
  • 5
    Versão original: Aside from the health impact, the quality of SE programmes and their implementation also deserve attention and should be evaluated. To be applicable to HSE, the evaluation criteria need to cover more than the typical public health aspects.
  • 6
    Versão original: Sexuality education in schools complements the efforts of parents and creates a protective environment for all young people. It fills a gap if parents are absent, do not feel competent or are unable or unwilling to provide the life skills and knowledge to protect young people’s SRH and rights and to foster healthier social and emotional relations.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    RODRIGUES NETO, Antônio. “Educação em sexualidade na Europa e as sexualidades interseccionais do Brasil”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e74630, 2022.
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2020
  • Revisado
    11 Out 2021
  • Aceito
    03 Nov 2021
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