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Chimamanda Adichie, Mia Couto e o combate às expectativas de género

Chimamanda Adichie, Mia Couto and their struggle against gender expectations

Chimamanda Adichie, Mia Couto y la lucha contra las expectativas de género

Resumo:

Em A coisa à volta do teu Pescoço, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie dá vida e voz a personagens femininas várias que, numa amostra por conveniência, cingiremos às presentes nas histórias “Cela Um” e “A Historiadora Obstinada”. As questões de género, noutro canto de África, são tratadas por Mia Couto, um feminista convicto. É na senda de um novo rumo para a garantia dos direitos das mulheres, que analisaremos a representatividade feminina em contos selecionados de Estórias Abensonhadas, como na “Esteira do Parto”, “O Perfume”, “Os infelizes cálculos da felicidade”, “Joãotónio, no enquanto” e “Os olhos fechados do diabo do advogado”. Tendo como pano de fundo estes autores, procuraremos analisar 1. as formas como a mulher é representada nas narrativas em estudo e 2. quão mais (in)felizes as personagens femininas se tornam quando não sentem o peso das expectativas de género.

Palavras-chave:
representações; género; hibridismo; Chimamanda Adichie; Mia Couto

Abstract:

In A coisa à volta do teu Pescoço, the Nigerian writer Chimamanda Adichie brings life and voice to various female characters, but, in a convenience sampling, we will stick to those in the short stories “Cela Um” and “A Historiadora Obstinada”. Gender issues, in another part of Africa, are dealt with by Mia Couto, a staunch feminist. It is in the quest for a new direction ensuring women's rights that we will analyse the feminine representativeness in selected short stories in Estórias Abensonhadas, such as “Esteira do Parto”, “O Perfume”, “Os infelizes cálculos da felicidade”, “Joãotónio, no enquanto” and “Os olhos fechados do diabo do advogado”. Taking these authors as a reference, we will try to analyse 1. the ways in which women are represented in the narratives under study and 2. how much more (un)happy female characters become when they do not feel the weight of gender expectations.

Keywords:
Representations; Gender; Hybridism; Chimamanda Adichie; Mia Couto

Resumen:

En A coisa à volta do teu Pescoço, la escritora nigeriana Chimamanda Adichie da vida y voz a varios personajes femeninos pero, en una muestra para mayor comodidad, nos ceñiremos a los presentes en los cuentos “Cela Um” y “A Historiadora Obstinada”. Las cuestiones de género, en otro punto de África, son tratadas por Mia Couto, un feminista declarado. En el camino de una nueva dirección para la garantía de los derechos de la mujer, analizaremos la representatividad femenina en cuentos seleccionados de Estórias Abensonhadas, como “Esteira do Parto”, “O Perfume”, “Os infelizes cálculos da felicidade”, “Joãotónio, no enquanto” y “Os olhos fechados do diabo do advogado”. Con el apoyo de estos autores, intentaremos analizar 1. las formas en que las mujeres están representadas en las narraciones estudiadas y 2. cuánto más (in)felices se vuelven los personajes femeninos cuando no sienten el peso de las expectativas de género.

Palabras clave:
representaciones; género; hibridación; Chimamanda Adichie; Mia Couto

Chimamanda Adichie, Mia Couto e o combate às expectativas de género

Os homens e as mulheres são diferentes. (...) Portanto, de uma forma literal, os homens governam o mundo. (...) Nós evoluímos. Mas as nossas ideias de género não evoluíram muito. (…) Ensinamos as mulheres a retraírem-se, a tornarem-se mais pequenas. Dizemos às mulheres: ‘Podem ter ambição, mas não demasiada. Devem procurar ser bem-sucedidas, mas não demasiado bem-sucedidas, caso contrário, ameaçarão o homem. Se são o ganha-pão numa relação com um homem, têm de fingir que não o são, especialmente em público, caso contrário, emasculá-lo-ão'.

Mas e se questionarmos a própria premissa? Porque deveria o sucesso de uma mulher ser uma ameaça para um homem? (…) O problema com o género é que prescreve como devemos ser, em vez de reconhecer como somos. Imaginem como seríamos mais felizes, como seríamos mais livres para sermos o nosso verdadeiro eu individual, se não tivéssemos o peso das expectativas de género1 1 Do original: Men and women are different. (…) So in a literal way, men rule the world. (…) We have evolved. But our ideas of gender have not evolved very much. (…) We teach girls to shrink themselves, to make themselves smaller. We say to girls, ‘You can have ambition, but not too much. You should aim to be successful, but not too successful, otherwise, you will threaten the man. If you are the breadwinner in a relationship with a man, you have to pretend that you are not, especially in public, otherwise you will emasculate him.’ But what if we question the premise itself? Why should a woman’s success be a threat to a man? (…) The problem with gender is that it prescribes how we should be rather than recognizing how we are. Imagine how happier we would be, how much freer to be our true individual selves, if we didn't have the weight of gender expectations (Chimamanda ADICHIE, 2014, p. 10-11; 16; 19). (tradução da autora).2 2 Todas as traduções foram realizadas pela autora do artigo.

(Chimamanda ADICHIE, 2014ADICHIE, Chimamanda. We Should All Be Feminists. New York: Vintage Books, 2014., p. 10-11; 16, 19)

A epígrafe que abre o presente artigo, extraída do ensaio We Should All Be Feminists, é apenas uma ínfima parte de um manifesto que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie publicou em 2014ADICHIE, Chimamanda. We Should All Be Feminists. New York: Vintage Books, 2014. e que havia sido proferido em 2012, na conferência TEDxEuston, em Londres. Em virtude da mensagem poderosa e inspiradora, as palavras da escritora foram escolhidas pela cantora Beyoncé para integrarem a sua canção “***Flawless”, no ano entre a TED Talk e aquele em que se procedeu ao lançamento da obra supramencionada. De forma interpolada, ouvimos a voz de Beyoncé e excertos do discurso de Chimamanda, nos quais esta última apresenta apaixonadamente a sua visão sobre o que significa verdadeiramente ser-se feminista e que não é, afinal, diferente da definição que consta do dicionário que a própria consultou em tempos e onde se lia: “Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, política e económica dos sexos3 3 Do original: Feminist: a person who believes in the social, political and economic equality of the sexes (Ibidem, p. 25-26). (Ibidem, p. 25-26).

O feminismo é um movimento social global que reivindica a igualdade de direitos e de deveres entre homens e mulheres, independentemente do reconhecimento das diferenças inerentes a cada sexo. A feminista Chimamanda Adichie, em We Should All Be Feminists, constata, como vimos acima, que homens e mulheres são diferentes, em termos biológicos: “Temos diferentes hormonas e diferentes órgãos sexuais e diferentes características biológicas - as mulheres podem ter bebés, os homens não. Os homens têm mais testosterona e são, em geral, fisicamente mais fortes do que as mulheres”4 4 Do original: We have different hormones and different sexual organs and different biological abilities - women can have babies, men cannot. Men have more testosterone and are, in general, physically stronger than women (Ibidem, p. 10-11). (Ibidem, p. 10-11), o que, no passado, poderia ser considerado um atributo valorizado, na medida em que a sobrevivência dependia do uso da força física, em atividades como a caça e o cultivo da terra, por exemplo, enquanto que à mulher cabia a guarda da prole e o papel de filha e esposa, necessariamente subserviente, invisível e dependente economicamente do pai, primeiro, e depois do marido. Relegada para a esfera doméstica, a mulher era considerada inferior física, intelectual e emocionalmente, enquanto o homem era visto como o provedor das necessidades materiais do lar.

Ora, nos tempos que correm, estas ideias já não se justificam, porque, como Adichie argumenta,

a pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a pessoa mais inteligente, mais conhecedora, mais criativa, mais inovadora. E não há hormonas para esses atributos. Um homem é tão propenso quanto uma mulher a ser inteligente, inovador, criativo5 5 Do original: [t]he person more qualified to lead is not the physically stronger person. It is the more intelligent, the more knowledgeable, the more creative, more innovative. And there are no hormones for those attributes. A man is as likely as a woman to be intelligent, innovative, creative (Ibidem, p. 11). (Ibidem, p. 11).

Como nos lembra bell hooks (2000hooks, bell. Feminism is for Everybody: Passionate Politics. Cambridge, MA: South End Press, 2000.), “As feministas são formadas, não nascem feministas. (...) À semelhança de todas as posições políticas, uma pessoa adere às políticas feministas por escolha e ação”6 6 Do original: Feminists are made, not born. (…) Like all political positions one becomes a believer in feminist politics through choice and action (p. 7). (p. 7). Daí que seja tão importante que a mulher reconheça o seu poder e aja em conformidade, reclamando uma mudança em prol da sua valorização pessoal e da sua participação na sociedade, independentemente do seu território de origem, da sua condição social ou situação económica, da sua religião, do seu nível de instrução ou da sua orientação sexual. É por demais sabido que a mulher negra enfrenta uma dupla dificuldade, na medida em que é invisível não só por questões de género, mas também pela cor da pele. A este propósito, sustentemo-nos uma vez mais em bell hooks (2000), que nos lembra que

Todas as mulheres brancas desta nação sabem que o seu estatuto é diferente do das mulheres negras/mulheres não brancas. Elas sabem-no desde o tempo em que eram meninas assistindo à televisão e vendo apenas as suas imagens e folheando revistas e vendo apenas as suas imagens. Elas sabem que a única razão pela qual as mulheres não brancas estão ausentes/invisíveis é porque não são brancas. Todas as mulheres brancas desta nação sabem que a brancura é uma categoria privilegiada. O motivo de as mulheres brancas poderem optar por reprimir ou negar este conhecimento não significa que sejam ignorantes: significa que estão em negação7 7 Do original: All white women in this nation know that their status is different from that of black women/women of color. They know this from the time they are little girls watching television and seeing only their images, and looking at magazines and seeing only their images. They know that the only reason nonwhites are absent/invisible is because they are not white. All white women in this nation know that whiteness is a privileged category. The fact that white females may choose to repress or deny this knowledge does not mean they are ignorant: it means that they are in denial (p. 55). (p. 55).

De facto, a mulher negra é duplamente refém de estereótipos que advêm de representações culturais associadas ao universo feminino, como temos vindo a assinalar, adensando-se em virtude de posições a favor de uma supremacia branca, geradora de alienação. A mulher negra vive no limbo do não-ser; ela é herdeira de uma invisibilidade que é transmitida de geração em geração, tornando-se mais invisível ainda do que o protagonista da célebre obra Invisible Man (1952), de Ralph Ellison (1972ELLISON, Ralph. Invisible Man. New York: Vintage Books, 1972.), que, no prólogo, se ressentia pela sua subalternidade:

Sou um homem invisível. (...) Sou invisível, compreenda-se, simplesmente porque as pessoas se recusam a ver-me. (...) É como se eu estivesse cercado de espelhos de vidro duro que deformam a imagem. Quando se aproximam de mim, veem apenas o que me circunda, eles próprios ou figuras da sua imaginação - na verdade, tudo e qualquer coisa, menos eu8 8 Do original: I am an invisible man. (…) I am invisible, understand, simply because people refuse to see me. (…) It is as though I have been surrounded by mirrors of hard, distorting glass. When they approach me they see only my surroundings, themselves, or figments of their imagination - indeed, everything and anything except me (p. 3). (p. 3).

Adichie queixa-se desta mesma invisibilidade, quando argumenta que, de cada vez que vai a um restaurante nigeriano com um acompanhante masculino, o empregado de mesa cumprimenta o homem e simplesmente a ignora a ela, por ser uma figura feminina. Nas suas palavras, “Cada vez que eles me ignoram, sinto-me invisível. Sinto-me irritada. Quero dizer-lhes que sou tão humana quanto o homem, tão digna de reconhecimento”9 9 Do original: Each time they ignore me, I feel invisible. I feel upset. I want to tell them that I am as human as the man, just as worthy of acknowledgement (ADICHIE, 2014, p. 12). (ADICHIE, 2014ADICHIE, Chimamanda. We Should All Be Feminists. New York: Vintage Books, 2014., p. 12). Contudo, o papel reservado ao homem enquanto elemento incontornável de poder está enraizado de tal forma que parece votar Adichie ao fracasso, nas suas tentativas de reconhecimento ou de apenas alguma visibilidade. Prova disso é o episódio que a própria escritora relata, referindo-se a uma noite em Lagos, Nigéria, quando saiu com o seu amigo Louis e ofereceu umas moedas ao arrumador de carros, que prontamente agradeceu o dinheiro à figura masculina, para espanto deste último, como observamos em: “‘Porque é que ele me está agradecendo? Não fui eu quem lhe deu o dinheiro’. Percebi, então, pela expressão de Louis, que despertou para o que lhe acontecera. O homem acreditava que qualquer dinheiro que eu pudesse ter certamente provinha de Louis. Porque Louis é homem”10 10 Do original: Why is he thanking me? I didn’t give him the money.’ Then I saw realization dawn on Louis’s face. The man believed that whatever money I had ultimately came from Louis. Because Louis is a man (Ibidem, p. 10). (Ibidem, p. 10).

Se estes exemplos, extraídos da vida real, podem não chegar ao conhecimento mais amplo, apesar de inscritos no manifesto We Should All Be Feminists e guardados em vídeo como parte da conferência TEDxEuston (2012), Adichie dá a conhecer ao mundo histórias e personagens que passam o testemunho da diversidade e da autenticidade da cultura nigeriana.

Adichie já se havia feito notar a este propósito, aquando da sua TED Talk intitulada “The Danger of a Single Story” (ADICHIE, 2009ADICHIE, Chimamanda. “The danger of a single story”. TEDGlobal, 2009a. Disponível em Disponível em https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=en . Acesso em 13/01/2020.
https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngo...
a), primeiramente publicada sob o título “African ‘Authenticity’ and the Biafran Experience”, na qual desconstrói estigmas negativos que são comumente associados ao continente africano. Por exemplo, referindo-se aos personagens de Chinua Achebe, em Things Fall Apart, percebe-os como simultaneamente parte do seu mundo e exóticos, na medida em que habitam uma cultura que lhe é familiar, mas o seu background é muito diverso, já que ela havia crescido com “automóveis, eletricidade e telefones. Eles [os personagens de Achebe] não comiam arroz frito. Viviam uma vida que o [seu] bisavô poderia ter vivido...”11 11 Do original: cars and electricity and telephones. They [as personagens de Achebe] did not eat fried rice. They lived a life [her] great-grandfather might have lived… (ADICHIE, 2008, p. 42). (ADICHIE, 2008ADICHIE, Chimamanda. “African ‘Authenticity’ and the Biafran Experience”. Transition, n. 99, Indiana University Press (on behalf of the Hutchins Center for African and African American Research at Harvard University), p. 42-53, 2008., p. 42). Desta forma, nas suas narrativas, Adichie compromete-se a representar uma sociedade nigeriana marcada pela diversidade, uma sociedade em que as raparigas viajam, vestem roupas americanas, falam bem inglês e gostam de Mariah Carey, para espanto de muitos (Ibidem, p. 43), mas também uma sociedade marcada pela guerra civil Nigéria-Biafra que dizimou populações e as privou de bens essenciais (Ibidem, p. 50).

Nunca se afastando das suas raízes, Adichie (2009ADICHIE, Chimamanda. The Thing Around your Neck. New York: Alfred A. Knopf, 2009b.b) apresenta-nos um ângulo da história pouco conhecido, que põe em destaque a mulher, nas várias narrativas que integram a coletânea The Thing Around Your Neck, traduzida para português europeu pela D. Quixote, como A coisa à volta do teu pescoço (2017, 2 ed.), versão selecionada para análise. Particularmente, em “A Historiadora Obstinada”, Adichie retoma, ainda que de forma muito subtil, a obra de Achebe como hipotexto, e reescreve a história trazendo para o centro personagens femininas que outrora ocupavam as margens, complementando, mais do que contestando, esta obra canónica daquele que é considerado o pai do romance africano, como afirma Susan Van Zanten (2015VAN ZANTEN, Susan. “‘The Headstrong Historian’: Writing with Things Fall Apart”. Research in African Literatures, v. 46, n. 2, p. 85-103, 2015.): “O romance de Achebe foi enriquecido, ampliado, completado”12 12 Do original: Achebe’s story has been deepened, expanded, completed (p. 91). (p. 91). Neste sentido, as palavras de Adichie ganham forma e substância nas duas curtas narrativas que nos propomos analisar, a já referida “A Historiadora Obstinada” e, ainda, “Cela Um”, porque estas são a prova de que a escritora em análise não aceita “a ideia de autenticidade monolítica. Insistir que há uma coisa que é autenticamente africana é diminuir a experiência africana”13 13 Do original: the idea of monolithic authenticity. To insist that there is one thing that is authentically African is to diminish the African experience (ADICHIE, 2008, p. 48). (ADICHIE, 2008ADICHIE, Chimamanda. “African ‘Authenticity’ and the Biafran Experience”. Transition, n. 99, Indiana University Press (on behalf of the Hutchins Center for African and African American Research at Harvard University), p. 42-53, 2008., p. 48).

Efetivamente, se em “Cela Um” nos deparamos com a voz de uma narradora homodiegética cujo nome permanece desconhecido ao longo de todo o conto, como que indicando a sua invisibilidade social, e que se centra na história do irmão, Nnamabia, já em “A Historiadora Obstinada”, o narrador heterodiegético acompanha de perto a vida de uma mulher nigeriana, Nwamgba, desde a sua juventude até a sua velhice. A seleção de apenas dois contos de Adichie para análise prende-se com a procura de equidade e de equilíbrio do estudo, atendendo ao facto de se tratar de textos bem mais extensos e complexos do que os cinco contos de Mia Couto, que analisaremos posteriormente.

No primeiro conto da coletânea de Adichie, o olhar feminino gira em torno da personagem masculina, de tal forma que conhecemos bem a aparência de Nnamabia e todos os seus passos na cidade universitária de Nsukka, enquanto a narradora anónima se distancia como mera observadora, exceto num momento de verdadeira intensidade emocional, no qual se atinge o clímax de toda a narrativa, como faremos notar adiante. Contrariamente a todas as expectativas, a beleza não reside na personagem feminina, mas antes no irmão, descrito como “bonito” (ADICHIE, 2017ADICHIE, Chimamanda. A coisa à volta do teu pescoço. 2 ed. Traduzido por A. Saldanha. Alfragide: D. Quixote, 2017., p. 17), “bem-parecido” (Ibidem, p. 26), “experiente e sofisticado” (Ibidem, p. 22); numa palavra, “encantador” (Ibidem, p. 27). A narradora está ciente do seu papel secundário, não só por ser mulher, mas sobretudo pela sua cor de pele, mais escura do que a do irmão e, por conseguinte, menos apreciada. A mãe regozija-se por o seu filho predileto partilhar consigo esse traço físico, essa condição que os eleva e os aproxima da ideia de supremacia racial branca e a narradora parece resignada, ela própria fascinada, com o encanto de Nnamabia:

Nnamabia era a cara chapada da minha mãe, com aquela pele clara, cor de mel, os olhos grandes e uma boca generosa e perfeitamente desenhada. Quando a minha mãe nos levava ao mercado, os vendedores diziam em voz alta:

- Ei! Madame, para que desperdiçou a sua pele clara num rapaz e deixou a menina tão escura? O que é que anda um rapaz a fazer com tanta beleza?

E a minha mãe ria, como se se responsabilizasse, marota e contente, pelos encantos de Nnamabia (Ibidem, p. 12).

Em virtude desse encanto, todas as desventuras e tropelias de Nnamabia eram relevadas e facilmente esquecidas, até mesmo quando este, no início do conto, aproveita a ausência dos pais, professores universitários, para, num domingo, furtar as joias de família, simulando um assalto. Embora conheçamos pouco da narradora, percebemos que, nesta instância, mal se contém quando constata que a mãe sentiria a sua dor atenuada caso Nnamabia tivesse conseguido vender as joias a um bom preço e desabafa: “Apeteceu-me esbofeteá-la” (Ibidem, p. 10). No entanto, a narradora não consegue ser severa com o irmão e justifica o castigo leve que o pai aplica - redigir um relatório acerca do ocorrido - porque o rapaz tinha dezassete anos e “[e]stava naquela fase entre o secundário e a universidade em que já era demasiado crescido para apanhar uns açoites. Que mais podia o [s]eu pai fazer?” (Ibidem, p. 11). As figuras masculinas, pai e irmão, jamais são censuradas. Ela, por sua vez, é silenciada, invisível, ignorada por todos, até pelo vizinho, Osita, também ele bonito, bem arranjado e gracioso, apesar de os delitos que praticava não condizerem com essa elegância, uma vez que semanas antes havia roubado a televisão da família da narradora. Ainda assim, esta comenta em tom de desânimo: “Ele nunca deu por mim” (Ibidem, p. 12), o que vem ao encontro das palavras sábias de Linda Alcoff (1988ALCOFF, Linda. “Cultural Feminism Versus Post-Structuralism: The Identity Crisis in Feminist Theory”. Journal of Women in Culture and Society, v. 13, n. 3, p. 405-436, 1988., p. 406), que posicionam a mulher como objeto previsível ao dispor de um sujeito masculino com livre-arbítrio que deseja e comanda, a seu bel-prazer, a figura feminina.

A única altura em que a narradora se assume como presente e dominante acontece quando Nnamabia se encontra na prisão há já duas semanas, respondendo por uma acusação de associação criminosa a um culto universitário, e ela, voz da razão, determina que não o iriam visitar por causa da distância - 3 horas de caminho - e do preço avultado do combustível. As suas palavras, no entanto, não foram suficientes e apenas as ações geraram resultados:

… quando cheguei lá fora não sabia o que fazer, por isso peguei numa pedra que estava perto do arbusto de ixora e atirei-a ao para-brisas do Volvo. O para-brisas estalou. Ouvi o estalido e vi as linhas minúsculas a espalharem-se como raios no vidro antes de me voltar e ir a correr para o andar de cima e me fechar à chave no quarto para me proteger da fúria da minha mãe. Ouvi-a berrar. Ouvi a voz do meu pai. Por fim, fez-se silêncio e não ouvi o motor do carro. Nesse dia, ninguém foi visitar Nnamabia. Surpreendeu-me, esta pequena vitória (ADICHIE, 2008ADICHIE, Chimamanda. “African ‘Authenticity’ and the Biafran Experience”. Transition, n. 99, Indiana University Press (on behalf of the Hutchins Center for African and African American Research at Harvard University), p. 42-53, 2008., p. 20).

Observamos que a narradora, após a sua insurreição, se tranca no quarto, receosa pela ousadia de romper com a ordem estabelecida, mas simultaneamente orgulhosa pela sua capacidade para, por uma vez, se fazer notar, afirmando-se. Afinal, à questão de Gayatri Spivak (1988SPIVAK, Gayatri. “Can the subaltern speak?”. In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Lawrence (Eds.). Marxism and the Interpretation of Culture. London: Macmillan, 1988.) que dá título ao seu ensaio clássico “Can the subaltern speak?”, a resposta é afirmativa, embora, neste caso, a figura feminina permaneça anónima e depressa retorne ao seu espaço periférico, remetendo-se novamente ao silêncio e à quase invisibilidade. De facto, a sensação de catarse da narradora tem uma duração muito reduzida e, nas páginas subsequentes do conto, tudo retorna ao equilíbrio natural, isto é, à tentativa de desculpabilização e libertação de Nnamabia do cárcere.

Assistimos, pois, ao crescimento do protagonista, o qual se compadece perante o sofrimento de um pobre homem idoso, que é ridicularizado e torturado apenas porque a polícia não encontra o seu filho, procurado por roubo armado. A desumanização dos prisioneiros, em geral, e de Nnamabia, em particular, bem como a corrupção instalada no sistema prisional são descritas descrita passivamente pela narradora, que, impotente, se limita a partilhar: “... e senti uma ternura por ele que não conseguiria explicar se me pedissem para o fazer” (Ibidem, p. 22) ou “Foi depois de ele sair que eu me senti enregelada de medo, que quis correr atrás dele e, como a minha mãe, puxar-lhe pela camisa até ele nos trazer Nnamabia” (Ibidem, p. 24). De facto, contrariamente a ela, a mãe não se deixa intimidar, nem paralisa com medo; pelo contrário, grita e age descontroladamente, por oposição ao marido que responde “... numa voz tão calma...” (Ibidem), mas nem por isso menos grave e firme.

No último parágrafo, o do reencontro às portas da temida Cela Um, reconhecemos, agora, um protagonista maduro, mudado pelas vivências experienciadas, enquanto a narradora se socorre do poder da imaginação para combater a dura realidade: “... imaginei-o a erguer a voz, a chamar ao polícia idiota, estúpido, cobarde e fraco, sádico, filho da puta, e imaginei o choque dos polícias (…). E imaginei o próprio velho a assistir à cena com orgulho e surpresa e a recusar-se calmamente a despir-se” (Ibidem, p. 26, itálico nosso). A imaginação da narradora é o seu espaço-refúgio que lhe dá a liberdade de recriar a realidade, mas, curiosamente, mesmo nesse mundo, ela permanece apenas a sonhadora e transpõe para o irmão tudo aquilo que ela não é e gostaria de ser.

As mulheres do conto “A Historiadora Obstinada” são mais aguerridas e perseverantes, mostrando que podem ser autossuficientes e contribuir positivamente para a mudança de mentalidades conducente à efetivação da igualdade de género. Esta curta narrativa não se reporta à contemporaneidade, mas a fins do século XIX, inícios do século XX, o que atesta a natureza complexa e multidimensional da obra de Adichie. Apesar de retratar um período histórico mais longínquo, marcado pela expansão e influência missionária, o conto apresenta-nos uma mulher que, desde a juventude, exprime desejos e ansiedades, contesta, reclama e não se deixa vencer por circunstâncias adversas, como o facto de os antepassados do seu amado, Obierika, terem um historial de gravidezes falhadas e de mortes prematuras. Nwamgba está inclusivamente determinada a fazer frente a quem a tentasse impedir de ser feliz: “Nwamgba ignorou as palavras da mãe. Foi ao obi do seu pai e disse-lhe que fugiria da casa de qualquer outro homem se não a autorizassem a casar com Obierika” (Ibidem, p. 206). A sua irrevogável determinação e coragem são substanciadas na superioridade física desta personagem, que vence o irmão, situação embaraçosa para a figura masculina e, por isso mesmo, abafada: “O seu pai achava-a cansativa, esta filha teimosa e de língua afiada que uma vez tinha derrubado o irmão numa luta. (Depois, o pai tinha avisado toda a gente para não deixar que a notícia de que a rapariga tinha vencido um rapaz saísse do povoado.)” (Ibidem). Tal como na narrativa analisada anteriormente, o patriarca é a voz sensata da razão e sabe que não vale a pena dissuadi-la dos seus intentos. Pragmaticamente, dá a sua bênção à relação e assistimos, então, a uma sucessão de sinais de uma sociedade machista, quer por parte dos dois primos direitos de Obierika que Nwamgba, embora detestasse, tolerava por amor ao marido, quer por parte da própria comunidade feminina, chegando a afetar o pensamento desta mulher tão segura de si e fascinante:

Foram eles [os primos] que insistiram, depois do terceiro aborto de Nwamgba, que ele casasse com outra mulher. Obierika disse que ia pensar no assunto, mas quando ele e Nwamgba ficaram sozinhos na cubata dela à noite, ele disse-lhe que (…) não casaria com outra mulher até serem ambos velhos (…). Ela achou isto estranho da parte dele, um homem próspero só com uma mulher, e preocupava-se mais do que ele com o facto de não terem filhos, com as cantigas que as pessoas cantavam, palavras melodiosas e maldosas. (…) Uma vez (…) um grupo de moças viu Nwamgba e começou a cantar (…). Ela parou e perguntou se elas não se importavam de cantar um pouco mais alto (…). Elas pararam de cantar. Ela gostou de as ver com medo (…), mas foi então que decidiu arranjar ela própria uma esposa para Obierika (Ibidem, p. 207).

Nwamgba sente a obrigação de dar filhos a Obierika e, apesar de acreditar que o problema de infertilidade estaria associado ao marido, assume a responsabilidade e as culpas e pede auxílio à sua amiga Ayaju para lhe encontrar uma segunda esposa. A amiga, ela própria conformada com um casamento infeliz, sugere uma moça nova da família Okonkwo, mas não deixa de propor que Nwamgba engravide de um amante para continuar a linhagem de Obierika, o que deixa a protagonista ofendida, porque isso implicaria que Obierika era impotente.

A maternidade era de extrema importância para Nwamgba, mas não a todo o custo. Nwamgba estava plenamente ciente de que o papel da mulher vai muito para além das suas funções reprodutivas e de cuidadora do lar, na medida em que a figura feminina assume os valores normativos e as ideologias humanistas que, nas palavras de Filomina Steady (2011STEADY, Filomina. Women and Leadership in West Africa: Mothering the Nation and Humanizing the State. New York: Palgrave Macmillan, 2011., p. 22), incluem noções de preservação do passado e da promoção do bem-estar da sociedade, em geral, garantindo a igualdade, paz e justiça para as gerações presentes e vindouras. Mas, como a mesma académica nos lembra, maternidade e liderança não se excluem mutuamente; pelo contrário, como a autora assevera:

Numa perspetiva afrocêntrica, a maternidade empodera e não subjuga as mulheres. (...) O princípio feminino evoca símbolos, valores e ideologias maternas imbuídos de poder que são depois expressos em instituições e defendidos através dos costumes. Eles representam a base e a sustentabilidade do grupo, que pode ser visto como o verdadeiro poder. A maternidade da nação tende a transmitir a ideia de poder restaurativo e difuso em vez do poder destrutivo, hierárquico e concentrado, frequentemente expresso por ideologias patriarcais14 14 Do original: From an Afro-centric perspective, motherhood empowers and does not subordinate women. (…) The female principle evokes maternal symbols, values, and ideologies imbued with power that are then expressed in institutions and upheld through customs. They represent the mainstay and sustainability of the group, which can be viewed as the ultimate power. Mothering the nation tends to convey the idea of restorative and diffused power rather than the destructive, hierarchical and concentrated power often expressed by patriarchal ideologies (STEADY, 2011, p. 218). (STEADY, 2011STEADY, Filomina. Women and Leadership in West Africa: Mothering the Nation and Humanizing the State. New York: Palgrave Macmillan, 2011., p. 218).

Na mesma linha de pensamento, a epistemóloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2016OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. What Gender is Motherhood? Changing Yorúbá Ideals of Power, Procreation, and Identity in the Age of Modernity. Hampshire, UK: Palgrave Macmillan, 2016.) salienta que a maternidade tem, para os povos africanos, uma conotação positiva a todos os níveis, nomeadamente em termos políticos, já que esse papel se articula com a assunção de responsabilidade e de liderança (OYĚWÙMÍ, 2016OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. What Gender is Motherhood? Changing Yorúbá Ideals of Power, Procreation, and Identity in the Age of Modernity. Hampshire, UK: Palgrave Macmillan, 2016., p. 218). Para esta académica, é necessário um olhar decolonial sobre conceitos como “género”, que resulta de uma construção cultural ocidental que não existia na sociedade Yorùbá antes do domínio colonial britânico no seu país: “...não havia mulheres - definidas no sentido estrito de género”15 15 Do original: there were no women - defined in strictly gendered terms (OYĚWÙMÍ, 1997, p. xiii). (OYĚWÙMÍ, 1997OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997., p. xiii), já que a sociedade se organizava em função da senioridade. Por esta razão, discussões em torno do feminismo são vistas por alguns com desconfiança, a ponto de o filósofo e estudioso literário nigeriano Chielozona Eze (2015EZE, Chielozona. “Feminist Empathy: Unsetting African Cultural Norms in The Secret Lives of Baba Segi’s Wives”. African Studies, v. 74, n. 3, p. 310-326, 2015.) avançar que “para muitos africanos, o feminismo é uma palavra maldita, e em países como a Nigéria (...) uma negação absoluta da africanidade”16 16 Do original: [f]or many Africans, feminism is a curse word, and in countries such as Nigeria (...) an outright negation of Africanness (p. 312). (p. 312).

Reconhecendo que o movimento feminista africano existe, é multifacetado e se encontra em permanente negociação e mutação, resistindo aos elementos do feminismo ocidental, Obioma Nnaemeka (2004NNAEMEKA, Obioma. “Nego-Feminism: Theorizing, Practicing, and Pruning Africa’s Way”. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 29, n. 2, p. 357-385, 2004.) cunhou o termo nego-feminismo, explanando:

…Chamo ao nego-feminismo - a marca do feminismo que vejo desabrochando em África. Mas o que é o nego-feminismo? Primeiro, o nego-feminismo é o feminismo da negociação; segundo, nego-feminismo significa feminismo “sem ego”. Na base dos valores partilhados em muitas culturas africanas estão os princípios da negociação, dar e receber, compromisso e equilíbrio. [...] o[s] feminismo[s] africano[s] (ou feminismo como o tenho visto praticado em África) desafia[m] por meio de negociações e compromissos. Sabe[m] quando, onde e como detonar minas terrestres patriarcais; sabe[m] também quando, onde e como contornar as minas terrestres patriarcais. Por outras palavras, sabe[m] quando, onde e como negociar com ou negociar em torno do patriarcado em diferentes contextos. Para as mulheres africanas, o feminismo é um ato que evoca o dinamismo e as mudanças de um processo em oposição à estabilidade e à reificação de uma construção, de um modelo17 17 Do original: I call nego-feminism - the brand of feminism that I see unfolding in Africa. But what is nego-feminism? First, nego-feminism is the feminism of negotiation; second, nego-feminism stands for “no ego” feminism. In the foundation of shared values in many African cultures are the principles of negotiation, give and take, compromise and balance. (…) African feminism[s] (or feminism as I have seen it practiced in Africa) challenges through negotiations and compromise. It knows when, where, and how to detonate patriarchal land mines; it also knows when, where, and how to go around patriarchal land mines. In other words, it knows when, where, and how to negotiate with or negotiate around patriarchy in different contexts. For African women, feminism is an act that evokes the dynamism and shifts of a process as opposed to the stability and reification of a construct, a framework (p. 377-378). (p. 377-378).

Sem preconceitos, com a atitude firme e resoluta que a caracterizava, desejosa ter filhos, Nwamgba inicia uma série de purificações rituais e sacrifícios, por sugestão do marido. Como consequência, o casal foi abençoado com Anikwenwa, mas a felicidade não durou muito, porque Obierika morreu, envenenado pelos primos, ou pelo menos assim o garantia Nwamgba. Como o narrador heterodiegético comenta, a protagonista sentia-se ameaçada pela ganância desses seus familiares, que pilharam muitos dos seus bens, ao ponto de ela ter que se queixar ao Conselho das Mulheres. Contudo, e apesar das dificuldades, não se deixava atemorizar e “[s]onhava matá-los. Sem dúvida que conseguiria matá-los - àqueles fracotes que tinham passado a vida a viver à custa de Obierika em vez de trabalharem” (Ibidem, p. 210).

Determinada a derrotar os primos do seu falecido marido, e depois de uma decisão informada, Nwamgba convenceu-se de que a chave para atingir os seus objetivos seria aproximar Anikwenwa do homem branco, porque este tinha armas poderosas, tribunais e uma língua desconhecida para os locais, que apenas falavam igbo. Optou por uma escola católica, em detrimento da anglicana, e permitiu que o filho fosse batizado com um nome inglês, Michael.

A assertividade e a capacidade de resistência da protagonista, características que não se assumem como exclusivas de Nwamgba, não passaram despercebidas ao padre Shanahan: “Havia algo perturbantemente assertivo nela, algo que vira em muitas mulheres aqui; havia muito potencial a explorar, se a sua selvajaria pudesse ser amansada. Esta Nwamgba daria uma missionária maravilhosa entre as mulheres” (Ibidem, p. 215).

Vemos, pois, mulheres que simbolizam a resistência e a resiliência; mulheres que se recusam a ser vulneráveis e que são o exemplo da força de uma comunidade que procura vencer os opressores, lutando em defesa dos seus direitos, nem que para isso tivessem que se sujeitar a si e àqueles que amam a alguns sacrifícios. A protagonista, representante dessa força interior, sabe que precisa de se aliar aos missionários para que o seu filho tenha as ferramentas necessárias para fazer frente aos primos de seu pai, mas este processo de conversão e de aculturação implica “disciplina a sério” e “uns vergões assanhados nas costas” (Ibidem, p. 216).

Nwamgba tem que encontrar um equilíbrio entre a necessidade de atingir os seus objetivos e a aceitação do sofrimento do seu filho e, por conseguinte, precisa de se afirmar: “Apertou o seu pano à cintura e foi à escola. Disse ao professor que arrancava os olhos de toda a gente na missão se alguma vez voltassem a fazer-lhe aquilo” (Ibidem). Apesar da renitência de Anikwenwa em frequentar a missão católica, Nwamgba não abre mão das vantagens que a educação do filho, naqueles moldes, lhes poderia proporcionar, mas também não o abandona e “... embora as pessoas da missão lhe dissessem para não ir lá com tanta frequência, ela continuou a ir insistentemente todos os fins de semana para levar Anikwenwa para casa” (Ibidem) e a tentar, embora sem grande sucesso, que o filho respeitasse e preservasse os costumes e as tradições do seu povo.

O processo de assimilação ocorreu como uma consequência natural da escolarização e, nas palavras do narrador, “Nwamgba sabia que o seu filho habitava agora um espaço mental que lhe era estranho” (Ibidem, p. 217). Havia-se implantado no coração e nos sentimentos de Anikwenwa um desejo de pertença à cultura do Outro e este agora recusava as suas raízes. Contrariamente a uma identidade cultural firmada no nascimento, assente em genes e relações de parentesco, Hall (1990HALL, Stuart. “Cultural Identity and Diaspora”. In: RUTHERFORD, Jonathan (Ed.). Identity, Community, Culture, Difference. London: Lawrence and Wishart, 1990. p. 222-237.) defende que “A identidade cultural (...) é uma questão de adaptação, assim como de pertença. Diz respeito tanto ao futuro como ao passado. Não é algo que já existe, transcendendo o lugar, o tempo, a história e a cultura”18 18 Do original: Cultural identity (...) is a matter of ‘becoming’ as well as of ‘being’. It belongs to the future as much as to the past. It is not something which already exists, transcending place, time, history and culture (Stuart HALL, 1990, p. 225). (p. 225). Em virtude da educação recebida, Anikwenwa passou a identificar-se com a cultura dos missionários católicos e se, inicialmente, terá experienciado algum hibridismo e vivido num entre-lugar, isto é, num Terceiro Espaço (Homi BHABHA, 1994BHABHA, Homi. The Location of Culture. London: Routledge, 1994.), foi sem demora que abraçou e assimilou os valores e estilo de vida dos seus tutores.

Aquando do casamento do rapaz com uma jovem considerada adequada pelos seus pares católicos, Nwamgba sentiu-se impotente, remetendo-se ao “silêncio e di[zendo] a si própria que não tardaria a morrer e a ir ter com Obierika e a ficar livre de um mundo que cada vez menos fazia sentido” (Ibidem, p. 218), muito embora acalentasse a esperança de vir a ter um herdeiro que enobrecesse o nome da família e desse continuidade à sua história. Com a idade a avançar e com a relutância do filho em aceitar a sua identidade, abraçando a do homem branco, a sua voz tornou-se enfraquecida e, em várias instâncias, encontramos uma matriarca “... em silêncio (...), sem saber ao certo como lidar com uma mulher [ a nora,] que chorava por coisas que não mereciam lágrimas” (Ibidem, p. 219).

Mgbeke era o oposto de Nwamgba, frágil, e alvo de discriminação e de violência no seio do grupo, algo que era habitual, como Connan Ryan (2014RYAN, Connor. “Defining Diaspora in the Words of Women Writers: a Feminist Reading of Chimamanda Adichie’s The Thing Around your Neck and Dionne Brand’s At the Full and Change of the Moon”. Callaloo, v. 37, n. 5, p. 1230-1244, Fall 2014.) descreve:

À medida que embarcam nas suas várias migrações, estas personagens femininas tornam-se vulneráveis à exploração por irmãos, tios e maridos, bem como por irmãs, tias, mães e avós. Confrontam-se frequentemente com a dupla opressão do género e da raça, e podem, por vezes, ultrapassar estes obstáculos através de negociações, pequenos atos de resistência e subversões subtis. Nos textos em questão, a família é simultaneamente o local destas negociações e a fonte de ansiedade sobre a tenuidade ou provisoriedade dos laços familiares estendidos através da diáspora19 19 Do original: As they embark on their various migrations, these female characters are made vulnerable to exploitation by brothers, uncles, and husbands, as well as by sisters, aunts, mothers, and grandmothers. They frequently confront the double oppression of gender and race, and can, at times, surmount these obstacles through negotiations, small acts of resistance, and subtle subversions. In the texts in question, the family is both the site of these negotiations and the source of anxiety over the tenuousness or provisionality of family bonds stretched across the diaspora (p. 1242). (p. 1242).

Mgbeke representa esta mulher vulnerável, agredida pelas mulheres do clã, por assumir os seus valores cristãos, mas também uma mulher que necessitou do auxílio do oráculo por sofrer o mesmo infortúnio de família e abortar sucessivamente até finalmente carregar no seu ventre dois filhos. De entre os netos, a mais nova, Afamefuna, ou Grace, como havia sido batizada, “era o espírito de Obierika” (ADICHIE, 2017ADICHIE, Chimamanda. A coisa à volta do teu pescoço. 2 ed. Traduzido por A. Saldanha. Alfragide: D. Quixote, 2017., p. 220), segundo Nwamgba, e, por isso, esta “... receava que, no colégio interno, os novos costumes destruíssem o espírito combativo da sua neta e o substituíssem por uma rigidez sem curiosidade, como a de Anikwenwa, ou por uma impotência mole, como a de Mgbeke” (Ibidem, p. 220-221). Contudo, aquele “espírito inquieto” (Ibidem, p. 221), questionador, ávido de conhecimento e insubmisso, viria a seguir as pisadas da avó na irreverência e a dar voz às histórias emudecidas dos seus antepassados, chegando a...

...receber prémios de faculdades, ao falar com pessoas com ar solene em congressos sobre os povos ijaw e ibibio e igbo e efik do Sul da Nigéria, ao escrever relatórios para organizações internacionais sobre coisas do senso comum pelos quais (...) recebia generosos pagamentos [e] imaginava a sua avó a olhar para aquilo tudo e a rir muito divertida (Ibidem, p. 223).

À imagem e semelhança de conhecidas pensadoras feministas africanas, como a própria autora, mas também Amina Mama, Patricia McFadden e Ifi Amadiume, de entre muitas outras, esta personagem representa uma ativista comprometida com o projeto feminista, que visa à transformação das relações de género patriarcais e à libertação e o empoderamento das mulheres.

Constatamos, pois, que, contrariamente ao conto “Cela Um”, as mulheres em “A Historiadora Obstinada” são, regra geral, firmes e seguras de si, o que significa que, a abrir e a fechar a coletânea A coisa à volta do teu pescoço, nos deparamos com mulheres muito diferentes que compõem o espaço denominado Nigéria, o que segue a linha do acolhimento e valorização da diversidade, já reclamada por Adichie (2009ADICHIE, Chimamanda. The Thing Around your Neck. New York: Alfred A. Knopf, 2009b.a) na sua TED Talk “The Danger of a Single Story”.

A mesma diversidade está plasmada em Estórias abensonhadas, do moçambicano Mia Couto (2018COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 13 ed. Alfragide: Editorial Caminho, 2018.), noutro canto de África. Muito embora a história literária de Moçambique seja diferente da Nigéria, e de qualquer outro país africano, em virtude de um contexto social e político também diferente, observamos, muitas vezes, que a crítica literária, eurocêntrica, agrega todos os tipos de literatura debaixo de um único chapéu, que designa por “literatura africana”. Esta visão essencialista, por oposição a uma visão dialética, simplifica e homogeneíza um continente com uma história e cultura distintas, obliterando-se, a título de exemplo, que o quadro de referência do processo de decolonialização da literatura moçambicana iniciou mais tarde do que a nigeriana e que, contrariamente a esta última, se evidencia a preferência do termo pós-independência, em detrimento de pós-colonialismo. Conforme postulado por Adichie (2009ADICHIE, Chimamanda. The Thing Around your Neck. New York: Alfred A. Knopf, 2009b.a), “Esta história única de África acaba por vir, penso eu, da literatura ocidental. (...) [Q]uando rejeitamos a história única, quando nos apercebemos de que nunca há uma única história sobre nenhum lugar, reconquistamos uma espécie de Paraíso”.20 20 Do original: [t]his single story of Africa ultimately comes, I think, from Western literature. (...) [W]hen we reject the single story, when we realize that there is never a single story about any place, we regain a kind of Paradise.

Mia Couto rejeita a visão de uma história única no próprio contexto de Moçambique e, nas suas Estórias abensonhadas, desfilam personagens bastante ecléticas, nos mais diversos cenários. As questões de género não são esquecidas por este moçambicano, um feminista convicto para quem, nas palavras de Phillip Rothwell (2015ROTHWELL, Phillip. Leituras de Mia Couto - Aspectos de um Pós-Modernismo Moçambicano. Coimbra: Almedina, 2015., p. 25), “as mulheres são o grupo mais habilitado e capaz de atravessar fronteiras: por isso, nelas, nas mulheres e nas suas ações, reside o melhor para o futuro da nação”. É com base nesta esperança, na senda de um novo rumo para a garantia dos direitos das mulheres, que analisaremos a representatividade feminina em cinco brevíssimos contos selecionados de Estórias abensonhadas, particularmente “Na Esteira do Parto”, “O Perfume”, “Os infelizes cálculos da felicidade”, “Joãotónio, no enquanto” e “Os olhos fechados do diabo do advogado”.

O fio condutor dos 26 contos é a reconstrução da vida após a Guerra Civil de Moçambique, que teve lugar entre 1977 e 1992, e que devastou o país, mas em cujo território as personagens se vão “refazendo e (...) molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada” (Mia COUTO, 2018COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 13 ed. Alfragide: Editorial Caminho, 2018., p. 7). Na nossa análise, lançaremos um olhar sobre o quotidiano de algumas mulheres, que nos deixam com um esgar de angústia pela forma como são tratadas, mas também testemunharemos a confiança e autodeterminação de outras figuras femininas que resistem à opressão e à exploração, tudo isto num espaço natural muito próprio, tal como o é a linguagem usada para dar forma a estas “estórias”.

Como Márcio Cantarin (2011CANTARIN, Márcio. “Uma Antiga Identificação para uma Ulterior Identidade: Mia Couto e a Emergência de um Novo Paradigma Civilizacional”. In: MOREIRA, Fernando; RIBEIRO, Orquídea (Orgs.). Encontros com África - Moçambique. Vila Real: CEL - Centro de Estudos em Letras/Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2011. p. 55-73. (Coleção Cultura 4) Disponível em Disponível em https://www.utad.pt/cel/wp-content/uploads/sites/7/2018/05/CEL_Cultura_4-1.pdf . Acesso em 03/02/2020.
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) nos lembra, “É preciso (re)sacralizar o homem e a mulher em suas relações com o cosmo, promover a re-ligação de todas as coisas, alterar a lógica do poder-dominação que enxerga o poder como fim e não como meio para evoluir” (p. 65). À luz desta tentativa de redimensionar o tratamento tradicionalmente dado à mulher, Mia Couto apresenta-nos Tudinha Rosa, em “Na Esteira do Parto”, que surge inicialmente como uma personagem que parece não se enquadrar no momento de expectativa e de felicidade que habitualmente caracteriza este estado de graça. Pelo contrário, o casal chega à casa de Maria Cascatinha e de Ananias “em dupla obscuridade”, “pedi[ndo] licença à penumbra” (COUTO, 2018COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 13 ed. Alfragide: Editorial Caminho, 2018., p. 29). Diamantinho, o cabeça de casal, “parecia alheio à mulher” (Ibidem) e depressa se pôs à vontade, solicitando uma bebida, e deliberada e egoisticamente convocando para si todas as atenções e confortos, “saboreando prazeres desta e de outras vidas” (Ibidem, p. 30). Quando confrontado com a sua displicência e desatenção face à situação da mulher, Diamantinho confessa-se um narcisista sem remédio, nem remorsos: “... eu só penso da minha pança para cá. Na realmente, não valho as penas. Também já sou assim desde a barriga do meu pai” (Ibidem).

Entretanto, Tudinha, a “sua indiscutível esposa”, encontrava-se em agonia e sofrimento profundo, mas em plena harmonia com “a terra, a mãe das mães”, no chão deitada. Como o “candidato a pai” se demonstrava imperturbável, “Ananias rompeu a tradição” e juntou-se às parteiras para as auxiliar naquele ato que já tardava e que, segundo os adágios populares, indiciava “infidelidade da mulher” (Ibidem, p. 31). É curiosa a assertividade nas palavras do narrador heterodiegético que confere à Tudinha um estatuto de “indiscutível esposa”, sofrida, sem a presença e o alento do marido, por oposição à incerteza do título de Diamantinho, “candidato a pai”, como se estivesse sujeito à eleição. Afinal, percebemos que os “partos [não] são exclusivo assunto de mulheres” (Ibidem, p. 30), porque a tradição se renova. Também os comportamentos se transformam e se, numa primeira instância, Maria Cascatinha, mulher do anfitrião, se agarra às memórias da esteira como símbolo de tradição, amor e vida, quando se sabe traída prossegue o seu trabalho, “em estado de nem-estar” (Ibidem, p. 32), mas rompe com o passado ao acompanhar o marido traído a casa e ao não regressar, abandonando “a sagrada esteira” (Ibidem, p. 33). Também Tudinha se desvincula do estatuto de “indiscutível esposa”, pobre coitada, vítima de um tratamento de indiferença e superioridade, para se assumir como ser dominante, capaz de exercer controlo sobre a sua vida, satisfazendo os seus desejos e caprichos perante um marido alheado e cheio de si.

No conto que se segue, “O perfume”, a protagonista, Glória, surge como uma mulher sem voz, tal como Tudinha e a protagonista do primeiro conto de Adichie. Glória é submissa ao marido, habituada a satisfazê-lo, numa entrega total, sem ter retorno. Fica, pois, surpreendida e sem reação quando Justino, o marido, lhe oferece “em suas mãos um embrulho cor de presente” (Ibidem, p. 35), que ele próprio acaba por abrir para revelar um vestido colorido. Ela, caracterizada como “subvivente”, é alguém cujas expectativas se tinham perdido no tempo e ia vivendo sem sonhos, numa vida insípida, sem saber o que é liberdade, presa num entre-lugar, de fronteiras híbridas, por ser mulata.

Percebemos que Glória se deixou cair no esquecimento dos desejos e interesses próprios para evitar os ciúmes do marido e, por isso, não ia à janela, entregava o cabelo ao desleixo, não punha perfume - única prenda do marido à qual se adicionava, agora, o vestido - nem bâton ou lápis sobre os lábios (Ibidem, p. 37). Quando o fez, por ordem de Justino e em resposta à decisão deste em levar a esposa ao baile, ela olhou-se ao espelho, “desconhecida” (Ibidem). Estava acostumada a servir o marido, a empurrar a carrinha para esta trabalhar, sem demonstrações de cavalheirismo; daí que “[o]s olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade” quando um homem de bom aspeto se aproximou “para um passo respeitoso” (Ibidem). Imprevisivelmente, Justino anuiu e ela apercebeu-se de “um abandono sem nome”; “o marido estava a oferecê-la ao mundo” (Ibidem, p. 38).

Quando Justino a abandona, a pergunta retórica do narrador, quando questiona “De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?” (Ibidem, p. 39), deixa antever uma mudança de atitude da protagonista deste conto. Se primeiramente Glória parte em direção às trevas, em busca do passado, depois, com o clarear do dia, quando se desloca para dentro de casa e, com os seus pés descalços, pisa os vidros do frasco de perfume que lançara pela janela e se evaporara sem nunca o usar, corta-se inadvertidamente e corta com o sofrimento: “Ainda hoje restam, no soalho da sala, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade” (Ibidem, p. 40). O sangue é a marca do recomeço, o símbolo do renascimento.

Tudinha e Glória vencem a sua condição de vítimas, como observámos, contrariando as nossas expectativas e representações sobre a mulher africana, e dando sentido ao epíteto que Teresa Cunha e Isabel Casimiro (2019CUNHA, Teresa; CASIMIRO, Isabel. Territórios em conflito 2: Epistemologias do Sul e alternativas feministas de vida: as cinderelas do nosso Moçambique querem falar. Gernika-Lumo: Gernika Gogoratuz, 2019. p. 71-118. (Territórios em conflito. Chaves para a construção de alternativas de vida [Coleção Rede Gernika]) Disponível em Disponível em https://territoriolab.org/wp-content/uploads/2019/12/Mod-2-POR.pdf . Acesso em 16/04/2021.
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) atribuem a todas estas “Cinderelas do nosso Moçambique (...) capazes de coisas formidáveis contra a repetida vitimização a que as querem condenar (...) [e] transformam, todos os dias, a miséria a que as condenam, em alternativas concretas e viáveis” (p. 74).

Se, efetivamente, de entre as figuras femininas apresentadas pelos diferentes narradores, há também mulheres que aparentam não ser vítimas numa primeira instância, como em “Os infelizes cálculos da felicidade”, em que uma menina-mulher, descrita como “arrebitada” (COUTO, 2018COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 13 ed. Alfragide: Editorial Caminho, 2018., p. 97), rouba o coração ao seu professor de matemática, mestre Novesfora, depressa percebemos que a curta narrativa nos dá conta da vulnerabilidade desta personagem, ao ser trocada por outra jovem, “... ainda muito mais nova, estreável como uma manhã de domingo” (Ibidem, p. 99).

Mia Couto surpreende o seu leitor a cada virar de página, não só por transformar o seu horizonte de expectativas ao nível do enredo e da rutura com estereótipos associados ao contexto em que as suas personagens se movimentam, mas também pelos seus neologismos recorrentes, cunhados como brincriações vocabulares, e pelas “construções frásicas insólitas (...) [como] marcas da espacialidade, em particular da moçambicanidade” (Sara PINHO; Susana AMANTE; João Paulo BALULA, 2015PINHO, Sara; AMANTE, Susana; BALULA, João Paulo. “Topoanálise e a celebração da diferença em O gato e o escuro e em O beijo da palavrinha, de Mia Couto”. In: LOPES, Ana Maria; LOPES, Fernando; BORGES FILHO, Ozíris (Eds.). Espaço e Literatura: perspectivas. Brasil: Ribeirão Gráfica e Editora, 2015. p. 185-203., p. 193), conforme ilustrado no seguinte excerto, de entre tantos outros: “O mestre se desimportava” (COUTO, 2018COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 13 ed. Alfragide: Editorial Caminho, 2018., p. 98).

Outro conto no qual o leitor miacoutiano é convidado a desconstruir a falácia e o perigo da história única, como postulado por Adichie, é “Joãotónio, no enquanto”, no qual se redescobre uma mulher que quebra convenções e surge com um estilo próprio, após um estágio com Maria Mercante, “... mulher bastante inata nas artes de deitar” (Ibidem, p. 103). Maria Zeitona, esposa de Joãotónio, apresenta-se-nos inicialmente como “fria, calafrígida”, de tal forma que o personagem masculino, narrador autodiegético, afirma que “... fazia amores (...) como se fosse com uma defunta[;] (...) com ela praticava (...) relações assexuais” (Ibidem, p. 102). Findo o curso, Maria Zeitona surge renascida, “mudada. (...) [m]as não da maneira que (...) esperava” (Ibidem, p. 104), porque a sua esposa “... se inchara de masculina”, nas palavras do protagonista. Por não ser a imagem frequentemente associada à condição feminina, Joãotónio sente algum pudor em admitir que gosta da nova atitude de Zeitona. Vê-se assaltado por uma dualidade de sentimentos: por um lado, a descoberta do prazer pelas mãos de uma mulher que lhe oferece o que mais deseja; por outro, a sensação de perda da sua masculinidade e, por conseguinte, o acentuar do “[s]eu rebaixamento” (Ibidem, p. 105). Ainda assim, e porque a situação lhe apraz, procura desculpas, argumentando que “... nos amores sexuais não há macho nem fêmea. Os dois amantes se fundem num único e bipartido ser” (Ibidem), para depois “desraciocinar” e se assumir como “Joãotónio e Joanatónia, masculina e feminino” (Ibidem).

Observamos, pois, um caminho de transformação da mulher singela em mulher dominadora, mas também todo um percurso inverso por parte do narrador autodiegético, que se deixa dominar por uma nova mulher impetuosa, a sua. A este propósito, Tom Stennett (2017STENNETT, Tom. “Writing on Behalf of Those Women ‘Que não [?] Têm Escrita’: Gendered Boundaries inside and outside the Fiction of Mia Couto”. Portuguese Studies, v. 33, n. 1, p. 85-104, 2017.), citando Rothwell, explica que:

… dentro da ficção de Couto há frequentemente um esbatimento da fronteira entre masculinidade e feminilidade, que é dramatizada através de personagens tais como (...) o machista Joãotónio, que se torna Joãotónio/Joanatónia depois de sua mulher se tornar mais sexualmente dominante em ‘Joãotónio, No Enquanto’21 21 Do original: …inside Couto’s fiction there is frequently a blurring of the boundary between masculinity and femininity, which is dramatized through characters such as (…) the machista Joãotónio, who becomes Joãotónio/Joanatónia after his wife becomes more sexually dominant in ‘Joãotónio, No Enquanto’ (…) (p. 87). (p. 87).

Os binómios homem/mulher são desestabilizados, tornando impossível uma taxonomia de género rigorosa, com fronteiras definidas. Aliás, todos estes contos em análise têm em comum, como vimos, a transgressão de fronteiras rígidas para abrir espaço a uma metamorfose que se aproxima de um hibridismo que acolhe a diferença sem hierarquias.

No último conto selecionado, intitulado “Os olhos fechados do diabo do advogado”, testemunhamos uma metamorfose similar através do poder transformador das lágrimas, que humanizam o doutor jurista, homem sem grande paciência, que “ped[e] mais matéria, mais fundamento” (COUTO, 2018COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 13 ed. Alfragide: Editorial Caminho, 2018., p. 107) à sua cliente. “O respeitoso legislador” (Ibidem, p. 110) abandona uma postura conservadora e defensiva ao receber “aulas de choro (...) [porque] Homem chora, sim” (Ibidem, p. 110). A cliente sem nome, que se afirma “form[ada] em tristezas” (Ibidem, p. 109), vai conduzindo o advogado “em derramados prantos” (Ibidem, p. 111), de tal forma que a secretária do doutor se surpreende com o desenrolar dos acontecimentos, quando abre a porta do consultório. Mais uma vez, assistimos a um caminhar rumo à construção de relações mais equitativas entre homens e mulheres. A cliente, experiente na arte do choro, torna-se a força dominadora que guia a mente e o corpo do jurista, desvelando a sua fragilidade.

Ao cotejarmos os vários contos em análise, facilmente concluímos que Chimamanda Adichie e Mia Couto norteiam as suas ações em defesa de um feminismo que reivindica a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, independentemente do reconhecimento das diferenças inerentes a cada sexo e a cada cultura. As representações de feminilidade e de masculinidade são intencionalmente contestadas e subvertidas, enquanto, noutros textos, são mantidas, para que não faltem peças ao puzzle que compõe a globalidade da vida na Nigéria e em Moçambique e que deve refletir uma complexa teia de relações simbióticas

Referências

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  • VAN ZANTEN, Susan. “‘The Headstrong Historian’: Writing with Things Fall Apart”. Research in African Literatures, v. 46, n. 2, p. 85-103, 2015.
  • 1
    Do original: Men and women are different. (…) So in a literal way, men rule the world. (…) We have evolved. But our ideas of gender have not evolved very much. (…) We teach girls to shrink themselves, to make themselves smaller. We say to girls, ‘You can have ambition, but not too much. You should aim to be successful, but not too successful, otherwise, you will threaten the man. If you are the breadwinner in a relationship with a man, you have to pretend that you are not, especially in public, otherwise you will emasculate him.’ But what if we question the premise itself? Why should a woman’s success be a threat to a man? (…) The problem with gender is that it prescribes how we should be rather than recognizing how we are. Imagine how happier we would be, how much freer to be our true individual selves, if we didn't have the weight of gender expectations (Chimamanda ADICHIE, 2014, p. 10-11; 16; 19).
  • 2
    Todas as traduções foram realizadas pela autora do artigo.
  • 3
    Do original: Feminist: a person who believes in the social, political and economic equality of the sexes (Ibidem, p. 25-26).
  • 4
    Do original: We have different hormones and different sexual organs and different biological abilities - women can have babies, men cannot. Men have more testosterone and are, in general, physically stronger than women (Ibidem, p. 10-11).
  • 5
    Do original: [t]he person more qualified to lead is not the physically stronger person. It is the more intelligent, the more knowledgeable, the more creative, more innovative. And there are no hormones for those attributes. A man is as likely as a woman to be intelligent, innovative, creative (Ibidem, p. 11).
  • 6
    Do original: Feminists are made, not born. (…) Like all political positions one becomes a believer in feminist politics through choice and action (p. 7).
  • 7
    Do original: All white women in this nation know that their status is different from that of black women/women of color. They know this from the time they are little girls watching television and seeing only their images, and looking at magazines and seeing only their images. They know that the only reason nonwhites are absent/invisible is because they are not white. All white women in this nation know that whiteness is a privileged category. The fact that white females may choose to repress or deny this knowledge does not mean they are ignorant: it means that they are in denial (p. 55).
  • 8
    Do original: I am an invisible man. (…) I am invisible, understand, simply because people refuse to see me. (…) It is as though I have been surrounded by mirrors of hard, distorting glass. When they approach me they see only my surroundings, themselves, or figments of their imagination - indeed, everything and anything except me (p. 3).
  • 9
    Do original: Each time they ignore me, I feel invisible. I feel upset. I want to tell them that I am as human as the man, just as worthy of acknowledgement (ADICHIE, 2014, p. 12).
  • 10
    Do original: Why is he thanking me? I didn’t give him the money.’ Then I saw realization dawn on Louis’s face. The man believed that whatever money I had ultimately came from Louis. Because Louis is a man (Ibidem, p. 10).
  • 11
    Do original: cars and electricity and telephones. They [as personagens de Achebe] did not eat fried rice. They lived a life [her] great-grandfather might have lived… (ADICHIE, 2008, p. 42).
  • 12
    Do original: Achebe’s story has been deepened, expanded, completed (p. 91).
  • 13
    Do original: the idea of monolithic authenticity. To insist that there is one thing that is authentically African is to diminish the African experience (ADICHIE, 2008, p. 48).
  • 14
    Do original: From an Afro-centric perspective, motherhood empowers and does not subordinate women. (…) The female principle evokes maternal symbols, values, and ideologies imbued with power that are then expressed in institutions and upheld through customs. They represent the mainstay and sustainability of the group, which can be viewed as the ultimate power. Mothering the nation tends to convey the idea of restorative and diffused power rather than the destructive, hierarchical and concentrated power often expressed by patriarchal ideologies (STEADY, 2011, p. 218).
  • 15
    Do original: there were no women - defined in strictly gendered terms (OYĚWÙMÍ, 1997, p. xiii).
  • 16
    Do original: [f]or many Africans, feminism is a curse word, and in countries such as Nigeria (...) an outright negation of Africanness (p. 312).
  • 17
    Do original: I call nego-feminism - the brand of feminism that I see unfolding in Africa. But what is nego-feminism? First, nego-feminism is the feminism of negotiation; second, nego-feminism stands for “no ego” feminism. In the foundation of shared values in many African cultures are the principles of negotiation, give and take, compromise and balance. (…) African feminism[s] (or feminism as I have seen it practiced in Africa) challenges through negotiations and compromise. It knows when, where, and how to detonate patriarchal land mines; it also knows when, where, and how to go around patriarchal land mines. In other words, it knows when, where, and how to negotiate with or negotiate around patriarchy in different contexts. For African women, feminism is an act that evokes the dynamism and shifts of a process as opposed to the stability and reification of a construct, a framework (p. 377-378).
  • 18
    Do original: Cultural identity (...) is a matter of ‘becoming’ as well as of ‘being’. It belongs to the future as much as to the past. It is not something which already exists, transcending place, time, history and culture (Stuart HALL, 1990, p. 225).
  • 19
    Do original: As they embark on their various migrations, these female characters are made vulnerable to exploitation by brothers, uncles, and husbands, as well as by sisters, aunts, mothers, and grandmothers. They frequently confront the double oppression of gender and race, and can, at times, surmount these obstacles through negotiations, small acts of resistance, and subtle subversions. In the texts in question, the family is both the site of these negotiations and the source of anxiety over the tenuousness or provisionality of family bonds stretched across the diaspora (p. 1242).
  • 20
    Do original: [t]his single story of Africa ultimately comes, I think, from Western literature. (...) [W]hen we reject the single story, when we realize that there is never a single story about any place, we regain a kind of Paradise.
  • 21
    Do original: …inside Couto’s fiction there is frequently a blurring of the boundary between masculinity and femininity, which is dramatized through characters such as (…) the machista Joãotónio, who becomes Joãotónio/Joanatónia after his wife becomes more sexually dominant in ‘Joãotónio, No Enquanto’ (…) (p. 87).
  • 22
    Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: AMANTE, Susana. “Chimamanda Adichie, Mia Couto e o combate às expectativas de género”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e75873, 2022
  • 23
    Financiamento: Não se aplica
  • 24
    Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • 25
    Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2020
  • Revisado
    19 Abr 2021
  • Aceito
    24 Maio 2021
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